
Para início de conversa, não foi um dia de vindima, foram dois: no dia 17 de setembro, colhemos as uvas brancas; e no dia 24 de setembro, sábado seguinte, colhemos as tintas. Emoção dupla!
Acalmando os impacientes, minimizo o suspense para dizer que, dentro do possível, tudo correu bem!
Começo pela parte mais fácil, vamos à matemática. Números são frios, porém diretos e uma das formas de avaliarmos nossos resultados.
As negociações com as uvas aqui no Douro são feitas normalmente utilizando uma unidade chamada “pipa”. Cada pipa equivale a 750 kg, que por sua vez, originam aproximadamente 550 litros de bebida.
No ano passado, quando pegamos um vinhedo completamente mal cuidado e já sem tempo de se recuperar, colhemos apenas uma pipa (750kg) e entregamos as uvas, não fizemos nenhum processo de vinificação, até porque além da completa falta de conhecimento, não tínhamos um lagar em condições.
Esse ano, 2022, antes do incêndio, nossa previsão era colher por volta de 7 pipas, cerca de 5 toneladas de uvas tintas e brancas (75% brancas e 25% tintas). O fogo nos atingiu em cheio, apenas 15% das uvas brancas intáctas, ainda que próximas às chamuscadas; outros 15% de uvas brancas levemente afetadas; e o resto todo, 70%, queimado! Assim que ninguém ao nosso redor esperava que fôssemos capazes de colher mais que uma única pipa em condições, mesmo assim, sem ter a certeza que a fumaça comprometeria a qualidade das uvas. Ou sequer se nos valeria à pena ter o trabalho de colhê-las ou melhor seria entubar o prejuízo e minimizar as perdas.
Depois de um esforço, modéstia às favas, hercúleo, e não por nos auto elogiar, mas porque não tínhamos alternativa, colhemos ao redor de 2,5 toneladas de uvas (2 K de brancas e 500 kg de tintas). Ou seja, 50% do que pretendíamos colher em uma situação normal, porém mais que o triplo das expectativas e do ano anterior.
Claro que podemos ler esses números como o copo meio cheio ou meio vazio. Porém, minha opção é ler como o copo transbordando, fala sério! Prefiro mil vezes 50% de alguma coisa que 100% de nada!
Mas, veja bem, até agora, só falei de números, o que sinceramente, acredito ser a menor parte dessa equação. Porque há coisas, caríssimos, que não se medem em valores percentuais ou financeiros.
Nesse último ano de trabalho, posso assegurar que foi o equivalente a uma faculdade inteirinha, me arrisco a dizer que até iniciei um mestrado nas minhas vinhas! Mais que isso, o curso foi no exterior, quando você também precisa entender a cultura local.
Resumidamente, chegamos a um novo país em plena pandemia de COVID, com dois gatos a tiracolo e um passado resumido em 50 caixas embaladas. Tomamos posse de uma vinícola quebrada com duas casas inabitáveis. Eu mal entendia o sotaque das pessoas, imagina o que entenderia sobre a terra, vinhas, documentação…
Em um ano, olha onde a gente chegou? Entrei com o respeito de quem visita e com a vontade de quem quer ficar. Escolhi essa vida e esse lugar, o pacote completo, com a parte boa e a ruim, com os prazeres e as dores. Luiz chegou junto, apesar de seguir trabalhando em outro país, independente de estar ou não fisicamente presente, esteve sempre ao meu lado. Mas essa parte conta ele, só tenho o direito a falar por mim.
O fogo deixou suas cicatrizes, que ainda recentes, um dia vão parar de arder. Adoro uma frase do Isak Dinesen: “A cura para tudo é água salgada: suor, lágrimas ou o mar”. E muita água salgada rolou por aqui! Mas sei que, uma vez curada, a lembrança que ficará é que éramos tão parte da comunidade a ponto dos vizinhos se arriscarem para salvar nossa casa; que os amigos, de longe ou de perto, compartilharam o sofrimento conosco e o deixaram mais leve; que saiu gente conhecida e desconhecida oferecendo ajuda, apoio, dinheiro, ideias; que recebi mensagens emocionantes, bonitinhas, inspiradoras; que tiramos fôlego dos rins para trabalhar nas vinhas; que buscamos conhecimento; que ouvimos, ouvimos, ouvimos… aprendemos, aprendemos e aprendemos todos os dias!
