A saga dos bastidores

Como Luiz costuma dizer, vocês olham as cachaças que eu tomo, mas não os tombos que eu levo! Entretanto, prometi que vou contar tudo, então, vamos lá!

Podemos dizer que, oficialmente, essa saga específica começou há cerca de um ano, quando iniciamos nossa busca de uma propriedade rural em Portugal, por volta de junho de 2020. Até encontrarmos o que queríamos, levou alguns meses e o contrato de compra e venda foi assinado em outubro. Mas, enfim, essa parte da história, em que compramos através de uma visita virtual, já foi contada na crônica passada.

Bom, sabíamos que haveria uma razoável espera até toda a documentação ficar pronta. E para nós, essa era uma espera bastante positiva, pois ganhávamos tempo para entender um pouco melhor em que encrenca a gente estaria se metendo!

Fora a questão das viagens durante a pandemia! Era um tal de abre e fecha fronteira a toda hora! Ou melhor, um tal de fecha e fecha mais ainda, porque abrir que é bom… estava difícil! E aí, como você contrata gente para trabalhar? Como você faz obra? Meus primos ajudaram bastante, mas não dá para você contar com os outros para resolver seus pepinos sempre, né? Nem seria justo! Todo mundo tem seus próprios problemas para resolver e vamos combinar, em tempos de COVID, ninguém estava tão tranquilo assim.

E o que era essa documentação? É o seguinte, nessa região do Douro Vinhateiro, há uma série de regras rigorosas em relação à construção nos terrenos e ao plantio das vinhas. O que pessoalmente, concordo, porque precisa mesmo haver esse tipo de controle ou a coisa vira bagunça.

Não pode chegar um indivíduo por lá e resolver plantar qualquer casta de uva porque o terreno é dele! Precisam ser as castas da região. É bom para quem quer ser produtor de vinho, porque também é uma certa garantia de boa qualidade. Da mesma maneira, as construções também são regulamentadas, você tem um máximo de metragem que pode construir de acordo com o tamanho do terreno, não pode distoar arquitetonicamente, há uma limitação de cores…

Essa parte é um pouco técnica, mas acho que vale explicar e se não quiser saber, é só pular alguns parágrafos.

Basicamente, você tem dois tipos de terreno, que eles chamam de “artigo”. São eles: o artigo rústico, para plantio e o artigo urbano, para construção. Em um artigo rústico, você não pode construir nem a pau! Só pode plantar e, ainda assim, respeitando as regras da região. O artigo urbano é só a construção, que por sua vez, tem um limite de metragem quadrada. Eventualmente, você consegue expandir um pouco esse limite, mas muito pouco e precisa se aprovar o projeto na câmara.

Isso quer dizer que, por exemplo, a nossa Quinta não é simplesmente um terreno com duas casa dentro, são 11 artigos, sendo 9 rústicos e 2 urbanos. O somatório desses 11 artigos são aproximadamente 3 hectares de terreno com duas construções. A escritura é uma só, mas descreve especificamente cada um desses 11 artigos. E cada artigo tem um valor separado, ou seja, tivemos 11 preços diferentes e a somatória desses preços é o valor total da escritura.

Imagina você indo a um supermercado e comprando 11 artigos, quando você for pagar no caixa, paga tudo junto, é uma compra só, mas na nota vem separado o valor de cada ítem. É igual.

A tributação e honorários na hora de fazer a escritura e registro da propriedade não é nada simples. Começando pela parte mais fácil, porque é fixo independente do preço do imóvel (valores referentes a junho/2021), foi cobrado pela escritura €375,00, mais €165,00 de consulta do registro predial, mais €500,00 de registro dos prédios. Inclua-se os honorários do notário, aproximadamente €750,00 (adicionados de 23% de IVA). Esse é o básico! Mas tem os impostos para cada artigo, que são o IMT e o Imposto do Selo. O imposto do selo também é fixo e igual para todos os artigos, no valor de 0,8%. Mas o tal do IMT varia completamente!

E aí começa a complicação, o IMT para artigos urbanos é de 1% do valor declarado e dos artigos rurais é de 5%. E se o artigo urbano for sua habitação permanente, ela é isenta de IMT. Até aí parece simples, né? Só que tem um detalhe, você tem o valor total da compra, certo? Mas sabe quem define quanto desse valor vai para cada artigo? Você!

