Receber amigos em casa, primeiro movimento

Escuto muito gente dizer que receber amigos em casa é uma arte. É possível que seja. Mas, para mim, receber gente é legal. E talvez essa seja a maior dica que possa dar: para você receber bem, primeiro você precisa gostar de ter pessoas na sua casa. 

Parece óbvio, mas na prática não é tão evidente assim. Há pessoas que se sentem invadidas com outros no seu ambiente. Porque suja, desorganiza, quebra coisas. E é verdade. Tudo isso acontece ou pode acontecer. Há também quem não está satisfeito em seu próprio lar e não quer trazer amigos em um lugar onde ele mesmo não se sinta à vontade. Há um monte de razões muito coerentes para alguém não querer recepcionar e se você é assim, não se martirize, isso não te faz uma má pessoa, simplesmente não receba. Tem milhões de restaurantes e lugares legais para convidar seus amigos. Resolvido. Nem precisa ler o resto do texto. 

Mas também tem gente que gostaria muito de receber amigos, mas acha que não sabe, se sente inseguro, acha que ninguém vai aparecer, não sabe o que servir, enfim, uma lista de medos do desconhecido. Para isso tem solução! 

Não sou uma expert no assunto, nem tenho essa pretensão, mas venho de uma família que sempre recebeu muita gente em casa e sou igual. Com a prática, você vai percebendo que algumas coisas funcionam melhor do que outras e acaba criando alguns processos meio automáticos que facilitam sua vida e deixam seus convidados felizes. Não posso garantir que o que vou contar esteja classificado nos protocolos oficiais, mas divido minha experiência com prazer. E também adoro ouvir e observar a experiência alheia, tem sempre alguma coisa que você aprende. 

Há quem acredite que festas e recepções são coisas fúteis, e que não deveríamos perder nosso precioso tempo e intelecto com essas banalidades. Será mesmo? Demonstrar que as pessoas são queridas é algo assim tão pequeno? Ver como se comporta um parceiro de negócios em um ambiente fora do escritório não te dá nenhuma informação? Então tá, né? 

Muito bem, vamos organizar o barraco, vou classificar essas recepções em dois grupos, formais e informais, sendo as formais relacionadas a trabalho, cerimônias oficiais etc.  

Por favor, não confundir as duas coisas, uma festa com o pessoal do seu trabalho é trabalho, não trate como festa. Você está ali para trabalhar e não para se divertir. Esse tipo de festa é para os negócios, não para os convidados. Um pouquinho de abstração, a gente pode sorrir, pode dançar, mas não se distraia nem se iluda, o foco é outro. Não consigo me lembrar de nenhuma grande festa em grandes empresas, onde não foi alguém demitido ou queimado no dia seguinte. Sinto muito, a vida é dura. 

Daqui para frente, vou tratar das festas ou reuniões informais, ou seja,  basicamente receber seus amigos e conhecidos em casa. E, nesse caso, diferente das formais, uma festa é sempre e absolutamente para seus convidados, não conheço outra maneira de funcionar. 

Primeiro de tudo: sim, receber dá trabalho! Não há como fazer omelete sem quebrar os ovos, receber dá trabalho e pronto. É bom que pareça aos seus convidados que não deu, mas dá. A questão é como você se relaciona com isso, eu, sinceramente, me divirto. Além do mais, você precisa ser uma pessoa que goste de agradar seus amigos. Não estou falando de bajulação, estou dizendo que quando um amigo meu sai de uma festa feliz e se sentindo especial, fico nas nuvens! Mesmo que canse um pouco, você tem aquela sensação de realização que deu certo, funcionou! 

Fora a energia bacana que deixa no ambiente. É muito comum as pessoas nos visitarem e dizerem que nossa casa tem um alto astral. Tenho certeza absoluta que parte dessa sensação vem do movimento de gente legal e que tem bons momentos aqui. O que no fundo quero dizer é que não tem milagre, não conheço nenhuma fórmula de boa festa instantânea. Só que compensa, o retorno é uma delícia! 

Então, arregacemos as mangas e vamos para prática. O fundamental para a festa funcionar é o antes. Quanto melhor você se planejar e deixar tudo engatilhado, mais você será capaz de se integrar e divertir na festa. Não adianta você ficar igual a uma maria louca servindo todo mundo e preparando tudo na hora, porque se você não conseguir aproveitar a festa, seus convidados dificilmente se divertirão. Eles estarão constrangidos vendo você de escrava e sem saber como te ajudar. A presença dos anfitriões na sala é fundamental. 

Veja bem, no mundo ideal, você pode contratar um buffet ou garçons, perfeito. Facilita, mas de qualquer forma, você precisa orientá-los antes. A equipe do buffet, por exemplo, precisa saber se há alguém com restrição alimentar. Se você contrata o garçon diretamente, ele precisa saber quantas pessoas virão e quanto de bebida ele dispõe, porque a partir daí ele controla as doses. Cabe à anfitriã saber dar o tom, decidir o que servir, se pode servir à vontade, se deve segurar em algum momento. Enfim, você tem menos trabalho, porém não aconselho delegar tudo de olhos fechados. 

Mas vamos combinar, hoje em dia não dá para a gente sair contratando buffet ou garçons para toda festinha. Além do custo, às vezes você quer fazer uma coisa menor, mais despretenciosa. Então, como você faz? Deixa tudo pronto antes. 

Putz! Mas tem uma receita fa-bu-lo-sa da sua avó, que demora trocentas horas para ficar pronta e só presta se fizer na hora… Esquece! Além de deixar seus convidados constrangidos, você vai matá-los de fome e de tédio. Aprenda outro prato ou peça uma pizza. Aliás, acho que a pizza deve ser sempre o plano B. Vai que você deixou tudo preparadinho certinho, mas na hora, errou a mão! Cassilda, você foi conversar e queimou! Não entre em pânico, volte para sala, conte o que aconteceu, morra de rir e ligue para a entrega de pizza. Um amigo que tenha intimidade para ir na sua casa, não vai ficar aborrecido por isso, pelo contrário, vira piada. 

Mais ainda, se você não sabe cozinhar mesmo, já convida logo o povo para a pizza e pronto! Faz um charme, acende umas velinhas, serve em prato de louça, um bom vinho, e já melhora muito. 

Agora, o outro extremo, os anfitriões descansados. Aquela festinha que você é convidada no sábado, toda satisfeita, vai bonitinha e no final do almoço, sobra a louça para você! Ninguém merece, né? Olha, uma coisa é você contar com uma mãozinha dos convidados, o que quer dizer levar um prato para mesa, se servir, recolher meia dúzia de copos, tudo bem. Mas o serviço sujo é dos anfitriões e acabou, entuba! Não estou falando da sua prima que foi te visitar e lavou uma xícara de café, tô falando de uma festa que sua convidada está com as unhas feitas e foi colocada para lavar uma pilha de pratos. Arrego!

É simples, cabe ao convidado perguntar uma ou duas vezes se os anfitriões precisam de ajuda, cabe ao anfitrião dizer que não precisa, ou aceitar um favor bem fácil.  

Tem exceções, claro, onde conta o bom senso. Por exemplo, se um convidado derrubou uma taça de vinho no chão e quer te ajudar a limpar, você deixa. Porque todo mundo que derruba alguma coisa fica super sem graça e quer compensar de algum jeito. Bom, se você tem alguém que possa limpar, não precisa que seu convidado limpe, mas peça para ele tomar conta ali um minutinho para ninguém pisar e assim você dá uma função para ele. E se você está sozinha, traz um paninho ou papel toalha e, enquanto ele mesmo limpa, você continua conversando com as pessoas normalmente. Não deixa de ser uma maneira de tirá-lo do centro das atenções em uma situação constrangedora. E de mais a mais é só uma porcaria de um copo, se você tinha tanto medo que quebrasse, servisse em outro. 

Mais um exemplo, você receberá umas 20 pessoas em casa e está sozinha, ou seja, não tem nenhum garçon para te ajudar. O que você faz? Serve cada um? Deixa os convidados com esse trabalho? Outra vez, bom senso e deixar tudo arrumado antes. É tranquilo, só fazer pontos de distribuição facilmente identificáveis, num ponto você deixa os copos limpos, em outro as bebidas, em outro as comidas… Perto das bebidas, você já deixa o gelo. Guardanapos, louça, tudo que seus convidados irão precisar, já deve estar à vista e disponível. Você tenta servir pelo menos o primeiro drink, mostra onde está cada coisa e o caos se incumbe do resto, confia que dá certo. Seus convidados com menos de 60 anos, normalmente, até preferem se servir sozinhos; já os mais velhos, devem ser servidos, é uma questão de respeito. A não ser que eles mesmos se levantem e tomem a iniciativa, daí é outra história. 

O que servir? Há uns três bilhões de alternativas, mas vou tentar dar algumas dicas. Particularmente, se recebo mais de 15 pessoas, prefiro não servir nada quente, dá muito mais trabalho. Imagina que você terá que esquentar aquela meleca toda na hora, o que te levará para cozinha. Além do mais, os convidados não chegam todos ao mesmo tempo e sempre bate um pouco de dúvida sobre o momento adequado para esquentar os pratos. Quando você finalmente esquenta a porcaria do prato e põe na mesa, fica todo mundo fazendo cerimônia para não ser o primeiro a se servir e esfria tudo de novo. E para completar, faz aquela fila de bandejão na sua sala. Olha, que beleza!  

Sou a favor de facilitar minha própria vida, então, acho muito melhor servir saladas coloridas e interessantes, pastinhas, queijos, frutos secos, enfim, comidas que possam já estar na mesa quando os convidados cheguem. Por exemplo, https://buracodafechadura.com/2008/03/10/saladas-para-festas/

Mas se não tem jeito, você quer porque quer servir alguma coisa quente, ter um rechaud ajuda bastante. Também melhor optar por algo que possa ser esquentado no forno, ao invés do fogão, você ganha uns minutinhos a mais com seus convidados sem correr o risco de queimar a comida. 

Vou abrir um parênteses, estou falando das festas que você planejou e está oferecendo. Porque hoje em dia também é comum a gente ligar para meia dúzia de amigos e combinar de se encontrar em casa. Na verdade, tenho amigos com intimidade suficiente para me ligarem avisando que estão chegando. Isso é outra coisa, cai no nível de informalidade família, que tratarei em outro momento.

Agora, retomando e visualizando todo o conjunto, você preparou todas as comidas e deixou sobre a mesa. As bebidas, gelo, copos, guardanapos, louça, enfim, tudo o que seus convidados precisam, está disponível. Sua única preocupação é repor alguma coisa que acabe, se for o caso. O que te resta a fazer? Relaxar e aproveitar a festa!

PS: Se você gostou desse post, também pode gostar desse:

Arrumar a mesa para um jantar especial

VII – O lado obscuro da ARCO, manifesto de uma ex-consultora-artista que há algum tempo apertou o botão do foda-se

Tem muita coisa que está bem na frente dos nossos narizes, mas parece coberto por uma cortina de fumaça, que a gente mesmo coloca lá para deixar o mundo mais suportável. É tão inconsciente que até acreditamos nessa falta de realidade conveniente, mas às vezes chega algum tipo de experiência e em três segundos venta toda a fumaça para o lado, e nos pega tão de surpresa que não dá para fingir que não vimos. 

Explicar uma experiência é tarefa árdua, então vou contá-la e quem sabe assim transmito e entendo melhor algo que pode mudar minha direção. 

Tenho um amigo que diz que quando Deus quer castigar o homem, satisfaz seus desejos. Crenças à parte, há muito de verdade nessa filosofia. Nas duas últimas semanas, naveguei semi-anônima no que se poderia chamar o topo do “mundo das artes”. Entre artistas, curadores, galeristas e críticos, todos equilibrados em um único pequeno e alto pedestal. Juro que sem despeito, mas confesso que um pouco atônita, me perguntei, por que mesmo eu deveria querer me espremer aí em cima também? 

Sou ex-consultora de negócios e modéstia às favas, das boas. Portanto, fui adestrada a enxergar modelos e padrões, facilita a vida, nada e ninguém é tão original que não siga nenhuma tendência. 