E, finalmente, tudo isso culminou em um resultado: teve vindima!
Fomos no suspense até o finalzinho, controlando o grau das uvas diariamente, administrando o complicado cobertor curto entre a espera do momento ideal para a colheita da uva e o quanto essa mesma uva aguentaria viva no pé. É uma escolha de Sofia, porque a cada dia perdia um pouco mais de produção, mas também não adiantava colher uvas que não possibilitariam executar um bom vinho.
Perdemos a adega que faria a vinificação… conseguimos outro lagar emprestado e ajuda para o processo há duas semanas da possível colheita … descobrimos que não tínhamos direito ao seguro de incêndio… há 3 dias da vindima, caiu do céu um enólogo… e os amigos que se propuseram a nos ajudar na colheita com uma paciência de Jó, sem poder confirmar as passagens nem hospedagem… não dá mais, é agora ou não é!
Marquei para o final de semana, 17 de setembro, sábado, as uvas brancas e, supostamente, no domingo 18 faríamos as tintas.
Na sexta-feira, os amigos começaram a chegar. Admito que estava meio tensa. É normal ficar um pouco mesmo, mas a pressão nas costas desse ano tinha várias cerejinhas do bolo, né? No sábado, às 7h da matina estávamos a postos e prontos para começar. Havia gente com e sem experiência, portanto, dividi os grupos de maneira que os novatos tivessem sempre alguém com experiência por perto. Luiz ficou de coringa, dando apoio aos grupos e recolhendo os baldes cheios. Ano passado, a coringa fui eu, esse ano, fiquei na colheita.
Por volta de 13h, havíamos colhido todas as uvas brancas. A produção foi maior que esperávamos, tivemos até que pedir baldes emprestados aos vizinhos. Foram pouco mais que 70 baldes, cada um com aproximadamente 28 kg. Ainda restaram algumas uvas brancas, mas não tínhamos mais como transportar, de maneira que Luiz teve a ideia de doar o que sobrasse de uvas brancas para os vizinhos. De toda maneira, o caminhão só poderia transportar as uvas para o lagar emprestado a partir de 16h30. Decidimos, então, fazer uma pausa para almoçar, até porque o dia prometia ser ainda bastante longo.
Foram necessárias duas viagens para levar todas as uvas brancas e já começamos a vinificação das mesmas no final da tarde. As uvas estavam com 11,5 graus, o que não é ruim para as uvas brancas. Porém, essa mesma medida para as tintas seria baixo. De maneira que o enólogo que estava nos apoiando sugeriu que adiássemos a colheita das uvas tintas para a semana seguinte.
Aceitamos a recomendação, o que se provou a melhor decisão. Nós deixamos o lagar emprestado por volta de 22h, eles inclusive, seguiram por lá mais tempo. Estava completamente exausta! Não tinha nem mais voz! Ainda que não estivesse terminado, me tirou um peso de literalmente 2 toneladas dos ombros!
Entretanto, os amigos que foram nos ajudar estavam completamente curiosos com a colheita e vinificação das uvas tintas. As uvas brancas simplesmente passam por um esmagador e um tipo de prensa, vão para as cubas no mesmo dia. São as uvas tintas que vão para o lagar para serem pisadas. Ou seja, claro que todo mundo ficou com vontade de participar da “pisa”! Mas nunca poderia pedir para eles voltarem na semana seguinte, vamos combinar, que já estavam me ajudando muito, né?
Pois, acredite se quiser, todos toparam voltar, um dos casais inclusive, decidiu nem ir embora!
Muito bem, passei a semana cuidando da uva tinta e, felizmente, uma chuvinha na semana anterior ainda ajudou a segurá-las vivas um pouco mais de tempo. Sim, durante essa semana perdi uma parte da produção, que conto melhor na sequência, porém o grau chegou aos 14, que era o ideal!
Chegou o sábado seguinte, 24 de setembro, e novamente os amigos animados trazendo aquela super energia que a gente precisava. Mais um casal de Mirandela se juntou a nós.
