23 – Festa de casamento, roupas e viagem feminina na maionese

Sábado fui a uma festa de casamento, a primeira que vou desde que moro na Espanha, desses festões de botar para quebrar. Lembro do tempo que as pessoas reclamavam quando iam a um casamento, e quando era criança, realmente achava bem chato. Não sei se as festas mudaram ou mudei eu, provavelmente ambas as coisas, só sei que simplesmente adoro ir a festa de casamento!

 

E essa era melhor ainda, porque não havia a cerimônia, festa pura! Beleza, nesse caso, podia usar meu super vestido preto sem ser gafe.

 

O vestido, eu já tinha desde o Brasil, e é o meu favorito. Pena que tenho poucas chances de usar. É clássico e ousado ao mesmo tempo, negro liso com um tecido maravilhoso, o decote na frente é daqueles que sobem pelo pescoço e atrás vai até a cintura, da cintura para baixo é ligeira e discretamente rodado, o que disfarça o quadril e acaba exatamente onde valoriza minhas pernas, a um palmo do joelho. Alguns centímetros a menos, seria vulgar; alguns a mais, seria comum. Mas ele é perfeito e sexy. Saber que ele ainda cabia em mim me deixou quase histérica, também, se não coubesse, passaria uma semana inteira de fome sem me importar.

 

Bom, mas precisava de outro sapato, que coisa desagradável, né? Acho que um homem nunca entenderá o poder do salto alto feminino. Caminho muito pelas ruas, o que me fez praticamente abandonar os saltos, além do mais, ultimamente quase durmo com minhas botas de trekking, não exatamente femininas. Portanto, a possibilidade de um novo sapato de festa me alegrava igual a um brinquedo novo.

 

Gosto dos saltos estratosféricos, daqueles que aumentam suas pernas até a lua! Uma mulher coloca um salto alto e imediatamente ganha poder. Começa porque muda a postura, o bumbum empina e a panturrilha pula, parece que você malhou. Depois, porque ao aumentar a altura, também melhora a proporção do peso, claro. Veja bem o pensamento feminino: cada centímetro corresponde mais ou menos a um kg que você pode ter a mais, logo, se você usar um salto 10 cm, é como se emagrecesse também 10 kgs em um piscar de olhos! Olha que coisa divina, eu não precisava emagrecer, só precisava crescer mais 10 cm! Pronto!

 

Para completar o figurino, tinha que ser com minha gargantilha lindíssima em pedras vermelhas. Depois, aquela maquiagem que perco um tempão para parecer que foi fácil, um penteado meio preso e meio solto, et voilà!

 

Bom, tinha feito todo esse quadro na minha cabeça, mas tive preguiça de experimentar tudo junto e no dia, quase perdendo a hora, me arrumei às pressas, torcendo para o que imaginei desse certo. E deu.

 

Sabe quando você se olha no espelho confiante e pensa, hoje eu tô podendo! Fui subindo o olhar, comecei pelo sapato fantástico, meias finas modelando melhor as pernas, o vestido que ainda era lindo e me caiu bem, a gargantilha combinou… mas quando cheguei no meu rosto, alguma coisa estava diferente do que esperava e não sabia o que. Putz, esqueci de colocar a máscara! Imperdoável! Corrigi rapidamente esse lapso e fomos.

 

No espelho do elevador, me olhei novamente e não eram os olhos, era o jeito de olhar. Por que raios eu penso tanto? Não estava bom ficar feliz em me sentir poderosa? Qual é o problema de inflar seu próprio ego só um pouquinho, cassilda! Meu corpo é relativamente jovem, talvez por não ter tido filhos, não sei, mas passaria por alguém mais nova. Acontece que o olhar não mente e olho com a idade que tenho. E me ocorreu naquele instante que a roupa ainda me caía bem, mas não seria por muito tempo. A gargantilha ainda era linda, mas a pele do meu pescoço já não é mais a mesma e talvez também tenha que parar de usá-la um dia.

 

Não sei se alguém mais compartilha daquela situação irritante de ter que esticar o pescoço a cada fotografia, porque senão começa a fazer papada. No meu caso, tem um complicador porque costumo fechar os olhos na hora “h”. Portanto, agora para tentar sair melhor nas fotos, preciso me cuidar para não parecer uma tartaruga assustada, com aquela cabeça esticada para frente e os olhos arregalados!

 

Papada é uma merda! Isso quer dizer que a pele do seu pescoço está ficando flácida. E a pior combinação de palavras em todo universo é “papada flácida”, sinto uma pontada no coração quando falo as duas juntas.

 

Eu me julgava uma mulher bem resolvida depois dos trinta, porque havia entendido que celulite é parte da vida, você não precisa ser uma laranja, mas umazinha aqui, outra ali é parte do organismo feminino. Rugas? Não tenho tantas, mas honestamente, não me assustam e, se mudar de idéia, taí o botox para um momento de desespero. Energia? Musculatura? Nunca pratiquei tanto esporte como agora. Mas, perto dos quarenta, ninguém me preparou para a maldita papada! Isso sim é uma sacanagem!

 

Paciência, chegamos na festa e estava tudo muito bonito e bem cuidado. Comecei a reparar nas roupas e achei, de maneira geral, as pessoas elegantes. Nem sempre isso é verdade, acho que nos casamentos as mulheres sempre enlouquecem um pouco e aqui, os que passo e olho de relance, me parecem um show de horrores. Mas nesse não e olha que estava especialmente exigente esteticamente, por motivos óbvios.

 

Afinal de contas, será que roupa tem idade? Sempre achei isso meio preconceituoso e exagerado. Será que precisamos mudar tão radicalmente nosso visual? Por que de repente parece que todas as mulheres cortam o cabelo acima dos ombros, pintam da mesma cor loiro-menopausa e começam a usar laquê?

 

Acho que vou fazer um pacto pessoal, a partir dos 40, a cada 10 anos farei uma tatuagem! Nem que seja para ser do contra! Talvez eu corte o cabelo, talvez até pinte de loiro para disfarçar melhor os fios brancos, mas por favor, se eu usar laquê, me internem! Não estarei mais no meu juízo normal!

 

No meio da minha ruminação tentando buscar algum otimismo, vi uma senhora com um vestido vermelho e dourado que achei interessante. Se eu colocasse aquele vestido, pareceria um Papai Noel, mas juro que nela estava muito elegante. Luiz dizia achar a roupa um pouco senhorial, mas que nela funcionava. Foi quando dividi com ele um pouco o tema em que estava pensando, e que não havia me incomodado antes a idade, mas achei ruim imaginar que em algum tempo, estaria inadequada com exatamente a mesma roupa que estava usando. Ele me disse que até então, sempre adicionei coisas à idade, e agora parecia ser um limitador.

 

É verdade, a idade sempre me caiu bem porque também sempre me trouxe mais. Sentir a possibilidade de perder ou limitar foi ruim.

 

Até que vi outra senhora, pelo menos uns 20 anos a mais que eu, e outra vez não pela pele, mas pelo jeito de olhar. Na minha opinião, a mais elegante da festa. Corpo de senhora, a barriga muda de lugar, parece ir um pouco mais para baixo, mas ainda era uma mulher bonita. Um vestido tubo salmão liso, clássico, simples mas bem cortado, caimento perfeito. Um par de broches que fazia uma composição. Estava longe de ser um modelo senhorial, mas não tenho dúvidas que em mim pareceria assim. Nela não, ela podia!

 

Ela conseguiu ganhar com a idade, então por que eu não conseguiria? Pronto, quando eu crescer posso ser assim! Ufa! Uma luz no fim do túnel.

 

Relaxei e fui curtir a festa, afinal de contas, tenho uma reputação de imparável a manter.

 

Quer saber, que se dane! Meu corpo não será o mesmo ao longo dos anos, mas meu maravilhoso vestido negro também não durará tanto tempo. O cabelo muda, os gostos mudam, a vida muda.

 

A propósito, a coroa do vestido salmão se acabou de dançar no salão com seu marido. E nós também.

 

 

 

 

 

 

 

De volta ao mundo virtual

FI-NAL-MEN-TE, temos internet em casa! Nem acredito!

O importante é que se resolveu e prometo colocar tudo em ordem, o mais breve possível. Sinto muito pela falta de respostas aos comentários, mas já cuidarei disso também. Enfim, hoje já está meio tarde e tenho milhões de mensagens para responder e apagar, mas amanhã vou tentar colocar algumas fotos do apartamento novo.

Besitos a todos, Bianca

 

 

22 – Casamento de amigos x Internet

O amigo que ajudei na surpresa do anel de noivado casou no civil ontem, quarta-feira, em Navacerrada. Fomos o único casal de amigos convidados para essa cerimônia, só havia família muito próxima, de maneira que nos sentimos honrados com o convite. A festa mesmo é no sábado.

 

Por que estou contando isso? Muito bem, porque se pode notar que era um convite imperdível. Na semana anterior já havia combinado com o Luiz para ele se virar e dar um jeito de ter o dia livre. Acontece que na terça, véspera desse casamento, me liga a Telefónica avisando que vinha alguém no dia seguinte para fazer a entrega do ADSL, ou seja, a tão esperada internet.

 

Depois que armamos o maior barraco para adiantar essa entrega prevista para o dia 19, como recusar o tal pedido que finalmente chegaria? Disse que sim e fomos ver o que dava para fazer.

 

Meu plano A era ficar pronta para o casório, que seria na hora do almoço, e torcer para nosso pedido ser o primeiro da manhã. De repente, iria o Luiz nos representando e eu ficaria esperando a Telefónica, mas essa opção nos deixava muito desconfortáveis. Pensei em pedir que o porteiro recebesse, mas Luiz acreditava que eles instalariam alguma coisa dentro de casa. E a verdade é que o porteiro nem fica o dia inteiro na portaria, também era arriscado. Minha chave não queria deixar, porque tem o Jack em casa. Bom e se de repente eles nem viessem? Ou só aparecessem no fim da tarde? E se a gente contasse com a sorte, fosse no casamento e torcesse para eles não aparecerem antes? Mas e se aparecessem? Dependo da internet para tudo!

 

Enfim, Luiz saiu ligando para Deus e o mundo para ver se algum amigo poderia ficar aqui em casa, esperando pela Telefónica. Eu morro de vergonha de fazer isso, mas ele não queria ir à cerimônia sozinho e acho que tinha razão, eu também não achava legal. O problema é que no meio da semana é difícil achar alguém disponível de manhã e de tarde. Roubadaça, né?

