113 – Picnic no Retiro

No sábado, dois dias depois da mudança, ainda tínhamos algumas coisas pessoais no antigo apartamento para buscar. Para fazer tudo em uma única viagem, pedimos ajuda de um casal de amigos que mora perto e estamos sempre juntos.  

Como já havia conseguido arrumar a cozinha, fizemos a inauguração extra-oficial com eles, abrindo uma garrafa de cava para comemorar. Claro, no meio de um monte de caixas de papelão! 

Eles sugeriram que, no dia seguinte, domingão, a gente fizesse um picnic no parque do Retiro. Adorei, queria fazer isso antes, só estava esperando o tempo melhorar. E o tempo colaborou.  

O bom de morar em um país estrangeiro é que a gente tem coragem de fazer algumas coisas que morreria de vergonha no nosso próprio país. Uma boa “farofa”, por exemplo. Se bem que, cá entre nós, foi uma farofa razoavelmente chic. Bem, quer dizer, meio chic, porque começou por chegarmos ao parque com um carrinho de feira para levar as coisas. Idéia do meu prático e desencanado marido. Imagina se a gente toparia pagar o mico de chegar no Brasil para um picnic, trazendo a comida e a bebida em um carrinho de feira? Nunca!  

Escolhemos ficar perto do laguinho, segundo minha amiga, para termos uma vista do “mar”. Ela levou uma toalha enorme e umas cangas, onde nos sentamos e colocamos toda a comida. Sabe que ficou bonito? Levei vinho branco, mas por precaução coloquei em uma garrafa térmica para disfarçar. Depois de burra velha fico me preocupando com essas besteiras! 

O dia estava simplesmente maravilhoso e agradável! Fazia muito tempo que não relaxava tanto e tenho certeza que foi o sentimento geral. Adorei ver as árvores verdes novamente e ouvir os tambores no ar. Sentia saudade desse som tribal. 

Um pouco depois que estávamos lá, chegou um outro casal de amigos dos nossos amigos. E, logo em seguida, esses amigos dos amigos chamaram outro casal. No fim da história, estávamos em quatro casais largados na grama curtindo a primavera. 

Muito bem, os dois últimos casais acabaram trazendo mais vinho, apesar da gente não ter certeza se era permitido álcool ou garrafas no parque. Em volta da gente foram se juntando outros grupos, alguns só para tomar sol, outros bebendo alguma coisa, jogando malabares, jogando capoeira, brincando com o cachorro ou simplesmente morgando na grama. 

Um dos amigos viu um grupo de policiais chegando e, na dúvida, achou que era melhor escondermos as garrafas. Não deu outra, os policiais foram direto no grupo da frente porque tinham garrafas de cerveja. Foram educados com eles, mas pediram documentação e tudo. Era um grupo de brasileiros, vimos seus passaportes verdes.

Tiveram que se desfazer da cerveja e das garrafas e ficou um clima um pouco tenso, mas não deu maiores problemas. 

Daí ficamos nós, oito adultos caretas que não tinham feito absolutamente nada demais, tentando se comportar naturalmente para os policiais não virem checar nossa farofa. Para ser sincera, não fiquei preocupada, até achei meio divertido. A verdade é que havia três advogados entre nossos amigos com a consciência pesada porque podiam estar cometendo algo fora da lei. No fim das contas, os policiais nem nos deram bola. Claro, todo mundo com a maior cara de CDF, imagina!  

Quando os policiais se foram, nos vangloriamos da nossa façanha meio ilegal. E como marginais perigosíssimos que somos, recolhemos todo lixo antes de ir embora, deixando o lugar impecável.

Repetiremos com certeza, dessa vez com o vinho em garrafas térmicas! Mas definitivamente, sem esquecer o carrinho de feira e quem sabe até leve meu tambor. 

114 – As compras

Durante o feriado da semana santa estava em plena crise alérgica. É que minha resistência baixou e não sei se peguei gripe junto ou foi só alergia, sei lá, sei que passei mal para burro! 

Mesmo assim, a idéia de arrumar a casa nova foi me animando e bem ou mal, levantava e fazia as coisas do mesmo jeito. Ao longo da semana fui melhorando. 

Num desses dias, difíceis de levantar, me ligou uma amiga me chamando para dar uma volta e fazer  umas compritas. Como estava meio enjoada, chamei ela para comer lá em casa mesmo e aproveitar para conhecer o apartamento novo. E ela veio. 