Vamos começar pelos artistas? E não me poupo dessa crítica, porque posso fazer o mesmo. O padrão de relacionamento é próximo ao dos alpinistas sociais, funciona assim, primeiro você precisa de algo exótico na sua aparência, faz parte do seu marketing pessoal, até aí, é o mesmo conceito em negócios, só mudam as características. É importante que você seja visivelmente reconhecível. Mas isso não faz muita diferença na prática, porque o “outro artista” só vai te reconhecer se houver algum interesse nisso. Você pode ter o cabelo laranja e mancar de uma perna, mas só será visto se deixar evidente que pertence à corte. É uma coisa de alienígenas de filme americano, que tomam conta de corpos humanos e se reconhecem por uma frequência secreta emitida pela voz. Vai ficando mais chocante ainda quando você começa a prestar atenção no padrão das conversas, onde a graduação de interesse do seu interlocutor é proporcional ao número de sobrenomes que você cita, obviamente de maneira casual, assim quase que sem perceber. Oi, fulano querido, onde você está expondo? Ah, sério? Com o beltraninho sobrenome? Que legal, sabe que encontrei o Zé sobrenome na feira-super-importante? Pois é ele tinha me perguntado se não queria participar do evento-mega-importante, mas não sei, ando tão ocupada… Isso é fundamental, estamos sempre muito, mas muito ocupados! Não necessariamente você é tão amiga do Zé sobrenome ou foi oficialmente convidada para o evento-mega-importante, mas tudo bem, porque também quase ninguém vai correr o risco de checar a informação. E meias verdades, se tornam verdades absolutas. 

Depois da quinta vez que você escuta a idêntica estrutura de conversa, percebe-se que ninguém ali é tão idiota a ponto de não perceber que não é casual. É o jogo. Besta e precário, mas também não faz diferença, porque interessa aos jogadores. Claro que existe gente legal e bons artistas de verdade! Mas se quiserem subir no tal do pedestal, precisam jogar na mesma linha. Podemos descrever essa situação de maneira mais elegante e intelectual, as pessoas mascaram suas verdades da forma melhor possível, mas no fundo, estamos falando de política. No fundo estamos falando que você vale quem você conhece. 

E falando em quem você conhece, que tal os curadores e críticos? Nesse momento, gostaria sinceramente de ser capaz de descrever minha risada silenciosa e sarcástica do canto da boca. Os gatekeepers! Ninguém entra sem sua benção, os curandeiros da tribo. A aura de poder que gira em torno desses cidadãos é próxima a dos faraós. É uma coisa maluca, sou macaca velha e juro que fico nervosa quando estou no entorno dessas pessoas. Aquela sensação quase adolescente de, e agora, o que eu falo? Preciso falar alguma coisa inteligente rápido! São pessoas de carne e osso, é possível que nem sejam os responsáveis pela atribuição de tanto poder, algumas vezes seriam pessoas com quem adoraria manter uma amizade verdadeira, mas isso é praticamente impossível. Porque não há nada em sua volta que não seja em função de interesses, não há outro assunto que não seja arte, é uma completa obsessão. 

Não me estranha que nesse meio circule tanto álcool e drogas, em algum momento você precisa ser capaz de dizer o que pensa e de ser você mesmo. É muito abuso, inclusive sexual. O interessante, nesse caso, é que o alvo é masculino. Arrisco-me a dizer que é um dos motivos do pouco poder das mulheres no meio. É verdade que existe a questão machista, como em qualquer outra profissão, mas acredito que uma parte da restrição do acesso das mulheres nesse topo é o fato de não possuírem grandes atributos de atração sexual. Os homens interessam mais. As poucas mulheres que circulam costumam ser mulher-de-alguém. 

E, por favor, não sejamos simplistas, não estou alegando que os artistas e curadores importantes são gays e isso pouco importaria. Não estou falando de sexualidade, e sim de poder e perversão, dois fatores presentes e relevantes para entender o contexto.  

E onde a ARCO entra nisso? Veja bem, agora vou começar a parte dos galeristas e a ARCO é uma feira de galerias de todo o mundo, as principais. Trabalhei na montagem de duas galerias brasileiras, como pião de obra especializada mesmo, de maneira, que estava inofensiva. Por um lado foi complicado, pois é um trabalho muito pesado, por muitas horas, pagam pouco e você é mal tratada. Aquele pensamento feudal, onde se trata a mão de obra como seres inferiores e saco de pancadas. Mas não tenho esse tipo de frescura, trabalho é trabalho e pronto, sei bem quem sou, preferi aproveitar o outro lado, onde tive a oportunidade de ver de perto e entender como os galeristas se relacionam com as obras e os artistas, sem máscaras. Eu era inofensiva, ninguém se preocupou em disfarçar. E como diria Charlie Brown Jr no Papo Reto, é que eu me fortaleço na sua palha 

Acho muito estranho essa necessidade de se tratar as pessoas de maneira diferente, de acordo com sua posição. Não só por uma postura humanista, não sou tão boazinha nem ingênua, mas porque me parece neurótico, coisa de dupla personalidade, de gente que não sabe bem se quer ser boa ou má e sente um certo prazer em poder exercer sua perversão incólume. Enfim, o pessoal das duas galerias não era igual, o da primeira era um idiota, o da segunda não. E também não importa minha opinião pessoal a respeito, vou me abster de tratar o assunto emocionalmente e pensar de maneira fria, como um negócio.  

Como negócio, acho o modelo econômico preocupante e o modelo comercial antiquado. E vou explicar. 

Por ter participado da montagem, recebi o passe de entrada na feira antes dela ser aberta ao público em geral. Funciona assim, os dois primeiros dias só podem entrar basicamente galeristas, expositores e colecionadores. É comercial mesmo. Aliás, olha que coisa interessante, do artista é cobrado a todo momento uma postura cultural. Ele é quase execrado se parecer remotamente comercial. E no entanto, absolutamente tudo o que o cerca é comercial. Em uma exposição, por exemplo, todo mundo ganha alguma coisa. Do eletricista ao curador, de maneira geral, todos são pagos por um trabalho. O artista só é pago se vender, mesmo assim, a comissão é em média 50% para o galerista. E ele ainda precisa parecer que não está ligando para o dinheiro, que não é por isso que trabalha. Afinal, ele vive de vento e não precisa pagar contas, além de ser genial, criativo e gente boa, um barbie-artista. 

Mas voltando à maneira de se negociar, passeei pela feira com meus orelhões bem atentos aos diálogos. O modelo de vendas é mais antigo do que o de vendedor de enciclopédia. São produtos em uma prateleira, quer esse? Não? Então, tem esse outro aqui. Juro que escutei umas três vezes em galerias diferentes a frase, olha esse vai vender em 15 minutos… Fiquei realmente na dúvida se estavam vendendo obras de arte ou bananas. Sendo que ao vendedor de bananas, cabe a irreverência divertida.  

Um galerista é um negociador e um colecionador está ali para fazer negócio, ou seja, não esperava nenhuma relação lúdica, deve ser profissional e comercial mesmo. No entanto, já existe coisa muito mais avançada no mercado, francamente. Nenhuma empresa de ponta está para vender produtos, mas soluções. Há disponível uma série de metodologias e estratégias de vendas. Realizar uma venda sofisticada não se restringe a vestir um terno Armani. O outro lado, o colecionador, esse sabe muito bem o que está fazendo ali, não me estranha serem em boa parte do mercado financeiro. 

Até aí, menos mal, o que realmente me preocupou foi um insight sobre o modelo econômico. Percebi uma enorme semelhança com a bolha da Nasdaq, e para quem não é do ramo, vou tentar explicar de maneira básica e rápida. 

A Nasdaq é uma bolsa de valores para empresas de tecnologia. Vamos por partes, uma das funções de uma bolsa de valores é ser uma maneira de financiar empresas. Por exemplo, você tem uma empresa que precisa de mais dinheiro para ser investido, uma das opções é transformar parte dessa sua empresa em ações e vender essas ações no mercado. Ou seja, você ganha novos sócios que, se sua empresa lucrar, lucram contigo e se sua empresa quebrar, perdem dinheiro. É uma aposta no futuro, um investidor da bolsa faz apostas de onde seu dinheiro poderá render mais. 

Ainda que seja uma aposta, e portanto, nada é garantido, não há muitos bobos nessa função. Um clássico investidor de bolsa de valores irá analisar dados muito concretos, financeiros, comerciais, meio ambiente etc, e a partir daí, tomar uma decisão de em que cestas colocar seus ovos, às vezes, literalmente. Muito bem, com a Nasdaq aconteceu algo curioso, porque com o boom que houve em tecnologia, internet e tal, empresas muito novas e de gente muito jovem começaram a ser estimadas quase que por completo pelo seu potencial de crescimento, e muito pouco pelo que realmente faturavam. Ou seja, se pagava por um conceito e não por um valor real. Uma empresa valia o que se dizia que poderia valer. Como você mede algo subjetivo e razoavelmente desconhecido? 

Entre 1996 e 2000, pipocaram milionários donos de empresas ”.com”. Aquela historinha dos jovens empresários geniais, que andavam descalços nos seus escritórios e brincavam enquanto trabalhavam. Mentes criativas, brilhantes e inovadoras. A nova economia! Então tá, né? Sou muito cética para acreditar que ninguém notou que isso não podia dar certo, é claro que isso cresceu dessa maneira porque interessava a muita gente, e quem está na panela se protege.  

Até aí, alguém mais notou alguma semelhança ou sou só eu? 

Muito bem, entre 2000 e 2002 essa grande bolha estourou. Começou a se comprovar que aquele enorme potencial de crescimento não se concretizou. A teoria não funcionou na prática. O povo começou a vender suas ações e foi um quebra-quebra daqueles. 

Em maior ou menor grau, a história se repete e darei outro exemplo que aconteceu aqui no mercado espanhol, com selos. Aqui funcionava um tipo de bolsa filatélica, muito parecido ao mercado de ouro. Tentando simplificar uma explicação, é assim, do mesmo jeito que você pode investir em ações, você também pode investir em ouro, ou seja, você compra títulos que tem preços e ganhos em função da variação do preço do ouro. Acontece que o ouro existe de verdade, seus papéis estão respaldados por um metal guardado em um banco. Aqui fizeram o mesmo com selos, esses de carta. Os títulos eram respaldados em função da variação do preço dos selos. Outra vez, como conceito era perfeito e enquanto interessava, todo mundo fez de conta que selo valia muito. Até que alguém se perguntou, vem cá, mas esse papel está respaldado em… papel? 

Quebrou também. 

O que há em comum nesses dois exemplos? Entre outras coisas, ambos seguem um modelo consolidado e comprovado, entretanto sem respaldo concreto e com critérios subjetivos. Interessa quanto mais subjetivos forem esses critérios porque favorece à especulação. E o fato de seguirem um modelo conhecido traz credibilidade e discurso. É mais fácil vender uma enorme mentira, se estiver salpicada por pedacinhos de verdade. Você distrai o interlocutor quando ressalta as verdades. 

E finalmente, onde quero chegar. Também existe o mercado de artes, que conceitualmente funciona muito parecido ao mercado de ações. Temos as obras que, por falta de termo melhor, vou chamar de clássicas, comparáveis às blue chips. O tempo consolidou os critérios de análise do que se estabeleceu como verdadeiras obras de arte. Há um limite no que se pode especular, mas você praticamente nunca perderá com elas. 

Entretanto, fica especialmente curioso quando entramos na negociação das obras de arte contemporânea, onde não há distânciamento histórico e mais que um valor, vendemos um conceito e um nome. Arte é o que determinado grupo chama de arte, e é esse mesmo grupo quem lucra com sua consolidação. Vamos combinar, isso é tão diferente do que aconteceu com a Nasdaq? 

Exagerando um pouco, mas não muito, se determinado artista disser que uma xícara é uma obra de arte, um curador respeitado respaldar, e um galerista importante disser que ela vale cem mil euros, ela valerá. Mas me pergunto se em determinado momento, da mesma maneira que alguém perguntou se selo não era papel, será que ninguém vai perguntar se uma xícara não é só uma xícara? Até quando a merda do artista* será reconhecida como obra de arte? (*merde d’artist, Piero Manzoni) 

Como artista, posso afirmar que uma xícara pode ser uma obra de arte sim, até sua bosta pode ser. E há obras conceituais importantíssimas e necessárias. Mas lembro que quando a bolha da Nasdaq estourou, também rodaram boas idéias. Não é a arte contemporânea que estou atacando, simplesmente acho que esse modelo de comercializá-lo tende historicamente ao fracasso.