 

No final das contas, aos 45 minutos do segundo tempo, uma amiga de um amigo topou. Nós a conhecíamos e é uma gracinha de pessoa, mas não teríamos intimidade de pedir esse favor diretamente, afinal ela nunca tinha vindo aqui em casa antes. Quando Luiz me contou, fiquei imaginando a confusão que ele tinha montado, pois a história já havia se transformado em uma verdadeira corrente.

 

O importante é que ela topou e é super gente boa, está terminando veterinária e adora bichos. Segundo ela, era também uma curtição ficar no apartamento porque matava um pouco a saudade das suas gatas. Isso eu entendo, porque quando viajo sinto muita falta do meu felino gordo. Foi a salvação a lavoura porque assim pudemos ir os dois tranquilos ao casamento.

 

Pois lá fomos nós subir a serra. A cerimônia foi no cartório de Navacerrada, e foi o próprio alcade (prefeito) quem realizou. Ainda que seja uma cidadezinha pequena, é muito charmosa e achei legal isso dele realizar pessoalmente os casamentos. De lá, seguimos para um almoço, também muito agradável e bom astral.

 

Quando eles disseram que só iam as pessoas muito próximas, não estavam exagerando. Do lado da noiva, havia seus pais, seu irmão com a esposa e um casal de tios; do lado do noivo, sua mãe, sua irmã com o marido e uma filhinha. E nós, ou seja, realmente foi um prestígio e tanto, Luiz inclusive assinou como testemunha no cartório. Se não tivesse ido por causa da Telefónica, eu não me perdoaria jamais, além de perder esse momento, seria uma tremenda falta de educação. Mas enfim, o fato é que deu tudo certo.

 

Chegamos em casa perto das 17:30 e nossa amiga ainda estava aqui, até porque a Telefónica não havia dado as caras. Imagina isso? Conversamos um pouquinho e Luiz foi deixá-la em casa, o mínimo de gentileza que podíamos retribuir. Nesse período que ele estava fora, finalmente, a Telefónica chegou!

 

Fiquei até nervosa com a probabilidade de conectar naquele mesmo dia. Bom, o representante subiu, me entregou um pacote e pediu para assinar o recebimento. Mas não precisa entrar? E ele, não, só entregar. Então, tá.

 

Isso quer dizer o seguinte, toda essa confusão era só para entregar o aparelho, que nós já temos, ele não precisava instalar nada. E não, ainda não tenho internet disponível no apartamento, simplesmente, tenho dois aparelhos. De matar, né não?

 

Luiz ligou para lá assim que chegou em casa, mas como de costume, nenhuma explicação razoável. O operador disse para aguardar um pouco que em breve o aparato deveria reconhecer o sinal, ou alguma coisa parecida com isso.

 

E eu tô aqui esperando… Ainda bem que fui ao casamento!

 

 

21 – O péssimo atendimento educado e incompetente da Telefónica de Madri

Hoje completamos 21 dias sem internet. O primeiro prazo que nos foi dado era de, no máximo 15 dias. Antes desse período, Luiz havia ligado para o setor de atendimento, que muito educadamente disse que seu pedido estava em andamento, mas que infelizmente deveria atrasar um pouco, em função do feriado da semana santa.

 

Muito bem, semana passada, depois de 17 dias sem internet, ligo eu para me informar. A operadora, outra vez muito educada, me informava que simplesmente não havia nenhuma solicitação pendente!

 

Como assim não há solicitação pentendente? Expliquei toda história, inclusive da ligação do Luiz há alguns dias, onde outro operador informou que estava em andamento.

 

Ela sentia muito, mas ali não constava nada e começou a me ofereceu outros pacotes de telefonia… e eu, mas do que você está falando, não quero comprar nada, quero minha internet. Nesse caso, me respondeu, farei outra solicitação de ADSL e começou a me perguntar detalhes de que tipo de opção queria. Eu sei lá, quem decide essa parte informática em casa é o Luiz, faz igual ao antigo pedido, ué! Ela insistia em que não havia outro pedido e me oferecia outras coisas que não tinham absolutamente nada com a internet.

 

Mari Carmen, seu nome, não tô entendendo o que você está me oferecendo, o que quero é a internet já solicitada! Então, vou ver com meu marido que opções queremos e torno a ligar.

 

A Mari Carmen, como sempre solícita, perfeito senhora, por favor anote o número da solicitação. Mas que solicitação? A antiga que você disse que não tinha? Não, a que acabo de fazer para a internet. Ué, mas então você fez uma nova solicitação? Sim e estou pedindo urgência.

 

Fiquei numa banana, porque por um lado, eu havia acabado de dizer que chamaria depois para decidir que pacote utilizar, mas ao mesmo tempo, o pedido em urgência me era tentador… Mas o que significa urgência? E a Mari Carmen me dizia algo na semana seguinte. Bom, nesse caso, deixa eu anotar a tal solicitação e qualquer coisa, o Luiz mudava a categoria do pedido em seguida.

 

Ok, senhora, por favor aguarde na linha a nossa pesquisa de satisfação em relação ao atendimento. Claro que aguardei, estava ansiosa para dizer que não estava nem um pouco satisfeita. Daí uma máquina te faz a primeira pergunta, a operadora tentou resolver seu problema? Bom, sim ela tentou e só havia as opções sim ou não. Veio a segunda pergunta, a operadora ofereceu outros produtos? Sim, ela me ofereceu, inclusive era algo absurdo porque ela me oferecia produtos antes de resolver o que realmente me interessava, mas outra vez só podia responder sim ou não. Fiquei esperando a terceira e óbvia pergunta, que deveria ser, você ficou satisfeito com a solução ou com o que foi oferecido? Acontece que não existe essa pergunta, eles fazem só as duas primeiras, ou seja, se tentaram buscar uma solução e se te ofereceram algum novo produto. Quer dizer, eles perdem tempo do cliente e dinheiro fazendo uma bosta de uma pesquisa que só atende às necessidades internas da empresa, o público que se dane! Quero ver meus processos, o pós-venda não existe, se você não ficou satisfeito, o problema é todo seu!

 

Foi a vez do Luiz ligar para lá e se informar. O operador que o atendeu, dessa vez disse que a solicitação anterior, aquela que a Mari Carmen disse que não existia, havia sido cancelada por problemas técnicos. Achei ótima essa resposta: problemas técnicos! Muito esclarecedora. E se encontrarem os tais problemas técnicos outra vez? Vão cancelar de novo a solicitação, e novamente sem nos avisar?

 

O operador garantiu que não e deu o prazo da internet ser instalada no dia 19 de abril, 33 dias após a primeira solicitação ter sido feita. Luiz respondeu que aquele prazo era inaceitável e sinceramente não sei a que conclusão eles chegaram, nem queria saber. Porque a essa altura quem já tinha se invocado com Luiz era eu, que ao invés de brigar só com a telefônica, brigava comigo. Enfim, acho que ele entendeu que o operador pediria algum tipo de urgência, mas no dia seguinte, no meu celular, veio a mensagem que seria instalado no dia 19 mesmo, 15 dias depois do segundo pedido. Lembra que na primeira solicitação, 15 dias depois seria o máximo de tempo? A tal da urgência significava o que?

 

Vamos ver o fim dessa novela. A primeira vez que pedimos internet, no apartamento da Hermosillas, levou 2 meses para ser instalado. Na segunda vez, no apartamento da Montesa foi um pouco melhor, não tenho certeza quanto tempo levou, mas devo ter anotado em alguma crônica. E dessa vez, caminhamos para um mês a passos largos.

 

Hoje à noite vou ver se Luiz vai comigo em algum hotel com seu laptop para tentar atualizar meu blog. Nos locutorios isso não é possível, só dá para checar mal e porcamente os e-mails.

 

Ai, ai, viva o desenvolvimento do primeiro mundo! A seguir, cenas dos próximos capítulos…

 

 

20 – Los papeles

A toda documentação necessária para que um imigrante esteja legal no país, chamamos “papeles”. Ou seja, um empregador que se disponha a contratar um estrangeiro, pergunta normalmente se tem os tais papeles em ordem. Sem papéis aqui você está ferrado!

 

Hoje fui entragar os documentos para a segunda renovação dos meus papeles. O primeiro documento, chamado NIE, que equivale a sua identidade espanhola para estrangeiros, vale por um ano. A primeira renovação vale por mais dois anos. Essa segunda, que estou fazendo, vale também por mais dois anos. E a última, após os cinco anos, é definitiva. Ser definitiva significa que podemos residir legalmente na Espanha, mas não como cidadãos e sem ser comunitários, ou seja, sem passaporte espanhol e sem trânsito livre para morar em outros países da comunidade européia. Em outras palavras, garante nossa estadia definitiva exclusivamente na Espanha.

 

Em paralelo, após o segundo ano morando legalmente no país, você pode entrar com o pedido de cidadania, onde aí sim, em caso de aprovação, você é cidadão com todos os direitos previstos. Inclusive, passa a fazer parte da comunidade européia. Esse processo dura uma média de três anos.

 

O processo para meu primeiro documento foi razoavelmente traumático, filas gigantescas, desconhecimento da parte dos funcionários do governo, advogados perdidos e todo tipo de dificuldade, isso porque estava tudo certo. Consequentemente, na primeira renovação estava meio nervosa e preocupada com os passos a seguir, porém, na prática foi bem mais fácil.

 

Essa segunda renovação foi a primeira vez que não estava tensa. Não posso dizer que estava totalmente tranquila, porque nunca se sabe se houve alguma mudança, sei lá, você fica meio escaldada. Mas tinha a sensação que seria melhor e depois chega uma hora que você se cansa de se preocupar pelos mesmos motivos. O importante é que, em princípio, foi tudo certo, sem filas e sem traumas. A advogada dessa vez é melhor também, especializada no assunto. Não está finalizado, mas foi um bom começo e aprendemos a comemorar passo a passo. Espero que dessa vez a tarjeta, que é a carteirinha de identidade, não demore tanto a ficar pronta. Porque enquanto não a temos, precisamos de uma autorização especial para deixar o país, ou seja, lá vamos nós para outra fila, pedir outro documento para viajar.

 

Ainda tenho pendente o caso do visto de trabalho. Ano passado o tive negado, e havíamos pensado em pedí-lo agora, aproveitando a renovação. O problema é que era um risco, porque vai que seja negado novamente? Daí estaria ferrada, pois além de não poder trabalhar, meu visto de residência estaria em jogo, seria desvinculado ao visto do Luiz. E no caso de ser aprovado, só valeria por um ano. Achamos mais seguro entrarmos direitinho com o processo de residência, de dois anos, e assim que estiver tudo aprovado, pedir o visto de trabalho.

 

Vaya mundo globalizado complicado!