Fomos conversando e fui melhorando. Cheguei a conclusão que um arzinho fresco me faria bem. A verdade é que achei que ela queria companhia para sair um pouco e tentei me animar. E acabou que foi bom para mim, acho que me faltava um pouco de consumismo na veia. 

Não sou uma pessoa naturalmente consumista. Por isso, quando resolvo comprar alguma coisa também não me sinto culpada nem preciso ficar me controlando. Mas quando cheguei em Madri e quis sair para comprar algumas roupas senti uma coisa engraçada, me faltava aquela “amiga de compras”. Sabe aquela amiga que sai com você para bater perna, daí você vê alguma coisa que gostou e diz: puxa, queria experimentar essa blusa, mas estou com uma preguiça… E ela te responde: ah, mas você precisa experimentar, olha que linda… e o preço está ótimo! 

Pois se me faltava a amiga de compras, não faltou mais. Meia dúzia de blusinhas lindas e de ótimo preço depois, estava com o humor e a saúde bem melhores. E os homens ainda dizem que é difícil fazer uma mulher feliz! Que bobagem, é tão fácil!

115 – Mantendo a tradição

Exatamente como no endereço anterior, uma semana após a nossa mudança, recebemos os primeiros hóspedes, um casal de amigos que mora na Inglaterra. Dessa vez, até que foi mais tranquilo, pois o apartamento já estava razoavelmente arrumado. Quer dizer, para mim, tanto faz, não me incomodo em receber as pessoas com a casa cheia de caixas de papelão, mas acredito que para os nossos hóspedes deva ser mais confortável chegar em uma casa arrumada. 

O único problema, é que estávamos usando os colchões do sofá-cama como nossa cama de casal. Logo, tivemos que pedir emprestado dois colchonetes para eles dormirem. Se no apartamento passado, tivemos que carregar um sofá-cama na cabeça para ter onde dormir, dessa vez, apenas foi necessário que Luiz carregasse dois colchonetes pela rua para nossas visitas. No fim, acho que deu certo. Também foi bom que a gente fez logo o test drive dos hóspedes para ver o que precisávamos acertar. No início de maio chega o próximo casal visitante, do Brasil. Se eles tiverem sorte, terá chegado nossa cama, comprada na semana passada, e eles terão up grade na hospedagem. 

Compramos uma cama de estilo japonês, ou seja, aquele tatami baixinho com o futon em cima. Nos deram um prazo de aproximadamente quinze dias para entregá-la, espero que se cumpra, pois estou doida para deixar o quarto arrumado também. Combina muito com o espaço, pois dormimos no mezanino que possui uma parte do teto rebaixada. Desse modo, a cama se encaixa quase como um ninho e fica muito aconchegante. Ainda por cima, tem uma janela no teto e adoro acordar olhando o céu.  

Consegui instalar uma tela protetora bem discreta na varandinha, assim meu felino gordo pode tomar seu solzinho e fico tranquila. O gato mais mimado do mundo está adorando o apartamento novo, encontrou vários esconderijos e fica para cima e para baixo na escada. 

Também consegui decorar o número novo de telefone e quase não me lembro mais do antigo. Eu mesma me surpreendo com a velocidade em que troco de canal.  

Enfim, as coisas vão seguindo seu curso. Agora falta algumas festinhas para assegurar a boa energia e o alto astral do recinto. Estou doida para fazer a inauguração!

116 – A vida pós feriado

A volta às aulas foi mais tranquila do que imaginei. Acredito que a semana de férias recarregou minhas baterias e revi as prioridades. Muita água ainda vai rolar, mas é muito bom quando a gente consegue ir passo a passo, tentando não se atropelar.  

O mundo ainda me parece difícil, mas não impossível. Acho que isso quer dizer que meu otimisto está tentando se recuperar. De qualquer maneira, quem é o louco que está sempre triste ou sempre feliz? Todos temos lados bons e maus e experimentamos altos e baixos, por tanto, no mínimo, posso me identificar com a raça humana e isso já é um começo. 

Ainda é cedo para dizer, mas os novos professores me agradaram e comecei a sentir um interesse maior pelas aulas. Era a sensação que esperava ter no início do curso e não tive. Dessa vez, não precisei fazer tanta força para gostar. Começo a acreditar que continuo artista, mas me falta a resposta do porquê. É que esse porquê muda sempre e, às vezes, custo a entender que preciso perguntar outra vez. Ontem entendi, preciso de novas respostas: por que? Para que?