Muito bem, até esse momento, estou me baseando em teorias mercadológicas, a partir daqui, me dou a liberdade em passar para a teoria da conspiração e viajar na maionese.

Em que momento essa bolha estouraria? A pergunta-chave para toda teoria da conspiração é: quem ganha com isso?

Bom, quem poderia lucrar com a mudança desse sistema seriam os artistas de fora da panela e os colecionadores. Os artistas são sempre uns duros, não ameaçam ninguém e os que estão fora da panela tem pouca voz ativa e são desunidos. Sobram os colecionadores.

Quem são os grandes colecionadores hoje? Não tenho informação de todo o mundo, mas posso dizer que no Brasil, por exemplo, bancos e banqueiros tem ampliado razoavelmente sua participação nesse mercado. Mas pergunta se estão comprando alguma coisa muito estapafúrdia ou conceitual? E se eles resolverem perguntar se uma xícara não é só uma xícara?

Se o mesmo bolo for dividido em menos partes, individualmente, as partes não ficariam mais caras?

6 – O melhor carnaval fora do Brasil

Finalmente, um carnaval do qual não posso reclamar, pelo contrário, faz tempo que não me divirto tanto. Ainda bem, porque depois foi tanta pauleira de trabalho que se estivesse de mau humor acho que teria matado uns três! Mas uma coisa de cada vez e vamos começar pela parte boa. 

O pré-carnaval já era um bom presságio e nos deixou em clima de festa e de saudade do Brasil, mas uma saudade gostosa, sem tristeza. Acho que ajudou muito estarmos em um grupo animado e também muito afim de se acabar na avenida. 

Sim, porque aqui não tem sambódromo, mas com boa vontade a gente improvisa. Houve um tipo de desfile de países latinos que saía do parque do Retiro em direção à Puerta de Alcala, passava pelo Paseo de Recoletos e finalizava na Plaza de Colón. É  um bom trecho, talvez uns 3 km.  

Pois, por que não? No sábado, nos encontramos no Kabocla, para aquecimento, e nos unimos ao bloco. Compramos algumas fantasias como, perucas, chifrinhos, instrumentos de brinquedo, máscaras, coisas simples e engraçadas. Saímos, aquele bando de fantasiados no metrô para o parque do Retiro.  

Claro que ninguém lembrou de marcar um ponto de encontro e foi absolutamente irritante conseguir juntar todo mundo outra vez em um só grupo. Pode dizer, só podia ser brasileiro, né? É verdade, éramos o bloco mais desorganizado de todos, porém também o mais simpático e que agitava o pessoal em volta. Era gente filmando, fotografando, um sucesso! Ainda bem que estávamos disfarçados, porque sabe-se lá onde fui aparecer de cabelo azul e chifrinho, bom, pior o Luiz que estava com uma peruca ruiva! 

Levamos cachaça, whisky, batidas, um festival etílico. Acho que fazia uns 5 graus e a gente suando a camisa. 

Agora a parte mais divertida, o bloco tinha uma pequena bateria, que até mandava bem na batucada, mas ninguém puxava os sambas, era só instrumental. Imagina, a gente com o grupo do coral, todo mundo louco para soltar a franga cantando e íamos só passear pela avenida? Nem a pau Juvenal! Saímos nós a puxar as músicas e o povo em volta acompanhando! Já posso acrescentar na listas de coisas-que-fiz-na-vida que puxei samba na avenida (ninguém precisa saber que avenida foi). Também não era a única que fazia isso, e essa é uma coisa legal nesse grupo de amigos, todo mundo topa tudo e incentiva, assim que cada um que lembrava de alguma música que se parecesse remotamente com o que estavam batucando, a gente acompanhava na maior euforia. Fizemos, na turma do fundão, a ala da velha guarda e, além de toda essa fofoca, íamos acenando para a multidão em volta. Nós tínhamos até público! 

Quando acabou o desfile, perto da minha casa, fomos rápido para fazer um intervalo biológico e encher as garrafinhas de bebida novamente. Outro detalhe, usamos o metrô para ganhar tempo, e obviamente, fomos cantando nos vagões. Ou seja, também posso dizer que já cantei no metrô de Madri, pena que ninguém deu nem uma moedinha para a gente, ainda que alguns turistas tirassem fotos.  

Seguimos de volta para o Kabocla, e acredito que bem um terço do bar era de gente conhecida, ou pelo assim me sentia, de maneira que parecia uma festa em família. Lá terminamos a noite, com várias histórias divertidas que só saberá quem ali esteve.  

No domingo, sosseguei o faixo, porque a semana prometia ser feroz e foi. Na quarta-feira de cinzas foi a inauguração da exposição que fui curadora e tudo aconteceu. Mas tudo bem, na sexta-feira, seguinte ao carnaval, tinha festa na Sala Caracol, do enterro dos ossos. Juro que estava só o pó e ameacei não ir. Luiz também com preguiça. Mas o pessoal é tão legal e tão animado, que não tive coragem de deixar passar. Demos uma descansadinha de nada e partimos para o golpe de misericórdia.  

Quem está na chuva é para se molhar, né não? Preciso garantir a minha fama de “a imparável”, como me chama Luiz. Então tá, caí no whiskão que insistia em brotar na minha frente, culpa da minha amiga Alcione que ria da minha cara dizendo, e isso porque a bichinha estava cansada!  

Resumo da ópera, até no palco a gente subiu para dançar, sério, que mico! É verdade que fui literalmente guinchada lá para cima, não queria subir nem morta, mas não tive alternativa. Eu, essa mulata globeleza, sambando no palco da Sala Caracol! Putz, grilo! 

Detalhe engraçado, antes disso, quando começou o show da batucada, a organizadora da festa agradeceu algumas presenças na casa. Entre os agradecimentos, a presença do Coral Dumbaiê no recinto! Ou seja, nosso modesto coral amador, é quase o mais ilustre desconhecido de Madri!  

Como se fosse pouco, de lá, seguimos para o El Junco, para finalizar à noite. Voltamos para casa caminhando. Foi o melhor carnaval que passei fora do Brasil, e melhor até que os de São Paulo. Luiz suspirando aliviado com aquela cara de até-que-enfim-essa-mulher-vai-sossegar!  

Chegamos em casa quase de manhã. Juro que no dia seguinte estava nova em folha, leve e feliz.

5 – Começando pelo começo

Quando vemos o resultado de alguma coisa, sempre dá essa impressão que foi fácil chegar ali. Cada dia que passa, chego a conclusão que quanto mais fácil e natural pareça qualquer coisa, é porque mais trabalho deu! 

Realizar uma exposição é assim também. Nos bastidores o negócio pega fogo, além de ser um trabalho operário pesado. E, de repente, a gente inaugura. Todo mundo com cara de aristocrata inteligente, perfumado, um certo glamour. São situações muito diferentes e contrastantes, mas são partes da mesma coisa. 

Portanto, para contar essa última exposição, vou começar do real começo, desde quando recebi o convite, até o dia seguinte à inauguração. Porque depois disso, inicia outro processo mais diferente ainda. 

Muito bem, tenho um amigo artista brasileiro que conheci logo que cheguei em Madri, ele já vivia aqui há cerca de um ano. Foi o primeiro artista que conheci na cidade e ele também naquele momento não conhecia tantos, talvez por isso, acabamos por nos tornar amigos. Respeito muito seu trabalho e sua postura. Sempre que possível, cada um à sua maneira, tentamos dar uma força para que o outro tenha oportunidades, porque a vida funciona assim. Hoje, ele está muito bem posicionado e com contatos importantes, e merece, porque trabalhou duro para isso. 

Continuando, todo ano há uma feira chamada ARCO, que é o principal evento de arte contemporânea na Espanha. São galerias de todo mundo que se reunem em um grande pavilhão de exposições. A cada ano, um país é o convidado especial e agora em 2008, o Brasil é esse convidado. A feira acaba mobilizando muita gente para a cidade, e fevereiro ferve em atividades culturais, dentro e fora da ARCO.   

Pois então, fora da ARCO, mas nesse mesmo período e aproveitando a onda, há um espaço cultural que optou por fazer uma exposição com artistas brasileiros. Um espaço novo, mas muito bacana e que vem alcançando respeito rapidamente. Esse meu amigo artista foi convidado a fazer a curadoria dessa exposição, e acabou me chamando para ajudá-lo nessa função. Para ele seria muito trabalho em uma época corrida e lhe caía bem uma mãozinha, por outro lado, acho que ele queria também me dar uma força. Para mim, curadoria é algo que não me interessa, gosto mesmo é de expor obra, mas achei que não custava ajudá-lo e ao mesmo tempo, era realmente uma super oportunidade de divulgar meu nome e fazer contatos bastante interessantes nessa área. Assim que mais ou menos por setembro do ano passado, topei montar com ele a tal da exposição.  

Não vou contar a história desde setembro, porque nem tem tanta coisa para contar. Como sempre, acabou ficando tudo para última hora. A única coisa que tínhamos definido desde o início era a linha de condução dos trabalhos e os artistas que convidaríamos. Buscamos trabalhos que tratassem da relação com o espaço e o tempo. Ao longo da seleção desses trabalhos e artistas, acabou se fortalecendo a questão do espaço. 

Tudo muito bom, tudo muito bem, virou 2008 e nossos prazos foram se apertando. Começamos a ver como os trabalhos chegaríam para exposição, já que todos viriam do Brasil. Também existia a possibilidade de alguns artistas comparecerem ao evento. Isso não seria exatamente um problema se houvesse algum orçamento disponível, mas a verdade é que absolutamente todo mundo trabalhou literalmente por amor à arte. 

Alguns artistas tinham a possibilidade de conseguir patrocínio, e isso também gerou um esquema deles trazerem alguns trabalhos junto com eles. Não era uma má solução, entretanto, significava que as obras chegaríam justo em tempo de serem expostas. 

Dois ou três artistas optaram por enviar as obras pelo correio mesmo. O primeiro deles enviou uma série de placas para uma intervenção urbana. A entrega atrasou um pouquinho, mas como veio com antecedência, não era preocupante. Acontece que ele enviou 12 placas, a aduana espanhola abriu para fiscalizar e pelo visto gostou muito do que encontrou, pois se apoderou (maneira elegante de dizer roubou) de duas delas. Chegaram na minha casa apenas 10 placas. Então tá, né? Pelo menos, não comprometia tanto o resultado, com as dez a gente conseguia executar o trabalho.  

Só que ele também enviaria um vídeo, que acabou esquecendo de colocar no pacote. E esse sim, já estávamos meio justos de tempo. Em princípio, também não era um problema sério, ele enviou logo na sequência, por correspondência expressa. Deveria chegar em um prazo de dois dias. Levou quase duas semanas, porque o tal do vídeo foi parar até no Japão, literalmente! A montagem começou na segunda-feira, o vídeo chegou na sexta-feira anterior.  

Uma das fotos enviadas, que levaría dois ou três dias para chegar, também levou quase duas semanas. Chegou um pouco antes do vídeo. 

A gente a essa altura nem imaginava que eram problemas pequenos, perto do que nos aguardava. 

Uma amiga que escrevería um texto sobre a exposição e nos apoiaría em textos individuais por artista, caiu no fim de semana anterior e fraturou a rótula. Precisou ser internada e operada, e obviamente, não teve a menor condição de pensar nos tais textos.  

O computador do meu amigo artista curador pifou e ele não conseguia checar e-mails. Parece bobagem, mas considerando que basicamente todos os contatos que fazíamos com os artistas eram por internet, imagina o rolo! Depois de alguns dias ele conseguiu um emprestado ou algo assim. 

É pouco? Então, vamos complicar mais um pouquinho. Um dos artistas traría o trabalho dele e de mais outros três, ou seja, ele traría um terço da exposição. Dois dias antes de embarcar para Madri ele teve um surto fortíssimo, precisou ser internado e medicado. Além da preocupação com ele, que já foi o maior susto, como é que a gente faría com os trabalhos? 

Um minutinho, só uma pequena pausa para meditação: puta que paril! Cacete! Que merda a gente faz agora? Pooooorrraaa! Pronto, respirar fundo, passou.  