 

 

19 – Início da temporada de terrazas

Acredito que já tenha explicado alguma vez, mas repito, as terrazas aqui são os ambientes externos de lugares públicos ou privados, como varandas, terraços etc. Vai desde a varandinha da sua casa até, por exemplo, algum restaurante que tenha mesas na calçada, ao ar livre. A todos esses espaços, chamamos terraza.

 

Lembrando que temos estações definidas, ao chegar no fim do outono ou início de inverno, o normal é que se fechem as terrazas, afinal não é nada agradável sentar-se fora no frio.

 

Em contrapartida, na primavera, quando a temperatura começa a se elevar e logo após mais ou menos três meses de internato causado pelo inverno, todo mundo quer por as manguinhas de fora, literalmente. Afinal de contas, a gente precisa secar o musgo, né? Ficamos todos como enormes gatos, buscando algum cantinho de sol.

 

Enfim, ontem a temperatura estava agradabilíssima e foi o primeiro dia que caminhei para o coral com sol. É uma combinação de dois fatores, primeiro os dias são realmente mais longos, depois acabamos de mudar de horário, o que nos presenteou uma hora mais de luz. Pois no caminho ia distraída, mais preocupada em manter o ritmo de caminhada que perdi um pouco e, de repente, dei de cara com as mesas do Paseo de Recoletos cheias de gente!

 

Iniciou a temporada de terrazas! Instantaneamente, me provocou uma sensação quase que de euforia, pensei, bem que notei que estava mais feliz, só que achei ser em função de todas as mudanças. Talvez seja mesmo por isso, mas não tenho dúvidas que parte se deve a entrada da primavera e todas as metáforas de renovação que ela traz.

 

É impressionante a capacidade que isso tem de alterar o humor das pessoas. Antes achava que era eu, mas depois você vai notando que é algo quase geral. Fico um pouco mais alérgica, assim como meu felino, mas compensa totalmente.

 

Agora ainda tenho o luxo da minha própria terraza, de dia já posso frequentá-la de manga curta e descalça, em breve me atreverei a um biquini. Outra vantagem de viver aqui, quando chega a época de poder usar algum traje de banho, você não precisa se preocupar com a marquinha anterior, porque não existe nenhuma marquinha, estou inteira branca esverdeada!

 

Bye, bye inverno! Te vejo em nove meses!

 

 

18 – A língua dos bonecos

Ontem escutei uma história verídica imperdível! Tenho uma amiga espanhola, por volta dos 30 anos, que me disse o seguinte, quando ela era criança e assistia aos desenhos animados estrangeiros, principalmente os americanos do Walt Disney, a dublagem em espanhol era sempre feita no México.

 

Isso quer dizer que os personagens tinham sotaque mexicano. As crianças não sabiam nem o que era sotaque, mas podiam notar que havia uma maneira ligeiramente diferente de falar.

 

Qual é a conclusão mais óbvia que o pensamento infantil poderia chegar? Aquela maneira diferente de falar era a língua dos bonecos! Ou seja, as crianças espanholas quando brincavam com suas bonecas ou bonecos, imitavam suas vozes, e na prática, sem saber, falavam com sotaque mexicano!

 

Isso não é ótimo?

 

 

17 – Vício da porra!

A falta da internet está acabando comigo! Não tenho saco para frequentar os tais  locutorios (em espanhol essa palavra não é acentuada) e tenho que encarar o fato de ser totalmente viciada à rede!

 

Também sou viciada no registro do que vejo ou sinto, de maneira que continuei escrevendo, mesmo sem publicar os textos. Vai ser engraçado publicar tudo junto, como se o tempo tivesse parado e as coisas voltassem a acontecer.

 

Pelo menos ainda posso continuar escrevendo, assim não enlouqueço. Já imaginou se me tirassem minhas duas drogas favoritas de uma só  vez? Eu morria do coração!

 

É difícil imaginar como as pessoas, em um passado não tão distante, podiam trabalhar sem um computador e se comunicar sem a internet!

 

Estou sendo obrigada a falar pelo telefone novamente, esse estranho objeto sonoro que me assusta cada vez que toca e me puxa para o mundo real de tempos em tempos. Acho que estou melhorzinha, consigo reconhecer algumas poucas vozes e falar sem parecer tão jeca. Até o celular estou usando! Quer dizer, usando mesmo é exagero, mas pelo menos checando. Caraca, deve ser o fim do mundo!

 

 

16 – Jantar de artistas

Toda primeira terça-feira do mês, comecei a participar de um jantar com artistas latino americanos.  Quer dizer, começou com essa regra, mas não é tão rígido assim, também vão alguns espanhóis, além dos maridos ou esposas artistas.

 

A idéia não é isolar ninguém, mas a verdade é que quando você vem de fora fica meio perdido, e é um bom pretexto para encontrar gente que está ou esteve em uma situação parecida à sua. Todos nós questionamos na veia as próprias identidades culturais, elas nos batem na cara todos os dias. E de toda maneira, acho o trabalho do artista muito solitário, portanto é bom poder trocar idéias e experiências com outras pessoas. Acho uma forma interessante de ampliar a rede de contatos.

 

Enfim, cheguei indicada por outro amigo artista brasileiro e o primeiro encontro que fui, foi exatamente na semana da ARCO e um dia antes da inauguração da tal exposição onde fui curadora. Ou seja, estava super cansada e ocupada, nem fiquei até o fim do jantar.

 

Na segunda vez que fui convidada, estávamos de férias na Suíça. E a terceira vez foi ontem. Compareci.

 

Vou ser franca, estava na maior má vontade em ir, principalmente porque chegaria absolutamente sozinha, conhecendo pouca gente e só de vista. Meu único amigo brasileiro não ia. Estava ainda traumatizada com a ARCO, pensando se realmente devo seguir esse caminho.

 

Nesses momentos, me lembro do meu mentor artístico espiritual: Giacometti. Seu trabalho era um pouco sofrido, quase neurótico, uma vez lhe pergutaram porque ele expunha então, e ele respondeu: para mostrar que não tenho medo.

 

Nessas situações, quando me pergunto por que continuo? O que vou fazer lá? Por que não invento uma desculpa qualquer? É essa a resposta que me vem na cabeça, pois no mínimo, para mostrar que não tenho medo.

 

Tenho um tipo de disciplina mental que quando percebo estar fechada à alguma situação, respiro fundo e penso que posso tentar aceitar, recito meus mantras particulares e me disponho a aproveitar o melhor possível, de verdade e de coração aberto. Primeiro resmungo para burro, mas depois, pelo menos eu tento. Se fui convidada a qualquer coisa, deve haver algum motivo.

 

Na única vez que fui a esse jantar, havia sentado ao meu lado um artista que achei legal, sabia seu nome e me pareceu bem acessível. Ontem, logo que cheguei ao local marcado, o vi entrando alguns segundos na minha frente. Pensei, bom preságio, já tenho alguém para cumprimentar, conheço pelo menos uma pessoa. Pouco depois descobri que eu era a terceira a chegar, primeiro o organizador, que para alguns é um pouco intimidador, depois esse conhecido e em seguida euzinha. Foi bom, encarei logo a fera no começo e o tal organizador nem me pareceu tão intimidador assim, estava em uma situação parecida à minha, era de carne e osso e foi bem simpático.

 

Resolvi usar a estratégia mais velha e eficiente do mundo, sorri. Não foi difícil.

 

As pessoas foram chegando e fui fazendo novas amizades. Não dá para falar com todo mundo porque é uma mesa comprida, mas ao final, o grupo que estava na mesma área da mesa que eu, saiu para esticar um último drink. Imagina,  eu que nem queria ir, estava ali com novos amigos esticando a noite e me divertindo, típico. Foi ótimo!

 

É um alívio encontrar gente que compartilha angústias e dúvidas parecidas e assim mesmo insiste em buscar alternativas. A arte não vai acabar, assim como a vida também não. Nem falamos de arte o tempo inteiro.

 

Tenho planos de encontrar meus novos amigos, mas se não encontrar, tudo bem. Por uma noite lembrei que faço parte dessa raça de insanos e que as coisas chegam ao seu tempo.

 

Era uma pergunta natural a de quantos anos levávamos em Madri, de maneira que respondi várias vezes: três anos. Levo três anos aqui, três anos pode ser uma vida e três anos não é nada. Como de repente isso é só uma fração de tempo? Repetir isso tantas vezes me pareceu diminuir seu peso, sua intensidade.

 

Prova superada. Acho que estou onde deveria estar e ainda posso tanta coisa.

 

 

15 – Surpresas

Não gosto muito de surpresas, acho que já improvisamos o suficiente na vida. Sou caxias, paciência! Quer dizer, pelo menos para mim, quando é para os outros posso achar divertido e colaboro, isso se a pessoa curtir também. Luiz é parecido comigo nesse aspecto, ainda que normalmente conte mais com o improviso do que eu. Acho que a gente fica com vergonha, sei lá. Talvez porque sejamos assim, até o último momento das surpresas alheias, quando a pessoa leva bem a situação, ficamos meio nervosos.

 

Então, tá. Estava de manhã em casa e toca o celular, óbvio, do outro lado do mundo. Eu e meu celular temos um acordo, nunca estou perto quando ele toca. Quando cheguei já havia parado de tocar e não reconheci o número. Pensei, vão ligar para o fixo, meus amigos sabem que raramente atendo o celular. Tocou novamente e me senti tentada a não atender, mas pela insistência podia ser algo importante e depois lembrei que pouca gente tem o novo número de casa. Atendi. Sem problemas, era um amigo.

 

_ Meu (paulista, né?), você precisa me fazer um favor!

 

Ui, pensei, será que ele está em uma encrenca? Respondi, fala, vou tentar. Esse meu amigo está noivo e quer entregar o anel de compromisso amanhã, obviamente, fazendo uma surpresa para sua amada. E logo com quem ele vai contar? Putz! Que mêda! Mas gosto dele e dela, como ia deixá-lo na mão?

 

_ Vai lá, me conta seu plano malévolo…

_ Você precisa ligar para ela hoje e convencê-la a jantar na quarta-feira.

_ Mas se ela não puder? Pode ser outro dia?

_ Não tem jeito, tem que ser na quarta de qualquer maneira! Ela pode dizer que não sabe se eu estarei em Madri, porque talvez estivesse em Barcelona. Mas pode dizer que o Luiz falou comigo e eu disse que podia. Tem que parecer natural.

 

E eu pensando, natural? Eu no telefone natural? Não sou natural nem falando a verdade! Já comecei a ficar nervosa só de imaginar… ainda por cima ela é espanhola, vou ter que enrolar em outro idioma!

