41 – A última semana no Rio

Mal aportamos no Rio e voltamos à intensa programação para dar tempo de fazer tudo. Deixamos o carro emprestado com meus pais, que acabaram nos dando uma carona até o Espelunca Chic.

 

De lá, começamos a ligar para as pessoas e ver quem podia aparecer pelo local. Enquanto tomávamos umas duas caipirinhas cada um, o povo foi chegando. Foram meu irmão, uma amiga que morou em Madri, um amigo que morou em Dublin e outro que conheci no Caminho de Santiago. Com a empolgação e a felicidade de estar com eles em um boteco carioca, resolvi completar o quadro e também tomar uma cachacinha, no que fui acompanhada. Uma se transformou em algumas e alguém tem alguma dúvida que chutei o balde? Tudo bem que não fui a única, mas meti o pé na jaca! Costumava fazer isso com um pouco mais de elegância e é raro que passe dos limites, mas acho que não sou mais a mesma e fiquei larari larará.

 

Saímos do boteco pagando o maior mico, um dos amigos levou um tombo, enfim o maior vexame que na verdade achei muito engraçado e não me arrependi nem um pouco. Felizmente, o que dirigiu o carro era também o sóbrio. Nós não dirigimos mais quando bebemos, mas no Brasil ainda é algo comum. Muito bem, deixamos esse amigo do tombo em casa, e ainda acordamos sua esposa. Depois fomos deixados na casa dos meus sogros. Eu tentei ser silenciosa, mas acho difícil que tenhamos conseguido. A essa altura, só posso esperar que meus sogros tenham um sono profundo!

 

Para completar o micão, ainda acordei com uma ressaca daquelas e completamente enjoada! Mas não queria perder a pose e fingi, o melhor possível, que estava apenas sem fome. Meus sogros não devem ter acreditado, até porque eu estava verde, mas também foram educados em fingir que sim.

 

Muito bem, também não podia ficar na cama o dia todo, precisava dar entrada na minha carteira de motorista internacional às 14:00hs, de maneira que às 12:00hs levantei de qualquer jeito.

 

Nisso liga minha amiga que mora em Madri e está passando um tempo no Rio, havíamos combinado de almoçar, coisa que a essa altura etílica, tinha me esquecido. Putz! Mas não tenho condição de comer nada! Preciso ir ao Detran, quer ir também? Podemos comer depois. Veja bem, quando alguém topou ir passear no Detran conosco, me senti prestigiada, vamos combinar que é uma prova de amizade.

 

O caminho todo ela foi conversando com o Luiz, porque eu ainda era uma mulher das cavernas. Mas aos poucos fui melhorando e lá pelas quatro da tarde, conseguimos parar em um local para comer.

 

Fomos a Santa Teresa, havia muitos anos que não ia lá e é um lugar que gosto muito. Comemos muito bem no bar do Arnaldo, onde não queria nada além de uma coca-cola.

 

De certa forma, a chutada de balde não foi de todo má, porque o dia praticamente todo em jejum e o pouco interesse por qualquer bebida alcoólica depois disso, me ajudou a voltar ao peso que saí de Madri. Além do que, havia me divertido pra burro!

 

Muito bem, do bar do Arnaldo, nossa amiga sugeriu um passeio pelo Parque das Ruínas. Engraçado isso, a gente precisa mudar da cidade para descobrí-la. O lugar é super agradável e tem um café que oferece um cappuccino ótimo e uma vista divina. Vale totalmente a visita.

 

Fizemos também uma visita aos meus pais, mas não demoramos tanto. A essa altura era Luiz quem estava exausto. Voltamos para a casa dos pais dele e nesse dia, acho que o único da semana, não marcamos nada e dormimos cedo.

 

Na quarta-feira, acordei com a corda toda novamente. Luiz e eu nos dividimos, ele foi com seus pais para um exame médico e eu fui almoçar com minha mãe, era o dia oficial do seu aniversário. Meu pai acorda e almoça muito cedo, não dou conta de comer às 11:30hs, de maneira que chamei minha mãe para almoçar comigo no D’amici, um dos meus restaurantes favoritos no Rio. Voltamos para casa e dei uma adiantada na decoração para a festa do seu aniversário, que aconteceria na sexta-feira. Em seguida, chegou minha tia querida de Belo Horizonte e ficamos por ali até à tardinha.

 

Voltei para a casa dos meus sogros, tínhamos jantar com amigos no Zozô, um restaurante relativamente novo, aos pés do morro da Urca. Outra vez encontrei nosso amigo do Caminho de Santiago, um casal  que conheci através dele e uma amiga do meu antigo colégio com seu marido. Restaurante ótimo, papo melhor ainda.

 

De lá voltamos a pé, meus sogros moram na Urca mesmo. A distância é mínima e o costume de caminhar nos fez acreditar que era normal. Nada aconteceu na prática, mas um carro estranho nos assustou um pouco antes de chegarmos em casa.

  

O Rio nos lembra o tempo inteiro que podemos aproveitar, mas não devemos nos distrair. É literalmente o purgatório da beleza e do caos. Não é o céu nem é o inferno, é tudo junto, ao mesmo tempo. Para mim, não seria impossível, mas seria muito difícil conviver com tamanha ambiguidade novamente. Me alegra a capacidade que as pessoas tem de sobreviver e estar acima de tudo isso, mas me entristece o quanto todo esse absurdo se tornou normal, uma completa falta de indignação com o impensável. Não há mais mocinhos e bandidos, há uma estrutura matricial de poderes paralelos, sem nenhum fio condutor. Honestamente, às vezes acho que o Rio é um milagre de convivência,  eventualmente o caos se organiza sozinho.

 

E apesar dos pesares e das balas perdidas, sim, continua lindo!

 

Na quinta-feira, o dia ficou para a família do Luiz, até resolvemos algumas pendências e visitei meus pais, mas reservamos o fim de tarde e o jantar para eles. Em princípio, ia tudo bem e me sentia alegre com a conversa que rolava divertida. No fim do jantar, por sorte meus sogros precisaram voltar mais cedo, porque sem mais nem menos começou uma discussão bizarra com meu cunhado. Uma série de cobranças malucas tiradas da manga e uma violência reprimida de quem não tem a menor idéia do que acontece ao redor do umbigo. Faz muito tempo que não me envolvo em uma situação tão desagradável e insana. Uma pena porque adoro minha cunhada e sou louca pelo meu sobrinho, na verdade gostava do meu cunhado também, mas já não tenho mais paciência para tanta agressividade.

 

Voltamos para casa chateados, mas ao mesmo tempo sem querer estragar os momentos legais por uma única situação estranha. Ainda me impressiona como a raiva e a crueldade são tão fortes, que se não tomarmos cuidado, destroem uma felicidade que é maior e tão acima disso.

 

Já estava de pijamas quando ligou meu irmão. Nos chamava para sair. Na noite anterior tivemos uma discussão boba, um mal entendido. Havia me chateado um pouco, mas perto do que havia visto na noite seguinte, me pareceu ínfimo. Tive vontade de encontrá-lo e agradeci por dentro de ter o irmão e a família que tenho. Dormi bem e aliviada.

 

Na sexta-feira, acordei animadíssima! Era o dia da festa de aniversário da minha mãe. Almoçamos com meus sogros, que gosto muito e também são minha família, depois Luiz ficou com eles e eu segui para a casa dos meus pais, para ajudar com os preparativos da festa.

 

Pois foi um festão daqueles, com direito a DJ e tudo! Acho que foram umas 60 pessoas, das quais quatro casais de amigos nossos. E mesmo os amigos dos meus pais, costumam frequentar a casa deles há muitos anos, de maneira que me sinto bastante à vontade. Além dos primos que compareceram e é sempre bom encontrá-los. Enfim, dancei, conversei, me acabei!

 

No sábado, meu irmão nos buscou com a namorada para almoçar na casa dos meus pais. É que meus sogros não ligam muito para comer e meus pais são uns gulosos, ou seja, as refeições acabavam sendo mais para o lado da minha família. De lá, seguimos para um pub, fomos encontrar com alguns amigos cariocas que ainda não havíamos achado tempo para visitar. Não ficamos até muito tarde, nossa partida estava próxima e precisávamos organizar as malas.

 

Domingo, acordei meio borocochô. Queria voltar para casa, mas toda partida é difícil. Tomei café conversando com minha sogra e olhando para uma vista estonteante. Todo o tempo que passamos no Rio, passei de frente para o mar, com o cheirinho da maresia entrando pelas narinas.

 

Conseguimos fazer um último almoço familiar, dessa vez incluindo minha mãe, minha tia, meu irmão e meus sogros. E por volta das 16:00hs, meu irmão e minha mãe nos levaram ao aeroporto.

 

Deixar o Rio foi complicado e também me emocionou. Essa cidade maluca, tão diferente do que quero e do que sou, ainda pulsa nas veias. Odeio e amo esse caos. E também ali quis deixar mais uma vida.

 

Há alguns anos, depois de muito criticar, resolvi entender o movimento social que é o funk. E gostei. Resume com uma poesia feia e bonita a realidade do Rio, ou melhor, as realidades do Rio. Tem o bem e o mal, e todas as matizes que existem entre eles. Gostando ou não, elas também existem em mim, porque eu sou brasileira e carioca, ou talvez apenas porque sou humana.

 

… é som de preto, de favelado, mas quando toca, ninguém fica parado!

 

 

40 – Sampa

Estou de volta a Madri, cheguei anteontem. Gosto de escrever as coisas logo que acontecem, enquanto estão frescas na cabeça e as emoções e sensações ficam bem à flor da pele. Depois a gente acaba racionalizando e, às vezes, perdendo a espontaneidade. Mas fazer o que? Nas últimas semanas precisei eleger entre experimentar ou escrever e daí é até covardia.

 

Não gosto de definir nada como o melhor ou o pior, porque fica impossível não cometer alguma injustiça, mas poderia dizer que essa foi uma das minhas melhores viagens ao Brasil. Também acredito que meu olhar estava mais analítico, sem a preocupação de julgar ou comparar, mas simplesmente de tentar entender e crescer com isso.

 

Sei lá, de uns tempos para cá, talvez depois desse último Caminho, nada me parece tão urgente ou impossível. Não sei por quanto tempo, mas de repente a vida ficou um pouco mais leve.

 

Já contei a primeira semana da viagem enquanto estava no Rio, agora conto mais um pedaço.

 

No dia 13 de junho, chegou Luiz bem cedinho. É fácil lembrar porque foi uma sexta-feira 13, coisa que não me importou. Nos primeiros dias, passei na casa dos meus pais. Depois que Luiz chegou, nos mudamos para a casa dos pais dele, assim ficava mais justo e tentávamos agradar a todos.

 

Acontece que ainda faltava visitar os amigos de São Paulo e esse seria o único fim de semana disponível, já que no seguinte era o aniversário da minha mãe. Portanto, logo no sábado pela manhã, fomos de carro para Sampa.

 

Chegar pela marginal Tietê foi forte. Voltei a São Paulo outras vezes depois que saímos do Brasil, mas entrar novamente com Luiz por aquele caminho me fez pensar em quando cheguei à cidade, há quase 15 anos, para morar sozinha. Namorava com ele, que foi comigo no primeiro fim de semana para ajudar com a bagagem. Quanta coisa aconteceu nesse período e quanto devemos à cidade mais generosa do mundo! Continuava horrorosa e linda ao mesmo tempo.

 

Quando souberam que íamos juntos a São Paulo, duas amigas organizaram o maior festão para encontrarmos com toda a “diretoria”. Um DJ foi contratado, cada um contribuiu com alguma coisa e, como sempre, foi uma delícia encontrá-los. Para mim a noite passou em cinco minutos e é difícil descrever o quanto fiquei feliz. Uma sensação ambígua de que somos e não somos os mesmos. Quando nos encontramos, parece que o tempo não passou, parece que foi ontem. E da mesma maneira, ver os filhos crescendo e outros chegando, novas relações se construindo, os cabelos e os empregos mudando… é gostoso ver que, cada qual a sua maneira, foram todos evoluindo. Nos sentimos muito queridos e a recíproca é totalmente verdadeira.