Felizmente, a sorte alternava de lado, e se por várias vezes nos colocou em uma situação difícil, por outra também colaborava. Um dos trabalhos foi enviado por correio para vir com outro artista, eles trabalham juntos muitas vezes, e dessa vez chegou no prazo certinho para embarcar com o outro para Madri. Dois artistas moravam na mesma cidade desse artista que surtou e foram na casa dele procurar os trabalhos que faltavam. O pequeno detalhe é que eles não se conhecíam pessoalmente ainda, e a mãe do artista teve a maior boa vontade de, no meio do seu sofrimento, deixar os dois literalmente revirarem o quarto do cidadão para tentar encontrar as obras.  

Foi quase tudo encontrado, exceto um CD, que me foi enviado em partes por e-mail. Santa internet! Claro que eu não tinha a menor idéia de como fazer que ele virasse um CD inteiro depois, mas Luiz me quebrou esse galho tecnológico. 

Os dois artistas que encontraram as obras, vieram para Madrid, cada um com uma parte dos trabalhos. Chegaram nas vésperas da inauguração. 

Mas lembra que um trabalho foi por correio para outro artista, né? Pois esse artista fez uma escala em Portugal, e quando chegou em Madri, a bagagem não veio! Ficou de ser entregue no dia seguinte, em seu hotel. Só que a gente também não sabia de nada disso, o que sabíamos era que o artista não desembarcou. Chegamos a pensar que ele havia ficado preso na imigração. Deixamos mensagens com nossos telefones, e esperamos ele aparecer. O dia seguinte era o dia da montagem e só descobrimos que o trabalho e ele haviam chegado, já dentro do espaço, conversando com o pessoal da galeria para iniciarmos a montagem. Parecia até coisa de filme, a gente com aquela cara de paisagem e o último trabalho chegando quase junto conosco. 

Falando em filme, ficou um detalhe para trás, voltamos um pouco a fita, quando entrei para trabalhar nessa exposição, era só como curadora e não como artista. Vou ser sincera, acho ser curadora um saco! Acontece que acredito que a gente tenha que aproveitar as oportunidades como elas chegam, porque é muito raro alguém fazer só o que gosta, o pacote vem com tudo junto. Muitas vezes me perguntei que raio estava fazendo nessa confusão? Eu nem quero ser curadora! Fiquei dividida me perguntando por que não era eu quem estava expondo? O que faltava fazer? Quando chegaria minha vez?  

Até que chegou um dia que percebi que estava com um pouco de má vontade com algo que era realmente uma oportunidade. Um amigo me chamou para isso, poderia ter chamado qualquer outra pessoa, mas me deu um voto de confiança por algum motivo. Pensei também no outro lado da história, eu poderia sim ser um daqueles artistas e, nesse caso, gostaria de que quem tratasse meu trabalho o fizesse com respeito. E essa empatia foi o que me moveu. Não sou altruísta, me esforcei porque quero crescer, mas se nesse processo puder trazer comigo ou pelo menos alavancar gente que merece, por que não? Se aceitei esse negócio, é para fazer direito. E fiz o melhor que pude. 

No dia em que tomei essa decisão, meu amigo artista e curador me perguntou, você não quer expor aquela sua peça negra aqui? Foi uma peça que apresentei na exposição de dezembro e ele gostou muito. O problema é que a essa altura eu já estava como curadora e ficava meio esquisito você ser curadora e expor ao mesmo tempo, fica parecendo que você escolheu seu próprio trabalho. Putz! Que dilema, perguntar a um artista se ele quer expor em um espaço legal é perguntar se macaco quer banana! Claro que eu quero! Simplesmente, nunca o colocaria na saia justa de me oferecer, mas ele me chamando é outra história. Bom, ficamos nesse põe-não-põe até os momentos finais. Assim, para dar bastante suspense, já que a gente quase não tinha pepino para resolver. 

E acabei expondo sim uma obra. Existe o mundo ideal e o possível. Outra vez, havia uma possibilidade e precisava tomar uma decisão, se foi a mais correta, o tempo dirá, mas é melhor assumir nossos próprios riscos que deixar passar uma oportunidade. Se é para me ferrar, que seja com o pé inteirinho na jaca! E vai que dá certo… 

Dentro desse clima de total relaxamento, iniciamos a montagem. 

Na segunda-feira, o espaço tinha uma jam session agendada para à noite, de maneira que podíamos adiantar algumas coisas, mas não dava para montar a parte de dentro da galeria. Tudo bem, deixamos todas as obras, discutimos melhor onde ficaria quem e fomos fazer a intervenção na rua. Um dos trabalhos, o das placas que foram roubadas, era feito na rua. Estávamos em quatro pessoas e a verdade é que foi bem divertido. Chegamos a precisar nos esconder da polícia umas duas vezes, mas gostei da confusão. 

A montagem dentro da galeria começou na terça-feira, véspera da abertura. Estávamos em cinco pessoas, o que em princípio acreditamos que facilitaria o trabalho. Acontece que só três montavam, eu incluída, e dois atrapalhavam.

Não era a intenção, mas quando você está correndo contra o tempo, pregando coisas na parede, tirando medidas etc, se alguém fica no seu ouvido falando e querendo atenção, por melhor que seja a conversa, atrapalha. Eu fico azuretada!  Não conseguimos terminar tudo na terça, como já imaginava, e o final da montagem ficou para o próprio dia da exposição. Sou caxias para burro! Não gosto desse negócio de improvisar, mas não tinha muito jeito. Uma das pessoas, que já não estava ajudando na montagem antes, resolveu ter um surto de ansiedade e a gerar tempestades em copos d’água. Deve ser porque a gente tinha pouco problema para resolver, né? Felizmente, no resto da tarde ficamos só os que estavam trabalhando. 

Bom, eu não podia me dar ao luxo de ter chiliques ou crises de carência, tinha muita coisa para fazer. Mas fiquei chateada porque apesar de todos os abacaxis, honestamente estava no maior bom astral e boa vontade. A parte que mais gosto é justamente desse processo de preparação da exposição, eu curto a montagem. E de repente, por besteiras perdi muito do gosto pela coisa. Paciência. 

O casal responsável pelo espaço não chegava! Por sorte, ficamos com a chave e fomos adiantando tudo o que era possível. Mas é que para completar a saga dos acontecimentos, a mãe do rapaz operou naquele dia de emergência e no caminho para a galeria, ainda bateram no carro deles. Cassilda, estávamos realmente cagados de arara! 

Saí do espaço depois das 19:00 e a inauguração era às 20:00hs. Fui voando em casa para, pelo menos, tomar um banho e voltar com a cara melhorzinha. Eu me atrasei um pouco e quando cheguei, alguns amigos já estavam lá. Aliás, foi a hora que respirei fundo e me senti querida, acolhida. Meus amigos estavam lá. 

E finalmente, como foi a inauguração? Na minha leitura, um sucesso! Foi bastante gente e algumas figuras importantes. E o principal, na minha opinião, está uma exposição forte e coerente. Os artistas são bons, os trabalhos são consistentes e ficou bem montada. Sei que já repercutiu no Brasil e isso também é um bom sinal. 

Problemas sempre existem, o importante é resolvê-los. Administramos a crise e não enlouquecemos no processo. Sobraram alguns arranhões, mas espero que sejam superficiais, pelo menos, são para mim. Se tudo na vida tem um preço, talvez estivéssemos pagando o nosso, agora quem sabe cheguem os resultados.  

Tudo bem quando acaba bem.  

4 – Pré-carnaval madrileño

Eu sempre adorei carnaval, mas já há tanto tempo que eles são frustrantes que fui perdendo o gosto. Tento me convencer que não vou mais ligar para isso, mas fica aquela coisa bem despeitada mesmo. Porque é só ouvir uma batucadazinha de nada que o coração vai junto. Não adianta, é mais forte que eu, amo carnaval e pronto! 

Muito bem, há um restaurante e bar brasileiro aqui chamado Kabocla. Nós sempre ouvimos falar muito de lá, mas admito que tinha uma certa implicância. Podia ser preconceito. 

Infelizmente, precisamos tomar cuidado quando escutamos sobre bares brasileiros aqui, porque tem essa tendência irritante em virar local de putas. Nada contra as mocinhas que querem trabalhar, mas sobra a fama para o resto da mulherada que acaba tendo que lidar com a questão sem nada a ver com o ofício. Eu não quero confusão e muito menos tenho paciência com gracinha, então não passamos nem perto. 

No caso do Kabocla, isso não acontece, pelo menos nunca ouvi falar nada a respeito e essas notícias sempre correm na comunidade de brasileiros. Uma vez fui com lá o Luiz, faz mais de dois anos, e não sei se porque chegamos cedo, achamos meio caído. Mas todo mundo falava tão bem que a gente ficou com aquela impressão de ter ido em um mal dia ou horário errado. Ficamos de voltar em algum momento, sem grandes compromissos. 

Com a proximidade do carnaval, o grupo do coral, que é sempre animadíssimo, começou a combinar de se encontrar ou de organizar alguma coisa. Chegamos a pensar em montar um bloco e fazer a percussão, mas somos muito iniciantes para toda essa ambição. No fim das contas, alguém sugeriu de se juntar ao tal do bloco do Kabocla, que sai todo ano. Por que não? Talvez fosse uma boa oportunidade de voltar ao local. 

Resumo da ópera, juntamos alguns amigos e fomos na sexta-feira passada para uma festa de pré-carnaval. Para variar, chegamos cedo, Luiz e eu costumamos estar sempre entre os primeiros a chegar nos lugares, mas tudo bem. A noite mesmo ainda não havia começado, tinha uma professora ensaiando coreografias com um grupo de pessoas, na maioria espanhóis, que se juntariam ao bloco. Para falar a verdade, parecia que ia virar meio roubada, não tinha cara que ia encher e tudo muito claro. Mas dessa vez, a gente resolveu que daria uma chance ao lugar e ficamos. 

Pois ainda bem que ficamos! A casa lotou, encontramos um monte de amigos e para completar, começou a tocar uma banda com um repertório ótimo! Soltamos a franga e nos acabamos de dançar. Saímos até um pouco cedo, porque tinha muita coisa para fazer no dia seguinte, mas ficou o gostinho de quero mais e uma impressão radicalmente melhor do Kabocla. É um local democrático, com todo tipo de gente, misturado como o Brasil, e ao mesmo tempo, muito família. Até onde entendi, a dona do negócio é uma mulher, que leva a casa na rédea curta, no que faz muito bem, está sempre presente e aberta a sugestões. E a propósito, fazem uma boa caipirinha, tem coxinha e pão de queijo. 

Havia muitos brasileiros, mas me surpreendeu a quantidade de espanhóis e outros estrangeiros tentando aprender a sambar. E olha que não estavam indo tão mal assim, o espanhol não é tão duro para dançar. Ainda que não tenham a mesma ginga, tem o quadril solto, não tem vergonha de rebolar e isso ajuda muito.  

Duas espanholas me pediram para ensiná-las a sambar, imagina isso? Pequeno detalhe, estava com meu dedinho do pé direito quebrado. Sim, fui pular carnaval com dedo quebrado. Jurei que ia pegar leve, mas quem é que aguenta ficar quieta com uma batucada no fundo? Muito bem, fui eu tentar ensiná-las alguma coisa, mas quem disse que sabia o que fazer?

A gente samba por instinto, já não lembro mais quando aprendi. Pedi ajuda a uma amiga brasileira, que me socorreu na função. As espanholas não se converteram exatamente em mulatas do Sargentelli, mas bem que eram animadas e simpáticas. Aliás, no nosso coral tem outras duas espanholas que botam para quebrar! E essas sabem sambar. A banda que tocava anunciou que voltaria no domingo. Nós gostamos muito do repertório deles, aquelas músicas que ficam na memória e a gente canta inteiras quase aos berros.  

É um pouco surreal essa quantidade de música brasileira, em pleno pré-carnaval, na Espanha. Dentro do bar está quente tropical, com amigos falando em português e tomando caipirinha. Quase um culto à identidade cultural. E, de repente, a gente sai e é inverno, no meio de Madri. Nessas situações eu sempre me sinto como se estivesse solta no tempo e no espaço, é uma sensação de total deslocamento. A gente muda de país ao atravessar uma porta, parece ficção científica. 

Cantando a gente lembra de lugares e de pessoas importantes para a gente. Dá vontade de sair ligando para todo mundo e falar a clássica frase do bêbado-gente-boa: putz, gosto de você pra caramba… Mas logo ao passar pela porta e sentir o vento frio no rosto, a gente lembra que está um pouco tarde para isso, nem estamos bêbados e nunca conseguiríamos transmitir esse sentimento em cinco minutos de ligação, e para pessoas que não estão sentindo a mesma coisa naquele momento. 