Por exemplo, vamos supor que você tenha comprado 3 artigos, 2 rústicos e 1 urbano, por €100. É você que decide como distribuir, dá no mesmo dizer que os 2 rústicos valem €10 cada um e o urbano vale €80… ou que um rústico vale €10, outro vale €70 e o urbano vale €20… tanto faz, desde que no final, a conta some os €100. Daí, claro, como os artigos rústicos pagam maior imposto, todo mundo quer botar o valor maior no artigo urbano!

E pode? Pode, mas tem uma pegadinha…

A escritura é um documento público e os vizinhos, por lei, tem prioridade na compra dos artigos. Se algum vizinho descobrir que o terreno foi vendido, pode ir lá buscar por qual valor e, se estiver num valor muito baixo, ele pode entrar na justiça e ter a prioridade na compra. E ele pode fazer isso em até 6 meses depois da escritura lavrada. Ou seja, se você colocar um preço muito ridículo nos artigos rústicos para se livrar do imposto, corre o risco de se aborrecer com os vizinhos e até perder a compra!

E se está complicado para você que leu com tudo mastigadinho e explicado, imagina para a gente descobrir todo o processo?

Muito bem, mas chega de tecnicidade, vamos voltar à saga!

Lembra que eu falei lá atrás que precisávamos esperar a documentação da Quinta ficar pronta? Lembra que falei também que as regras de construção e produção nessa região são muito específicas? Então, a casa principal da nossa propriedade havia sido construída em 1951, antes mesmo de toda essa regulamentação atual. O que queria dizer que, mesmo não havendo sido uma construção ilegal, e não foi, não estava dentro dos padrões vigentes e, portanto, a venda não poderia ser efetivada e a escritura não poderia ser lavrada. Foi essa adequação da casa dentro das regras atuais que levou 7 meses para ser resolvida! Boa parte desse atraso se deu pela pandemia, entretanto, outra parte grande era burocracia. No fundo, a gente nunca teve grandes dúvidas que seria resolvido, afinal, não era ilegal e o proprietário tinha toda a documentação em nome dele, mas sabíamos que não seria rápido e não tínhamos ideia de quando terminaria.

O problema, caríssimos, é que as vinhas não esperam a burocracia se resolver. Entre outubro e fevereiro, não havia muito trabalho a ser feito, mas a partir daí, a coisa começa a acumular e, ao menos a poda das vinhas precisava ser realizada. Começou o jogo de empurra! O proprietário querendo nos cobrar pelo serviço ou que nós mesmos fizéssemos o trabalho e a gente naquela situação de, como é que vou pagar por um serviço de uma propriedade que não é minha e não sei se vai ser ou quando vai ser? E vamos combinar, o problema da documentação era dele, não nosso! A gente estava sendo legal pacas em esperar pacientemente!

Fizemos a seguinte proposta: você cuida das vinhas e, independente de quando a venda seja efetivada, você fica com a produção desse ano. É o que eles chamam de arrendamento da terra. Pareceu-me bastante justo, nós abriríamos mão da produção de 2021, mas não teríamos que esquentar a cabeça, não teríamos custos, nem precisaríamos buscar gente para trabalhar.

Essa intermediação foi feita pela corretora do imóvel e eles aceitaram. Ótimo! Para nós, estava resolvido, fiquei tranquila.

Só que não… porque chegou março e a gente, de repente, recebe a ligação dele “preocupado” porque o tempo estava passando e estava no limite para fazer a poda e nada…

Oi?

Ele insistiu que foi um mal entendido, que foi a corretora que fez confusão, que ele já tinha até se mudado de lá… enfim, não acreditei! Depois, em outras ocasiões, a gente percebeu que ele sempre mudava a história de acordo com a própria conveniência. Mas não importa, porque as vinhas precisavam ser podadas, independente de quem estivesse falando a verdade. Resumindo a ópera, meia dúzia de historinhas mais e um preço que foi o dobro do combinado… pagamos nós o raio da poda das vinhas e paciência!

Aliás, para quem pretende estabelecer algum tipo de negócio por essas bandas e tem a ideia romântica do caipira super honesto, pode esquecer! Não diria que é exatamente uma desonestidade, mas é lei de Gerson total! Verdade que pode acontecer em qualquer lugar e também tem muita gente boa, mas melhor não se distrair. Porém, uma vez que tenha a confiança estabelecida, aí é outra história.