 

No dia seguinte, fomos tomar um brunch no Empório Santa Maria. Alguns amigos não puderam ir à festa na noite anterior e aconteceu uma coisa engraçada, aos poucos, foram simplesmente aparecendo pelo local, que se tornou nossa sala de visitas. Chegamos e saímos em um grupo de seis pessoas, que inflou e diminuiu algumas vezes ao longo de umas sete horas que passamos no estabelecimento. O dia mudou de temperatura algumas vezes, os garçons alternaram seus turnos e nós continuamos por ali, encontrando os amigos que também se alternavam.

 

Adoro essa disponibilidade das pessoas de São Paulo. Acho que a quantidade de gente de fora que chega na cidade deixa todo mundo com um pouco de vida de estrangeiro. A  distância e o tempo que precisamos percorrer para ver um amigo são absolutamente secundários. Acho engraçado no Rio como parece difícil dirigir até outro bairro e como tudo necessita de uma logística complicada. Hoje em dia, vindo do outro lado do oceano e depois de morar em uma cidade do tamanho de São Paulo, tudo me parece perto e fácil, e se não é, não ligo.

 

Na segunda-feira, Luiz tinha um almoço agendado que não aconteceu, o que fez mudarmos os planos e pegar a estrada de volta ao Rio mais cedo. Sair da cidade ainda foi mais difícil que entrar, eu tentei, mas não deu para segurar a emoção. Era impossível passar pelos lugares e não ter um milhão de lembranças, foram dez anos morando em São Paulo e justamente quando começamos a construir nossa vida em comum. Por alguns minutos, acho que entendi uma parte do que é envelhecer. Não tive vontade de voltar, porque nunca se volta ao que fomos, mas quis muito ter várias vidas em paralelo e uma delas deixar ali.

 

“Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e Av. São João
É que quando eu cheguei por aqui
Eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e Av. São João
Quando eu te encarei frente a frente
Não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto
O que vi de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio
O que não é espelho
E a mente apavora
O que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes
Quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso
Do avesso do avesso
Do povo oprimido nas filas
Nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue
E destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe
Apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas
De campos, espaços
Tuas oficinas de florestas
Teus deuses da chuva
Pan Américas de Áfricas utópicas
Do mundo do samba
Mais possível novo quilombo de Zumbi
Que os novos baianos passeiam
Na tua garoa
E novos baianos te podem curtir
Numa boa”

Caetano Veloso

 
 
 

 

 

 

39 – Agora sim, cheguei ao Rio

Seguindo com a intensa programação de férias corridas, no sábado fui a um jantar, promovido por um amigo carioca. Fui acompanhada da minha amiga de Brasília, afinal de contas, ela veio de longe para me encontrar, me senti prestigiada.

Esse amigo do jantar, conheci da primeira vez que fiz o Caminho de Santiago e foi muito legal revê-lo. Chegou a ser um pouco engraçado, pois estávamos em um contexto bastante diferente, sem as roupas típicas de peregrino. Além do mais, durante o Caminho, ele às vezes contava sobre sua esposa e seus amigos, naturalmente a gente imagina como são as pessoas, mas finalmente pude colocar rostos nos nomes ouvidos. 

Estávamos em um grupo de umas onze pessoas e foi muito divertido. Tem uma coisa que sinto falta, que é esse bom humor carioca, mesmo que as pessoas nem sejam do Rio, mas se contagiam. Os lugares possuem um senso de humor próprio, muito característico, que ao viver em diferentes cidades ou países aprendemos a diferenciar. O humor carioca é irreverente e despojado, há uma maneira irônica e inteligente de contar as situações e de rir de si mesmo e dos outros, porque afinal de contas, é o melhor remédio. 

No edifício onde moram meus pais, o porteiro abre a porta do elevador debochado: conexão Rio – Nova York! E minha mãe morre de rir, aponta para ele e me diz: esse é o sem terra! E ele, sou eu mesmo. E essa é aquela minha filha que te falei que não mora aqui…  E aos poucos vou descobrindo que os porteiros do Leme conhecem minha vida! A propósito, o jornaleiro já me cumprimenta.

No domingo, encontrei com minha amiga que mora em Madri e está passando seis meses por essas bandas. Conheci também seu namorado. Sentamos em um quiosque em frente a praia para bater papo e atualizar as fofocas. Não tinha dez minutos que sentamos, começaram uns fogos do nosso lado, nada demais. Logo em seguida, me liga meu irmão de casa, fica esperta que está rolando tiroteio no morro. Eu achei que ele tivesse se confundido com os fogos que acabara de ouvir, mas ele insistiu que estava ouvindo os tiros.

Paramos para prestar atenção e era o maior tiroteio que havia começado. E agora? A gente fica aqui ou vai embora? O namorado da minha amiga nem ligou e disse que havia muitos prédios na frente, que o tiroteio era só lá na favela. Bom, essa afirmação não me deixou de todo tranquila, porque na semana anterior os tiros chegaram na areia da praia. Resolvemos subir para a casa dos meus pais e esperar a situação se acalmar.

Pensei, agora sim cheguei ao Rio, como teria a pretenção de passar três semanas e não ouvir nenhum tirinho? As pessoas em volta continuavam a agir com uma certa normalidade, o que não deixa de me chocar. Dizia, não estou mais acostumada com isso, e minha amiga respondia, e não é para se acostumar, isso não é normal!

Isso não é normal! A gente pode se acostumar, as pessoas não podem deixar de viver, de trabalhar, de se divertir, mas em nenhuma hipótese podemos nos convencer de que isso é normal.

Procurei me informar um pouco do que estava acontecendo. Ocorre que há uma disputa de poder nos morros Chapéu Mangueira e Babilônia. Os líderes do tráfico do Pavão-Pavãozinho estão tentando tomar esse poder. Pelo que entendi, a Rocinha está mandando apoio ao Chapéu Mangueira. Os confrontos aumentaram a partir de abril, quando o traficante José Ricardo Ribeiro Rosa, o Cágado, assumiu, com o apoio de traficantes da Rocinha, o tráfico na região.

Isso soa normal para alguém? Eu tô maluca? Existe uma verdadeira estratégia sofisticada de guerra operada por um poder absolutamente marginal e paralelo.

Hoje o dia amanheceu como se nada tivesse acontecido.

Enfim, minha vida também precisava continuar. Na segunda pela manhã, fui fazer a prova do Detran para renovar a carteira de habilitação. Passei! Na quinta-feira pego meu novo documento. Agora é torcer para a convalidação na Espanha evoluir. De qualquer maneira, precisava de alguma carteira na mão.

E assim os dias vão passando, alguns fico feliz por matar a saudade, ouvir minha língua e por me sentir brasileira. É bom ter meus documentos e minha identidade de volta. Outros me bate uma enorme desesperança de não ver por onde os problemas do país possam ser resolvidos.  Não vejo um caminho de volta para mim e, ainda que não busque, no fundo gostaria de tê-lo.

Paciência, a violência urbana é muito triste e não sei se saberia viver assim novamente. Mas hoje, prefiro ficar com a proximidade da família, o encontro dos amigos e o delicioso bom humor carioca.

 

38 – Enquanto isso, na sala de justiça…

Estou na terrinha! Muito bem, obrigada. Como previsto, cheguei com as pessoas reclamando do inverno rigoroso, temperatura que me pareceu agradabilíssima! Agora o sol voltou e, ainda que sinta um pouco de calor, é bem mais bonito.

Não posso reclamar da paparicação e estou adorando. Por enquanto, sou visita e bem que estou aproveitando. Da minha lista de desejos gastronômicos, já comi bobó de camarão, pernil assado, carne seca acebolada, feijão preto com muito paio, caldinho de feijão sobre o purê de batatas cheinho de manteiga, pargo na crosta de sal grosso, inhame… e agora é o cheiro do lombinho que invade o ambiente. Vou precisar malhar muito em Madri!

Mas juro que não passo o dia só comendo. Estou conseguindo resolver algumas pendências, como consultas médicas e renovação da carteira de habilitação. A prova teórica, faço na segunda-feira. Na verdade, até que os dias tem sido bastante produtivos.

E sim, já fui ao salão duas vezes! Acho que faço a tal da escova inteligente na semana que vem.

Meu irmão me levou a dois lugares que gostei, o Espelunca Chic e o Atlântico. O primeiro, típico buteco* carioca, com comidinhas gostosas e decoração bem cuidada. O segundo, um lounge charmoso, de frente para a praia.

Ontem encontraria alguns amigos, mas não sei que raio aconteceu, que quase todos tiveram problemas, isola! Foi um pouco desanimador porque tinha a expectativa de vê-los, e não é de todo fácil organizar o quebra-cabeças que é minha agenda no Brasil. Mas às vezes acontece, vou tentar encontrá-los depois. Finalmente, consegui encontrar com uma amiga de infância, que veio de Brasília. Enfim, no fim das contas, resolvi relaxar e aproveitar a noite, que foi boa. Hoje tem um jantar na casa de um amigo que conheci da primeira vez que fiz o Caminho de Santiago, acho que será divertido.

E por enquanto, that´s all folks!

 

 

* O correto é boteco, mas no Rio, sinto muito, é buteco mesmo!

 

37 – Tentei, mas não deu. Santiago vai atrasar!

Eu juro que tentei, mas não dei conta de escrever todo o último Caminho antes da viagem para o Brasil. Amanhã embarco para minha querida cidade maravilhosa!

 

Explico, mas não justifico, cheguei no sábado e mal saí do aeroporto, caí de pára-quedas em uma feijoada. Confesso que um pouco confusa, mas valeu por encontrar os amigos. No domingo, consegui descansar un ratito, mas não fui capaz de adiantar nada. Na segunda, Reina Sofía e ensaio às escondidas aqui em casa; na terça, coral; na quarta, aniversário em um bar onde cantamos; na quinta, compras; na sexta, show ruim e debandada do segundo show melhor na porta do Pub; no sábado, maison blanche, que um dia explico o que é. Domingo, me recusei a por o nariz na rua! Tratei de fazer o faxinão e lavar a roupa acumulada. Um programão, né?

 

Falta fazer a mala e amanhã o vôo sai às 7:15 hs da madrugada! Simplesmente, não suporto vôo com escala, mas paciência, vou via Paris. Luiz só pode ir no dia 12 e voltaremos juntos em 22 de junho. Temos um amigo que ficará aqui com o Jack. Caramba, vou sentir a maior falta do meu gato!

 

Nos intervalos, escrevi. Hoje termino de organizar a casa para que sobreviva três semanas sem arrumação, afinal de contas, a pobrezinha será ocupada por três machos, sendo um felino.

 

Estou ansiosa. Procurei não pensar muito nisso nos últimos tempos, o que não foi difícil pela intensidade da programação. Mas agora que está pertinho, a cabeça já foi.

 

Desde que saímos do Brasil, é a primeira vez que estarei junto com Luiz por aquelas bandas e a agenda está repleta de família, amigos, comidinhas e bebidinhas. Tem amigos de escola, amigos de Madri, amigos do Caminho, amigos do Rio, amigos de São Paulo, amigos do passado e do presente. Um milhão de amigos que estou com saudades! Um dos finais de semana iremos para Sampa, onde a “diretoria” já está organizando um festão que promete. E no finalzinho, o aniversário da minha mãe, que farei o possível em mobilizar outro festão, dessa vez no Rio e com a família. Resumindo, até se for ruim tem que ser bom! Mas que vai ser corrido, vai. Será que emagreço?

 

Duvido. Na minha lista de desejos está, coxinha com catupiry, carne seca desfiada com cebola, lingüicinha defumada, pernil assado, escondidinho de qualquer coisa, tapioca, cuscuz de côco, carne com gosto de verdade, feijão pretíssimo sem economia de paio, não ter que cozinhar nada disso, sonho de valsa, bis… e bis de tudo! Eu adoro ser paparicada e uma vez por ano eu sou e muito! Virar visita em casa tem lá suas vantagens.

 

Não creio que aguentarei passar essas semanas sem escrever, e é muito provável que me apodere do computador dos meus pais de vez em quando.

 

Preciso renovar minha carteira de habilitação, vai rolar provinha e tudo, que obviamente não consegui estudar, mas vou tentar fazer isso lá.

 

E o fundamental, em breve me interno em um cabelereiro para sofrer absolutamente todas as torturas deliciosas que tenho direito!

 

Vou escutar que 18 graus é frio pra burro, vou ouvir sotaques diferentes e entender todos porque é português mesmo, verei gente colorida nas ruas e saberei que são da mesma raça, talvez dirija só para lembrar, vou tomar uma garrafa de café à tarde batendo papo, vou reclamar da violência e do presidente, e se sobrar um tempinho, vou não fazer nada olhando o mar.