Novamente, nos separamos em grupos e fui para a parte mais alta com uma amiga, onde as vinhas foram mais afetadas e precisávamos ser mais seletivas. Os amigos orientados para, em caso de dúvida, provar do cacho para garantir que só o que estivesse bom seria colhido. Juro para vocês que a colheita das uvas tintas foi nesse nível de detalhe!
Vou ser sincera, essa colheita teve um aspecto frustrante para mim, porque por mais realista que estivesse mantendo as expectativas. Nossas vides tintas foram totalmente afetadas, não havia um só pé que não houvesse ardido de alguma maneira. Porém, na primeira semana após o incêndio, quase todos esses pés, ainda que secos, carregavam cachos saudáveis e fui acompanhando dolorosamente o processo deles murcharem e mudarem de cor ao longo dos dias. É complicado assistir essa torneira aberta e não poder fazer nada a não ser regar eventualmente, torcer e esperar.

Antes de 10h, nossa colheita estava encerrada, contei os baldes, fiz meus cálculos por alto e percebi que tínhamos cerca de 500 kg de uvas tintas. O que não disse no dia e só compartilho agora é que essa última semana de espera para alcançar o melhor grau nos custou mais de 200 kg de produção. Liguei para o enólogo para avisá-lo e prepará-lo para os químicos necessários, queria também saber se seria possível produzir essa quantidade, o que ele me confirmou.
Liguei para o responsável pelo lagar para ver se conseguíamos adiantar um pouco a recolha das uvas, marcada para às 14h. Nesse momento, ao saber da quantidade, ele me ofereceu uvas para vender e completar uma produção maior, o que não me interessou.
Comentei a conversa com Luiz, que queria me convencer de todo jeito a aceitar a compra das uvas. Eu já estava estressada com a perda das uvas durante a semana para garantir o grau, agora mais essa? Bati o pé e fui terminantemente contra! Não fazia o menor sentido! Desde o início, essa trabalheira toda para salvar nossa produção justamente para entender que vinho éramos capazes de fazer, e agora, aos 45 minutos do segundo tempo, ia lá eu misturar com uvas de outra Quinta? E sabe-se lá que qualidade tinham essas uvas? Se eu tivesse algum compromisso comercial para vender meu vinho é outra coisa, mas não era o caso. Pelo contrário, só iria aumentar nossos custos e para que?
E mais, se por um lado toda essa situação prejudicou nossa produção; por outro, as poucas e restritas garrafas dessa safra terão características únicas, em história e em sabor! Isso faz toda diferença! E pronto, me concentrei nesse aspecto e a irritação foi se acalmando.
Nisso, já relaxados, tomando vinho e lanchando, recebemos o convite para tomar “algo especial” na casa do nosso vizinho de baixo. Lá vamos nós animados, eu achando que era só para tomar o Portinho caseiro que ele faz, que é um esculaxo de bom!
Acontece que o “algo especial” se tratava de um Porto literalmente centenário que ele havia encontrado escondido atrás de uma cuba, em um lagar abandonado que seria reformado. Esse meu vizinho avistou a tal garrafa, foi se arrastando na terra por baixo das cubas na curiosidade do que seria e se deu com essa preciosidade. Acredite se quiser, teve a generosidade em dividir conosco essa experiência impagável de tomar esse néctar dos deuses! É difícil explicar o que era aquele sabor e compartilhado com aquelas pessoas tão especiais. Daqueles momentos que valem uma vida inteira!
E se ainda restasse alguma fração de tensão no corpo, se dissipou completamente ao chegarmos no lagar e nos prepararmos para pisar as uvas. Entrei na piscina de concreto sozinha, para espalhar as uvas esmagadas e separadas de seus bagos que baixavam por uma mangueira. A sensação de tocar aquele suco grosso e frio com a sola dos pés é agradável e diferente de tudo que havia experimentado. É tudo junto, desde a questão sensorial, física, como também o que passa na cabeça, a concretização de todas as coisas que aprendemos e passamos nesse mesmo ano. Naquele momento, todo trabalho de um ano inteiro ao alcance dos meus pés. Eu precisava desse ritual.