Muito bem, chegou abril, nada da documentação ficar pronta e a água começou a bater no joelho… porque agora era questão de pouco tempo e as fronteiras entre Inglaterra e Portugal seguiam super fechadas!

Mas sabe aquela história de que não peço mais que meus caminhos estejam abertos, só peço os obstáculos corretos? Pois então, assim foi. Nossos passaportes e identidades espanholas venciam em maio e não estávamos conseguindo agendar a renovação através do consulado aqui de jeito nenhum! Quando chegou abril, deu medo da gente ficar sem documento válido, trava a vida toda, né? Nós vivemos na Inglaterra como cidadãos espanhóis que somos.

Então, descobrimos uma brecha para poder viajar entre Inglaterra e Espanha. Porque se fôssemos de férias, haveria uma multa de £10.000. Você só poderia viajar em caso de necessidade. E entre essa lista de “necessidades” constava a questão dos documentos. Luiz sem vontade de ir… com medo de ficar preso em quarentenas… de ser multado… a gente foi mesmo na raça! Daí, veio a ideia mirabolante de alugar um carro na Espanha e atravessar a fronteira terrestre para Portugal, sem dizer que morávamos na Inglaterra. Foi um sufoco danado, contarei essa outra saga em algum momento, mas o importante é que deu tudo certo.

A gente não sabia quando teria outra oportunidade de viajar para lá, por isso, aproveitamos essa brecha e fizemos uma procuração para o meu primo comprar em nosso nome. Luiz, finalmente, conheceu a Quinta e deixamos tudo encaminhado para a realização do negócio. Isso foi em abril.

Fiz questão de fazer a procuração com o mesmo advogado com poderes notariais que lavraria a escritura futuramente, para não correr o risco de haver nenhuma divergência! Inclusive, descobrimos que foi no mesmo local que a própria escritura anterior havia sido feita.

Colocamos a bola na frente do gol e voltamos para casa. Ainda assim, com todos esses detalhes cuidados, sabe a probabilidade de alguma coisa não dar certo? Pois é…

Mas deu tudo certo! Um mês após todo esse trâmite e cantar muito para Ganesha, recebi o contato da corretora. A documentação estava pronta!

Cerejinha do bolo, o proprietário encontrou um documento que provava que a casa havia sido construída antes da regulamentação atual e, portanto, como estava isenta das novas regras, poderíamos fazer a escritura quando quiséssemos. Caso você esteja se perguntando se esperamos esses 7 meses à toa, porque essa venda já estaria careca de poder ser realizada… sim! Mas dane-se, porque esse erro foi exatamente o que possibilitou que a Quinta fosse nossa e na hora em que poderia ser!

Não havia voos para irmos novamente assinar pessoalmente, mas não foi nenhum problema, afinal, estava tudo encaminhado para meu primo assinar por procuração e assim foi!

Escritura lavrada em 27 de maio de 2021, quinta-feira, noite de super lua cheia!

Para quem acha que finalmente está tudo resolvido e a gente pode relaxar… entendeu nada, inocente! Agora é que o bicho vai pegar! Por enquanto, foi só aquecimento!

E tudo bem, cada coisa a seu tempo e vamos aprender pelo caminho! Às vezes, a gente precisa saltar no abismo e torcer para não ser tão alto ou ter água para absorver o impacto! Acreditar que vai dar certo é um excelente começo e acreditamos que sim, agora é trabalhar duro!

8 comentários em “A saga dos bastidores”

  1. Ave Maria! Só vocês com esse espírito aventureiro são capazes de lidar com uma situação como essa, e em um momento tão adverso. Admiro vocês. Bjs

  2. Nossa, realmente não imaginava que a “burrocracia” também acontecia na Europa dessa forma… Que canseira, Bia!!

  3. Oi, Lu! E como acontece! Principalmente, Portugal e Espanha! Você acha que aprendemos com quem? 😁

  4. Oi, Romildo! Às vezes, ou é assim ou não é! Fazer o que? rsrsrsrs… Encarar e acreditar que vai dar certo!☺Beijo

  5. O jogo de verdade vai começar com vocês já aquecidos ! Vai ser show e assim que der vamos lá conhecer.

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