Senti saudades, mas não fiquei triste. Na verdade, voltei feliz para casa. E no domingo, Luiz e eu voltamos ao Kabocla para dançar junto, encontrar os amigos, falar português e cantar aos berros de novo. 

Juramos que ficaríamos só até às 22:00hs, todo mundo ocupado na segunda-feira, dia seguinte. E quem é que quis ir embora? Minha amiga até incorporou Alcione e mandou ver no microfone um “não deixe o samba morrer”. 

Da minha parte, espero que sempre exista uma Marrom que não deixe o samba acabar. 

3 – Serviço espanhol, esse mistério mercadológico

Ando fazendo as pazes com a cultura espanhola, mas às vezes também vejo defeitos. Hoje, por exemplo, estou com vontade de falar do serviço espanhol, o atendimento que recebemos nas lojas, restaurantes e comércio da cidade. 

Primeiro, serei justa, não é algo típico só daqui, é mais uma coisa européia. Apesar do que, a espanha seja especialmente primorosa em demonstrar esse mal atendimento ao cliente. Também não é algo xenofóbico, eles se tratam mal entre si da mesmíssima maneira. 

Na minha opinião, há dois fatores fundamentais que contribuem para esse fenômeno mercadológico: falta de necessidade e uma visão limitada. 

Muito bem o que seria a falta de necessidade? Simples, pelo lado do dono do negócio, não tem concorrência. E se há concorrência, na imensa maioria, é tão ruim quanto. E pelo lado do empregado, ainda que se reclame pelos índices de desemprego, a verdade é que isso na prática não é um problema. Um garçon que seja despedido, ou peça demissão, estará trabalhando na semana seguinte em algum outro lugar e pronto.  

A falta de visão tem a ver com o que costumo chamar de lógica ibérica. É verdade que está muito mais relacionada a uma maneira de pensar do que com inteligência, mas às vezes é absolutamente irritante. A interpretação das palavras é sempre literal, aquela coisa de você perguntar, sabe que horas são? E a pessoa te responder: sei. E, claro, não te dizer as horas, porque não foi isso que você perguntou. A parte que me parece especial é o fato deles se sentirem muito superiores a você nesse momento, porque óbvio que é você que não entende bem as coisas. Quem é o tonto que pergunta se eu sei as horas? Para que você quer saber isso? Porque esse esquisito não me pergunta que horas são? É assim que eles pensam. 

Essa lógica literal atrapalha muito quando você precisa pensar dois centímetros fora da caixa. Essa, por exemplo, é uma vantagem do brasileiro, aprendemos desde cedo a resolver problemas. Parte é uma questão de necessidade e parte é cultural mesmo. 

E pumba! Isso se reflete nos serviços. As pessoas não sabem resolver problemas muito básicos, se forem um pouquinho diferentes do que estejam acostumadas. Também não se esforçam para tentar resolver, nem tem interesse, porque entendem que é trabalho a mais sem retorno. E por um lado eles tem razão, porque é raro haver algum sistema de comissão sobre vendas por aqui. Os salários são sempre fixos. 

Salário fixo em qualquer coisa que envolva vendas é uma burrice! É ignorar a natureza humana. Achar que um garçon vai atender igual sem uma expectativa de gorjeta é uma piada. Imaginar que uma vendedora irá se esforçar o mesmo se seu pagamento depender de determinada venda ou não, é ridículo.  

E treinamento, então? Nem se fala! A maioria dos supostos profissionais são jogados no trabalho sem noção de como se atender ao cliente. Culpa do empregador. E quando há alguma tentativa de treinamento, a reação do empregado é enorme. Insiste sempre em sua zona de conforto, na famosa frase: mas aqui funciona assim! 

Por exemplo, uma grande churrascaria brasileira abriu as portas em Madri, a Rubayatt. Trouxe profissionais do Brasil, que fizeram um estágio na Argentina antes, para aprender o idioma. Mas claro, buscaram também contratar gente aqui na Espanha. Acostumados a manter um padrão de atendimento, no nível de exigência paulista, foram treinar esses novos funcionários espanhóis. Foi uma dificuldade imensa encontrar gente que conseguisse se integrar nessa cultura de bom atendimento ao cliente. Durante os treinamentos, o que mais se ouvia dos espanhóis era a frase: mas aqui é diferente, não funciona assim! Ou seja, o empregado queria ensinar ao dono do negócio como ele deveria funcionar, que ele não precisava ser tão eficiente assim, porque aqui as pessoas não exigiam tanto! 

Óbvio e felizmente, esses candidatos eram eliminados durante o próprio treinamento. A maioria dos funcionários da casa me parece ser de imigrantes legais, os únicos que conseguiram se adaptar ao ritmo e ao atendimento exigido. Por que eram mais inteligentes? Claro que não, porque precisavam mais. E a propósito, no primeiro ano de funcionamento foram eleitos o melhor restaurante estrangeiro em Madri. É grande e vive cheio, coisa que não é tão comum acontecer aqui em restaurantes que não sejam espanhóis.  

E é onde quero chegar, para mim é um mistério que ainda se  insista em trabalhar tão mal em um mundo tão competitivo! E ainda por cima, escuto idiotices dizendo que o serviço aqui era melhor antes, ficou ruim depois da imigração, porque os salários cairam muito. Francamente, o serviço aqui sempre foi uma bosta! Se houve algum movimento depois da entrada do serviço dos imigrantes foi para melhor. Aumentou a competição e a exigência. Só fez a vida dos acomodados mais difícil. Que se danem! Quero ser melhor atendida! E o espanhol que é bem atendido também começa a se acostumar com isso. 

Pela primeira vez, desde que moro aqui, fui a um restaurante espanhol onde havia uma garçonete sendo bem treinada, no El Rincón de Jaén. Não tem milagre! Tanto eu como Luiz já havíamos elogiado o bom atendimento ali antes. A gente nota a diferença de cara. É uma taberna absolutamente informal e tipicamente espanhola, mais espanhola impossível! E não houve uma vez em que não fôssemos bem recebidos e atendidos. Resultado, casa lotada todos os dias! Eu duvido que os clientes espanhóis que estejam frequentando esse lugar, queiram se submeter a um atendimento ruim em outra taberna.  

Do El Fogón de Trifón então, já nem falo mais, porque para mim é um dos exemplos de sucesso de excelente atendimento ao cliente. Outra vez, absolutamente espanhol. Também sempre lotado! Não tenho um amigo que leve e não fique totalmente satisfeito. A gente sai do restaurante mais feliz! Não passo uma semana inteira sem ir até lá e não é um lugar nada barato, só que compensa. Certamente a comida é o carro-chefe, mas não há sombra de dúvida que o que faz o lugar especial é o serviço. 

Ou seja, realmente acredito que exista um movimento de melhoria geral nos serviços, mas ainda é muito básico e na minha opinião, está atrasado. Conto no dedo os lugares que recomendo de olhos fechados e tenho prazer em voltar. E quando isso acontece, está sempre vinculado a um determinado dono que não tenha uma visão de mercado tão limitada, mas ainda não é um conceito disseminado. Quantas vezes você vê empresários gastando os tubos para abrir um negócio, mas “esquece” de investir em treinamento dos funcionários, bota gente despreparada na frente de grandes apostas. 

Às vezes, vejo tentativas de entrar em um padrão mais alto de negócio, mas pecam em detalhes que não sei se dá mais vontade de rir ou de chorar. Outro exemplo, encontramos uma loja de queijos, a Poncelet, que no primeiro momento, achei sensacional! Um atendimento simpático, olha aí, já havia uma melhora; queijos de vários lugares do mundo e não só da Espanha, outra coisa que demonstrava uma visão mais global; promoção de degustações etc. E um aspecto fantástico que me chamou a atenção, a higiene, os funcionários cortavam os queijos com luvas! Putz! Até que enfim alguém lembrou que é nojento pegar com seus dedões, que ninguém sabe onde esteve antes, um produto alimentar sem embalagem. E sim, aqui isso é uma coisa normal, ou você acha que alguém põe luvas para cortar um jamón ou pegar um pão? Continuando, tudo muito bom, tudo muito bem, até que também percebi que a luva não era tirada nem trocada. Com a mesma luvinha que o atendente cortava o queijo, ele pegava o dinheiro para dar seu troco, caminhava pela loja, provavelmente também ia ao banheiro… Resumindo, a luva protegia a mão dele do cheiro do queijo e não ao contrário! Sabe o que é isso? Falha em treinamento, porque a boa intenção existia. Mas já diz o ditado, que de boas intenções o inferno está cheio. Uma pena, porque dei as costas e não comprei mais lá. 

E nem comecei a falar do atendimento nas lojas de roupas! Esse então, é de matar! Isso quando as vendedoras fazem o favor de te atender, porque claro, é um favor, né? Outra vez, para mim é inacreditável, e o pior é que costuma haver filas nos provadores e para pagar. O povo compra assim mesmo! Eu tendo a comprar minhas  roupas quando viajo, as lojas aqui me desanimam. E caraca, uma mulher desanimar em fazer compras! Pode apostar que algo está estranho. 

Enfim, ainda sou otimista que as coisas melhorem, acho que é uma tendência mundial inevitável, mas bem que gostaria que esse processo fosse mais acelerado. De certa forma, também tento me adaptar culturalmente e manter a expectativa de atendimento dentro do esperado. A única coisa que  não tolero de maneira nenhuma é falta de educação. Ser educado, com qualquer pessoa, é obrigação de todos. Isso nem discuto. 

Aliás, esse é um conselho que dou a todos meus visitantes, não esperem uma gentileza extrema nem grandes cortesias, mas não tolere falta de educação. Não aceite como normal. Se te derem uma resposta atravessada, reaja, no idioma que souber. Num instantinho eles voltam atrás e baixam a guarda. Infelizmente, não vão resolver seu problema do mesmo jeito, mas pelo menos você não volta tão frustrada para casa. E não compre, não gaste mais seu dinheiro ali. 

O principal, há um formulário de reclamações obrigatório nas lojas, chamado “hoja de reclamaciones”. Te atenderam mal? Ficou insatisfeito? Peça na hora uma “hoja de reclamaciones” e registre o problema. 

E se foi bem atendido, por que não elogiar? Por que não uma gorjeta? Ou que tal um sorriso? Acredito que gentileza gera gentileza e não custa nada também fazer nossa parte.  

2 – Um dia de privamera no meio do inverno

Gosto de metáforas e de analogias. Para mim, é comum aprender comparando situações ou histórias. Não no sentido da comparação entre o que seja melhor ou pior, mas por suas semelhanças. Acredito que uma experiência só sirva se você puder usar esse aprendizado também em outro momento. 

Hoje em dia, até a mudança da temperatura em determinado contexto, me faz pensar, me deixa atenta aos sinais. Ontem, em Madri foi um dia assim, 17 graus e um sol maravilhoso, bem no coração do inverno. Totalmente fora do lugar, mas um alívio, uma recarga de energias. 

A gente ainda sai de casaco, claro, afinal é inverno e a temperatura pode cair a qualquer momento. Mas me pareceu curioso que,  a medida que a temperatura se elevava, quase ninguém tirasse suas jaquetas ou desamarrasse seus cachecóis. Às vezes, as pessoas não acreditam em suas próprias sensações físicas. Elas não podem estar com calor, é inverno. 

Não sei se mais alguém percebeu, mas no início desse ano se abriu uma onda de oportunidades. Como se o tempo parasse e abrisse uma fresta para quem quiser embarcar para uma próxima fase, ou consolidar a que está. Pode ser apenas porque é início de ano, mas tive a sensação que vários amigos, com os quais estou em sintonia, estão passando por um período de decisão por alguma mudança. Sinto que é um ano de apostas e resultados, ando prontinha para saltar no cavalo selado. 

Ontem foi um dia bom e estranho. Essa semana fomos visitados por um casal de amigos holandeses. Profissionalmente, ambos são contatos bastante importantes na área de negócios. Mas a sinergia não caminha em mão única, e por gostarmos deles como pessoas e da sua companhia, tornaram-se amigos. Muito bem, o marido veio trabalhar um dia em Madri, e a esposa veio acompanhando, porque queria nos encontrar. Saímos para jantar e, como sempre, foi extremamente agradável.  