Aos poucos, os amigos foram se juntando, não sabíamos muito bem quantas pessoas poderiam estar ali, se isso ajudava ou atrapalhava, se devíamos nos revezar. Mas quem é que queria sair de lá? No final, éramos 6 pessoas lá dentro e tudo bem! Brincamos, cantamos, dançamos quadrilha… cada um na sua viagem e ao mesmo tempo, juntos no mesmo objetivo.
Os pés ficam roxos, principalmente na sola! Leva dias para sair e não há banho que resolva! Mas não trocaria esse dia por nada! E sou feliz porque sei que outros dias assim virão, os próximos, no meu próprio lagar.

Dia seguinte, fomos almoçar e ainda nos juntamos a outros dois casais que vieram do Porto com a intenção de também ajudar na colheita, mas chegaram um pouco tarde. Fomos comer um cabrito assado para celebrar essa etapa e despedir dos amigos. Todos mais relaxados e cúmplices, afinal, compartilhamos momentos únicos, imagens, aromas, sabores e sensações. Ok, admito que o vinho até me subiu um pouco à cabeça, acho que foi aquele momento de alívio e de certa euforia de ter superado essa fase.
Não costumo citar os nomes das pessoas aqui no blog, abro raramente certas exceções e hoje é uma dessas vezes, porque necessito expressar minha gratidão a pessoas muito, mas muito queridas, que sairam das suas casas e abriram mão do seu precioso tempo para nos ajudar. Sandrinha, a amiga que também participou da nossa primeira vindima, é sempre a primeira a confirmar e chegar desde Madri com toda energia positiva da face da terra; Astréia e Renato, novos super amigos que conquistaram rapidamente o status de família, que vieram também de Madri e ainda trouxeram o Renatinho filho para reforçar o grupo; Mauro, um amigaço que tive o prazer e o privilégio de resgatar dos tempos que ainda trabalhava em consultoria de negócios no Brasil, e agora compartilhamos novamente o mesmo país, ele em Lisboa; Zé e Laurindo, dois irmãos e nossos vizinhos de baixo, os mesmos que se arriscaram para salvar nossa casa do incêndio e dona Amália, a esposa do Laurindo, que também veio contribuir; vou repetir o Zé, que além do que falei acima, ainda compartilhou seu Porto de mais de 100 anos conosco, tornando essa experiência ímpar não só para mim, mas para todos nossos amigos; Annibal, meu amigo-primo, que estava de férias na região com amigos que nem me conheciam mas vieram, Vik e seu filho, para colaborarem no primeiro dia de colheita; Paulo e Sandra, amigos recentes e já frequentes em nossa casa, com objetivos parecidos aos nossos, que vieram de Mirandela nos apoiar na colheita das uvas tintas. Todos vocês, promovidos ao “conselho diretor” no ano que vem e com lugar garantido na nossa casa e na nossas vidas!

Não sei como será o vinho, é cedo ainda e já aprendemos que nada na vida é garantido, mas essa será uma outra história e ficará para outro dia. Fecho hoje esse ciclo com a sensação de missão cumprida, fiz “o meu melhor possível”.
E lembram daquela equação lá atrás, a que falei dos valores numéricos e percentuais, pois bem, o que fecha essa conta é impossível de se colocar um preço. Como é que posso mensurar todo um caminho? Como posso atribuir um valor para tudo que aprendi e vivi nesse último ano? Como posso ser grata o suficiente?
E falando em gratidão, faltou o principal. Acho muito bonitinho como eles aqui usam o termo “meu” para definir de maneira carinhosa a família mais próxima. Como se o pronome não quisesse mais ser tão possessivo e se tornasse paradoxalmente pessoal. Por exemplo, eles não dizem: meu filho, Pedro. Eles dizem diretamente, meu Pedro. Pois finalizo agora lusitanamente agradecendo ao “meu Luiz”, entre erros e acertos, sustos e vitórias, seguimos aqui de pé e juntos, meu amor, melhor amigo e parceiro, somos um time e tanto! Às vezes, não tem jeito e a gente escorrega um pouco, mas “Capoeira que é bom não cai. E se um dia ele cai, cai bem!”