117 – Meus amigos de Brasília

No fim de 2004, ainda morando em Atlanta, comecei a encontrar, pela internet, alguns amigos do passado. Navegando pelo orkut, encontrei o colégio onde estudei mais tempo, a Escola Paroquial Santo Antônio, em Brasília. É difícil acreditar, mas eu, uma ateísta convicta, estudei boa parte da minha vida em colégios ou faculdades católicas. 

Nesse colégio, estudei da primeira à oitava série, de 1976 a 1983. Acredito que boa parte dos meus valores foram aprendidos ou fortalecidos ali, mas só agora posso ter a consciência de como estou tão igual em muitos pontos e tão diferente em outros. 

Mas voltando à história, tudo começou achando uns dois ou três ex-alunos pelo orkut. A conversa e o interesse foram crescendo e um desses ex-alunos teve a brilhante idéia de fazer um grupo de discussão só nosso no yahoo. O que acontece é que sempre tem alguém que manteve contato com alguém, que por sua vez manteve contato com outros e assim por diante. Resultado, em um ano e pouco que esse reencontro iniciou, já somos um grupo de quase cinqüenta ex-alunos. 

A grande maioria permanece em Brasília, mas muitos, como eu, se espalharam pelo Brasil ou pelo mundo. Não importa, para mim, são meus amigos de Brasília. É a memória e a referência que tenho. E só há muito pouco tempo entendi como é importante para mim ter essa memória e esses amigos. 

Acho que devido a tantas mudanças, não tinha amigos de infância. Tenho muitos amigos queridos, mas tinha um pouco de vontade, meio dissimulada, de apresentar alguém como: “esse é fulano, a gente se conhece desde nem me lembro quando…estudamos juntos…” 

Na verdade, não sei se a culpa é das mudanças, muita gente vive na mesma cidade a vida toda e também perde os contatos de infância. Mas enfim, essa é a minha desculpa. 

De qualquer forma, para mim tem sido muito importante esse resgate do passado. É como uma prova arqueológica que existi, pois deixei alguma impressão. Ou melhor, existimos, pois todos eles também haviam me deixado impressões que, pouco a pouco, vão me voltando à memória. 

A velocidade com que nos unimos me impressionou. É difícil explicar a cumplicidade que surgiu muito rapidamente entre boa parte desses ex-alunos. Alguns de nós já éramos amigos no colégio, mas entre outros, existia muito pouco contato e até mesmo algumas desavenças eventuais, que hoje o passado transformou em coisa de criança. Isso é muito louco, pois com a maior parte só falo via internet, e mesmo assim, fico feliz quando eles estão felizes, sofro quando eles tem problemas e tenho orgulho do que eles realizam. E tenho muita saudade de quem não tive saudade nenhuma por tantos anos. 

No último fim de semana, 15 de abril de 2006, foi o encontro de 23 anos de formados, em Brasília. Não fui, mas fiquei babando daqui. Eles se encontraram no nosso antigo colégio, tiveram o privilégio de entrar nas salas e procurar as carteiras (mesas de estudantes) onde sentavam. Tentei me lembrar onde me sentava, mas nem sempre era no mesmo lugar. Depois eles seguiram para a chácara de uma das ex-alunas e fizeram uma festa, com direito a assistir o filme da nossa formatura.  

Não pude estar presente, mas pensei nisso o dia todo. Fiquei imaginando quem ia, o que iria falar etc. E quando as fotos chegaram, quase podia me imaginar nelas. O encontro dos 25 anos já foi cogitado e nesse vou nem que vaca tussa!

Somos uma tribo. Temos o poder de voltar no tempo, resolver o passado. Seguimos um pacto não negociado, mas totalmente subentendido: decidimos que somos amigos, para o que der e vier, e pronto! 

118 – Dia da preguiça, do granizo e da janela

Sabadão de preguiça, parecia até domingo. Se já é complicado levantar quando tenho o que fazer, imagina sem nenhum compromisso e com aquele céu super nublado. 

Nem era resquício da balada, que adiamos. Um casal veio jantar conosco na noite anterior, com a promessa de sairmos logo em seguida para encontrar outros amigos na Posada de las ánimas. Duas garrafas de um delicioso grand cru depois e um jantar meio improvisado, que modéstia às favas estava bem gostoso, claro que baixou a lombeira geral. A balada podia esperar a próxima noite livre. 

No dia seguinte, recebi a mordomia do café na cama, o luxo que mais adoro no planeta! Daí é que não dava vontade de sair mesmo. 