No dia seguinte, ele trabalharia e ela daria uma volta pela cidade até a hora do vôo de volta à Amsterdam. Passei por um certo dilema, porque tinha um monte de coisas para fazer, estava realmente ocupada. Mas ao mesmo tempo, não queria deixá-la sozinha, porque afinal de contas eles vieram nos ver, ela não fala espanhol e ninguém aqui fala inglês. E apesar de não gostar de admitir isso, também não quero perder totalmente a ligação com o mundo de negócios, eu posso precisar dele. Ainda que a gente converse de assuntos totalmente diferentes, ela é uma pessoa que admiro e de certa forma é um vínculo que ainda reluto a perder. 

Pois resolvi acordar mais cedo e dar um jeito de fazer caber tudo no meu dia. Mas antes de sair de casa para encontrá-la, chequei os e-mails para ver se havia alguma emergência. Havia. Uma outra amiga brasileira me pedia um currículo urgente! Para uma empresa que intermedia eventos artísticos, governo e empresas. O ideal seria marcar uma entrevista o mais rápido possível. 

Caramba! Mas minha amiga holandesa já estava me esperando naquele minuto e agora? 

Pensei o seguinte, ainda que a tal empresa que me pedia o currículo urgente estivesse interessada, não posso trabalhar oficialmente a curto prazo. Além do mais tinha um compromisso agendado, que também me interessava. Respondi rápido à amiga brasileira que não tinha como enviar naquele momento, mas falava com ela mais para o fim da tarde do mesmo dia. 

Saí correndo para encontrar a amiga holandesa, estava em cima da hora, até um pouco atrasada. Enfim, passamos a manhã passeando e conversando, e não me arrependi dessa decisão. Fui deixá-la no ponto de encontro com seu marido, para de lá eles seguirem para o aeroporto e eu para casa. Minha cabeça já estava voltada para resolver a questão do tal currículo que tinha que enviar. 

Muito bem, no taxi, ainda com a amiga holandesa, toca o celular. Era uma outra amiga brasileira, casada com um amigo espanhol. O marido dela conseguiria um convite para que eu entrasse na “Madrid Fusion”, mas precisava ser naquela mesma tarde. Basicamente algo assim, dá para você ir, mas é agora! 

Explicando melhor, um dos caminhos que venho pensando em seguir esse ano é o da gastronomia. Esse meu amigo espanhol trabalha no ramo e tem me orientado sobre possibilidades, cursos, pessoas etc. A Madrid Fusion é uma feira de gastronomia voltada para profissionais da área. Só vai o topo do topo, super chefs, donos de restaurantes, fornecedores, enfim, gente grande que atua nesse mercado. Conseguir um convite não é tão fácil, e perder a chance de ir em um evento assim, nem se fala! 

Cassilda! Tanta coisa interessante e eu não conseguindo dar conta! 

Despedi dos amigos holandeses e tomei o caminho de casa. A idéia era ligar para a amiga brasileira para entender melhor como eu encontrava o marido dela e tal. Lei de Murphy, o telefone me avisava que estava praticamente sem crédito!  

Putz! Enviei então uma mensagem, avisando que ia para casa, ligava para ela de lá e se ela pudesse já enviar o telefone do seu marido, eu também já ligava direto para ele para ver se ainda dava tempo da gente se encontrar.  

E tinha planos ingênuos de conseguir enviar o currículo para a outra amiga antes disso. 

Andando para casa, meio como barata tonta, de repente percebi que estava bem no meio de uma encruzilhada de decisões. Quase me queixei, mas me parecia absurdo, porque todas eram oportunidades interessantes. Talvez pudesse ser um bom momento para sentir e decidir o quero mais, o que gosto mais. Decidir entre opções é muito melhor do que decidir pela falta delas. Mesmo assim ainda é difícil. 

Por um lado eu tinha o contato no mundo de negócios. Um mundo onde ainda sei navegar, mas que não me traz realização. Traria dinheiro, e não é isso que no fundo a gente busca com várias caras? As pessoas são legais, os ambientes frequentados são fantásticos, a proximidade do poder é sedutora, mas por algum motivo, não tenho vontade de voltar. Mas também não consigo simplesmente deixar de vez. 

Depois havia a opção da empresa de eventos, que talvez seja o meio termo entre o lado artístico e o de negócios. Da mesma maneira, sei como navegar. Mas me pergunto se as concessões que faria não me trariam a um mundo muito próximo ao da consultoria, só que ganhando menos. Ao mesmo tempo, poderia viabilizar algum salário e não estar tão desvinculada a artes. O problema é que normalmente o “meio termo”, também pode se parecer muito à metade, ao mais ou menos, e isso me preocupa. 

Em paralelo, as outras coisas que já tinha para fazer e empurrei um pouco com a barriga, pelo dia cheio. Sou curadora, junto com outro amigos artista, para uma exposição que acontecerá agora em fevereiro. Um trabalho do cão, totalmente vinculado a artes, mas sem nenhuma possibilidade financeira. E vamos ser francos, como artista eu nunca vou me sustentar no padrão que estou acostumada, é incompatível. É uma carreira que não quero deixar, mas está mais do que claro que não pode ser a única. 

Não esquecendo desse universo da escrita, que se abriu para mim e hoje é mais do que uma realização, é um vício. Tive meu primeiro trabalho pago como escritora, a biografia de uma amiga. Acho que posso ampliar esse aspecto, mas me faltam contatos, por onde ir, e novamente é muito mais uma possibilidade de prazer e realização do que financeira. De toda maneira, também não poderia ser uma única carreira. 

E de repente uma coisa nova, o mundo da gastronomia. Um setor que escutei por anos que deveria investir meu tempo e habilidades. Não era o momento e não teria cacife para entrar antes mesmo, sempre foi algo que ficou meio de lado me rondando. Só que agora talvez seja o momento e pode dar certo. É compatível com uma carreira artística e pode dar dinheiro, se os passos forem corretos. Entretanto, o tempo e o risco de investimento são altos. E, outra vez, estaria recomeçando, tudo de novo. 

Não consegui decidir o que queria mais, acho que quero tudo. Encontrei minha amiga holandesa, corri para o Madrid Fusion, enviei o currículo para a empresa de eventos, sentei rápido para escrever as crônicas e fui resolver unas cosillas dos artistas da exposição. Daqui a pouco vou ao Madrid Fusion outra vez e de lá sigo para o coral. 

Talvez em algum momento eu precise escolher entre tudo isso, mas hoje, não. Se até o inverno pode ser primavera de vez em quando…

Minha Vida de Caracol

O que define o limite entre uma vida normal e uma vida de aventuras? Será que precisamos escalar montanhas para sermos considerados aventureiros? E isso é bom ou mau? 

A arte me ensinou a olhar as mesmas coisas de outra forma, um outro olhar. Isso abriu minha perspectiva em relação ao que eu via e me deu novas possibilidades.  

Um dia, sem notar, comecei a utilizar o mesmo conceito na minha vida. De repente percebi que ao prestar atenção nos detalhes e usar meu outro olhar, as coisas rotineiras e comuns se transformaram em aventuras. Pelo menos para mim…

I – Chegando em Madri

Chegamos em Madri no dia 06 de abril de 2005. Exaustos! Vindos de Atlanta, após uns oito meses de espera e nove horas dentro de um avião – com um gato! Nem a classe executiva foi capaz de me distrair totalmente. Claro que tinha que chegar de classe executiva, sinto muito! Economizasse milhas, economizasse dinheiro, mas queria entrar pela porta da frente! Eu merecia! 

Pelo processo burocrático com normas e regras novinhas em folha, chegou Luiz com seu visto de residência e eu de turista. Apesar de ser totalmente legal, tivemos a precaução de entrar em filas separadas na imigração, acho que resquício da neurose americana. 

Todas as malas chegaram, coisa que nem sempre acontece. Seis malas grandes, bolsa de mão do Luiz com computador, bolsa de mão da Bianca com um gato. Aliás, pensando bem, ainda havia uma malinha de mão com as coisas do gato e outro laptop. Melhor que em Atlanta, onde chegamos com umas treze malas! Aprendemos um pouquinho e Luiz trouxe algumas antes de mudarmos de vez. Tínhamos malas conosco, no escritório em Madri e em Paris com um amigo. Malas muito internacionais! Um mar de malas… 

Recolhendo as bagagens já reconheci o característico cheiro de cigarro da cidade, mas dessa vez tinha coisas mais importantes para me preocupar. Providenciamos com antecedência toda a documentação do gato, Jack Daniels, que estava espremido em sua bolsinha mais de doze horas, sem direito a nem um xixizinho! Dividindo nosso colo é lógico! Eu é que não mandaria meu gatinho naquele bagageiro frio! Ninguém nos perguntou nada, acho que nem o viram ou acharam que era uma bolsa de viagem normal e, enquanto Luiz explicava porque trazia tantas malas, usei minha habilidade de passar invisível por portões e o esperei do lado de fora. Eu sei fazer aquela cara número 11 de faço-isso-todo-dia-sei-o-que-estou-fazendo-e-não-me-pergunte, passo com ela em todas as portas e portões do mundo!  

Ele não demorou, quando mostrou o visto de residência, os fiscais o deixaram passar. Quem muda de país e não leva, pelo menos, meia dúzia de malas? Também, se tivesse sido parado, nada além de roupas usadas e lembranças para revistar. Nosso maior crime foi trazer oito garrafas de bebidas que não pudemos deixar para trás. Enfim, como era bom entrar em um país de bom senso outra vez! 

Pela primeira vez relaxei um pouco. Lembro da minha visão passando pela porta de saída das bagagens, olhei as pessoas em volta e vi a claridade da rua vindo na direção dos meus olhos. Saía de uma cesariana difícil. Não estava novamente em minha zona de conforto, se é que ainda me resta alguma, mas ali queria viver.

II – O taxi

Próximo passo: o taxi! É claro que na fila de taxis não havia nenhuma grande perua onde coubessem nossas malas. E me lembro durante a fila em pensar, muito bem, mais uma vez daremos uma chance ao caos! E como sempre, “o caos” resolveu  nosso problema.  

O motorista nos cobrou cerca do dobro do percurso, garantindo que poderia levar toda nossa bagagem. Topamos sem ter a menor idéia de como ele realizaria a façanha em um carro relativamente pequeno. Ele colocou algumas no bagageiro, uma no banco da frente, pegou uma corda, empilhou o restante das malas no teto e as amarrou com cara espanhola de quem sabia o que estava fazendo, cara parecida com a minha dos portões! E ái você de reclamar! Eu e Luiz nos olhamos com a cara 35, a de será-que-isso-vai-dar-certo e entramos resignados no taxi.  

Olhando a sombra daquele carro cheio de malas empilhadas no teto e dentro nós dois com um gato no colo, pensei: estou mesmo na Espanha ou na Índia?  

Definitivamente, na Espanha. Em pouco tempo, o motorista, que era até educado conosco, começou a reclamar do trânsito infernal da cidade. Luiz reclamava junto com ele, o que rapidamente gerou uma certa cumplicidade entre os dois. Para mim, todo aquele barulho da discussão e do trânsito era música! Como era bom estar em uma cidade viva outra vez! 

Vim em transe olhando pela janela por  todo o caminho em direção ao apartamento turístico alugado. Os prédios não eram tão bonitos, a cidade e a paisagem eram marron barro, tom quebrado eventualmente por toldos verdes meio gastos. Na minha cabeça tocava Sampa com a voz do Caetano dizendo que “Narciso acha feio o que não é espelho…quando te olhei frente a frente não vi o meu rosto… chamei o que vi de mal gosto”. Mas assim como em São Paulo alguma coisa já acontecia no meu coração.  

Minha alma era livre novamente e a cidade começou a aparecer linda!

III – O primeiro apartamento alugado

Cafona e impessoal é claro! Mas arrumado, limpo e bom preço, o que era o suficiente para chegarmos. O apartamento foi alugado por três semanas, tempo para procurarmos um lugar para morar. Quase escrevo um “lugar definitivo para morar”, o que seria praticamente uma heresia, afinal o que nos era definitivo? 

Jack cheirou cada centímetro do imóvel, que deveria ter mil cheiros das mil pessoas que passaram por ele. O gato ainda estava desconfiado, mas estava bem. 

O apartamento ficava na região da Plaza de España, local central e com metrô próximo. Porém isso veríamos depois, naquele momento o que queria mesmo era tomar um banho e dormir como uma pedra. O tal sono dos justos! 