 

_ Vou tentar, então posso dizer que você confirmou com Luiz?

_ Sim, mas não chama muita atenção. Outro problema é que na quarta-feira é dia do plantão dela…

_ Ai, cassilda, como é que vou convencê-la a sair para jantar no dia do plantão?

_ Não sei, mas tem que ser na quarta! Dá um jeito! Ela pode sair um pouco mais cedo.

_ Tá bom, então eu chamo. Mas, de verdade, é para a gente ir no jantar ou não?

_ Não, no dia, você vai ligar para a gente na mesa e dizer que vai furar.

_ Ãh? Deixa eu recapitular, eu sei que ela está completamente enrolada no trabalho, quase enlouquecendo com os preparativos do casamento, completamente sem tempo! Daí preciso me virar para ela matar o plantão, sair para jantar conosco e ainda por cima não vamos? Ela vai ficar muito brava!

_ Beleza! Essa é a idéia. Daí, sem ela saber, vou contratar um mágico, desses que faz truques na mesa e ela vai ficar mais enfurecida ainda. Só que no truque final, virá o anel de compromisso! Vai ser aquele mico total no restaurante, mas ela vai adorar, ela gosta dessas coisas.

 

A propósito, também não sou chegada a mágicos, fico sem paciência. Ele não vai me contar mesmo como faz o truque no final! Para que quero ficar curiosa? Mas voltando ao assunto…

 

_ Mas você tem certeza que ela vai gostar disso? Eu ia te matar! E se ela levantar antes e for embora?

_ Não vai, pode deixar que ela vai gostar. Ela adora esses pedidos americanos, pode dizer que é meio cafona, mas ela vai gostar. Fizeram algo parecido para não-sei-quem e ela adorou…

_ Jooooder… mas depois você vai limpar minha barra, né? Olha lá…

_ Ela vai gostar… ela vai gostar… liga para ela e depois me avisa.

 

Claro que desliguei o telefone em cólicas! O que vou dizer? E se ela disser não, a culpa da surpresa não funcionar será minha! Mas e se ela disser sim e detestar a surpresa? Ai, meu Deus! Bom, problema deles, ele me garantiu que ela ia gostar… Então, deixa eu embasar melhor essa mentira, para ela não me pegar em um detalhe bobo.

 

Fiquei ensaiando um pouco algumas probabilidades de viagens e motivos que não dariam para que o tal jantar fosse depois nem antes. Por sorte, tinha também um bom álibi, porque Luiz vive viajando, se digo que ele vai viajar, todo mundo acredita. Resolvi ligar logo, antes que ficasse mais agoniada.

 

Nesse período, ele ligou para ela, dizendo que Luiz havia os convidado para sair, de maneira que não a peguei tão desprevinida. Aproveitei que ele veio à nossa casa no sábado, mas ela não pôde vir, justamente porque estava de plantão. Inventei que Luiz e eu tínhamos uma surpresa para eles, mas que só queria falar com os dois juntos, por isso não falamos nada com ele no sábado. Ela começou a se desculpar por não ter podido vir e que parecia que era pessoal, mas a verdade é que ela estava ocupadíssima com o casamento e o trabalho. Juro, fiquei com uma dó danada, porque a pobre estava realmente enrolada e nunca iria fazer essa chantagem sentimental em um momento desse, mas vá lá. Disse que entendia, que não tinha problema e que perdoava tudo se eles fossem jantar conosco na quarta-feira. Ela não tinha como dizer não e felizmente não disse. Respirei aliviada por ter mentido só um pouquinho e nos despedimos.

 

Liguei para meu amigo, pronto, está armado! Agora é com você! Depois me passa o endereço do restaurante que mando para ela.

 

O que aconteceu? Deu tudo certo! Ela realmente adorou, se sentiu lisongeada dele ter pensando e cuidado de tantos detalhes. Ficou um pouco chateada no começo, como planejado, por a gente ter furado na hora e não percebeu nada até que recebeu o anel do mágico. Falei com ela no dia seguinte e estava super feliz. Ufa!

 

Pensando bem, surpresas podem ser muito legais.

 

 

14 – Ela chegou!

Primavera! Minha estação favorita! Na verdade, ela chegou há quase duas semanas, mas só agora está tomando forma. Dias bonitos de sol e uma temperatura amena.

 

Ontem, 30 de março, foi a mudança de horário, anoiteceu quase às 21:00hs, voltamos a ter aqueles dias deliciosos que cabem tudo!

 

Seria importante chover um pouco mais, se a chuva não vier agora, dificilmente virá pelo resto do ano. Mas quanto a isso, não tenho muito o que fazer, a não ser economizar água. Estou aprendendo a usar a água da limpeza da terraza para regar as plantas.

 

E falando em plantas, as primeiras flores começaram a aparecer. A proprietária já tinha vários vasos quando cheguei aqui, talvez para algumas pessoas isso representasse trabalho, realmente dá um pouco, mas eu gosto. Podei todas, aproveitando a época, e elas já começaram a agradecer.

 

Preciso voltar a caminhar, o inverno me destreinou e pretendo fazer mais um trecho do Caminho de Santiago agora em fins de maio, logo depois de retornar do Brasil.

 

Isso se a gente realmente for ao Brasil. Nossas passagens ainda não foram compradas e estou com medo de furar. Acontece que estamos em plena renovação de vistos e isso é sempre um ponto de dúvidas na hora de deixar o país. Em princípio, não há nada demais, é só viajar com uma autorização, já fiz isso antes. Mas depois dessa pirraça que está entre Brasil e Espanha na imigração, fiquei um pouco preocupada. Devemos decidir tudo nessa sexta-feira, dia que vamos com a advogada no setor responsável para dar entrada oficial nos papéis. Só de pensar me arrepia. Às vezes, me sinto como uma presidiária em condicional, de tempos em tempos preciso provar que estou aqui e fazendo tudo certinho. Mas tudo bem, vou tentar me estressar menos com isso.

 

Afinal é primavera, tempo de renovação em todos os sentidos e não é isso mesmo que estamos fazendo? Preciso de uma nova atitude e estou tentando. Nascer é bom, mas sempre dói. Depois passa.

 

 

13 – Fim de semana com a casa arrumada

Com a casa toda arrumada, deu vontade de receber gente novamente, mas estava um pouco cansada para organizar algo maior. Também queria aproveitar o dia e era uma ótima oportunidade de testar a capacidade da churrasqueira com um pouco mais de pessoas.

 

Chamamos dois casais e um amigo que nos ligou na noite anterior. Como nunca planejamos com grande antecedência os eventos, quem telefona justo quando estamos pensando em fazer alguma coisa, leva vantagem.

 

Marcamos por volta das 14:00hs e cada um trouxe alguma coisa. Um dos amigos, inclusive, trouxe outra churrasqueira pequena, além de uma linguiça ótima, de um açogueiro brasileiro que fica perto da casa dele. Aos poucos, a gente vai descobrindo esses macetes para fazer um churrasquinho que não seja tão ibérico.

 

A propósito, também ganhei um jogo de ferramentas que parece um parque de diversões. Para quem não sabe, amo ferramentas!  E sim, sei usar. Luiz vive dizendo que sou uma mulher muito esquisita, porque sou louca por ferramentas e panelas. Fazer o que, gosto mesmo.

 

Jack, dessa vez, não se animou a disfrutar do sol. Queria que meu felino aproveitasse melhor a terraza, mas é compreensível que um gato com quase nove anos e que foi sempre criado em apartamento, esteja com medo de frequentar um espaço externo tão amplo e com tantos pequenos ruídos ainda desconhecidos. Ficaram de farra dizendo que meu gato tinha agorafobia, tadinho, uma hora ele se acostuma.

 

Mas voltando ao churrasco, tínhamos duas picanhas, linguiças, queijo coalho, provolone em bola e alguns cortes de carne de porco que não há no Brasil. Uma amiga trouxe farofa e vinagrete, outra salada verde e fiz uma salada de batatas. Todo mundo foi de cerveja, eu não porque continuo sem gostar de cerveja, mas acompanhei na cachacinha excelente! Saiu um litro e meio de cachaça, deve ser a evaporação no terraço! A verdade é que também tomamos litros de coca-cola e água, o que o dia seguinte agradeceu profundamente. Não estava nem um pouquinho afim de outra ressaca!

 

Quer dizer, eu não, mas temos um certo amigo, que se distraiu e acabou ficando para dormir em casa. O interessante é que ele sempre é super controlado, o que deixou a história mais engraçada e esticou a comemoração até o café da manhã. E claro,  temperado com piadinhas. Não sei se para ele foi tão divertido, mas para a gente foi. Acho que para ele também.

 

Pena que ele perdeu o arroz à carreteira do final da noite. Vou confessar uma coisa, quase gosto mais desse arroz do que do churrasco em si e sempre fico igual a um urubu, tomando conta dos bons pedaços de carne que não saem e me apodero do resto do  vinagrete. Aqui nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Comemos nós e nossa amiga, enquanto seu marido dormia a sono solto sem dar a menor bola para nossa conversa.

 

Domingão, nem pensar em por o nariz na rua! Só DVD e enterro dos ossos. Preciso voltar ao mundo dos mortais urgentemente, porque se duvidar, quem fica com agorafobia sou eu!

 

12 – O primeiro churrasco

Não sou uma pessoa consumista, juro! Costumo dizer que sou daquelas que dificilmente saem de compras, quando saio é para comprar uma blusa preta de manga curta, ou seja, específica.

O problema é que casa nova dá uma vontade danada de comprar coisas. Principalmente, quando você tem mais espaço e armários. Como eu amo armários! Por outro lado, sei que a gente precisa se policiar e não começar a se encher de coisas. Sinceramente, não pretendo fazer grandes aquisições, nem é o momento.

Entretanto, o primeiro que passou pela cabeça do Luiz quando conheceu o terraço foi ter um espaço para fazer churrasco. A tal terraza, como chamamos aqui, é realmente grande, tem pouco menos de 50 m2. É praticamente um quintal! Possui uma mesa grande e outra pequena de apoio, quatro cadeiras e várias plantas. Ali montamos uma tenda para abrigar nosso futon. É que antes, dormíamos em um futon, e não tem mais espaço no quarto de casal, já que a dona precisou deixar sua própria cama. Enfim, tivemos a idéia de colocá-lo por ali e montar um ambiente como um lounge. Acho que vai ficar bonito.

O que faltava? Uma churrasqueira. O problema é que na Espanha tem muito problema com incêndios e em boa parte dos lugares é proibido churrasqueiras de carvão. Precisa ser a gás ou elétrica, o que em princípio não nos soava muito bem. Acontece que nós moramos a duas quadras do corpo de bombeiros, não queremos encrenca. Resolvemos dar uma chance à churrasqueira elétrica.