 

Até breve! Fui!

 

Pode ir armando o coreto e preparando aquele feijão preto/ Eu tô voltando/ Põe meia dúzia de brahma prá gelar, muda a roupa de cama/ Eu tô voltando/… Dá uma geral, faz um bom defumador, enche a casa de flor/ Que eu tô voltando/ Pega uma praia, aproveita, tá calor, vai pegando uma cor/ Que eu tô voltando/… Quero lá lá lá iá, lá lá lá lá lá iá, porque eu tô voltando…

 

36 – Burgos, León, suas catedrais e a volta a Ponferrada

Quarta-feira, 14 de maio, acordei meio borocochô. A curiosidade de chegar a León me animava, mas saber que não caminharia nesse dia, além de passar horas dentro de algum transporte, me deixava claustrofóbica. E o próximo dia também não caminharia. Cassilda, dois dias sem por o pé na estrada. Uma sensação desagradável de estar perdendo tempo.

 

Tentei manter a cabeça fria. Pensei que podia ser uma oportunidade para descansar os pés. Administrar a frustração também é parte do Caminho. Faltava pouco para entrarmos no jogo de verdade. Paciência.

 

Depois nem estávamos mesmo perdendo tempo, conheceríamos novas cidades e não era ruim. Por que só podia aproveitar caminhando? Minha capacidade de pensar era absolutamente a mesma. Até podia estar mais focada nas minhas questões, pois não precisava estar tão atenta aos próximos passos. Talvez fosse isso que incomodasse. Não sei, mas sentia muita falta da rotina do Caminho e, admito, das vacas, da lama, de me preocupar apenas com questões fisiológicas.

 

Não tinha jeito, precisava continuar. Tratei de por uma cara melhorzinha e encarar a próxima etapa.

 

A teórica rodoviária não passava de uma cabine envidraçada, com uma tabela de horários dos ônibus. A passagem era comprada diretamente com o condutor. A medida que o número de pessoas foi aumentando, em sua maioria peregrinos, ficamos com medo de não ter lugar para a gente. Rapidamente nos transformamos em uma equipe sem nem precisar combinar. Voei na frente da fila para garantir os lugares e meu amigo se encarregou de guardar as mochilas no maleiro.

 

Nossa viagem até Burgos levou menos de duas horas, ou pelo menos é a ordem de grandeza que tenho na cabeça. Não levei relógio, checava às vezes pelo celular ou perguntava ao meu amigo. Em Burgos havia trem para León, e eu havia checado os horários antes de sair de Madri, ou seja, sabia quanto tempo de folga tínhamos. De maneira que perguntamos se a estação ferroviária era longe, não era, portanto teríamos cerca de uma hora e meia para conhecer o centro da cidade.

 

 

Fomos direto para a catedral, o grande orgulho de Burgos. Na Espanha existe um tipo de competição entre qual a catedral mais bonita: a de Burgos, a de León ou a de Santiago. Tínhamos a chance de fazer nossa própria escolha.

 

 

O centro de Burgos é bem bonitinho e a catedral é realmente maravilhosa. Clara, uma iluminação natural e agradável. Às vezes, as igrejas parecem muito sóbrias, certamente é intencional, mas essa tem um astral bom. Pela parte de dentro, talvez seja minha favorita, mas do lado de fora, na minha opinião, Santiago continua imbatível.

 

 

 

De lá seguimos para a estação ferroviária. O trem não tardou a chegar a León. Nos informamos se o centro da cidade era longe e não era. Portanto, como bons peregrinos, fomos caminhando. Seguimos reto por uma grande avenida, com prédios mais modernos, o que me fez pensar que ficar em León poderia ser uma roubada. Mas logo ao chegar no centro da cidade, me encantei, tudo muda completamente.

 

Minha primeira preocupação ao chegar em qualquer cidade é onde dormir. Fico totalmente “a woman in a mission”, só relaxo depois. Meu amigo apontou um lugar que parecia charmoso e fui direto para lá. Um hotel pequenininho, mas com muita personalidade e umas paredes de tijolo antigo bastante aconchegantes. O preço era razoável e nem quis procurar outro. Não tenho muito saco para ficar comparando, se o lugar é bom, prefiro não correr o risco de perdê-lo. Aterrizamos as mochilas e fomos buscar o que fazer.

 

Decidi fazer a Credencial Peregrina. Achei que poderia ajudar a entrar no clima do Caminho. Depois, meu amigo tinha que carimbar a sua mesmo por onde passasse, por que não acompanhá-lo? Perguntamos na recepção do hotel onde fazê-la e a mocinha nos indicou o albergue mais próximo em um mapa da cidade.

 

Olho mapas por cima e tenho boa noção de direção, sempre chego. Meu amigo era especialista em mapas, parecia o Luiz. Então, deixei essa função com ele. Tudo que precisávamos localizar que não lembrava ou não conhecia, ele que cuidava.

 

Não demoramos a chegar em uma praça linda, onde ficava o albergue. Esse é curioso, pois é colado a um hotel com jeito de sofisticado, também administrado pelas mesmas freiras. O albergue parecia grande e tinha uma boa energia. Esperamos um grupo de alemãs se instalarem, tive que ajudar na comunicação. Estava na dúvida se o responsável me faria a credencial porque eu não ficaria no albergue, às vezes eles implicam um pouco com isso. Não foi o caso, na verdade, ele foi até bem simpático, talvez pela ajuda que o dei na tradução com as alemãs, mas acho que não. Parecia gente boa mesmo.

 

 

A Credencial é um pedaço de papel, mas é também um símbolo, uma identidade. Fiquei satisfeita ao sair de lá com ela. Pensei que não importava tanto a instituição por trás, mas sim o respeito em relação às pessoas que repetem esse ritual com tantas intenções e motivos. Eu devia fazer por merecer o mesmo respeito e, de coração aberto, me dispus a isso.

 

 

Talvez ali tenha recomeçado meu Caminho, difícil dizer. É complicado dar início e fim a um ciclo tão abstrato. É possível que isso nem importe, às vezes, basta que a gente decida que é um ponto de corte, de recomeço.

 

Com a Credencial na mão e tranquila com hotel, fomos finalmente procurar algum local para comer e, em seguida, conhecer a famosa catedral por dentro. Assim como a de Burgos, a Catedral de León é imponente e impressionante. Não saberia eleger qual me agradou mais, talvez a de León por fora e a de Burgos por dentro, sei lá, um empate técnico. Mas em primeiríssimo lugar, mantive minha opção pela Catedral de Santiago de Compostela.

 

Como de costume, marquei com meu amigo um horário para o jantar e nos dividimos em função do interesse de cada um. Não resisti à curiosidade e fui checar minha internet em um locutório, me prometendo não responder ninguém.

 

Foi engraçado porque havia uma mensagem de um amigo que conheci no Caminho da primeira vez que o fiz. Mantivemos o contato e a amizade, e ele está escrevendo sobre sua própria experiência. Por absoluta coincidência, ele estava no capítulo onde me conhecia em Villafranca del Bierzo, cidade onde estaria em dois dias. Não aguentei, tive que respondê-lo. Ele sabia que estaria no Caminho novamente e deve ter se surpreendido com a resposta. Aproveitei para mandar uma mensagem para Luiz e para meus pais. O resto, nem abri para não ficar curiosa, só li os títulos para ver se algo parecia urgente e limpei a caixa.

 

Fiquei zanzando pela cidade, que me pareceu bem simpática, mas estava meio melancólica.

 

No dia seguinte, saíriamos de León em horários diferentes, meu amigo pegaria um trem às sete da matina para conhecer Astorga e de lá seguiria de trem mesmo até Ponferrada. Eu não estava com saco de acordar de madrugada para pegar um trem, ainda mais em um dia que sabia não ser necessário caminhar. Resolvi pegar o trem das 14:00hs e ir direto para Ponferrada, lá nos encontraríamos novamente.

 

E assim foi, meu amigo foi mais cedo para Astorga. Levantei com bastante calma, tomei café no último horário e fiquei fazendo hora para a diária encerrar. Ao meio dia, deixei o hotel já com minha mochila e a capa do Corcunda de Notre Dame, chuviscava.

 

Ainda tinha tempo antes de ir para ferroviária e aproveitei para conhecer o Parador da cidade, outro antigo hospital de peregrinos. Nem sabia que León também tinha um, mas foi bom economizar um pouco, já havia chutado o balde antes e gostei do hotel em que dormi. De qualquer forma, entrei por curiosidade para conhecer.

 

 

O Parador fica em frente a uma praça interessante, com fontes que brotam no nível do chão. Puxei papo com duas ciclistas espanholas, peregrinas também, e trocamos câmeras para registrar fotos.

 

 

 

De lá, fui pegar meu trem. Ainda esperei um pouco na estação. Aproveitei para escrever em guardanapos alguns dos principais momentos da viagem, por um lado, para não esquecê-los, mas a verdade é que estava louca para escrever. Sentia muita falta do monitor do computador, meu analista particular. Sentia falta do Luiz, do meu gato me acordando, do apartamento confortável, de cantar no coral. Não passava por nenhuma privação horrorosa, mesmo assim, sentia falta de tanta coisa. Minha família no Brasil, veria em breve, mas essa era outra viagem e achei melhor não pensar nisso naquele momento.

 

Foi emocionante chegar a Ponferrada, lembrava de quase tudo, de coisas que não sabia que lembrava. Dali por diante, haveria rostos que ainda estavam lá, paisagens que ainda estavam lá, vacas que ainda estavam lá. E assim mesmo, tudo tão diferente. Mas isso só descobri depois.

 

Reencontrei meu amigo e foi bom revê-lo. Posso viajar sozinha, mas com companhia é melhor. Estava preocupada se ele estaria aproveitando. De certa forma, é fácil para eu voltar, mas para ele, despencar do Brasil não é exatamente trivial. Aliás, esse para mim foi um sentimento estranho, não sou altruísta, ele é independente, por que estava preocupada em cuidar da situação? Não sou eu a que não cuida de ninguém? Sai desse corpo! Mas confesso que experimentar uma dose de generosidade, mesmo que bem discretamente, foi muito bom e me surpreendi como me deixava satisfeita saber que ele curtia a viagem.

 

Consegui visitar o castelo dos Templários. Da última vez, cheguei em um dia que estava fechado, só o conhecia por fora. Achei interessante, era bom sentir a energia de tanta história e acreditar que fazia parte desse grupo de loucos que despenca mundo afora ao longo dos anos e converte Santiago em um objetivo ou representa seu objetivo com Santiago.

 

Ainda sou meio mimada em momentos de frustração, mas me tornei muito mais resistente e tolerante a dor. Posso conviver e me embrenhar em pensamentos e filosofias tão díspares ao que acredito. Eu gosto de passear onde não era para mim. Hoje o mal me afeta muito menos, é mais fácil me dispersar, deixar que ele passe através e se vá. Coisas que venho aprendendo com a idade e, certamente, também com o Caminho.

 

Muito bem, como meu amigo chegou mais cedo na cidade, já havia visitado o castelo e, enquanto eu fazia isso, ele foi com nossas credenciais carimbar no albergue. Sinalizei para ele onde era e entrei esbaforida no castelo que fecharia em uma hora. Não era possível que pela segunda vez na cidade, não fosse conhecer seu principal ponto de interesse! Na pressa, esquecemos de combinar um horário para nos encontrar e nem era necessário tanta pressa, uma hora sobrava tempo para conhecer toda a estrutura.

 

 

 

Mas enfim, também não me preocupou. Sabia que dali por diante, combinando ou não, sempre nos encontraríamos, é assim que funciona. Os lugares são pequenos, os horários parecidos e a afinidade maior.

 

Do castelo, fui conhecer a igreja por dentro, que também se encontrava fechada na primeira vez que estive na cidade. Queria um tempo sozinha e sossegada. O interior era simples e bonito, sóbrio como de costume, mas era o que precisava. Pensei que para uma ateísta, o que visito de igreja não é brincadeira! O fato é que o interior de igrejas menores me confortam, me lembra a infância quando estudei em colégio católico. Os ensinamentos podiam ser baboseira, mas me sentia segura quando estava sozinha dentro daquele espaço.