Era primavera e ainda fazia um pouco de frio. O aquecimento não funcionava. Descobrimos que havia uma data, no inverno, em que o governo por lei estabelecia que a caldeira deveria ser ligada. Além desses dias, era uma decisão do condomínio. Nosso condomínio, aparentemente, decidiu que não estava frio o suficiente, opinião que eu não compartilhava. 

Abri o chuveiro quente para aquecer o banheiro e descobri que a água calcária já havia entupido boa parte do cano por onde escorria um fio de água. Só me faltava essa, Luiz vai ter um troço quando ver esse chuveiro! Mas quer saber, ou por cansaço ou porque estava muito difícil tirar meu bom humor, encarei meu banho de presidiária. 

Luiz foi logo depois, enquanto eu já me esparramava na cama com colchão marcado por vários corpos de tamanhos e pesos diferentes. O azul-calcinha do quarto, que em outra ocasião me valeria comentários bem sarcásticos, naquele momento até me ninou. Nem me lembro se quando Luiz voltou ao quarto  estava acordada ou desmaiada, mas acho que até o Jack desistiu de cheirar o apartamento e se entregou. Dormimos bem e acordamos no início da noite com fome.

IV – Onde jantar?

Passada a sonolência inicial, a curiosidade e a fome falaram mais alto. A fome, principalmente, falava bem alto no meu estômago! Sou uma gulosa, uma Magali! E ainda por cima, quando estou com fome meu humor é deveras alterado! Mas passa nos primeiros 15 segundos que sento à mesa do restaurante. Resolvemos sair para jantar. 

Antes de mudarmos, Luiz passou meses indo e voltando entre Atlanta e Madri. De todos os restaurantes e bares que ia na cidade, me ligava dizendo que eu iria adorar aquele lugar… como era a decoração… o que ele estava comendo… enfim, acho que era a forma dele se sentir acompanhado enquanto fazia uma refeição. Ele detesta comer sozinho! 

Por isso imaginei que, ao chegar, ele teria uma lista completa de locais onde pre-ci-sa-va me levar. E fiz a pergunta de onde iríamos, quase de maneira retórica, só para saber em qual dos trocentos lugares interessantes citados ele me levaria naquela noite. 

Ele me olhou com a tradicional expressão de interrogação e achei que ele estivesse brincando. Após alguns segundos franzindo a testa, no que parecia um esforço sobre humano, de repente seu rosto se animou: Ah! Tem um japonês bonitinho na Castellana! 

Eu queria matá-lo! Juro! 

Nada contra restaurantes japoneses, pelo contrário, mas na minha primeira noite como moradora madrileña, após meses e meses de expectativa, eu queria, no mínimo, uma paella… tapas… chorizos… qualquer coisa espanhola, né? 

Bom, depois do meu também tradicional incomensurável bico e conhecendo o risco de me deixar com fome muito tempo, ele se lembrou de um restaurante bem pequeno próximo ao Palácio Real, que tinha no máximo uma meia dúzia de mesas. Apesar da localização, não era muito frequentado por turistas. O problema é que ele não tinha certeza como chegar. Tudo bem, arriscamos. 

Chegar… chegamos, mas estava fechado não me lembro porque. No caminho, prevenida e faminta, gostei de um restaurante e examinei o cardápio. Quando encontramos o primeiro fechado, já tinha o “plano B”. Comemos bem e em um restaurante bem espanhol!  

Valeu pelo passeio ao Palácio Real, lindo à noite! Lembrava-me dele menor, não estou segura, mas acredito que haviam obras em sua frente na minha visita anterior a Madri. 

A primeira viagem internacional juntos que eu e Luiz fizemos foi a Madri, acredito que uns oito ou nove anos antes de mudarmos. Claro que não tínhamos a menor idéia do que nos esperava, mas ficamos com a vontade de morar na cidade em algum momento. Cuidado com o que desejas… 

A propósito, semanas depois, quando não aguentava mais comida com paprika e com o estômago desarranjado, fomos finalmente ao tal restaurante japonês bonitinho. Era realmente bonitinho e com uma ótima comida! Mas tudo tem seu tempo.

V – Onde morar?

Luiz não quis decidir sozinho onde morar, preferiu me esperar chegar e ajudar a escolher o bairro e o apartamento – um sábio!  

Conhecia a cidade como turista, o que é bem diferente. Além do mais, já havia passado uns nove anos e, mesmo na europa, muita coisa pode mudar nesse período. Luiz nesse vai-e-vem entre Atlanta e Madri, sempre estava a trabalho e ocupado, também não estava seguro de onde morar. 

Desde Atlanta, através de sites de busca e guias, tinha um bairro de preferência: Salamanca. O que não é muito difícil, considerando que, agora que conheço, é uma das melhores regiões por aqui. No fim de semana, sugeri que caminhássemos pelo bairro, não havia encontrado muitas ofertas de aluguel pelos jornais na internet. Foi ótima idéia, pois as pessoas colocam placas com telefone na portaria e nas janelas dos edifícios. Daí eu ia escolhendo alguns lugares e Luiz, com o espanhol bem melhor que o meu, ligava para perguntar preço e se poderíamos visitar o imóvel.  

Vimos apartamentos em outras regiões também, mas como suspeitava, acabamos nos encantando por Salamanca. O apartamento que alugamos fica em um prédio meio feinho, mas limpo e estava reformado. Depois, da minha janela via prédios lindos e o preço era razoável. Fiquei pensando: o que será melhor? Morar em um prédio lindo, ou olhar para um prédio lindo? Não importava muito, era alugado mesmo, e apenas por um ano. E o fundamental, tinha dois banheiros que não me davam nojo e elevador! 

Engraçado como o conceito de qualidade de vida das pessoas é diferente, além de mudar de tempos em tempos. Para umas pessoas é ter uma refeição por dia, para outras é possuir uma Ferrari! Conhecia esses dois tipos. Morar em cidade de praia, morar em cidade tranquila, morar em uma metrópole onde se encontra de tudo, ser casado/a, ter filhos, ser independente, estudar, ter bom emprego, ter dinheiro, ter saúde, animais de estimação, canto de passarinhos, silêncio total, paz, agitação, oportunidades, tradição, novidades… tantas coisas diferentes! 

A primeira vez que tentei categorizar o que acreditava ser qualidade de vida foi em São Paulo, pouco depois de mudar para lá. Cheguei a conclusão que era poder morar mais de três dias da semana na mesma casa que meu marido e que nessa casa me sentisse segura. Alguns anos mais tarde, adicionei a essa lista a vontade de não ter medo da violência cada vez que saísse na rua. 

Chegando em Madri, minha qualidade de vida era morar em um apartamento de pelo menos dois quartos e dois banheiros, elevador, perto de metrô, onde eu pudesse caminhar pela rua e fazer minhas compras a pé. Pronto! Com isso eu poderia ser feliz.

VI – Entretanto

Entretanto, antes de chegar ao céu, demos uma paradinha no purgatório! 

Entre o fim da nossa estadia contratada no primeiro apartamento da Plaza de España e a entrada no “meio definitivo”de Salamanca, havia um espaço de aproximadamente uma semana sem ter onde morar. Tivemos que correr para  encontrar outro apartamento nesse período. 

Luiz encontrou um estúdio charmosinho, não tão barato, na Calle de Postas, uma ruazinha simpática e movimentada que leva à Plaza Mayor. Ponto positivo: bem no meio da muvuca; ponto negativo: BEM no MEIO da MUVUCA! 

De qualquer forma, não tínhamos muita alternativa, o jeito foi encarar! E lá fomos nós com a casa na cabeça e o gato no colo, em três viagens de taxi, mudando para o segundo apartamento em Madri! Deveria ter guardado o telefone do motorista de taxi do aeroporto que fez tudo em uma viagem só com as malas amarradas no teto. Poderia não ser tão elegante, mas seria tão mais prático! 

O apartamento era bem pequeno, porém estiloso e havia acabado de ser reformado, um charme! Acontece que o prédio, histórico, também passava por reformas e era uma poeira fina horrorosa que insistia em invadir nossa casa temporária. Mas eu a combatia com muita coragem! Colocava panos tampando o buraco da porta e tirando os sapatos ao entrar em casa, hábito que acabei criando depois. 

O fato do prédio estar em obras e dos seus inquilinos serem em boa parte turistas, fazia com que a portaria vivesse aberta. Para uma brasileira criada no meio da paranóia do medo, uma portaria aberta, bem no centro da cidade, com mil pessoas sabe-se lá da onde circulando pela calçada, era a morte lenta e dolorosa! Entrar e sair do prédio, para mim era sempre uma zona de desconfiança. 

Nisso, Luiz precisava ir até Barcelona a trabalho, por três dias eu acho. Imagina! Eu ia ficar so-zi-nha com meu Jack ali? Nem fodendo, Marquinho! Catei o gato e fui atrás dele! Pobre Jack, o gato mais viajado do mundo… 

Não foi má idéia, ainda não conhecia a cidade e gostei muito de Barcelona. Na volta para casa, descobrimos que a portaria sempre aberta nem era o pior dos nossos problemas! Afinal, os turistas não invadiram o prédio, os mendigos não passaram da porta, apesar de sentarem constantemente nos degraus da frente. E para nossa sorte, se existiam ladrões, também não se animaram. 

Há bastante tempo o medo da violência havia entrado na minha vida sem eu perceber, e se instalou na minha cabeça como um reflexo condicionado. Às vezes o medo é bom, porque te protege, mas muitas vezes ele dá trabalho e gasta muita energia. 

Descobrimos que, apesar de todo aquele movimento, estávamos em um local seguro. Talvez até devido ao movimento! Por outro lado, quem conseguia dormir? Um barulho infernal dia e noite! De dia era o barulho da obra, felizmente iniciava depois das 10:00hs, como quase tudo no centro de Madri. Pela noite era gente passando, cantando, berrando… Sem falar que havia um interfone por andar e não por apartamento. No nosso andar haviam dois estudantes franceses, aparentemente muito populares na cidade, e a merda do interfone não parava de tocar, fosse a hora que fosse! Nem sei porque aquela bosta tocava tanto, a porta estava sempre aberta mesmo! 

Também tinha um elevador preservado pelo patrimônio histórico. Daqueles com portas de madeira que fecham manualmente. Estranho, mas charmoso. Porém, se alguém esquecesse de fechar as portas, ele ficava travado no andar em que parou. E é claro que todos os amigos dos populares franceses nunca lembravam de fechar a porcaria das portas! Nem do elevador, nem da portaria! Nós fomos parar justamente no andar dos franceses mais simpáticos e comunicativos do mundo! Não, porque eles tinham que ser muito, mas muito simpáticos mesmo para ter aquela quantidade de amigos! E o pior, amigos que detestavam fechar portas! 

Deu para perceber que foi um saco, né? Mas como não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe…

VII – Jack Daniels, nosso gato

Quem chegou até aqui, percebeu que existe uma certa figurinha peluda presente em nossa vida. Aos que não gostam de animais, sinto muito! Mas preciso falar um pouco desse felino, que depois de dividir tantas aventuras, elevou seu status de bichinho de estimação para participante fundamental da nossa pequena família. 

Chegou em nossa casa com apenas 40 dias, junto com sua irmã da mesma ninhada. Fui visitá-los pouco depois que nasceram, os rabos eram do tamanho do meu dedo mindinho. Na época, queria uma única gata. Tinha que ser fêmea, pois não queria minha casa como um território marcado por urina felina! Haviam me dito que o macho, quando atingia a adolescência, iniciava a marcação do seu território dessa maneira. 

Quando olhei a gata-mãe, com aqueles filhotinhos muito fofos, reconheci logo um olhar cheio de personalidade e dignidade de uma pequena gatinha persa, muito vermelha. Na hora sabia que seria a minha, ou eu dela, no caso dos gatos! Não me deixava pegá-la no colo, que ficasse bem claro que era dona de seu destino, mas não saía de perto de mim com o rabo empinado. Para quem não conhece, o rabo empinado do gato equivale ao rabo balançante do cachorro. Nesse momento, um gatinho distraído levantou sua cabeça e me olhou. Ele era o gato mais apaixonante que tinha visto, tinha cara de neném, lindo! Veio em minha direção, subiu no meu colo e decidiu que eu seria sua dona. 