Encontramos uma simples e barata. Pensamos que se não funcionasse bem, pelo menos o prejuízo não era grande. Compramos também um som portátil, desses pequenos para ouvir CD e um mini poste de luz, que funciona com energia solar. Os preços ótimos, o que me fez querer testar tudo o mais rápido possível. Claro que também tinha a empolgação de fazer o primeiro churrasco e uma coisa alimentou a outra.

Ontem, plena terça-feira, resolvemos estreiar a churrasqueira. Quem disse que aguentaria chegar o fim de semana.

Limpei toda a terraza, podei as plantas, arrumei tudo. Descongelei uma picanha e algumas linguiças, fiz um vinagrete e uma salada verde. O tal do mini poste de luz é uma gracinha, mas não ilumina nada, improvisei com duas luminárias de interior mesmo. Levei algumas velas, forrei a mesa e coloquei as almofadas nas cadeiras da varanda, que a proprietária também deixou. Ficou legal, gostei. Jack acompanhou atentamente e de perto. Ele nunca ficou em um espaço externo tão grande, é um gato de apartamento, levou algum tempo para se habituar.

Quando Luiz chegou, já estava tudo organizado, vinho aberto e o aparelho portátil de CD funcionando muito bem. Chamamos um amigo, que não pode vir na festinha de sábado e partimos para o churrascão. Sabe que ficou bom? É uma churrasqueira pequena, não dá vazão se for muita gente, talvez precise ter outras coisas em paralelo. Mas a carne ficou ótima!

O filho da proprietária, que deve ter uns 4 anos, deixou para trás duas bolas de futebol pequenas, de plástico. Os dois menininhos aqui de casa, meu marido e nosso amigo, descobriram as bolas e resolveram jogar golzinho. Admito que foi divertido ver os dois marmanjos brincando e desconfio que isso será uma rotina nos próximos churrascos até que um deles jogue a bola lá embaixo.

Desconfio também que será muito difícil querer sair de casa agora. Inclusive porque também estou louca para comprar uma mesa de futebol totó, ou pebolim como se conhece em São Paulo.

Definitivamente, não temos muito juízo, mas bem que a gente se diverte!

11 – Comemorações e mudança

A experiência sempre serve para alguma coisa e em mudanças, sai de baixo que tenho muita!

 

Gosto de levar coisas pessoais primeiro, como roupas, documentos, um par de pratos e de copos, cafeteira, objetos do dia-a-dia do nosso gato, enfim, o que viabilize se viver antes de abrir as malfadadas caixas de papelão que fazem parte da minha rotina. Para complicar, ainda tenho alguns trabalhos de arte que poderiam se destruir em movimentos bruscos e também prefiro levá-los pessoalmente. Isso parece pouco, mas não é.

 

De cara, no primeiro dia que vim limpar o apartamento novo e arrumar as roupas, dei um jeito nas costas. Uma bobagem, nem estava fazendo tanta força, foi mal jeito, só que ficou difícil até para andar. Putz, grilo! Ninguém merece! Tô uma velha mesmo!

 

Sabia que tinha o fim de semana para adiantar o possível, antes da companhia de mudança entrar como um furacão nos apartamentos. Por isso, tirei a quinta e a sexta para adiantar o que desse sozinha e no sábado e domingo faria o resto com Luiz. Finalmente, na segunda-feira, a empresa faria a mudança do pesado. Pronto, tudo planejado e acertado, com calma e com tempo, certo? Óbvio, meus planos já se embolaram na própria quinta, com as costas ferradas.

 

Não tinha muito o que fazer, voltei para casa, me entupi de dorflex e deitei para esperar Luiz. Ele chegou meio tarde, porque era dia do coral, mas me trouxe um outro relaxante muscular de cavalo, me ajudou com uma pomada de Voltarén e desenterrou uma cinta dessas que a gente coloca para fazer força com as costas na posição correta. A tal da cinta foi a salvação da lavoura e não a abandonei por mais ou menos uma semana, é bom para proteger e te condicionar ao movimento correto. É fato que me deixou com a maior pinta de lenhadora, tem uns suspensórios nada charmosos que me deixavam com um pouco de vergonha nos primeiros dias, depois desencanei.

 

Bom, a essa altura já sabia que não íamos conseguir comemorar decentemente nosso aniversário de casamento na semana seguinte, fazer uma festa no apartamento antigo, nem pensar! Não tinha condições físicas para organizar. Mas tinha um plano do cebolinha que era jantar na sexta-feira no Trifón, que todo mundo sabe que é meu restaurante favorito aqui, e convidar alguém para dividir o momento conosco. Não é um lugar muito barato e não tenho cacife para fechar o local ou convidar um monte de amigos, então convidamos um casal muito querido, que por coincidência, também fazia aniversário de casamento naquela semana. Perfeito!

 

O restaurante ficava a uns dois minutos a pé de casa. Eu é que não ia com a cinta protetora e um sapatinho baixinho, né? Que se dane as costas! Só entro na chuva para me encharcar! Fui caminhando apoiada no braço do Luiz a uma velocidade ridícula e mais dura que um pedaço de pau, mas entrei no lugar com salto alto e classe.

 

Encontramos nossos amigos e chutamos todos os paus de barracas, pisamos em todas as jacas e chutamos todos os baldes! Não ficou nenhum! Foi uma garrafa de champagne, duas de vinho e finalizamos com doses de whiskies (sim, no plural, foram algumas de alguns) para acompanhar o charuto, é claro. Quem disse que ainda sentia dor nas costas? Não sentia mais nada, nem as costas, nem o rosto, nem a boca… nada!

 

Levamos nossos amigos para conhecerem o apartamento novo e, dessa vez, aceitamos a ajuda para ir comprar e montar uma tenda no terraço, no dia seguinte. Eu não estava sentindo dor naquele momento, mas sabia que era por causa do álcool, não teria condições de levantar peso depois. Era uma tarefa mais adequada para os meninos.

 

A verdade é que saí do apartamento novo bem mareada e quando cheguei em casa, passei mal horrores. Exagerei. Coloquei até minha alma para fora e acordei um absoluto bagaço! Luiz acordou melhor e foi com nosso amigo adiantando as coisas no apartamento. Fiquei na cama tentando encontrar algum arrependimento pela noite anterior, coisa que não aconteceu. Eu adorei!

 

Já estava com as costas ferradas, agora também estava de ressaca, pronto! Chegou um momento em que a disciplina foi maior que o bode. Tinha que levantar, foda-se! Levantei e fui para o apartamento ajudar os meninos e levar algo para eles comerem. Para “eles” comerem porque mal aguentava o cheiro de comida. Foi quando descobri que minha amiga também estava em situação parecida e, pelo que averiguei depois, também nem um pouco arrependida. Mulheres são fogo!

 

todas as noites são iguais, os meninos satisfeitos, as meninas querem mais… já dizia Capital Inicial.

 

Fui melhorando por completa falta de opção e quando vi o apartamento novo ganhando personalidade, me animei. A tenda que os meninos montaram ficou show! Trabalhamos até o comecinho da noite e de lá fomos buscar nossa amiga e jantar os dois casais novamente. Já estava passando bem e comemos uma super gigantesca pizza, com muita coca-cola! Gordura e coca-cola, tudo de bom para fechar de vez uma ressaca!

 

Dormimos cedo e, no domingo, começamos pelas 8:30 com a corda toda! Nesse mesmo dia, Luiz me deu a feliz notícia que não conseguiria estar comigo na segunda-feira e que eu receberia o povo da mudança sozinha. Por alguns segundos, honestamente, quis matá-lo! Ele me conta isso na véspera? Achei melhor ser prática, então faremos mais viagens hoje e levamos mais algumas coisas. É cansativo, mas compensa depois. Ele me perguntou se deveria chamar nosso amigo novamente para ajudar, em princípio, achei que não precisava, sempre evito colocar as pessoas nessas roubadas, mas no final não teve jeito e aceitamos ajuda de muito bom grado. Que bom é poder contar com os amigos!

 

No domingo mesmo, já dormimos no apartamento novo. A cama de casal da proprietária ficou, tínhamos todas as roupas e a casa estava limpa. Bom assim, porque o Jack foi se acostumando ao local e poderia ficar tranquilo no quarto enquanto o turbilhão da mudança entrava no resto da casa. Claro que não preguei o olho a noite toda, ainda que estivesse bem cansada. No dia seguinte, queria estar no apartamento antigo pelas 7:30hs, antes da equipe chegar e assim foi.

 

Às 8:00hs, quando eles pontualmente chegaram, estava eu com minha cinta de lenhadora e as botas de trekking, prontinha para a guerra! Não tenho frescura e boto a mão na massa mesmo, funciona melhor e você ganha respeito. Nesse caso, foi importante, porque, dos quatro homens da equipe, um ficava no caminhão e dois eram totalmente iniciantes. Tudo bem, eles se reorganizaram e o rapaz do caminhão também subiu para ajudar a embalar a parte de cozinha. Com todas as caixas e móveis baixados, por volta das 13:30, eles fizeram uma pausa para almoçar. Foi exatamente a hora que chegou Luiz e fomos comer rapidamente.

 

Em seguida, nos encontramos todos no apartamento novo. O polaco, que gerenciava o grupo,  subiu para montar o futon no terraço, a essa altura já confiava na minha experiência operacional e pediu que eu organizasse os dois calouros na arrumação das caixas e dos móveis. Os dois, que a propósito eram brasileiros, estavam mais espertos e, apesar de não saberem bem o que fazer, não eram nada preguiçosos e deu tudo certinho. Por volta dàs 17:00hs a confusão estava encerrada.

 

Agora era só abrir, limpar e arrumar… as 88 caixas! Quem disse que gente que muda muito não tem rotina? Sejam bem vindos à minha!

 

Muito bem, na terça-feira, dia seguinte à mudança, era 18 de março, nosso aniversário de casamento. Quem lembrou? O casal de amigos que jantou conosco na sexta, claro! Sim, a gente esqueceu… felizmente, nós dois esquecemos juntos. O amigo ligou de manhã para dar os parabéns ao Luiz, que levou alguns segundos para entender do que mesmo se tratava os tais parabéns, mas fez de conta que lembrava e agradeceu. De-ses-pe-ra-do, ligou correndo para mim, fingindo que havia lembrado e só estava esperando o melhor momento para falar comigo. Ouvi pensando, puta-que-pariu-que-furo-esqueci-completamente, mas também fiz voz de quem sabia e estava só esperando ele me ligar para dizer.