 

Não me sentia feliz nem satisfeita, estava era bem perdida em uma encruzilhada de tempo e de dúvidas, buscando sinais para decisões que deveriam ser só minhas. Sozinha e longe de casa não precisava fingir nada nem fazer boa cara. Talvez não quisesse decidir, apenas desabafar e desabar sossegada. Chorar sozinha pode ser terapêutico e ali só cabiam meus fantasmas.

 

Não tenho idéia de quanto tempo fiquei, mas fui surpreendida por uma voz que cantava ao entrar pela porta da igreja, era o padre. Pensei, putz, cassilda, vai começar uma missa! Como é que me livro dessa? Mas na sequência, entrou um grupo de crianças e umas duas mães, estavam ensaiando para a primeira comunhão.

 

A primeira comunhão na Espanha é um evento mega importante! Tem época do ano, roupa própria, envolve toda a família, enfim, uma mobilização total. E para mim, aquele momento de bastidores foi totalmente inusitado, achei que podia ser interessante.

 

Assim que as crianças passaram em fila dupla, com aquela cara de fazer algo de uma responsabilidade muito grande, fui discretamente para o fundo da igreja, para não deixá-los sem graça e também facilitar uma possível debandada.

 

O início foi engraçado, até bonitinho, aqueles miúdos por volta de uns oito anos, acredito, fazendo o melhor possível a sua parte do ritual. O padre parecia paciente e as duas supostas mães ou professoras, indo de um lado para o outro, como abelhas atarefadas. Sinceramente, estava me divertindo.

 

Até que veio a hora de admitir seus pecados. Fiquei pensando que enormes pecados aquela molecada deveria ter. Não fez o dever de casa, beliscou o irmão, achou que o pai era chato porque desligou a televisão… Mas que mania de incutir culpa na cabeça das pessoas desde tão cedo! Na hora que os pobres tiveram que bater no peito e repetir, mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa, achei que era hora de puxar meu time. Chega de culpa, credo!

 

 

No hotel, encontrei meu amigo e fomos, claro, para mais um farto jantar em um restaurante italiano. E o que mais pode acompanhar um bom carboidrato? Vinho é óbvio!

 

Nosso planejamento era o seguinte, acordaríamos e seguiríamos a pé até Villafranca del Bierzo. Em Villafranca, teríamos que dar um jeito de chegar até Triacastela e dali serguir caminhando até Santiago. O motivo era o seguinte, precisávamos caminhar diretamente depois de Sarria, 100 km antes de Santiago. Mas ainda tínhamos dois dias de sobra, por isso optei por encaixar Villafranca, por ser muito bonitinha, e Triacastela, por ser a cidade anterior a Sarria, ou seja, chegaríamos em Sarria já caminhando. Além do mais, da primeira vez que fiz o Caminho, chegamos em Triacastela muito tarde e mal conheci a cidade.

 

O e-mail que recebi do meu amigo em León, falando por coincidência sobre Villafranca, só reforçou que deveria ser uma boa opção. Nós tínhamos um pouco de dúvida como chegar a Triacastela, mas um problema de cada vez.

 

Fui dormir mais animada, sabia que o dia seguinte seria de boa caminhada. Conhecia o trecho e onde deveria parar.

 

35 – Azofra a Santo Domingo de la Calzada, uma caminhada tranquila entre vinhedos e mudança de planos

 

Terça-feira, 13 de maio, acordei tranquila. Não era tão tarde assim, mas despertar-se por volta das 8:00hs em um hotel de charme é um total luxo durante o Caminho. Na verdade, ainda que estivesse bem, me sentia mais fazendo turismo que trilhando uma rota com determinado objetivo.

 

A mochila ainda me incomodava. Havia colocado parte de um compeed enorme destinado aos calcanhares para proteger os ombros, mas ao invés disso, me provocou uma assadura de igual tamanho. Não sei se foi algum tipo de reação alérgica, pois esse é um compeed de composição diferente dos demais que estou acostumada. Inclusive, me lembrava bastante quando machuquei os calcanhares nos Pirineus e foi utilizando o mesmo curativo. No dia anterior, havia me livrado dele e dormi com os ombros empapados de vaselina. Funcionou, de manhã estava bem melhor. Foi quando também resolvi examinar a mochila com mais cuidado e percebi que a regulagem não estava adequada. Estranhei porque só eu utilizava a tal mochila, mas me lembrei em seguida que havia emprestado a dita cuja e não conferi a regulagem na volta. Erro bobo, que me custou assaduras e desconforto nos primeiros dias. Mas tudo bem, foi corrigido e a partir disso, a mochila não me incomodou mais. Ela é pequena e não pesava mais do que 5 kg, excelente para o Caminho, não deve pesar mais de 10% do seu peso e faz toda a diferença do mundo para seus joelhos, costas e ombros.

 

Encontrei meu amigo para o café e partimos para nosso próximo destino, Santo Domingo de la Calzada. Cobrimos a distância de 15 km em mais ou menos umas três horas. A caminhada é razoavelmente fácil, mais uma vez nos livramos da chuva e andamos por entre os vinhedos de la Rioja.

 

 

Não pegamos tanto barro dessa vez. O único trecho que parecia realmente de lama, chegamos justo em tempo de um carro passar mudando a placa da sinalização para os peregrinos irem pela estrada de terra mais seca. Muita sorte, que nos acompanhou por todo Caminho. Meu amigo brincava dizendo que era coisa da sua falecida avó espanhola, e eu pensava, cada um com seu fantasma.

 

 

A temperatura para caminhar era boa, um pouco frio, creio que por volta dos 15 graus ou menos. Acontece que o corpo aquece rápido quando andamos e nosso ritmo era puxado. Mesmo que saísse com frio, menos de cinco minutos depois já estava suando. O engraçado é que a maioria dos europeus levava casacos, meu amigo e eu, os nórdicos, sempre estávamos de camiseta curta.

 

Pois mesmo dando tudo certo, continuava a me sentir incômoda. Fui um pouco mais calada nesse trecho, pensando que talvez fosse bom rever nosso planejamento. Teríamos em uns dois dias uma subida razoável, pela região de Rabanal e El Acebo. Meu amigo ganhou três bolhas, uma embaixo de cada unha do dedão do pé e outra pela lateral do calcanhar. Ainda que ele não desse um pio de reclamação e seguisse em passos rápidos sem demonstrar grande esforço, sabia que elas estavam lá e também sabia que ele não havia se preparado tanto fisicamente.

 

Honestamente, não tinha muita certeza do que estava errado, mas meu instinto dizia que por ali não era. E se tem uma coisa que aprendi a escutar e ler pelo Caminho, são os sinais. Não quero nem saber de onde eles aparecem, não vou entrar nessa discussão, mas se eles aparecem, eu sigo.

 

 

Mal entrava a tarde, avistamos Santo Domingo no horizonte. Havíamos abusado na hospedagem da noite anterior, mas tinha muita curiosidade em ficar no Parador, um antigo hospital de peregrinos que ouvi dizer ser mais antigo que o de Santiago. Deixei meu amigo à vontade para escolher onde dormir, mas ri como criança que faz arte dizendo que ia ficar no tal do Parador.

 

 

Entramos em uma cidade muito bonitinha e totalmente enfeitada. Descobrimos, logo depois, que chegamos por coincidência na semana de comemorações do Santo Domingo. Havia uma série de eventos planejados, isso incluía uma corrida de touros que francamente não fazia a menor questão em participar. Passamos ao lado do corredor cercado por tábuas, onde soltaríam os pobres animais poucas horas mais tarde. Ainda bem que chegamos cedo.

 

 

Enfim, mas o resto estava bastante animado, com bandas de música, show de fantoches e um palco improvisado para apresentações bem no centro da cidade.

 

 

No caminho checamos o preço de um hotel para o meu amigo, mas ele queria comparar com outras opções. Descobrimos que havia não apenas um, mas dois paradores. E que o segundo mais famoso deveria ter um preço mais razoável. Dito isso, ele me deixou em frente ao principal Parador e seguiu até o próximo. Combinamos de nos encontrar em uma hora.

 

Foi uma pena ele não ter ficado comigo até ouvir a tarifa, porque ao notar que eu era peregrina, a recepcionista me deu um excelente desconto e incluiu o café da manhã em minha diária. Isso reduziu o preço total em quase metade do cobrado aos clientes normais. Achei bacana eles oferecerem esse desconto aos peregrinos, principalmente porque o local nasceu com essa finalidade.

 

 

Não foi um problema. Em seguida, quando nos encontramos para almoçar, descobri que meu amigo se instalou no seguinte Parador e que também era excelente. Comemos mais do que bem e bem mais do que precisávamos. Ocorre que nosso caminho também não deixou de ser etílico e gastronômico. Claro que bateu uma lombeira daquelas e cada um foi para seu canto dar uma morgada. Ficamos de nos ver mais tarde, para o jantar.

 

Essa era uma das coisas que achava legal do meu amigo, era independente. Fazíamos o Caminho juntos, mas cada um tinha interesses específicos. Então, nossas refeições eram sempre juntas, mas o resto do dia, cada qual escolhia como utilizar. Caso nossos planos coincidissem, ótimo, caso contrário, um ia dormir, o outro ia passear e assim nos organizávamos. Quinze dias seguidos de convivência intensa podem aprofundar uma amizade ou destruí-la de vez. Pelo menos da minha parte, posso afirmar que sua companhia não me pesou em absoluto.

 

Nesse dia, descansei um pouco depois da comilança, mas não sou de dormir à tarde. Fui passear pela cidade. Aproveitei para descobrir como chegar a León, nossa próxima parada. Não caminharíamos, a opção era pegar um ônibus até Burgos e um trem até León, onde queria dormir, tinha muita curiosidade em conhecer a cidade. O plano A, era partir de León a Astorga de trem, e a partir daí, caminhar três dias até Ponferrada. Era o tal trecho onde havia uma subida que me preocupava um pouco. Além do mais, logo após Ponferrada, pegaríamos outro trem e picaríamos o trajeto outra vez. Isso não estava me agradando em nada.

 

Sería feriado na quinta-feira e havia a possibilidade do Luiz vir nos encontrar e caminhar uns dois dias conosco. Isso também pesava nos planos porque precisava de um trecho razoavelmente acessível em carro ou trem. Acontece que cada vez menos parecia que Luiz conseguiría se desvinciliar do trabalho e resolvi tirar essa variável da equação, coisa que ele já me havia pedido.

 

 

Chuviscava em Santo Domingo e fui caminhar com a capa de chuva do corcunda de Notre Dame. A rua não estava muito cheia, era hora da siesta e ainda por cima chovendo. Passei por uma calçada interessante, com árvores entrelaçadas. Fui procurando gente com cara de peregrino na rua, até que vi outro encapotado de papete vindo em minha direção, com o olhar parecido ao meu. Sorri e cumprimentei, no que ele correspondeu e perguntou o óbvio, peregrina?

 

 

Conversamos rapidamente, era outro veterano, mas que fazia o Caminho completo. Trocamos meia dúzia de amenidades, descobri que ele também havia dormido em Azofra, no albergue, aparentemente Nájera lotou cedo. Para mim e para ele, o Caminho parecia mais cheio que o habitual e lotado de alemães. Nos despedimos sabendo que já não nos encontraríamos, ele seguiría a pé e eu pipocaria até León.

 

De qualquer maneira, a conversa foi providencial, era o que faltava para a decisão de mudar o roteiro de uma vez. Troquei uma idéia com Luiz pelo celular e disse que conversaría com meu amigo para mudarmos os planos. Achei que deveríamos fazer os 100 km finais, desde Sarria, direto caminhando até Santiago. Era o correto para pedir a Compostelana, importante para meu amigo, e mesmo que eu repetisse alguns trechos, nunca é a mesma coisa. Preferia repetí-los e entrar no clima do Caminho, do que continuar na nossa programação quase turística.

 

Logo depois, quando encontrei meu amigo, percebi que ele estava exatamente com a mesma sensação e não demorou três segundos para aceitar a mudança de planos. Ainda teríamos uns dois dias de pipoca para acertar o novo roteiro, era um pouco quebra-cabeças de onde parar e dormir, mas mesmo assim, caminharíamos bem mais do que o planejamento inicial (140 Km) e nos acertaríamos depois de Sarria. Foi uma boa decisão, me senti mais leve, o que me levou a crer que era o caminho correto. O fato dele pensar da mesma forma, só reforçou esse sentimento.