Mas havia dois  problemas, eu já estava doida pela gatinha e ele era um macho! Portanto: mijão! A dona do gatil me perguntou porque não levava os dois e expliquei a situação. Ela me informou que, se castrarmos o macho em sua adolescência, ele usa sua caixa de areia normalmente, assim como a fêmea. Pronto, então decidido, a gata eu escolhi, o gato me escolheu. 

Luiz me deu o casalzinho como presente de aniversário de 30 anos. Chegaram em nossa casa, em São Paulo, exatamente no dia 9 de novembro de 1999. Batizamos os dois de Jack Daniel’s e Buchannan’s, um bourbon e um whisky pelos quais tínhamos um carinho especial. Eram irmãos, mas muito diferentes, chamados com sotaque bem brasileiro de “Diequi” e “Bucana”. Buchaninha era a nossa inteligente sensível e Jack, nosso pateta feliz. 

Os dois foram conosco para Atlanta, não era a  primeira experiência com mudanças. Infelizmente, Buchanan já chegou bem doente nos EUA. Fizemos o possível.  Enquanto ela respondia à medicação e tinha uma boa qualidade de vida, fizemos de tudo. Um dia ela decidiu que já estava cansada e, com muita dificuldade em respirar,  parou de comer. Aceitamos sua vontade e diminuímos seu tempo de sofrimento. Sofremos os três juntos nosso luto pela gatinha que, com metade do peso e tamanho de Jack, era a dona da casa e cuidava de todos nós. 

Jack ficou triste e resolveu que era hora de ser um adulto. Não era mais nem tão pateta, nem tão feliz. Foi há alguns meses antes de nos mudarmos para Madri. 

Não acaba tão mal. Quando chegou na nova cidade, com quase seis anos de idade, cerca de 42 se fosse um humano, usou mais uma de suas sete vidas, recuperou sua vitalidade e animação. Mas essa é uma outra história…

VIII – Barcelona

Um intervalinho para falar de Barcelona, para onde fugi por dois dias, durante a semana no apartamento-purgatório da Calle de Postas. 

Luiz estava ocupadíssimo trabalhando, já conheço esse esquema e me torno o mais invisível possível! Sei que pode parecer uma heresia, mas o que queria mesmo era uma bela noite de sono! 

O hotel era ótimo, mas um pouco afastado do centro. Tudo bem, havia metrô próximo e facilitava bastante a locomoção. Aproveitei para conhecer os museus de Tapies, Picasso, arte contemporânea e andar pela cidade. Adoro caminhar pelas cidades, acho a melhor maneira de conhecer um lugar. 

Gostei. Arquitetura muito interessante, principalmente as coisas do Gaudi. 

Em uma das noites, Luiz teve uma folguinha e jantamos juntos com uma amiga brasileira, que morava em Barcelona. Muito simpática e nos levou a um restaurante ótimo! Temos essa sorte, quase todo local que viajamos encontramos alguém conhecido.  

Acho que é por isso que gosto tanto de receber amigos em casa. Acredito que seja um tipo de empatia. É tão bom encontrar algum amigo ou conhecido quando estamos em uma cidade que não é a nossa!  E quando é uma lingua que não falamos? 

Me lembrei de uma história: uma vez fomos a Munique, na Alemanha. Bom, até que a gente se vira muito bem em idiomas, mas alemão… não falamos chongas! E esse negócio de dizer que é parecido com inglês é uma grande bobagem! Falo inglês fluentemente, até morei nos EUA e não entendo alemão. Tem uma palavrinha ou outra, claro! Mas se procurar mesmo, vai achar até alguma parecida com português, entretanto, isso é muito diferente de possibilitar o entendimento de um idioma.  

Muito bem, voltando a história, escolhemos um restaurante muito bonitinho, um grego. Veio o cardápio, obviamente em grego, mas com tradução dos pratos… em alemão, claro! Consegui, ao mesmo tempo, não entender nada em dois idiomas! Qual foi nossa sorte? Estávamos com um casal de amigos que moravam lá, ele alemão, ela brasileira. Viu como é bom ter amigos? Você consegue até comer bem em um restaurante grego com os pratos descritos em alemão! 

Enfim, o que quero dizer é que é muito bom poder oferecer a mesma hospitalidade que sempre recebo, para mim é um prazer.

IX – Cortei o cabelo

Na volta de Barcelona, tinha uma coisa muito importante que precisava fazer: cortar o cabelo! 

Eu sou do tipo cabelão, daquelas que quando corta o cabelo sai do salão com um pouco de vergonha. Parece até que estou descalça, levo um tempo para me acostumar. Mas de tempos em tempos, preciso fazer. É como uma renovação simbólica. Cortar o cabelo não muda a vida de ninguém, mas muitas vezes, quando mudamos de vida, cortamos o cabelo. Pelo menos, nós mulheres! 

Em Atlanta, meu cabelo caiu muito. Era bem longo, quase pela cintura. Comecei a notar no chão e no ralo do banheiro que estavam caindo demais. Só não chegou a ser um problema sério porque tenho tanto, que não fez falta. Mas eu sabia que não era uma coisa normal. Depois de um tempo comecei a recolher os fios e a guardá-los. Sou artista plástica e sabia que um dia isso seria material para um trabalho bem pessoal. Alguma coisa tinha que levar de lá, nem que fosse meu próprio cabelo! Quem sabe um dia eu conte essa história. 

E, voltando a Madri,  precisava resolver essa questão capilar tão significativa! Queria estar mais moderna, mais aberta, começar outra vez. Precisava de um marco, um ritual de passagem. E assim foi! 

De cabelos curtos e alma leve fui sentindo o vento se alternando no rosto e na nuca até chegar em casa. Estava pronta e fresca.

X – Jantar com o pessoal do trabalho do Luiz

Foi um grande risco cortar o cabelo naquele dia! Chegava um pessoal do trabalho do Luiz para uma reunião em Madri. Como ele estava, ou melhor, era da cidade, foi eleito o anfitrião natural e, como consequência, eu a primeira-dama-penetra. Naquela noite, houve um jantar da equipe, do qual acabei participando mesmo sem ter nada com isso. Já pensou se tivesse errado no corte de cabelo? Estaria escondida em casa por, pelo menos, três meses! Olha só que importância isso tem para a humanidade! 

Enfim, fomos jantar no Botín, ou mais precisamente no El Sobrino de Botín, considerado o restaurante mais antigo do mundo. Atualmente é um pouco turístico, mas como não ir a um restaurante de 300 anos funcionando no mesmo lugar? Tem que ir, né? Depois o cochinillo (nosso leitão) é ótimo! O lugar é bem grande, mas aconchegante, pois são vários ambientes pequenos, em andares e níveis diferentes, parece um labirinto de escadas. 

Nesse jantar, descobri um pouco melhor como funcionavam as gorjetas em restaurantes por essas bandas. Aqui não há um percentual da conta que você deixa de gorjeta. Ou não deixa nada, ou se for um pouco menos pão-duro, deixa umas moedas. Agora, em jantares de grupos maiores, acima de seis pessoas, quando a conta dá mais que 300 euros, é de praxe se deixar 40 euros de gorjeta. Assim, se a conta for 300 euros, deixa-se 40; se a conta for 1000 euros, deixa-se 40. Mas se você não deixar nada, o garçon não vai sair atrás de você te xingando como nos estados unidos, ok? Por outro lado, também não espere muitos sorrisos e atenção. 

Depois do Botín, saímos para caminhar um pouco na Plaza Mayor. Não me canso da Plaza Mayor, é um desses lugares que você pode ir todos os dias e sempre haverá um detalhe diferente. Não sei se todos sabem, eu pelo menos não sabia, mas boa parte das janelas que vemos da praça são de apartamentos residenciais. Em um dos dias que passamos por lá, havia uma festa animadíssima literalmente no telhado. Achei o máximo! Preciso fazer amigos ali.  

A noite foi muito agradável. Gostei das pessoas que conheci e foi bom reencontrar algumas que já conhecia. Acabamos marcando outro jantar para o dia seguinte. Fomos ao Orixe, um restaurante gallego que se tornou um dos nossos favoritos. 

O Orixe me conquistou na primeira noite que lá jantei. O maitre era muito simpático e com muito boa vontade em explicar o cardápio, coisa que não é tão comum aqui. Talvez pela falta de esperança das improváveis gorjetas. Mas continuando, pedimos um vinho de Ribera del Duero. Expliquei a ele que não conhecia os vinhos dessa região, a maior parte dos vinhos espanhóis que tive acesso até aquele momento eram os de Rioja, que chegam ao Brasil. Ele nos apresentou um dos vinhos e devo admitir que, ao provar, não percebi grandes problemas, mas a verdade é que não tinha muita referência para comparação. Antes que eu desse o segundo gole, ele voltou aflito à mesa e pediu para trocar a taça. Acredito que ao dizer que não conhecia o vinho, ele foi prová-lo logo após nos servir e notou um pouco de gosto de rolha. Voltou correndo antes que eu pudesse pensar em reclamar dizendo que não queria que eu tivesse uma impressão errada dos vinhos de Ribera. Na segunda taça, percebi que ele tinha razão, estava bem melhor! Um ótimo vinho! Achei sua atitude muito civilizada e correta, até meio patriótica. E como a comida também era ótima, me conquistou.

XI – A tal da internet

         Oi, sou Bianca e sou viciada em internet…

         Oi, Bianca! 

Olha, o dia em que for fundado o IA (internaulatras anônimos), serei a primeira a frequentar as reuniões e o diálogo acima fará parte da minha rotina. Admito, sou uma completa viciada em internet, não vivo sem ela, tenho tremedeiras, pesadelos, minha vida se torna miserável! 

Uma das primeiras coisas que tivemos que fazer ao chegar em Madri, foi procurar um local público para checar minhas mensagens. Descobri os tais centros de ocio. Adorei esse negócio de lazer ser chamado ocio! E mais ainda, adorei poder checar minhas mensagens que se acumulavam impiedosamente entulhando a caixa postal. 

A primeira vez que me interessei pela tal da internet foi, no mínimo, curioso. Logo que a rede foi viabilizada para os réles mortais, Luiz começou a me encher o saco para ter um e-mail, navegar na rede etc. Mas a verdade é que nessa época quase nenhum amigo meu tinha e-mail e ia procurar o que na rede? Ia sair visitando enciclopédia? Olha só que santa ignorância, né? 

Daí eu quis fazer um currículo novo para buscar novas oportunidades no mercado, o que no popular quer dizer: procurar outro emprego. Achei que soaria moderno colocar um e-mail nos meus dados pessoais. Assim, pela primeira vez passei a ter um endereço na internet. Como havia colocado no currículo, é claro que alguém poderia me responder por e-mail. Portanto, comecei a também checá-lo. Pronto, a partir desse momento nunca mais fui a mesma! Descobri essa janelinha que me leva onde quero e me ajuda a achar quase tudo: restaurantes, endereços, vinhos, amigos, informações, cidades, hospitais… 

Mas o principal mesmo é a comunicação. Com essa minha vida meio nômade, é a única forma garantida de me encontrarem e também a maneira mais acessível para não perder o contato com as pessoas. Não sou muito de telefone, sempre acho que estou ligando em hora errada, e quando me ligam estou sempre meio fora do ar, nunca reconheço a voz de quem ligou… sei lá, ligações telefônicas me deixam meio nervosa. Freud deve explicar! Já as mensagens escritas são perfeitas! Elas sempre serão lidas na hora que o destinatário puder e ele te responderá se quiser. 

Quando estava para me mudar do Brasil, meus pais, principalmente minha mãe, perceberam rapidamente que a internet seria valiosa para mantermos a comunicação. Luiz ensinou o “b-a-bá” e deu uma webcam para meus pais e para os dele. Com isso, eles poderiam nos ver a hora que quisessem, pois também temos uma. Definitivamente, foi uma aquisição importantíssima! Acho que o mesmo bicho que me mordeu, mordeu também minha mãe, que agora discute profundamente os detalhes técnicos do seu computador e já até fez aula de informática. 

E o poder libertador dos e-mails? Aquela piada infame, aquela foto de baixaria, aquela corrente ridícula… tudo aquilo que nunca teríamos coragem de mandar ao vivo, de repente, pela internet vira arte! É tudo permitido! Bom, permitido é uma coisa, tolerado é outra, por favor! Eu por exemplo, odeio correntes e mensagens de anjinhos em que as palavras caem letra por letra m-u-i-t-o d-e-v-a-g-a-r!