 

Confessamos nosso delito de memória à noite, quando fomos jantar em um restaurante simples e bem pertinho de casa, mortos de cansaço! Reforcei o quanto ele era um homem feliz por eu nunca me lembrar direito das datas, porque algumas moçoilas se lembram o dia que se conheceram, o primeiro beijo, o dia do noivado etc. A gente não sabe nada disso, só lembramos o dia do casamento. Tanto para mim, quanto para Luiz, a comemoração já havia sido na sexta passada e desencanamos. Estávamos exaustos!

 

No sábado, cinco dias após à mudança, abri a última caixa, com o apartamento praticamente todo arrumado. O que fazer? Alguém tem dúvida? Uma festa! Bom, foi pequena porque tinha um monte de gente viajando e era bem em cima da hora para chamar os amigos. Além do que, eu sem internet me transformo em um ser anti-social. Então, fizemos a inauguração não oficial um pouco improvisada, mas ótima para começar com boa energia.

 

Não sei quanto tempo poderemos ficar nesse apartamento, foi uma oportunidade rara que nossos amigos dizem ter sido merecida. Não sei se mereço, mas espero que sim, porque quando a gente merece dura mais. Também não quero me preocupar com isso agora, uma coisa de cada vez. Por hora, é disfrutar o momento de viver em um lugar que é a cara do Brasil, que tem me ajudado a matar a saudade e me proporciona confortos que havia deixado para trás. Como sempre, sinto que de alguma forma continuo protegida e que quando faço perguntas, as respostas chegam.

 

 

Desesperada sem internet!

A mudança foi bem obrigada, mas levo mais ou menos uma semana sem internet! Considerando que essa é minha principal ferramenta de comunicaçao com o planeta, estou me descabelando!

Hoje nao aguentei e vim checar os e-mails em um local público, aqui se chama “locutorio”. Aliás, já deu para perceber que o teclado nao tem til, né? Paciência, só vim dar notícias de vida e dizer que atrasarei um pouco as crônicas, mas já volto!

10 – Rumo aos 32

Muita calma nesse momento, não estou diminuindo minha idade, estou falando do número de endereços. Sim, lá vamos nós outra vez! Ainda bem que registro, porque já teria perdido a conta. Devido aos últimos textos, para que ninguém se assuste, adianto que continua sendo em Madri. Aliás, nem é longe de onde moro hoje.

Foi assim, apesar de gostar bastante do nosso atual apartamento, tínhamos um problema sério de vizinhos barulhentos, o casal baixaria de quem já contei nas crônicas uma vez. Insistiam na inconveniência ruidosa que sempre acontecia durante a semana e depois das duas da matina. Algumas vezes era brigando, outras o tigrão fazendo as pazes e não sei qual era pior de se escutar! No verão, não incomodava, porque ligávamos o ar condicionado e abafava a confusão. O problema era no inverno, quando não nos restava muita alternativa.

No último inverno, enchi o saco de vez e mudei para o quarto de baixo, bem mais silencioso. O “causo” é que isso alterou toda arrumação da casa e me vi obrigada a dormir com Luiz em um sofá cama! Procuramos inclusive nem receber nenhum hóspede, porque aos meus olhos a casa estava um caos! A idéia era voltar para nosso quarto assim que o inverno acabasse, mas não tinha intenção de procurar um novo apartamento até o ano que vem.

Pode perguntar, mas por que você não chamava a polícia? Pois por pelo menos 35 razões que estou sem paciência de explicar, mas pode acreditar que seria bem mais complicado.

Diante a essa situação absurda, me liga Luiz, escuta, uma amiga do trabalho está mudando para Gibraltar, parece que o apartamento é bom, quer ver? Honestamente, se não fosse por estar de saco tão cheio, duvido que sequer pensasse em entrar nessa movida agora, mas àquela altura do campeonato… Respondi sem pestanejar, tá bom, vou lá ver.

Era aquela historinha que parecia boa demais para ser verdade, apartamento maior, com terraza grande, garagem… e pagando a mesma coisa que gastamos hoje. Sei, sei… tem pegadinha aí! Fui ver o tal do apartamento sem a menor fé, já esperando aquela espelunca, mas ao mesmo tempo, tentando estar aberta ao que poderia ser feito. Sabia que Luiz queria sair daqui faz algum tempo.

Fomos juntos até lá e a coisa complicou ainda mais, porque o lugar é ótimo! Prédio novo e com alguns atributos que no Brasil são normais, mas aqui já havia perdido a esperança em ter. Cozinha americana, área de serviço, garagem no edifício, mais armários, mais espaço e uma terraza incrível, que dá até para ter uma churrasqueira! Caraca, e agora! Se a gente não conseguir mudar vamos nos arrepender eternamente! Então, encaramos!

Lá fomos nós, Luiz começou a negociar com os donos dos apartamentos, atual e próximo. Eu comecei a sondar uma equipe de mudança e a organizar o quebra-cabeças de onde nossos móveis ficam melhor. É que uma das condições era ficar com alguns móveis da proprietária, não são muitos, mas se não for bem organizado, o espaço que ganho acaba não compensando pela arrumação. Mas tudo tem jeito.

Dois dias depois que Luiz falou ao nosso atual proprietário que pretendíamos mudar, descobrimos que os vizinhos barulhentos estavam também de mudança! Pode? Moramos dois anos em um apartamento com vizinhos problemáticos, assim que desistimos e resolvemos mudar… eles mudam antes! É uma historinha para o “sefodeaí.com”.

Enfim, de certa forma, isso também me tranquilizou, porque vai que não dava certo a nossa mudança? Para ser bem sincera, não estava me envolvendo tanto na questão,  não queria me decepcionar.

Para a felicidade geral da nação, tudo foi se ajeitando e ontem assinamos o contrato. Ontem mesmo, havia marcado com a companhia de mudança para fazer um orçamento, e eles tem agenda para a próxima segunda-feira. Ou seja, lá vamos nós em tempo record! Em menos de uma semana, serei novamente um caracol!

A outra parte engraçada da história, mudaremos no dia 17 de março, dia 18 é o nosso aniversário de casamento, faremos 14 anitos já na casa nova, no meio das caixas! No aniversário de 10 anos, estávamos dentro de um avião, com destino a Atlanta. Aparentemente, a gente gosta de mudar de ano com tudo novo, né? No que depender de mim, entro com o pé direito!

O chato é que a festinha do níver de casados ficou comprometida. Mas, de repente, a gente faz uma de inauguração-tudo-junto! Vamos ver o quanto conseguimos arrumar a casa no feriado da semana santa.

E agora lá vou eu arrumar mala! Joooooder…

9 – Zapatero na cabeça!

Política, futebol e religião não se discute, mas que a gente torce… torce!

Zapatero (PSOE) acaba de vencer Rajoy (PP), e seguirá seu segundo mandato. Entre defeitos e qualidades, acho que o governo do PSOE alcançou uma série de melhorias sociais. Foi criticado por suas negociações com ETA, mas não sei até que ponto o PP faria melhor, duvido.

Pessoalmente, porque no fundo cada um opta de acordo com seu próprio umbigo, acho o Rajoy um chato, e o que me irritou profundamente foi a maneira como o partido utilizou o tema da imigração durante a campanha. Nesse momento, boa parte dos espanhóis médios acreditam que os imigrantes chegam todos aqui em pateras para roubar os empregos e assaltar o país!

Enfim, acho que a situação tende a se acalmar, alguma birra entre imigrantes vs. espanhóis provincianos vai ficar, porque o assunto foi inflamado. Mas por outro lado, a imprensa já não terá tanto interesse em polemizar essa questão. Assim espero. E ainda que os espanhóis que votaram no Zapatero, não necessariamente o fizeram por esse tema, no mínimo demonstra uma visão mais aberta e globalizada. O que vejo com muito bons olhos!

E la nave va…

8 – O fantasma do quinto ano

A proximidade da ida ao Brasil tem me deixado pensativa. Vou uma vez ao ano, sempre sozinha, e as sensações são diferentes a cada visita. Agora vou com Luiz, há mais de quatro anos nossos amigos de lá não nos encontram juntos.

A primeira vez que fui de férias foi intensa. Havia passado um ano difícil nos EUA, me sentia sufocada. Era uma iniciante na burocracia de documentação estrangeira, ano de reeleição do Bush, processo de mudança para Espanha no ar, imposição de medos novos que não me faziam sentido. Até a última semana da viagem fui no suspense de aprovação de vistos, sem saber se poderia ou não embarcar. Cheguei no Brasil querendo festa, família, amigos, uma recarga de energia. Não tinha vontade de voltar ao meu país, mas não havia perdido muitos vínculos.

A segunda vez que fui ao Brasil foi mais tranquila e muito diferente. Aproveitei mais a família, e já não sentia uma necessidade de desabafo. Era também o aniversário de 60 anos da minha mãe, outra vez fui no suspense até o final com a documentação, mas consegui resolver a tempo e isso funcionou para mim com um “tá vendo, posso compatibilizar vidas em países diferentes sem perder nada importante”.

Entretanto, o ambiente brasileiro me provocava constante estranhamento, não era mais minha casa, me sentia visita. Fui visitar cidades onde ia na infância e adolescência, por um lado, por curiosidade, mas agora que o tempo passou, não sei se não buscava algumas raízes, lembranças, sensações, algum rosto remotamente conhecido.

A terceira e a quarta vez, fui em função de problemas de saúde na família, e isso acaba alterando suas  prioridades. Mesmo assim, notava que estava começando a esquecer caminhos por onde sempre dirigi, que minha alimentação não era a mesma, que ouvir a TV em português era engraçado, enfim alguns detalhes pequenos que parecem ir apagando aos poucos quem você era. Não quero ser dramática, não é  que você vá desaparecendo, você vai mudando,  é só isso. Se estivesse ainda morando no Brasil, continuaria mudando também, mas ficaria menos evidente e talvez a velocidade fosse menor.

Uma coisa era bastante clara, era quando voltava, nesse caso para Madri, que me sentia chegando em casa. O fato do Luiz estar aqui com Jack certamente contribuía bastante para isso, mas também acho que era muito em função de estabelecer algum ponto de referência, mesmo que esse ponto pudesse mudar.

Na última vez que viajei, de novo foi diferente. Quando cheguei no aeroporto do Rio, na imigração fui recebida por um agente que perguntava às pessoas sua nacionalidade, respondi brasileira com o sotaque que é meu. Recebi de volta um bem vinda, pode passar direto por ali… Havia um respeito no seu “bem vinda”, que pode até ser minha imaginação, mas senti honestidade e orgulho. Bateu uma emoção esquisita, de filha pródiga.