 

Dormi bem, sem grandes preocupações com curativos. Não caminharíamos no dia seguinte e aproveitaría para descansar os músculos. Sabia que em León havia um albergue grande e comecei a ter vontade de fazer minha Credencial Peregrina. Essa Credencial é como um passaporte, que você vai carimbando nas cidades por onde passa e dorme. No final, ela é apresentada para provar que você caminhou, pelo menos, os últimos 100 km a pé ou os últimos 200 km de bicicleta ou a cavalo.

 

Da primeira vez que fiz o Caminho, levei uma credencial desde Madri. Na segunda e na terceira, achei que não era necessário. Meu amigo levou a sua, queria fazer tudo que tinha direito. Até aquele momento, não havia me importado tanto, mas ali foi me dando vontade. Tudo bem, em León decidiría isso, uma coisa de cada vez. 

 

34 – Puente de La Reina, Estella, Logroño, Nájera, Azofra… ufa!

Segunda-feira, 12 de maio, acordamos cedo. Com a mochila já organizada, às 7:45 hs, nos encontramos para o café da manhã. Esse se tornou mais ou menos nosso horário padrão da viagem.

 

De Puente de La Reina, seguimos a pé até Estella. Não é um trecho exatamente difícil, boa parte é plana e as inclinações não são radicais. Honestamente, às vezes é até um pouco monótono. Mas bem antes de começar a me entediar, uma quantidade enorme de barro grudento outra vez nos lembrou que o Caminho não é para turistas. Ainda que eu xingasse de vez em quando, hoje me lembro com carinho dessa etapa e a verdade é que no fundo me diverti um bocado com aquele lamaçal.

 

 

Passamos por pueblos bonitinhos, mas não havia muita estrutura para paradas. Após caminhar pouco mais de 22 km, chegamos com botas enlameadas em Estella. Duas pessoas haviam me falado mal da cidade, opinião da qual não compartilhei. Achei a cidade simpática.

 

 

 

Entretanto, não tínhamos muito tempo para gastar ali. Pretendíamos ir de taxi até Nájera. Isso foi antes de descobrir que a distância de carro era praticamente o dobro da percorrida a pé, o que deixaria o preço do taxi entre 80 e 100 euros. O engraçado é que quem decidiu que o preço era muito alto foi o próprio taxista que nos indicava a rodoviária logo em frente. Realmente, era caro e concordamos em buscar outra alternativa.

 

Descobrimos que havia um ônibus até Logroño saindo em mais ou menos uma hora e meia. De lá, poderíamos tomar outro ônibus até Nájera. O preço era bastante razoável, o que nos animou. Parecia até melhor, pois teríamos um tempinho para conhecer a cidade.

 

Fomos para praça principal, onde me plantei em um bar e, com a falta de pudor dos veteranos, me apoderei de uma segunda cadeira para os pés. Fiquei tomando um vinhozinho geladinho, enquanto ligava para Luiz e meu amigo passeava um pouco pelo centro. Quando me encontrou, ficou rindo da minha falta de cerimônia e tirou uma foto.

 

 

Muito bem, finalmente pegamos o ônibus, que levou pouco menos de duas horas para chegar a Logroño. Aproveitamos o caminho para descançar as pernas, mas não quis tirar os sapatos em respeito aos outros passageiros. Já não devia estar muito cheirosa depois da caminhada.

 

Ao chegar a Logroño, outra vez pretendíamos pegar um taxi. Mas justo ao saltar, descobrimos que o outro ônibus para Nájera saíria em dois minutos. Corremos meio mancantes, porque a musculatura havia esfriado, e conseguimos embarcar no tal ônibus com ele quase saindo da estação.

 

Baratíssimo também e ficamos nos vangloriando da nossa barganha do dia!

 

Exaustos, chegamos a Nájera à tardinha, quase início de noite. E eu, babaca, esqueci de uma das principais lições da viagem: quem chega tarde na cidade, tem grandes chances de não encontrar lugar para dormir. Claro, não deu outra! Rodamos entre hotéis e hostáis e nada. Encontramos um único quarto que teríamos que dividir e ainda por cima, compartilhar o banheiro com outros hóspedes. E nem era tão barato assim!

 

Tentando um pouco de boa vontade, subi para ver o quarto, que não era mau dadas as circunstâncias. Acontece, que àquela altura, o banheiro já estava cheio de roupa lavada das outras pessoas e até tomar um banho seria complicado. Aí também já era demais!

 

Agradeci muito ao dono do hostal, mas perguntei se não haveria nenhuma outra possibilidade na cidade. Ele nos indicou um outro hotel, que talvez fosse possível, por ser mais caro. Não falei, mas pensei, é esse mesmo que eu quero!

 

Resumo da ópera, o tal do hotel caro estava completo, não tinha mais nadinha! Nem para dividir! Aproveitando a cara de desespero e o aroma de quem já havia se esforçado o suficiente ao longo do dia, insisti se ela não poderia ajudar a encontrar algum lugar.

 

A recepcionista nos falou de um hotel de charme, que ficava na próxima cidade, Azofra, a uns 6 ou 7 km dali. E o principal, não nos tirava da rota. Nos ajudou a conseguir o telefone de lá, para  não perdermos a viagem. Telefonamos e reservamos dois quartos. A 120 euros a diária por cabeça, não havia problema de lotação. Isso para o Caminho é um preço exorbitante, mas honestamente, a essa altura e desesperada por um banho, eu nem queria saber.

 

Nos olhamos, na dúvida se íamos caminhando ou não, o que não foi um enorme dilema. Por aquele dia bastava. Fomos atrás de um taxi, coisa que não existia no único ponto do centro da cidade. Nesses casos, dou uma dica, é comum eles colarem cartões com telefone no próprio ponto, o que felizmente havia. Liguei para uns dois números até que alguém me atendeu e disse que passaría para nos pegar em dez minutos. Combinei o preço, bem razoável, não foi explorador.

 

Em seguida, chega um rapazinho com piercings em todos os lugares visíveis, com sua namorada, igualmente furada, com penteado e maquiagem de egípicia, no banco do carona. Aparentemente, os dez minutos que me pediu foi para buscar a namorada para passear com ele em Azofra. Detalhe, o carro era um jaguar, informação que obviamente não reparei, mas meu amigo sim. Um super carro decorado com adesivos cafonérrimos. Enfim, a cena era totalmente surrealista e entramos no taxi gótico, que devia ser do pai dele, com aquela cara de meio desconfiados.

 

Queimei minha língua mais uma vez, o rapaz era educadíssimo, dirigia direitinho e nos levou sem o menor problema. Cobrou o combinado e sorriu de orelha a orelha com uma gorjeta de um euro arredondado. Saltou do taxi e foi nos ajudar com as mochilas, gentileza que não é de todo comum.

 

O hotel era realmente muito charmoso. Na minha opinião, valeu totalmente a pena. Só senti não estar com Luiz porque havia um toque romântico, isso só me deixou com uma tremenda dor de cotovelo. Talvez também pelo cansaço, foi a primeira vez que me deu vontade de voltar para casa.

 

Passeamos pela cidade, o que deve ter levado uns oito minutos, no máximo. Não tinha nada e resolvemos comer no hotel mesmo. Comida boa e vinho melhor ainda! Estávamos em plena Rioja, como não aproveitar?

 

O fato de ir para Azofra, nos adiantou pouco mais de uma hora de caminhada no dia seguinte. Resolvemos acordar mais tarde e tomar o café da manhã com  calma. Para mim, todo sono a mais é bem vindo e adorei a suposta folguinha da próxima etapa.

 

Em seguida, subi para o quarto e tentei me lembrar de um dia gigantesco. Era difícil pensar quantos quilômetros e cidades havíamos percorrido, com todos os meios de locomoção possíveis. Aquela manhã parecia estar distante e eu me sentia outra pessoa, fora do corpo.

 

Durante o Caminho, às vezes vínhamos conversando, outras prestando atenção onde pisar. No ônibus, boa parte do tempo vim viajando na maionese, pensando na vida e nas decisões que sempre precisamos tomar. Tudo me parecia diferente das outras vezes. O que mesmo estaria diferente, eu ou o Caminho?

 

A pergunta foi perdendo a importância à medida que o sono foi batendo com vontade. O dia seguinte seria mais fácil, 15 km, moleza.

 

 

 

33 – Pamplona a Puente de La Reina, o início do nosso Caminho

Chegamos em Pamplona de trem, dia 10 de maio, um sábado à tardinha, por volta de umas 18:00 horas. Como anoitece tarde nessa época, ainda tivemos umas quatro horas de luz para conhecer o centro da cidade, tempo mais que suficiente. Inicialmente, passaríamos o dia seguinte por lá mesmo, mas a verdade é que antes do jantar já comecei a ficar entediada e afim de por o pé na estrada de uma vez.

 

 

Meu amigo compartilhava dessa opinião e resolvemos adiantar os planos. No domingo, logo cedo, tomamos rumo a Puente de la Reina, 23.5 Km de caminhada. Foi a primeira prova de como responderíamos à distância.

 

Fomos bem, fizemos em um bom ritmo, andamos em velocidade muito parecida, coisa que não é tão comum no Caminho. É normal você se encontrar e desencontrar ao longo do trajeto. Mas nós fizemos sempre juntos.

 

O que a gente pegou de barro no caminho não é brincadeira! É aquele solo argiloso que gruda nos sapatos e parece que você está caminhando com um tijolo nos pés. Em determinado momento, tentamos amenizar cortando caminho por uma via paralela que subia. Bom, claro que tudo que sobe, desce. Tivemos que despencar logo adiante em um barranco de cerca de um metro e meio escorregadio. Daqueles que você olha para baixo e diz, eu é que não vou! Ao mesmo tempo, qual a outra opção? Não tem, ou desce ou desce. Descemos e nem foi tão mal como parecia.

 

 

O mais importante é que cheguei sem bolhas, sujeira faz parte.

 

Isso me fez recuperar a confiança. A dor que senti nos Pirineus, quando me saltou o couro dos calcanhares, ainda estava presente na memória e me ameaçava um pouco. Fiquei duplamente cautelosa e valeu à pena. Alguma dor muscular a gente sempre tem, mas desde que não te inviabilize continuar é considerada irrelevante. Meus pés ainda chegavam muito doloridos, passei por isso todos os dias, mas era uma dor razoável e ganhei tolerância à ela.

 

A mochila me incomodou um pouco, parecia mais pesada dessa vez, ainda que não estivesse. No princípio, achei que havia perdido um pouco a manha, só no terceiro dia percebi que ela estava era mal regulada. Erro primário de uma macaca velha. Esqueci que havia emprestado a mochila e que, certamente, a pessoa que usou mudou a regulagem. Parti do princípio que estava tudo certo e não verifiquei com a atenção necessária. Tudo bem, foi incômodo, mas não chegou a ser grave. Meus ombros ficaram um pouco assados, mas cheguei a conclusão que foi devido a um compeed diferente. O mesmo que usei nos calcanhares nos Pirineus. Isso me deu quase a certeza de haver descoberto o que me esfolou no passado, mas essa já era outra história.

 

Meu amigo parecia animado, me confessou que não teve tempo de treinar e que precisava aprender durante o caminho mesmo. Tudo bem, ele tinha boa resistência e predisposição a caminhadas. Eu também não havia treinado o suficiente, mas contava com a experiência de outras vezes.

 

Em Puente de La Reina, ficamos no hotel Jakue, que também possui uma parte dedicada a um albergue. Achei interessante eles darem as duas opções a preços correspondentes. A única coisa que me pareceu esquisita foi o fato do albergue ser no subsolo, dá uma impressão de dividirem em castas diferentes e me senti um pouco estranha ao subir para o quarto do hotel. Parecia que meus companheiros de viagem foram para o porão do navio, mas enfim, ao mesmo tempo, foi muito bom chegar em um quarto quentinho, espaçoso, e um banheiro limpo.

 

Logo na recepção, eu malandra, experiente, entendida no assunto, perguntei logo se eles tinham máquina de lavar e secar. No que a recepcionista me disse que sim e me informou que as máquinas estavam no andar de baixo. Dito isso, fiquei tranquila com o horário e combinei de lavar a roupa com meu amigo mais tarde.

 

Não deu dois minutos que entrei no quarto, olhei na janela e havia começado a chover. Escapamos por muito pouco.

 

O que a recepcionista se esqueceu de dizer é que o andar de baixo era o albergue e que as máquinas eram compartilhadas por todos, claro. Foi bem mais tarde que descobri que havia um nível inferior de hospedagem e que, apesar de haver umas quatro máquinas de lavar, só havia uma de secar, com uma fila já estabelecida.