Ando caseira. Acho que estou curtindo o apartamento novo, sei lá, talvez sejam os dias chuvosos. Mas está sendo bom para descansar um pouco. Tomar um vinhozinho com Luiz ou com alguns amigos em casa, ou na casa deles, tem me parecido um programão. 

Enfim, quando tomei coragem de por o nariz na tela do computador, comecei a escutar um barulho diferente de chuva, barulho de umas pedrinhas. Luiz falou do andar de cima, está chovendo granizo!  

Fomos para a janela da sala por curiosidade e a chuva de granizos engrossou. Por alguns segundos, a rua ficou branquinha como se fosse neve. Fotografei, mas não aparece bem as pedrinhas de gelo. 

Quando levantei a vista, percebi que tinha gente por praticamente todas as janelas. Meu impulso foi de me afastar um pouco do vidro, pois estava de pijamas. Depois notei que todos estavam de pijamas, iguais a mim. Ou seja, éramos um bando de preguiçosos, morgando em casa, curiosos na janela. 

No prédio da frente, alguns andares abaixo, havia um casal de crianças, daquelas com olhar de moleque, que não sabiam se olhavam a chuva ou as janelas. Acenei para elas, que se acabaram de rir acenando para mim de volta. Por que criança acha tão divertido dar tchau para estranhos? 

Em poucos minutos, a chuva acabou e o céu abriu com sol. Parecia outro dia. Saímos das janelas e da farra coletiva, e cada um voltou para sua própria preguiça. 

119 – Baladeira que se preze…

Muito bem, disse que andava caseira, não que era caseira, certo? Porque baladeira que se preze cai na tentação na primeira oportunidade.

No mesmo sábado do granizo e da preguiça, fomos jantar com um casal de amigos brasileiros, o que em princípio seria um programinha light.  Jantar super gostoso, vinhosinho que adoro, bom papo, boa música e tal. Por volta da meia noite nos despedimos e seguimos em direção à casa.

No taxi, recados no celular de Luiz para passarmos na casa de outro casal de amigos que moram perto da gente. Por que não? Partimos nós para a segunda etapa da noite. Chegamos lá, onde nossos amigos brasileiros recebiam outros amigos portugueses e chilenos. Nesse momento, todo o vinho já tinha sido devidamente evaporado e uma garrafa de whisky, que iniciou a noite cheia, agonizava seus últimos goles. 

O papo foi empolgando, a música aumentando… e, aparentemente, um vizinho se irritando. Umas duas e meia da madrugada, bate na porta a polícia. Achei um certo exagero, realmente estávamos fazendo barulho, mas com certeza se alguém houvesse se manifestado ou pedido, baixaríamos o tom na mesma hora, foi distração mesmo. Enfim, os policiais foram educados e francamente, nem cheguei a ficar nervosa, quem gosta de uma boa farra e nunca vivenciou essa cena da polícia batendo na porta? Estou ficando experiente, ou em outras palavras, muito cara-de-pau.  

A cena não deixou de ser um pouco engraçada. Toca a campanhia, minha amiga “lararilarará” atende o interfone e ninguém responde. Ela vira para mim e diz algo como, é esse pessoal tocando embaixo para deixar propaganda no correio. E eu, mas às duas da manhã? Na dúvida, resolvi olhar pelo olho mágico na porta. Eram dois homens do tamanho de um armário, com uniforme preto de faixa amarela no peito: ops! Voltei para ela e disse baixo, é a polícia, abre que vou avisar o povo. Ela achou que eu estivesse brincando, mas mesmo assim tentou parecer o mais careta possível e foi abrir a porta. Enquanto ia avisar os meninos para eles já irem baixando o som, só escutava minha amiga falando para os guardas: adelante! Eles não queriam entrar, só pedir para baixar o som. De qualquer maneira, a festa acabou.  

Ou melhor, acabou essa etapa, pois como contei diversas vezes, a noite em Madri vai crescendo, uma coisa emenda na outra e quando nos damos conta estamos franzindo a testa com o sol batendo no rosto.  

Bom, não chegamos a tanto, mas também não nos demos por vencidos e partimos todos para o “El Junco”, como já de costume. Três da matina e fila na porta, amo essa cidade! Até que a fila andou rápido, demos sorte porque, alguns minutos depois, a fila se multiplicou atrás da gente. Estávamos em um grupo de umas nove pessoas. 