Na volta, para me confundir um pouco mais, havia muita notícia de brasileiros sendo barrados e mal tratados na imigração da Espanha, isso foi em 2007. Fiquei apreensiva, apesar de não ter absolutamente nada de irregular na minha situação. Essa é outra coisa maluca, você se sente vulnerável mesmo sabendo que está com tudo certo. Ao contrário dos prognósticos, fui recebida com um sorriso dizendo “brasileira residente, pode passar”. Foi um gesto simpático e correto que me encheu de boa vontade e me fez sentir bem recebida novamente.

E é esse dilema que me confronta regularmente: quero ser brasileira residente ou quero ser brasileira? Eu preciso ser brasileira? E se não for brasileira, sou o que?

Complicado, porque as respostas se alternam. Quando estou no Brasil e alguém fala mal da Espanha, fico muito brava e defendo a cultura. Quando estou em Madri, fico injuriada com o lado provinciano. É um processo neurótico, mas muito comum entre estrangeiros residentes, não só aqui na Espanha, você vira embaixadora dos dois países, só que defende ao contrário.

Mas alguma coisa aconteceu do ano passado para cá, quase todos meus amigos brasileiros expatriados que foram de férias ao Brasil sentiram algo diferente na volta. No início, achei que poderia ser pelo clima que anda na Espanha. É época de eleições e o tema imigração vem sendo explorado das maneiras mais absurdas, vai te enchendo o saco. Acredito que melhore um pouco no futuro, vamos aguardar.

Depois observei que vai além disso, tem alguma espécie de padrão nesses sentimentos de acordo com o tempo que você está fora do seu país de origem. É óbvio que as pessoas não seguem todas uma receita pronta, mas vejo uma tendência.

Os que se casam, por amor, com um nativo do país estrangeiro, tendem a ficar. O que faz muito sentido, considerando que se aproximaram por características e valores que se atraem. Principalmente, depois que tem filhos, porque daí também são outras raízes. Enfim, é uma seara que não entro muito porque não posso falar por conhecimento de causa, só por observação.

Os solteiros e os casais, onde nenhum dos dois é nativo no país, o que é meu caso, me parecem passar por um processo parecido no primeiro e no quinto ano residindo fora.

O primeiro ano costuma seguir dois caminhos. Um é o da rejeição, onde tudo parece mais difícil e se resiste à mudança. O outro acontece principalmente em casais que já fizeram isso antes, tendem a achar tudo uma maravilha. Ou talvez, melhor dizendo, mesmo o que a gente não gosta, é possível ver com bom humor. Estamos o tempo todo tentando entender o que é cultura e o que são acontecimentos isolados. As coisas são novidades, há um período de aprendizado que apesar de eventualmente ser difícil, é ao mesmo tempo motivador, interessante ou curioso.

Passado o primeiro ano, quase todo mundo está adaptado. Pode gostar ou não, mas já não sofre intensamente, nem se deslumbra. Você começa a separar o que te interessa e deixar de lado o que acha pior. A gente se questiona com frequência sobre identidade e vê os defeitos com maior senso crítico. Acho que no fundo, estamos constantemente pesando se realmente vale à pena. Enquanto os pontos positivos superam os problemas, ficamos.

Claro que estou falando de quem tem opção, porque infelizmente também chega gente que não tem grandes alternativas em seu próprio país e aceita qualquer condição.

Muito bem, me atrevo a dizer que o quinto ano é decisivo, parece meio  cabalístico. Acho que equivale ao sétimo ano de casamento, ou você rompe ou fortalece. Em abril completarei três anos de Madri, mais de quatro fora do Brasil, estou prestes a entrar no emblemático quinto ano.

Não me separei quando fizemos sete anos de casados, sempre achei que esse negócio de crise era lenda. Quando a crise chegou me pegou de surpresa e foi sofrido. Superamos e nas próximas semanas faremos 14 anos de casados, muito bem obrigada. Talvez seja bom não acreditar em crise e só tratá-la se realmente aparecer, mas quem sabe não seja útil saber da sua probabilidade? Pelo menos ficamos mais atentos.

E justo nesse quinto ano, vou com Luiz ao Brasil, parece uma provação. Posso me sabotar e dizer que é o quinto ano fora, mas na Espanha ainda será o quarto… ufa, tenho tempo! Mas sei que isso não importaria tanto, mais do que um fato matemático, é uma ordem de grandeza.

No fim de fevereiro foi aniversário do meu pai, fez 69 anos e uma grande festa, quem me conhece já sabe que sou de uma família festeira. Ver as fotos e os vídeos da festa tem um lado gostoso de saber que as pessoas estão bem e outro nostálgico de saber que estou perdendo momentos. É duro me pegar prestando atenção nas expressões e detalhes, e ter a intuição pretenciosa de perceber minha mãe pensando que eu poderia estar lá.

Eu poderia estar lá, mas a que preço?

Engraçado porque me lembro dos primeiros anos na Espanha, quando ouvia qualquer queixa a respeito da cultura, me irritava, não queria estar próximo a isso, negava mesmo. Estava na minha bolha de proteção onde nada de mal poderia me alcançar, se eu era capaz de me adaptar a quase tudo… E da minha própria boca saiu várias vezes a frase: se não está satisfeito, por que não vai embora? Se está aqui é para se adaptar!

Com o tempo fui notando que algumas coisas era eu sim quem deveria me adaptar, mas outras não. O mundo segue direções e não adianta ficar para trás, seja lá em qualquer cultura. A gente precisa o tempo inteiro exercitar o “não” sem raiva. Ter um objetivo e ir atrás dele de maneira mais fria. Isso me custa, porque sou passional por natureza, mas posso ser bem calculista se for necessário e nesse momento sou assim.

Portanto, hoje quando escuto esse “se não gosta, por que não vai embora?”, tanto para mim quanto para outras pessoas, me parece uma pergunta tão existencial quanto “quem é você?”. Como se isso fosse possível responder em um parágrafo. Existe pelo menos um milhão de respostas e motivos! Cada um tem os seus e sabe a dor e a delícia de ser o que é.

Não sei o que nos reserva esse ano, mas vamos um passo de cada vez. Por hoje, quero saúde, paciência e lucidez para decidir.

VII – O lado obscuro da ARCO, manifesto de uma ex-consultora-artista que há algum tempo apertou o botão do foda-se

Tem muita coisa que está bem na frente dos nossos narizes, mas parece coberto por uma cortina de fumaça, que a gente mesmo coloca lá para deixar o mundo mais suportável. É tão inconsciente que até acreditamos nessa falta de realidade conveniente, mas às vezes chega algum tipo de experiência e em três segundos venta toda a fumaça para o lado, e nos pega tão de surpresa que não dá para fingir que não vimos. 

Explicar uma experiência é tarefa árdua, então vou contá-la e quem sabe assim transmito e entendo melhor algo que pode mudar minha direção. 

Tenho um amigo que diz que quando Deus quer castigar o homem, satisfaz seus desejos. Crenças à parte, há muito de verdade nessa filosofia. Nas duas últimas semanas, naveguei semi-anônima no que se poderia chamar o topo do “mundo das artes”. Entre artistas, curadores, galeristas e críticos, todos equilibrados em um único pequeno e alto pedestal. Juro que sem despeito, mas confesso que um pouco atônita, me perguntei, por que mesmo eu deveria querer me espremer aí em cima também? 

Sou ex-consultora de negócios e modéstia às favas, das boas. Portanto, fui adestrada a enxergar modelos e padrões, facilita a vida, nada e ninguém é tão original que não siga nenhuma tendência. 

Vamos começar pelos artistas? E não me poupo dessa crítica, porque posso fazer o mesmo. O padrão de relacionamento é próximo ao dos alpinistas sociais, funciona assim, primeiro você precisa de algo exótico na sua aparência, faz parte do seu marketing pessoal, até aí, é o mesmo conceito em negócios, só mudam as características. É importante que você seja visivelmente reconhecível. Mas isso não faz muita diferença na prática, porque o “outro artista” só vai te reconhecer se houver algum interesse nisso. Você pode ter o cabelo laranja e mancar de uma perna, mas só será visto se deixar evidente que pertence à corte. É uma coisa de alienígenas de filme americano, que tomam conta de corpos humanos e se reconhecem por uma frequência secreta emitida pela voz. Vai ficando mais chocante ainda quando você começa a prestar atenção no padrão das conversas, onde a graduação de interesse do seu interlocutor é proporcional ao número de sobrenomes que você cita, obviamente de maneira casual, assim quase que sem perceber. Oi, fulano querido, onde você está expondo? Ah, sério? Com o beltraninho sobrenome? Que legal, sabe que encontrei o Zé sobrenome na feira-super-importante? Pois é ele tinha me perguntado se não queria participar do evento-mega-importante, mas não sei, ando tão ocupada… Isso é fundamental, estamos sempre muito, mas muito ocupados! Não necessariamente você é tão amiga do Zé sobrenome ou foi oficialmente convidada para o evento-mega-importante, mas tudo bem, porque também quase ninguém vai correr o risco de checar a informação. E meias verdades, se tornam verdades absolutas. 

Depois da quinta vez que você escuta a idêntica estrutura de conversa, percebe-se que ninguém ali é tão idiota a ponto de não perceber que não é casual. É o jogo. Besta e precário, mas também não faz diferença, porque interessa aos jogadores. Claro que existe gente legal e bons artistas de verdade! Mas se quiserem subir no tal do pedestal, precisam jogar na mesma linha. Podemos descrever essa situação de maneira mais elegante e intelectual, as pessoas mascaram suas verdades da forma melhor possível, mas no fundo, estamos falando de política. No fundo estamos falando que você vale quem você conhece. 

E falando em quem você conhece, que tal os curadores e críticos? Nesse momento, gostaria sinceramente de ser capaz de descrever minha risada silenciosa e sarcástica do canto da boca. Os gatekeepers! Ninguém entra sem sua benção, os curandeiros da tribo. A aura de poder que gira em torno desses cidadãos é próxima a dos faraós. É uma coisa maluca, sou macaca velha e juro que fico nervosa quando estou no entorno dessas pessoas. Aquela sensação quase adolescente de, e agora, o que eu falo? Preciso falar alguma coisa inteligente rápido! São pessoas de carne e osso, é possível que nem sejam os responsáveis pela atribuição de tanto poder, algumas vezes seriam pessoas com quem adoraria manter uma amizade verdadeira, mas isso é praticamente impossível. Porque não há nada em sua volta que não seja em função de interesses, não há outro assunto que não seja arte, é uma completa obsessão. 