 

Enfim, meu amigo e eu dividimos uma das máquinas de lavar e me atrapalhei toda para acertar seu funcionamento. Não era de todo óbvio, tinha um manual ali por cima, que certamente não tive saco de ler. Bom, depois de fazer a máquina finalmente funcionar, decidimos sair para jantar e conhecer a cidadezinha. Segundo um aviso na parede, levaria meia hora e um euro para lavar e mais meia e outro euro para centrifugar. Beleza, coloquei dois euros no equipamento e em uma hora nós voltávamos.

 

Achei a cidade muito bonitinha e a ponte que origina o seu nome é realmente um charme. Meu amigo ainda se divertia com o visual peregrino e o fato de andar na rua com papete e meia, aquele estilo mendigo.

 

 

Não havia grandes confraternizações, talvez fosse muito no início do caminho. Tentei não fazer comparações com as outras viagens, mas às vezes era inevitável. Além do mais, o tempo não ajudava. Também não encontramos nenhum lugar para comer que parecesse melhor do que nosso hotel.

 

Quando nos demos conta da hora, faltava muito pouco para a máquina de lavar acabar. Lembrei que no albergue as pessoas não costumam ter muita paciência com uma roupa parada dentro da máquina, e se déssemos mole, já chegaríamos com tudo do lado de fora, sabe-se lá onde. Disparamos em direção ao hotel, que não era tão pertinho assim e que a musculatura fria não ajudava tanto.

 

Nossas roupas estavam direitinho dentro da máquina, paguei com minha língua, ninguém mexeu. Por outro lado, só tinha lavado, centrifugar que é bom, nada! Só depois descobrimos que não era automático, tinha que esperar terminar a lavagem, e daí colocar outra moeda e programar tudo outra vez para centrifugar. Não tivemos paciência e achamos melhor levar as roupas pingando para cima e secar no quarto. Ou seja, teria sido bem mais fácil e seguro já ter lavado tudo à mão, na hora em que chegamos.

 

Paciência, dividimos algumas dicas de como secar a roupa mais rápido. Entre torcer dentro de uma toalha, estender em cabides e ajudar com o secador de cabelos, nesse caso disponível. O importante é que, mesmo sendo um pouco tarde, funcionou.

 

Descemos para jantar famintos e exaustos, estava escurecendo. Comida simples, mas boa. Meu amigo é diabético e dizia que o vinho era muito útil para controlar o açucar. Então, apenas por razões medicinais e porque sou uma pessoa muito solidária, o vinho passou a fazer parte da nossa rotina.

 

Cada um subiu para seu quarto e demos nosso dia por terminado. Tentei ligar para o Brasil, porque era dia das mães, mas não consegui completar a ligação interurbana. Pedi ao Luiz para ligar no meu lugar.

 

Não demorei a pegar no sono, tomei a melatonina por via das dúvidas e acredito que o vinho tenha ajudado. O dia seguinte prometia ser longo e precisava recuperar energias.

 

 

 

32 – A volta para casa

Cheguei ontem de Santiago. Estou bem e, agora vou me exibir, sem nenhuma bolhinha! Nada de nada! Os dedões estão um pouco dormentes, mas nem chegou a inchar os pés.

Tínhamos um planejamento inicial de roteiro, mas mudamos tudo desde o primeiro dia. Aos poucos vou contando com calma toda a história porque é muita informação para digerir. Mas dá para adiantar as manchetes, ao final, saímos de Pamplona e caminhamos mais de 200 km, tenho que fazer as contas depois, foram15 dias de viagem. Além das caminhadas, conseguimos usar todo meio de transporte possível para saltar alguns trechos, trem, ônibus, taxi… só faltou carroça!

Demos muita sorte com o tempo. Chuva forte mesmo só nos pegou no último dia, mas daí é até bom para ter o que contar. Além do mais, Santiago é lindo com chuva. E vamos combinar que quem vai para o Caminho preocupado em se molhar, é melhor nem começar. Barro pegamos de monte! Aprendi a andar com um tijolo nos pés.

Nunca vi o Caminho tão cheio de gente, honestamente, houve trechos que pareciam mais procissões. Algo aconteceu na Alemanha, porque diria empiricamente que uns 80% dos peregrinos eram alemães. A lotação nos fez acionar super Luiz e nas últimas cidades foi mais seguro chegar com hotel reservado ou só nos sobraria roubada.

Na volta, ao invés de optar pelo trem, acelerei e vim de avião. O que me fez cair de pára-quedas em uma feijoada com os amigos do coral. Luiz me buscou no aeroporto e fomos direto para lá. Sabia que se passasse em casa antes, dificilmente me arrancariam daqui. Pois lá fui eu, vestida de peregrina e com a papete, único calçado diferente das botas de trekking que possuía ao alcance. Foi muito gostoso rever os amigos e um feijãozinho com arroz era tudo que precisava. Assumo que trouxe uma generosa quentinha para casa, não me fiz de rogada.

Em casa, me esperava meu felino gordo, que nem fez doce. Agarrei ele de monte, sem a menor resistência. A mochila ficou ao lado da porta, intocável junto as botas, não quis nem saber. Só queria um banho e minha caminha.

Pequenas aventuras nos tiram da rotina, mas foi muito bom voltar para casa.

Viajando até 25 de maio

Queridos amigos leitores,

 

Quem acompanha o blog já sabe que viajo entre os dias 10 e 25 de maio. Estarei no Caminho de Santiago, onde nem telefone atendo, que dirá checar internet. Portanto, me desculpem, mas será impossível atualizar os posts. Os comentários, vou pedir ao Luiz para aprovar.

 

Espero também que os escritores colaboradores do buraco continuem postando no sefodeaí.com.

 

Prometo que quando chegar conto tudo. Não desapareçam!

 

Para os que vão e para os que ficam, ¡buen camino!

 

Besitos,

Bianca

 

 

 

31 – Contagem regressiva

Falta bem pouco para a próxima viagem. Amanhã chega nosso amigo do Brasil e no sábado vamos para Pamplona iniciar o caminho. A caminhada mesmo só começa na segunda-feira. Quero aproveitar para conhecer melhor Pamplona.

 

Como nada é perfeito, na segunda-feira à noite me atacou a alergia com tudo que tem direito. Não tenho tempo para curas muito naturebas, portanto parti logo para alopatia pesada. Um coquetel de descon, polaramine e busonid. Parece ter feito efeito e estou bem melhor da garganta e do nariz, em compensação, pareço um zumbi dopado. Durmo mais que meu gato!

 

O treinamento dessa semana ficou bastante comprometido, só caminhei na segunda e na terça. Mas tudo bem, a essa altura, acho que deve ser igual a vestibular, não adianta deixar para estudar na véspera.

 

Estou um pouco preocupada. Da primeira vez, o Caminho mexeu com minha cabeça, da segunda estourou meus calcanhares, espero que agora já não me cobre nenhum preço alto. Também, vai ser insistente assim lá longe, pareço masoquista. Ao mesmo tempo, como abrir mão da possibilidade de uma experiência assim, bem aqui do meu ladinho. Tenho que ir.

 

Na atual programação, não devo andar todos os dias. No total serão por volta de 140 km de caminhada, o restante de trem ou carro. Não é muito usual, mas foi uma maneira de oferecer um panorama geral do Caminho de Santiago para um amigo que só tinha 15 dias de férias. De qualquer forma, se meus pés permitirem, acredito que a gente acabe incluindo outras etapas a pé, vamos ver. Não adianta ter um planejamento extremamente rígido, porque são muitas variáveis. A gente faz um plano A, mas precisamos ser flexíveis. No dia 25 de maio, domingo, gostaríamos de estar em Santiago de Compostela. Acho que conseguiremos assistir a tal missa com o fumeiro, coisa que não pude da primeira vez. O fumeiro estava em manutenção.

 

Acredito que pegaremos chuva pelo trajeto. Não é tão ruim caminhar com chuva, só é complicado quando não conseguimos secar as roupas, principalmente as meias. Talvez leve uns 2 pares a mais por precaução. A temperatura parece que vai cooperar.

 

Tenho a experiência de veterana e, por isso mesmo, sei que assim que pisar na trilha viro caloura de novo. Meu amigo acha que vai com uma guia. Mal sabe ele que todas as vezes são diferentes e que ninguém guia ninguém. Mas isso ele descobrirá em breve e não será mau.

 

Pois lá vou eu tentar de novo! Vamos ver o que aprendo dessa vez.

 

 

 

 

30 – Quinta de la Fuente del Berro

A região onde moro agora é conhecida como Fuente del Berro, o que até então, para mim era só um nome. Há pouco tempo descobri que a fonte existe mesmo e além dela, um parque charmoso e agradável, bem no meio da cidade. E o melhor, do lado de casa.

 

 

Em 1631, o Duque de Frías vendeu a Felipe IV uma extensa propriedade rica em hortas e abundante em água, proveniente de um manancial conhecido por Fuente del Berro. Atualmente, esses jardins dos finais do século XIX e princípios do XX, foram convertidos em um parque com algumas árvores centenárias, monumentos, estátuas e fontes. 

 

 

 

Há um centro cultural, onde se oferece à comunidade aulas de ginástica, artes, história espanhola etc. Qualquer hora dessas, vou lá me inscrever em algumas das atividades. Ao seu redor, se encontram pavões passeando livremente, ainda que um pouco tímidos, pois nenhum queria sair direito nas minhas fotos.

 

 

 

Atrás desse centro há um restaurante chamado Alkalde com uma grande e e elegante terraza, que desce margeando uma escadaria. Não é exatamente barato, mas acho que vale o jantar a luz de velas, ao ar livre e com aquele barulhinho de água no fundo. Muito romântico.

 

 

 

Também tem sua parte feia e estranha, quando fica ao lado da M-30, uma autovia que passa por quase toda sua lateral. Mas prefiro acreditar que estou em um oásis, ignoro os carros, e sempre fico olhando para o lado bonito da vegetação.

 

 

Outro ponto inconveniente para mim é que, diferente do parque do Retiro, é relativamente pequeno para treinar caminhada. Em menos de uma hora é tempo mais do que suficiente para haver recorrido toda sua extensão. Paciência, nem tudo é perfeito, e, por outro lado, possui a vantagem de não ser totalmente plano e posso praticar um pouco de subidas e descidas.

 

 

Nas redondezas desse parque há algumas ruas quase privativas, só de casas. Uma graça, lembra muito algumas partes do Brooklin, em São Paulo. Depois começam a se misturar com prédios bem antigos e outros muito novos, mas sempre baixos. Tem um jeitão de cidade do interior, acho engraçado. Às vezes, as pessoas nos cumprimentam na rua ou puxam papo, como se estivéssemos em um pueblo.

 

Enfim, aos poucos vamos descobrindo a nova vizinhança e cada vez mais gosto desse pedaço. Nossa casa fica a cerca de 10 minutos caminhando do apartamento anterior e, assim mesmo, parece que mudei de país.

 

Muito bom descobrir coisas novas só de olhar em volta, praticamente no mesmo lugar.

 

 

 

29 – Feriado intenso

Semana passada, aqui foi puente. Como no Brasil, chamamos de ponte os feriados onde se emenda a quinta-feira ao final de semana. Também como no Brasil, as capitais se esvaziam, porque todo mundo quer aproveitar para viajar. Ou seja, prometia ser tranquilo para os que permanecessem em Madri.

 

Entretanto, por coincidência, boa parte dos nossos amigos do coral não viajaram e nós marcamos um churrasco na sexta-feira, aqui em casa. Feito a várias mãos, cada um trouxe alguma coisa e colaborou da sua maneira. Éramos em umas vinte e poucas pessoas, é a primeira vez que recebemos esse número de convidados na terraza. Isso não me preocupava, não era só minha responsabilidade, eu era parte da festa de um grupo.

 

E esse grupo funciona sempre! É legal encontrar tanta gente diferente, com experiências, idades e profissões diversas, mas que quando se junta, combina. Dá vontade da falar da sua vida e de escutar a dos outros, por uma questão de confiança, simplesmente por compartilhar.