Nessa noite, comandavam a música, um DJ parecido com o Lobão na fase cabelo comprido e outro com a maior pinta de CDF. Ambos inspiradíssimos, me acabei de dançar. Estava sentindo falta da minha aeróbica semanal.

Por mim, acho que seria um dos dias que só sairia de lá varrida e com as luzes acesas, mas no domingão tínhamos uma feijoada na casa de uma amiga e aí a briga é feia. A feijoada ganhou é claro, e fomos embora por volta das quatro e meia. Até chegar em casa, tomar banho, encinerar a roupa fedida a cigarro e deitar, eram quase cinco e meia. Fiz as contas de quanto tempo me restava de sono e torci para não acordar de ressaca no dia seguinte, afinal de contas, uma feijuca animal me aguardava! Dormi bem.

120 – A feijuca

No domingo, acordamos bem cansados, mas felizmente sem um pingo de ressaca. Acho que era de tanto que queria comer feijoada. Também não exageramos muito na bebida, o cansaço era por termos dançado mesmo. Além do mais, havíamos jantado bem e tomado bastante água, isso ajuda e muito! 

Uma amiga nos chamou para almoçar na casa dela, seria sua primeira feijoada e ela estava meio tensa de errar a mão. Bobagem, acho que entre amigos, quando a comida não funciona a gente pede uma pizza, certo? Bom, mas confesso que, nesse caso, ficaria um pouco aguada, pois estava com um desejo de comer uma feijuca! 

Resumo da ópera, deu tudo certo. Além do feijão, rolou pão-de-queijo, carne seca desfiada, couve, laranja… enfim, completa! E claro, a caipirinha. Ainda bem que havia queimado muitas calorias na noite anterior, porque chutei o baldinho.  

Só teve um pequeno problema, se a gente já estava com um pouco de sono quando chegou, imagina depois de uma super feijoada? Estava difícil conversar, na verdade, estava difícil até piscar sem ceder a tentação de ficar mais tempo com os olhos fechados.

Em casa, fiz uma coisa que é rara, dormi à tarde. Dormi nada, desmaiei! E como foi bom. 

121 – O casal baixaria

Minha relação de amor com o apartamento precisava ter algum defeito, não é mesmo? Pois descobrimos qual é, somos vizinhos de andar do “casal baixaria”. Aliás, diga-se de passagem, acho que todo edifício aqui tem um casal com esse perfil. No antigo apartamento também tinha, mas pelo menos não eram nossos vizinhos tão próximos e se acalmavam no inverno. Vai entender. 

Quando digo baixaria, não estou me referindo a barulho de sexo. Acho que isso seria divertido, quem sabe até estimulante, mas infelizmente é pancadaria mesmo. E, claro, baixaria que se preze, não começa antes das três da matina! 

Logo no segundo ou terceiro dia que mudamos, ouvimos algo que parecia com briga e choro de homem. Vá lá, podia ser uma coincidência, alguém chegou borracho (bêbado) ou algo assim. Entretanto, a coisa vem se repetindo. 

E o pior é que aparentemente eles gostam de público, porque sempre brigam com as janelas bem abertas, quando não gritando da varanda. Um barraco! E isso porque moramos em um bairro ótimo, para calar a boca dos preconceituosos que acreditam que essas coisas só acontecem nas camadas mais pobres e menos esclarecidas da população. 

É mais ou menos assim, daqui de casa a gente escuta os berros de “eres un cobarde”, “hijo puta” etc. E na janela do edifício em frente, vemos o reflexo de um jogando coisas no outro, uma beleza! Além de rolar uma bateção de porta que parece que eles saem e entram do apartamento algumas vezes. Realmente, não entendo. Aliás, não entendo nada. Julgar as pessoas é complicado, mas acredito que algumas situações deveriam ser de bom senso mundial. Por que continuam na mesma casa?   

Em doze anos de casada, nunca xinguei Luiz e nunca fui xingada. Não somos santos nem exemplos para ninguém, e é evidente que já tivemos nossa discussões, umas bobas e outras mais sérias, mas sempre com o limite do respeito. Posso em alguns momentos ter vontade de pular no seu pescoço, mas só de imaginar chamá-lo por um palavrão me dói a garganta. Vai muito além da minha natureza agressiva que venho domando ao longo dos anos.

Enfim, tinha a intenção de chamar esses vizinhos para a inauguração do apartamento. Felizmente, percebi antes que não são exatamente os amigos que queremos ter. Espero que se resolvam, ou que se separem, ou que, pelo menos tenham a dignidade de se matar em silêncio e deixar o resto do edifício dormir em paz. 