Não me estranha que nesse meio circule tanto álcool e drogas, em algum momento você precisa ser capaz de dizer o que pensa e de ser você mesmo. É muito abuso, inclusive sexual. O interessante, nesse caso, é que o alvo é masculino. Arrisco-me a dizer que é um dos motivos do pouco poder das mulheres no meio. É verdade que existe a questão machista, como em qualquer outra profissão, mas acredito que uma parte da restrição do acesso das mulheres nesse topo é o fato de não possuírem grandes atributos de atração sexual. Os homens interessam mais. As poucas mulheres que circulam costumam ser mulher-de-alguém. 

E, por favor, não sejamos simplistas, não estou alegando que os artistas e curadores importantes são gays e isso pouco importaria. Não estou falando de sexualidade, e sim de poder e perversão, dois fatores presentes e relevantes para entender o contexto.  

E onde a ARCO entra nisso? Veja bem, agora vou começar a parte dos galeristas e a ARCO é uma feira de galerias de todo o mundo, as principais. Trabalhei na montagem de duas galerias brasileiras, como pião de obra especializada mesmo, de maneira, que estava inofensiva. Por um lado foi complicado, pois é um trabalho muito pesado, por muitas horas, pagam pouco e você é mal tratada. Aquele pensamento feudal, onde se trata a mão de obra como seres inferiores e saco de pancadas. Mas não tenho esse tipo de frescura, trabalho é trabalho e pronto, sei bem quem sou, preferi aproveitar o outro lado, onde tive a oportunidade de ver de perto e entender como os galeristas se relacionam com as obras e os artistas, sem máscaras. Eu era inofensiva, ninguém se preocupou em disfarçar. E como diria Charlie Brown Jr no Papo Reto, é que eu me fortaleço na sua palha 

Acho muito estranho essa necessidade de se tratar as pessoas de maneira diferente, de acordo com sua posição. Não só por uma postura humanista, não sou tão boazinha nem ingênua, mas porque me parece neurótico, coisa de dupla personalidade, de gente que não sabe bem se quer ser boa ou má e sente um certo prazer em poder exercer sua perversão incólume. Enfim, o pessoal das duas galerias não era igual, o da primeira era um idiota, o da segunda não. E também não importa minha opinião pessoal a respeito, vou me abster de tratar o assunto emocionalmente e pensar de maneira fria, como um negócio.  

Como negócio, acho o modelo econômico preocupante e o modelo comercial antiquado. E vou explicar. 

Por ter participado da montagem, recebi o passe de entrada na feira antes dela ser aberta ao público em geral. Funciona assim, os dois primeiros dias só podem entrar basicamente galeristas, expositores e colecionadores. É comercial mesmo. Aliás, olha que coisa interessante, do artista é cobrado a todo momento uma postura cultural. Ele é quase execrado se parecer remotamente comercial. E no entanto, absolutamente tudo o que o cerca é comercial. Em uma exposição, por exemplo, todo mundo ganha alguma coisa. Do eletricista ao curador, de maneira geral, todos são pagos por um trabalho. O artista só é pago se vender, mesmo assim, a comissão é em média 50% para o galerista. E ele ainda precisa parecer que não está ligando para o dinheiro, que não é por isso que trabalha. Afinal, ele vive de vento e não precisa pagar contas, além de ser genial, criativo e gente boa, um barbie-artista. 

Mas voltando à maneira de se negociar, passeei pela feira com meus orelhões bem atentos aos diálogos. O modelo de vendas é mais antigo do que o de vendedor de enciclopédia. São produtos em uma prateleira, quer esse? Não? Então, tem esse outro aqui. Juro que escutei umas três vezes em galerias diferentes a frase, olha esse vai vender em 15 minutos… Fiquei realmente na dúvida se estavam vendendo obras de arte ou bananas. Sendo que ao vendedor de bananas, cabe a irreverência divertida.  

Um galerista é um negociador e um colecionador está ali para fazer negócio, ou seja, não esperava nenhuma relação lúdica, deve ser profissional e comercial mesmo. No entanto, já existe coisa muito mais avançada no mercado, francamente. Nenhuma empresa de ponta está para vender produtos, mas soluções. Há disponível uma série de metodologias e estratégias de vendas. Realizar uma venda sofisticada não se restringe a vestir um terno Armani. O outro lado, o colecionador, esse sabe muito bem o que está fazendo ali, não me estranha serem em boa parte do mercado financeiro. 

Até aí, menos mal, o que realmente me preocupou foi um insight sobre o modelo econômico. Percebi uma enorme semelhança com a bolha da Nasdaq, e para quem não é do ramo, vou tentar explicar de maneira básica e rápida. 

A Nasdaq é uma bolsa de valores para empresas de tecnologia. Vamos por partes, uma das funções de uma bolsa de valores é ser uma maneira de financiar empresas. Por exemplo, você tem uma empresa que precisa de mais dinheiro para ser investido, uma das opções é transformar parte dessa sua empresa em ações e vender essas ações no mercado. Ou seja, você ganha novos sócios que, se sua empresa lucrar, lucram contigo e se sua empresa quebrar, perdem dinheiro. É uma aposta no futuro, um investidor da bolsa faz apostas de onde seu dinheiro poderá render mais. 

Ainda que seja uma aposta, e portanto, nada é garantido, não há muitos bobos nessa função. Um clássico investidor de bolsa de valores irá analisar dados muito concretos, financeiros, comerciais, meio ambiente etc, e a partir daí, tomar uma decisão de em que cestas colocar seus ovos, às vezes, literalmente. Muito bem, com a Nasdaq aconteceu algo curioso, porque com o boom que houve em tecnologia, internet e tal, empresas muito novas e de gente muito jovem começaram a ser estimadas quase que por completo pelo seu potencial de crescimento, e muito pouco pelo que realmente faturavam. Ou seja, se pagava por um conceito e não por um valor real. Uma empresa valia o que se dizia que poderia valer. Como você mede algo subjetivo e razoavelmente desconhecido? 

Entre 1996 e 2000, pipocaram milionários donos de empresas ”.com”. Aquela historinha dos jovens empresários geniais, que andavam descalços nos seus escritórios e brincavam enquanto trabalhavam. Mentes criativas, brilhantes e inovadoras. A nova economia! Então tá, né? Sou muito cética para acreditar que ninguém notou que isso não podia dar certo, é claro que isso cresceu dessa maneira porque interessava a muita gente, e quem está na panela se protege.  

Até aí, alguém mais notou alguma semelhança ou sou só eu? 

Muito bem, entre 2000 e 2002 essa grande bolha estourou. Começou a se comprovar que aquele enorme potencial de crescimento não se concretizou. A teoria não funcionou na prática. O povo começou a vender suas ações e foi um quebra-quebra daqueles. 

Em maior ou menor grau, a história se repete e darei outro exemplo que aconteceu aqui no mercado espanhol, com selos. Aqui funcionava um tipo de bolsa filatélica, muito parecido ao mercado de ouro. Tentando simplificar uma explicação, é assim, do mesmo jeito que você pode investir em ações, você também pode investir em ouro, ou seja, você compra títulos que tem preços e ganhos em função da variação do preço do ouro. Acontece que o ouro existe de verdade, seus papéis estão respaldados por um metal guardado em um banco. Aqui fizeram o mesmo com selos, esses de carta. Os títulos eram respaldados em função da variação do preço dos selos. Outra vez, como conceito era perfeito e enquanto interessava, todo mundo fez de conta que selo valia muito. Até que alguém se perguntou, vem cá, mas esse papel está respaldado em… papel? 

Quebrou também. 

O que há em comum nesses dois exemplos? Entre outras coisas, ambos seguem um modelo consolidado e comprovado, entretanto sem respaldo concreto e com critérios subjetivos. Interessa quanto mais subjetivos forem esses critérios porque favorece à especulação. E o fato de seguirem um modelo conhecido traz credibilidade e discurso. É mais fácil vender uma enorme mentira, se estiver salpicada por pedacinhos de verdade. Você distrai o interlocutor quando ressalta as verdades. 

E finalmente, onde quero chegar. Também existe o mercado de artes, que conceitualmente funciona muito parecido ao mercado de ações. Temos as obras que, por falta de termo melhor, vou chamar de clássicas, comparáveis às blue chips. O tempo consolidou os critérios de análise do que se estabeleceu como verdadeiras obras de arte. Há um limite no que se pode especular, mas você praticamente nunca perderá com elas. 

Entretanto, fica especialmente curioso quando entramos na negociação das obras de arte contemporânea, onde não há distânciamento histórico e mais que um valor, vendemos um conceito e um nome. Arte é o que determinado grupo chama de arte, e é esse mesmo grupo quem lucra com sua consolidação. Vamos combinar, isso é tão diferente do que aconteceu com a Nasdaq? 

Exagerando um pouco, mas não muito, se determinado artista disser que uma xícara é uma obra de arte, um curador respeitado respaldar, e um galerista importante disser que ela vale cem mil euros, ela valerá. Mas me pergunto se em determinado momento, da mesma maneira que alguém perguntou se selo não era papel, será que ninguém vai perguntar se uma xícara não é só uma xícara? Até quando a merda do artista* será reconhecida como obra de arte? (*merde d’artist, Piero Manzoni) 

Como artista, posso afirmar que uma xícara pode ser uma obra de arte sim, até sua bosta pode ser. E há obras conceituais importantíssimas e necessárias. Mas lembro que quando a bolha da Nasdaq estourou, também rodaram boas idéias. Não é a arte contemporânea que estou atacando, simplesmente acho que esse modelo de comercializá-lo tende historicamente ao fracasso.

Muito bem, até esse momento, estou me baseando em teorias mercadológicas, a partir daqui, me dou a liberdade em passar para a teoria da conspiração e viajar na maionese.

Em que momento essa bolha estouraria? A pergunta-chave para toda teoria da conspiração é: quem ganha com isso?

Bom, quem poderia lucrar com a mudança desse sistema seriam os artistas de fora da panela e os colecionadores. Os artistas são sempre uns duros, não ameaçam ninguém e os que estão fora da panela tem pouca voz ativa e são desunidos. Sobram os colecionadores.

Quem são os grandes colecionadores hoje? Não tenho informação de todo o mundo, mas posso dizer que no Brasil, por exemplo, bancos e banqueiros tem ampliado razoavelmente sua participação nesse mercado. Mas pergunta se estão comprando alguma coisa muito estapafúrdia ou conceitual? E se eles resolverem perguntar se uma xícara não é só uma xícara?

Se o mesmo bolo for dividido em menos partes, individualmente, as partes não ficariam mais caras?