 

Certo ou não, é natural termos uma expectativa em relação às outras pessoas, e humano se decepcionar com elas. Porque também é natural que essa expectativa seja em função de nossos próprios valores e maneira de pensar. Mas por alguma razão, nesse grupo tenho a sensação que estamos predispostos a gostar do que o outro fará ou dirá. Por isso, se alguém canta, cantamos junto; se alguém conta uma piada, a gente ri; se alguém conta um problema, a gente ouve. Não importa se realmente queremos cantar, rir ou ouvir e acredito ser essa generosidade contagiante que traz uma energia boa. Pelo menos para mim, tem sido um aprendizado do quanto cooperar, tentar animar ou ajudar alguém me faz bem.

 

Porque eu sou aquela que não gosta de cuidar de ninguém. Continuo não gostando, e é um alívio perceber que não preciso cuidar de ninguém, apenas fazer minha parte, ou melhor dito, uma parte. E saber que do outro lado, também há alguém que cantará comigo, vai rir das minhas besteiras e ouvir meus problemas, se eu precisar.

 

Como bem observou uma amiga nesse mesmo dia, estou mais emotiva. Pode ser a proximidade do Caminho. Não tenho expectativas específicas dessa vez, eu acho, mas sei que sempre é um encontro comigo mesma. Sei também que as coisas acontecem no momento que devem acontecer e por isso reconheço a importância de ter essa energia e amigos para lembrar que não preciso caminhar só.

 

E voltando ao churrasco, durou 12 horas! Começou às 15:00hs de sexta-feira e acabou pela madrugada de sábado. Como sempre, eu achava que devia ser no máximo umas dez da noite quando os últimos amigos se foram.

 

Acordamos no sábado à tarde acabados. Parecia que fomos atropelados por uma jamanta, coisa que a quantidade de cachacinha envelhecida do dia anterior não deve ter ajudado em nada. Falando com amigos, descobrimos que um tinha dor no pé, outro nas costas, outro no joelho… Estamos velhos! Na hora da farra, todo mundo participa, no dia seguinte quase precisamos ser hospitalizados para nos recuperar! Achei engraçado.

 

Com tudo isso, não tinha um pingo de ressaca, só estava cansada mesmo.

 

Acontece que não paramos por aí, porque no sábado à noite tinha o aniversário de uma amiga muito legal em um bar danceteria. Sinceramente, só de imaginar essa situação no início da tarde me dava preguiça. Aquela coisa que você quer fazer mas se sente meio incapaz. Pensei se deveria deixar uma ambulância de plantão na porta do bar, para nos trazer para casa na base do oxigênio.

 

Daí a noite foi chegando… e fui me animando outra vez. O lugar era ótimo, chama Larios. O serviço, sabe como é, madrileño típico, mas a casa lembra o padrão paulista, bem decorada, elegante e um pé direito altíssimo. No andar de cima, esse do pé direito alto, tocava uma banda que imagino ser cubana, excelente. No andar de baixo a danceteria. A música não é fantástica, mas é o que os espanhóis gostam de ouvir. Como estávamos em um grupo grande e animadíssimo, isso nem me importou, baixei a cigana Sandra Rosa Madalena que existe em cada um e me acabei de dançar.

 

Fomos embora outra vez de madrugada com Luiz de olhos pequenos, me chamando de imparável. Já havia me recuperado, só evitei exagerar na bebida, primeiro porque não aguentava, segundo porque precisava dar uma caminhada no domingo para não perder o ritmo.

 

No domingo, só acordei por disciplina e por uma fome do cão! Um pouco de dor muscular, o que me animou à caminhada. Quando a musculatura esquenta dói menos. Luiz não estava muito afim de me acompanhar, mas se animou quando me viu pronta, com a fantasia de peregrina.

 

Fomos conhecer um parque que fica bem perto da nossa casa, chamado Quinta de la Fuente del Berro. Uma graça de lugar, vale uma crônica só para ele. É bem menor que o parque do Retiro, mas muito charmoso e com um jeito de Parque Lage do Rio.

 

A caminhada leve me azeitou as articulações e me lembrou que falta menos de uma semana para voltar ao velho Caminho de Santiago. Quando falta pouco dá o maior friozinho na barriga e é difícil não pensar nele. Nesse fim de semana comprei as passagens para Pamplona, de onde partirei dessa vez.

 

Na cabeça agora martela Sá de Miranda, lembrado por um amigo. Não posso viver comigo, nem posso fugir de mim.

 

Comigo me desavim

 

Comigo me desavim,

sou posto em todo perigo;

não posso viver comigo

nem posso fugir de mim

 

Com dor, da gente fugia,

antes que esta assi crecesse;

agora já fugiria

de mim, se de mim pudesse.

Que meo espero ou que fim

do vão trabalho que sigo,

pois que trago a mim comigo,

tamanho imigo de mim?

 

Francisco Sá de Miranda

 

28 – Entre crises e festas

A bruxa anda meio solta. Olho em volta e vejo uma pá de amigos com problemas. Conheço essas ondas e, da mesma maneira que percebo quando chega uma boa maré de oportunidades, pressinto agora um período difícil. O que não necessariamente é ruim. Isso sempre depende das decisões que tomamos e o quanto conseguimos crescer com as crises.

 

Sempre tenho essa sensação que se abrem portais de caos e a gente escolhe se pula nele ou não. Eles se fecham muito rapidamente e quem não entrou nunca saberá o que perdeu. Quem se atirou também não tem nenhuma garantia, mas tem ao menos uma chance. Entrar só quer dizer que o jogo começou e que você pode fazer parte dele. E isso às vezes já é muita coisa.

 

Estava lendo algo sobre um estudo, que não sei se realmente ocorreu, mas dizia que uma pessoa só era feliz de verdade depois dos quarenta. Sou um pouco relutante a esse tipo de postura classificatória, mas enfim, é quando percebemos que da mesma maneira que não há felicidade eterna, mas momentos de felicidade; também não há tristeza eterna, apenas seus momentos. É uma inversão sutil e otimista de abordagem que fez muito sentido. Talvez porque, em breve, chegue aos quarenta.

 

Ainda me impressiona como em um mesmo dia posso ser tão feliz e tão triste, e cada vez mais esses sentimentos interferem menos um no outro. Acredito que seja pela consciência que são só momentos e que, sem nenhuma demagogia, preciso dos dois.

 

Ontem foi um dia feliz e triste. Tínhamos nossas razões para comemorar e sempre faço questão absoluta de comemorar. Celebramos. Estava feliz e orgulhosa.

 

Mas o fim da noite e da segunda garrafa de vinho me fez lembrar que ainda tenho uma situação mal resolvida. Do ano passado para cá tenho esse dilema da maternidade. Quando penso nele, continuo chegando a uma resposta negativa. Mas por que raios ele não vai embora de uma vez? Nem sei se posso chamar de dilema, no fundo nem sei mesmo se tenho dúvidas. Por que ainda sofro com isso?

 

O fato é que fuçar esse assunto sempre me traz um prisma novo e talvez ainda não tenha explorado de verdade as razões. Elas doem. É foda admitir a total incapacidade de ser mãe. Porque eu não quero e porque eu não tenho coragem.

 

Pior é a contradição do alívio do Luiz não querer ser pai e ao mesmo tempo me sentir mal por ele não me querer como mãe de um filho dele. É insano! Mas me peguei nessa dúvida idiota do por que não comigo? E para que? Para no final eu responder, não quero. Por que a gente cresce com essa estúpida mania de achar que tem uma resposta certa, uma fórmula única.

 

Não há mais o que ser dito, não há mais nada que precise ouvir sobre esse assunto.

 

As pessoas tem padrões de comportamento, todo mundo tem. O meu é arriscar, na dúvida, quase sempre digo sim. Eu troco o certo pelo duvidoso, é a minha natureza. E acho que pela primeira vez na vida, quebro esse padrão por algo importante. A bosta do portal está aberto na minha cara, está quase fechando, e eu não pulo.

 

E apenas posso esperar que seja só um momento.

 

Sexta-feira tem festinha com o pessoal do coral. Faremos um churrasco aqui em casa para quem não viajar no feriado. Amigos queridos, com e sem problemas, e cada um com seu próprio momento. Sei que é gostoso encontrá-los, faz minha família ficar maior. Quem sabe assim, quando a bruxa chegar, descubra que veio bater em endereço errado.

 

 

 

27 – Ogum com Clara Nunes, só pode dar certo!

Acabamos de chegar do show da Vanessa Borhagian, o mesmo que fiz propaganda alguns posts atrás. Eu adorei! O pessoal do coral deu uma palhinha em três músicas, acho que foi nossa melhor apresentação. Uma energia tão legal, que fiquei com a sensação que todo mundo saiu hoje do bar mais feliz. Eu estava.

 

Mas vou voltar um pouco o filme para entender e tentar passar porque me sinto tão bem.

 

Dia 23 de abril é dia de São Jorge, santo atribuído pelos brasileiros a Ogum.  Sou encantada pelas histórias dos orixás, coisas que escutava da minha avó. Quem aliás, me garantia que sou de Iemanjá. Ela não se importava muito se eu acreditava ou não, ela tinha a fé para mim. De maneira que as histórias, os cantos e as danças me são familiares, e o fato do candomblé ser meio mal visto na época me deixava a sensação de conhecer algo misterioso e proibido. Convenhamos, era muito mais interessante.

 

O show era em homenagem à Clara Nunes. A primeira música que o coral cantou se chama “O Canto das Três Raças” e, apesar de não ser nada religiosa, tem uma batida afro que me lembra bastante os rituais do candomblé.

 

Todos nós fomos vestidos de branco, o que imediatamente me deixou no astral de Ano Novo. O reveillon no Brasil era o único momento onde me vestia totalmente de branco, sempre fiz questão. Saindo de lá, minhas viradas de ano passaram a acontecer no inverno, em lugares onde esse ritual de paz não existe e portanto a roupa não fazia a menor diferença.

 

E por todos esses motivos, mais cedo, quando ensaiava para o show no bar, era inevitável não lembrar da minha avó. Sem tristeza, mas também sem vergonha de pedir proteção e de matar a saudade.

 

Enfim, chegamos no bar e agora vou me exibir um pouquinho, porque logo na entrada tive uma experiência inédita. Uma pessoa chegou para mim e perguntou, você é a Bianca do blog? Juro que olhei achando que era alguma amiga de farra comigo. Não era, era uma leitora super simpática. Eu achei simplesmente o máximo! É bacana ver o alcance que te dá uma ferramenta absolutamente gratuita e democrática. Enfim, “leitora”, porque não costumo publicar nomes, prazer em conhecê-la. Quem sabe nos encontramos em algum outro evento. 

 

E para mostrar que o mundo é muito, mas muito pequeno, há pelo menos um ano tento encontrar com uma outra amiga, que conheci através da minha prima de Belo Horizonte. Sempre acontecia alguma coisa e nos desencontrávamos. Essa semana ela me escreveu no orkut, sabia do show, disse que ia e quem sabe, finalmente, nos encontrássemos. Pois sim, nos encontramos. Havia ficado curiosa como ela descobriu sobre o tal show. Acontece que ela não conhece só uma, mas duas outras integrantes do coral que participo. Pode? Mundinho minúsculo, né não? Dessa vez, nos prometemos não demorar mais tanto tempo para nos reencontrar, no que pretendo me empenhar.

 

A sensação que tinha era de conhecer todo mundo que chegava, de encontrar um milhão de amigos que adoro, alguns mais antigos, outros recentes. Fiquei feliz, me senti em casa.

 

O show começou no maior alto astral, com uma das minhas músicas favoritas à capela, salve o samba, salve a santa, salve ela… salve o manto azul e branco da Portela… Sou Portela, e ainda que não acompanhe mais tão fervorosamente, fico sempre emocionada quando escuto essa música. Foi um arraso de bom, como todos os shows da Vanessa. Além do mais, na primeira parte a gente não entrava, portanto estávamos tranquilos e curtindo bastante o momento.

 

Nossa surpresa acontecia na segunda parte, logo após a terceira música. Não fomos anunciados, a gente se misturou com o público. Bom, no que dava para se misturar discretamente aquele povo todo de branco, né? Lógico que não éramos nada discretos. Chegaram a nos perguntar por que os brasileiros gostavam tanto assim de se vestir de branco. Fora o ti-ti-ti de quando é que entramos mesmo… a gente canta no primeiro ôôô… não só no segundo… começa a batucar no guém do nin-guém… mas onde é que a gente fica… e vai caber todo mundo…

 

Mas enfim, nos misturamos, com coquinhos na mão para o batuque. Tínhamos nossa deixa, já citada acima, para começar a batucar em direção ao palco. Não é que deu certo? Se não estivesse tão concentrada para não errar a batida, acho que tinha até me emocionado. Aquela massa branca de energia pura, cantando do jeito que sabíamos. No grupo, as imperfeições individuais se diluem, se complementam, sei lá, mas funciona.