122 – Solidariedade no cardume

Sempre vou de metrô para a faculdade. Normalmente, os horários que ando são movimentados, mas não é hora do rush. Isso quer dizer que costumo ir confortavelmente, quase sempre sentada. 

Ontem, o curso acabou mais cedo e precisei tomar o metrô em uma das horas mais requisitadas. Para complicar, havia um tipo de greve em que o número de trens foram diminuídos. Ou seja, o metrô estava um inferno de cheio! Se soubesse, até teria tentado pegar um taxi, mas só descobri sobre a tal greve dentro da estação. 

Quando entrei no vagão, estava cheio, mas possível. Umas três estações depois foi se tornando mais e mais impraticável. Por sorte, estava encostada na parede do fundo do vagão, o que é menos sofrível. E, claro, como a lei de Murphy sempre funciona, justo nesse dia resolvi tomar uma linha diferente, ou seja, não sabia exatamente quantas paradas ficava da minha casa. Com o vagão cada vez mais cheio, não conseguia ler o nome das estações do lado de fora. 

Acho que o resto dá para imaginar, quando chegamos na parada que devia saltar, não percebi. Mas tive a impressão de ler nos lábios de alguém o nome Manuel Becerra, minha estação. Virei correndo para a moça do meu lado e perguntei se ela sabia onde estávamos, e lógico que era onde precisava descer. 

E aí? Como fazer? Tinha poucos segundos e nenhum espaço para passar. Não sabia se o pior era perder a parada ou andar mais tempo naquela claustrofobia e ainda ter que voltar outra vez naquele aperto. Foi quando fui salva pela solidariedade entre meus recentes amigos-sardinha. Também não sei se eles me ajudaram pela necessidade do espaço, mas acho que foi porque se colocaram em meu lugar. Foi um tal de “deixa ela passar”, “vai por ali”, “rápido”, “acho que não vai dar”… Até que vi uma brecha mínima de ar e mergulhei como um vocalista de banda punk mergulha no público. Chega senti a porta fechando arrastar no meu pé. Acho que saí do vagão como uma rolha de champanhe, meu corpo até fez o barulhinho da pressão “ploc”!  

Aterrizei meio desequilibrada e rindo comigo mesma. Nunca achei que fosse passar por isso novamente e ainda achar graça. Fiquei lembrando de Brasília, o único lugar onde usava transporte público com regularidade, porque afinal de contas, tinha menos de dezoito anos e não podia dirigir. 

A primeira vez que andei de ônibus sozinha tinha por volta dos treze anos, em Brasília. Lembro exatamente como foi assustador e libertador, ao mesmo tempo. Vivia enchendo o saco da minha mãe porque queria aprender a andar de ônibus, o que significava para mim ter a liberdade de me locomover na cidade, sem depender de ninguém. Um dia, ela simplesmente me deu dinheiro e disse: volta hoje de ônibus.  

Como assim? Volta hoje de ônibus? Mas em qual ônibus? Quanto custa o ônibus? Por onde entro no ônibus? Como aviso que quero saltar? Perguntas que hoje me soam absolutamente óbvias, mas que o fato de fazer pela primeira vez sozinha me deixou apavorada! Claro que minha mãe não tinha a menor idéia das respostas, afinal de contas, ela também não andava de ônibus, portanto ela fez a cara de que aquilo era óbvio e eu que me virasse. Até hoje não sei se ela queria que eu acertasse ou desistisse e ligasse para ela ir me buscar. Também não importa mais, quando saí, achei que ela queria que eu desistisse, quando chequei achei que ela queria que eu acertasse. 

Foi depois do curso de inglês, lembro perfeitamente de não prestar atenção em nada, só pensava, cassilda e como é que vou pegar o tal do ônibus? Para quem vou perguntar isso sem parecer uma jeca ou uma fresca? 

Para minha sorte, saí do curso conversando com uma amiga mais velha, que costumava vir andando comigo boa parte do caminho e depois pegava seu ônibus. Contei meio sem graça da minha missão do dia. E ela achando muito engraçado, mas no fundo solidária, porque também havia passado por isso, se propôs a ir comigo para eu ver que não era nada demais. Ufa! Pois ela me salvou a pele, nem a porta da entrada eu sabia qual era! 

Chegando em casa, minha mãe estava me esperando para eu contar o que tinha acontecido. Também fiz a mesma cara que ela fez antes, como se nem estivesse entendendo o que ela queria saber. Simplesmente, tinha pego o ônibus ora, que bobagem! No meu quarto sozinha, comemorei aquela grande vitória, havia dado o primeiro passo para minha independência, ou nisso acreditava naquele momento. 

Depois de alguns anos tomando o maldito “Grande Circular” lotado, mudei de idéia. Bom mesmo era andar de carro! Precisava fazer dezoito anos rápido! A piada dos alunos era que dentro do ônibus se contradizia a lei da física onde dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. A gente não precisava se segurar, porque não havia onde cair! Entrar e sair era sempre uma missão quase impossível, que a gente nem sabia como podia dar certo no final. Nós, meninas, desenvolvíamos a técnica do cotovelo, para nenhum engraçadinho vir se esfregando. É verdade que também havia uma certa solidariedade, sempre quem estava sentado se oferecia para levar os cadernos ou a mochila de quem estava em pé. De qualquer maneira, enchi o saco e jurei que quando começasse a dirigir nunca mais encararia essa situação. 

Hoje já não me parece tão ruim, provavelmente porque não preciso encarar o problema todos os dias. Quem sabe foi a experiência passada que me ajudou a saltar do vagão lotado com tamanha desenvoltura depois de adulta e acostumada a uma boa mordomia. 

Quer saber, que se dane a poesia social, amanhã vou de taxi!

123 – Confissão super secreta

Hoje, pela segunda vez esse mês e um ano após nossa chegada em Madri, tive vontade de dirigir, ou melhor, ter um carro. Merda, maldita hora que peguei aquele taxi e lembrei como era rápido e confortável… O canalha do motorista ainda pôs ar condicionado, só podia estrar me sacaneando! Ai, meu Deus, deixa eu ficar bem quietinha esperando a vontade passar!

Preciso me concentrar: garagem, estacionamentos impossíveis, mecânicos, postos de gasolina self service, fazer prova de direção outra vez, perder dinheiro na venda do carro, engarrafamentos, ver o mundo através de um para-brisas… Ufa! Passou!

124 – A melhor carne de Madri

Há cerca de uma semana, abriu em Madri um Baby Beef Rubaiyat, próximo ao estádio Santiago Bernabeu. Fomos conferir. Juro que não ganho um centavo em promoção, divulgo por pura felicidade em comer bem! Não é um restaurante baratinho, mas vale cada centavo! 

Havia me esquecido como éramos bem tratados nos restaurantes em São Paulo. De certa forma, fui me acostumando com o serviço europeu, que pode até surpreender e ser educado e amável, mas não tem comparação ao bom serviço brasileiro, principalmente em São Paulo. 

Pois tivemos o típico serviço brasileiro, simpático e atencioso, sem ser servil ou arrogante. Simplesmente perfeito! Tudo pensado nos mínimos detalhes, a decoração, as mesas, os talheres, a cozinha limpíssima. Pãozinho de queijo, lingüicinhas, batatinha souflê, tudo de bom. E o principal, uma carne fabulosa! Porque se tudo fosse correto, mas a carne não comparecesse à altura, já não compensaria. Mas compareceu. 

Tudo começa pela chegada, eles oferecem serviço de manobrista. Gente, manobrista em Madri é artigo de luxo! Ainda tivemos sorte, pois como o restaurante acaba de abrir, estão divulgando e oferecendo algumas cortesias. Por exemplo, ganhamos couvert, poção do melhor jamón, sobremesas e um copo para fazer caipirinhas. Adorei! 

Bom, pode ter parecido estranho eu falar do manobrista. Mas é que, por puro acaso, foi um fim de semana em que alugamos um carro. É que precisava comprar uma série de coisas para casa e ficava complicado trazer tudo de taxi. Quase todo o tempo foi Luiz quem dirigiu, o que me proporcionou uma mordomia que aproveitei bastante. Entretanto, logo na saída do restaurante, me deu uma vontade irresistível de dirigir. Caramba, sou um poço de contradições, todo esse tempo elogiando a delícia que foi abrir mão do carro e, de repente, não mais que de repente, essa vontade absurda. 

Havia quase um ano que não conduzia um automóvel e achei que fosse estranhar. Pois me foi assustadoramente natural e a facilidade com que achei o caminho de casa fez parecer que era algo que fazia todos os dias.  