 

No final, estava leve, com a maior vontade de abraçar todo mundo. E até esse momento só tinha bebido água! Vou logo avisando.

 

Acabou nossa parte e nos acabamos de dançar com o resto do show. Ainda nos juntamos para cantar uma última música com nossa professora-cantora e até no improviso ficou legal. Sabe esses dias que tudo parece que dá certo?

 

No final, com a casa já vazia, ainda fiquei dançando e rindo de bobagens com uma amiga. Culpa dela que tomei minha única dose de whisky, da qual também não me arrependo. Pensava que coisa surreal essa de participar de um show num bar cheio, e em Madri! Eu sei que o show não era nosso, mas cantar em um bar era algo impensável há alguns anos, e em outro país então, nem se fala. E como podia estar tão à vontade e me sentindo tão em casa. Conhecer essas pessoas é um privilégio.

 

Luiz e eu saímos do lugar quase varridos, quando já não havia mais praticamente ninguém. Mesmo assim porque ele precisava acordar cedo, haja energia.

 

Em casa, não aguentei esperar o dia seguinte para começar a escrever, queria estar na emoção do momento. E lembrando dos detalhes da noite foi quando percebi que o nome daquela leitora lá do início do post é o mesmo nome da minha avó.

 

Acho que ela deu seu jeito de me dizer agora, eu fui boba. 

 

 

 

 

26 – 22 de abril, e que?

No tempo que fui a escola, e acredito que ainda seja assim, estudava-se que o Brasil havia sido descoberto em 22 de abril de 1500. Cresci com essa idéia plantada na minha cabeça, como outras tantas, sem parar para pensar no que realmente significava.

 

Sempre me surpreende que só burra velha me caiam fichas tão evidentes, mas fazer o que? Resta o consolo de que pelo menos ainda tenho tempo de protestar com a ferramenta que disponho.

 

Vamos começar pelo começo, ontem fui ao lançamento de um livro da Sabrina Morais, O Direito Humano Fundamental ao Desenvolvimento Social. Ela fez uma apresentação breve da sua tese, que gerou o livro. Ainda não o li, coisa que devo fazer no futuro, pois a conversa rápida com ela depois no coquetel me fez pensar que era um estudo bem mais aprofundado do que ouvi na apresentação. Normal, o tempo é sempre um limitador de conhecimento.

 

Antes de falar sobre o livro, houve duas apresentações. A primeira, sobre um vídeo independente gravado em 2000, mostrando um pouco dos bastidores do que aconteceu na cidade de Porto Seguro, enquanto era preparada a famosa festa dos 500 anos do descobrimento do Brasil. A outra apresentação era sobre folclore.

 

A apresentação sobre folclore, me gerou um problema. Conheço a pessoa que expôs e infelizmente consegui discordar de absolutamente tudo, da forma ao conteúdo. Minha língua não cabe muito dentro da boca e fiquei com vontade de discutir no final, civilizadamente é óbvio. Achei melhor deixar para outro momento, até porque não era o assunto principal do evento. Depois, estava com o Luiz, que é bem mais radical nas discussões do que eu, melhor não por lenha na fogueira.

 

Mas vamos ao que interessa, o vídeo foi gravado por uma amiga, a mesma que fez a apresentação, mostrando o outro lado da festa dos 500 anos. O lado dos excluídos, dos que não foram convidados e do que não se mostrou na TV.

 

Pela primeira vez, percebi que o Brasil é o único país que comemora a sua própria invasão! Sim, porque no dia 22 de abril de 1500, o Brasil foi invadido por portugueses, tão simples quanto isso. Não vou entrar na discussão babaca de dívidas históricas, isso é passado, mas daí a comemorar? O nosso herói é um invasor? E pior, como assim descobrimento, não havia nada antes? Os índios eram o que? Parte da paisagem? Árvores? As línguas faladas eram grunidos? O conhecimento das ervas eram acaso?

 

Aceitar que o Brasil foi descoberto é um desrespeito com a nossa origem. A imagem folclórica do indiozinho sorridente com um penacho na cabeça e uma flechinha na mão é ofensiva, é fantasia de carnaval. Quantos índios na sua vida você viu sorrindo?

 

Tenho uma bisavó índia que nunca conheci. Não sei o que levo dela, meus hábitos e minha aparência é branca européia. E também não tenho porque negar esse lado, eu gosto da mistura. Mas sei que minha primeira peça de arte é uma escultura em argila de uma índia grávida, altiva e brava. Não sei porque a fiz, mas talvez em alguma parte do meu sangue haja a memória genética, aquela que nem sabemos. Espero que sim, pode ser meu lado mais forte.

 

Por isso, hoje estou brava, pelos meus ancestrais invadidos, pelos negros levados à força escravizados e pelos brancos que deixaram seu próprio país por falta de opção. É essa minha origem, foi desse barro que saí, independente da onde esteja e de que cara tenha.

 

Queria um dia ter muita vontade de voltar ao Brasil e que não fosse pela saudade, mas porque representasse a melhor escolha. E que não fosse por ser mais desenvolvido do que outros países, mas tanto quanto.

 

Não quero ser mais associada à uma mulata pelada nem a um jogador de futebol equilibrando uma bola no nariz como uma foca. As brasileiras são trabalhadoras, os jogadores são atletas, os índios são guerreiros, nossa raça é a mistura. Respeito pelo meu país.

 

Pausa para comerciais madrileños

Nessa quarta-feira, dia 23 de abril, tem show da Vanessa Borhagian em homenagem a Clara Nunes y otras cosillas más, há também participações especiais e composições próprias. Faz parte do evento Sarau Brasilis, que acontece no AK Bar, às 21:00hs, Calle Barquillo, 44, Metro Chueca. É grátis e alto astral garantido.

  • Vanessa Borhagian – voz, cavaquinho, percussões
  • David Tavares – violão
  • Bruno Lopes – baixo
  • Mancuso – bateria/percussões

Participaçôes especiais:

  • Grupo Cantoria Dumbaiê, Bailarinos (Arnaldo e Natali), Nadia (violino), Urano de Souza (violão) e outros…

Lembro que o grupo Cantoria Dumbaiê é o coral do qual Luiz e eu fazemos parte, a Vanessa é nossa maestra. Isso quer dizer que também daremos uma palhinha! Inclusive, adianto que o grupo está preparando uma surpresa, que como é surpresa, não posso contar…  mas estamos ensaiando em casa para sair caprichado!

Povo de Madri, apareçam por lá e sejam bem vindos! As apresentações da Vanessa & Cia são sempre show de bola! E quanto ao coral, podem rir da minha cara cantando à vontade, me divirto também! Amigos do resto do mundo, depois conto como foi!

 

 

25 – Começou

Está difícil tirar o Caminho de Santiago da cabeça. Não sei que raio tem nesse lugar que me puxa dessa maneira! Passo o dia calculando rotas, fazendo analogias e agora já comecei a ver conchas de vieira em tudo que é canto!

 

Eu mudo quando sei que vou para lá e mudo porque sinto que vou voltar. Sempre fico me enganando que dessa vez vou para curtir, relaxar, desfrutar o caminho. Quando também sei que ninguém volta impune. E mesmo assim, preciso ir.

 

Os planos foram adiantados, parto dia 10 de maio, com um amigo do Brasil, calouro no Caminho. O que também não importa muito, considerando que tudo é sempre diferente. A experiência ajuda no conhecimento dos próprios limites, mas ninguém passa por ali igual todas às vezes.

 

Eu hoje caminho na chuva como uma coisa normal, porque é natural. Não entendo como antes tinha tanto medo de me molhar. É só água. No ano passado, quebrei duas vezes os dedinhos do pé, coisa que nunca havia acontecido. No primeiro, andava devagar, mas andava do mesmo jeito; no segundo, pulei carnaval. É só dor. E antes de enfrentar uma situação difícil, penso que já andei 40 km seguidos, molhada, com frio e sem haver dormido na noite anterior. É só uma fração de tempo e que passa.

 

Tudo passa.

 

E meu caminho já começou.

 

 

24 – Viagens a caminho e ao Caminho

Na segunda-feira, conseguimos nossa autorização de regresso à Espanha. É o seguinte, quando seu visto vence, você entra com o processo de renovação. Entretanto, até que seu novo período de estadia seja aprovado e sua carteira seja emitida, se você quiser deixar o país, precisa de uma autorização oficial.

 

Quando planejamos ir ao Brasil em maio desse ano, nos esquecemos desse detalhe da documentação e nossos vistos venceram em abril. Não é um problema, a renovação é praticamente automática, mas existe uma certa burocracia, passos e prazos a seguir e você não pode perdê-los.

 

Não sei se a gente já está mais acostumado ou o processo melhorou, mas dessa vez está sendo menos traumática toda essa encheção de saco dos vistos. Pelo menos, por enquanto, não gosto de elogiar nada antes de terminar.

 

O fato é que nossos planos de viajar em maio para o Brasil foram para as cucuias. Tudo bem, mas agora que as coisas se definiram melhor, finalmente marcamos nossas passagens para junho. Yes! Claro que estou rindo à toa.

 

Dessa vez, vou com Luiz. Acho que já contei que há uns cinco anos não vamos juntos ao Brasil. De maneira que estou tão animada que tenho até medo que apareça algum abacaxi. Credo, isola!

 

Acontece, que tinha um outro plano malévolo em paralelo, voltar a fazer mais um trecho do Caminho de Santiago. As épocas de se fazer são primavera e outono, por causa da temperatura. Portanto, estava só esperando definir essa viagem do Brasil para saber se botava o pé na estrada antes ou depois.

 

Depois, ficaria muito tarde, porque já seria verão. Logo, fui amadurecendo a idéia de ir antes. Sabia que seria muito difícil para Luiz ir comigo, ele não conseguiria assim duas férias seguidas. Tenho um amigo no Brasil que parecia animado, mas fiquei um tempo sem internet e nos desencontramos.

 

Tem umas coisas engraçadas, parece que quando você toma uma decisão, tudo começa a conspirar a seu favor. Enquanto estava nessa lenga lenga de vou não vou, nada se resolvia. Daí, essa semana me chegou um texto de um amigo do Rio que fez um bom pedaço do Caminho comigo e mantemos sempre contato. Ele está escrevendo sobre o Caminho de Santiago, que trilhou inteiro, e os textos são ótimos! Muito bem, justo essa semana chega o texto da chegada em León, que era meu principal objetivo dessa vez.

 

Pois me bateu os cinco minutos e comecei a cogitar a possibilidade de ir sozinha mesmo. No instante que Luiz marcou a passagem para o Brasil, passada a euforia inicial, sentei no computador e comecei a calcular quando poderia partir para a caminhada.

 

Mas vou ser franca, me deu preguiça. Andei relaxando e me despreparei um pouco, ganhei peso e perdi fôlego. Ontem, cheguei a conclusão que precisava tomar uma atitude e resolvi começar o treinamento no mesmo dia. Pensei, se eu esperar até a famosa segunda-feira, não vou.

 

Coloquei minha fantasia de peregrina, que nem me dá mais vergonha e saí para caminhar no parque. Aos poucos, fui me animando novamente e ganhando coragem.  Senti que não estava preparada e precisava correr atrás do prejuízo. O que você não soluciona no treinamento, vai sentir em dor no Caminho, não tem jeito. E se ia sozinha… melhor estar bem.

 

Assim que cheguei em casa, e-mail do meu amigo brasileiro com a corda toda, pronto para marcar a passagem e fazer o Caminho. Não é que terei companhia? Nem acreditei! Escrevi para meu outro amigo, o dos textos que espero virar um livro, e fiz algumas perguntas. Ele me respondeu se propondo a me ajudar com um roteiro. Show!

 

Dia 17 de maio, minha mochila estará nas costas! Dessa vez, vou tentar fazer uma mistura de caminhada, taxi e trem. É que só terei 10 dias e queria fazer uma passada geral, ao invés de um trecho específico. Gostaria de fazer a pé, pelo menos, uns 100 km, mas não é nada tão rígido.

 

Agora estou quicando, doida para começar! Sanduíche de Caminho de Santiago com Brasil! Ai, ai… são muitas emoções!