Mas agora não quero pensar nisso, não importa. O que interessa é que, por algumas horas, jantei em São Paulo e voltei para casa no Brasil. E agora vou dormir feliz.

125 – O mural de fotos

Há bastante tempo, nem me lembro quando, mas ainda no Brasil, tínhamos um mural de fotos com amigos. Tentei ter fotos onde, pelo menos uma vez, todos os nossos amigos pudessem aparecer. Reuni também vários momentos especiais junto com Luiz, com nossas famílias e nossos gatos. 

Era divertido ver as pessoas chegando e se procurando no mural, e sempre se achavam. Na minha cabeça era uma forma de dizer que eram bem vindas, que faziam parte da nossa história. E funcionava para mim também, era um conforto lembrar que alguma coisa deveria ter feito certo para conhecer pessoas assim. Esse mural nos acompanhou pelo mundo e era de grande ajuda nos momentos de angústia, funcionou como um amuleto.  

Em Atlanta, onde fizemos muitos amigos, tiramos várias fotos com a intenção de completar o mural. Aqui em Madri, ocorreu o mesmo, outras fotos de mais amigos queridos, com lugar reservado na minha grande placa de cortiça. 

Entretanto, nenhuma foto foi adicionada. Sempre havia um motivo. Não havia baixado as fotos para o computador ainda, não tinha papel fotográfico, a impressora pifou… Até o dia em que não havia nenhuma desculpa e fui encarar meu painel que há algum tempo me incomodava e não entendia. Engraçado como, sem perceber,  fui mudando ele de lugar até ficar praticamente escondido em um corredor. 

Busquei explicações racionais. Devia ser porque havia amigos que se separaram, amigos que adoeceram, familiares que morreram, como era grande a minha cozinha, como estava magrinha, como gostava desse restaurante, dessa casa, dessa piscina e por aí vai. Mas a verdade mesmo é que meu mural de lembranças se transformou em um enorme mural de saudades. Demorava muito para que alguém se encontrasse nele, e quando se encontravam, também já não eram mais os mesmos, como não sou mais a mesma. 

Tive uma sensação quase indígena e primitiva, em que as fotos aprisionavam nossos espíritos e agora precisamos todos voar em outros patamares. Continuam queridos e continuam bem vindos, mas estavam fora de contexto. 

Pensei que esperto era meu gato, fotos e imagens de espelhos nada significam para ele porque não possuem cheiro.  

No meu ritual particular, desfiz o mural e guardei as fotos com o carinho do passado. Estamos agora todos livres para sermos o que quisermos. Talvez um dia construa um outro, com velhos e recentes amigos, mas com um significado diferente e fotos novas.

126 – E agora, José? José, para onde?

Querido Drummond que me ajude:

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Há 34 anos saí do Rio de Janeiro; há quase 20 saí de Brasília – com intervalos em Nova York; há cerca de 12 saí do Rio outra vez; há pouco mais de 2 saí de São Paulo; há pouco mais de 1 saí de Atlanta e, desde então, estou em Madri. Com 36 anos, no meu trigésimo primeiro endereço, até sabe-se lá quando.

Nesse caminho, conheci muita gente assim ou que até mudou mais. Não sei se foi coincidência ou uma maneira de me sentir mais normal. Talvez hoje seja normal, a tal da globalização está criando uma nova nacionalidade virtual de expatriados. Se é bom ou mau, como vou saber? Acho que um pouco dos dois, mas sei que não há volta. Não é que não haja volta para o país de origem, ou para qualquer outro, simplesmente não há volta para o que fui.

Portanto, o jeito é tentar levar com bom humor e viver nossas aventuras. Recorro a cara 11, aquela com que cheguei em Madri, a de faço-isso-todo-dia-sei-o-que-estou-fazendo-e-não-me-pergunte. Nesse caso, é a 11-b, quando no fundo não tenho a menor idéia para onde estou indo.  Que se há de fazer?

Vou eu novamente pensando nas músicas. Dessa vez, canto minha escolhida para São Paulo. Lá preferia na voz do Cazuza, mas agora quero mesmo é na do Lobão: Vida louca vida, vida breve, já que eu não posso te levar, quero que você me leve… 

Sim, estou enrolando, até para uma especialista em mudanças, às vezes é muito difícil romper. Mas hoje preciso fechar esse ciclo porque essa fase acabou. Preciso começar outra. 

Aos que chegaram até aqui, muito obrigada pela companhia. Não vou parar de escrever, só vou recomeçar. Tenho meus motivos, mas essa é uma outra história…