XII – Finalmente em Salamanca

No início de maio, finalmente nosso apartamento no bairro de Salamanca estava liberado! Mais uma vez, sairíamos com a casa nas costas para a nova residência. Agora ainda tínhamos mais malas, pois Luiz foi trazendo gradativamente as guardadas em seu escritório e em Paris. Cheguei a conclusão de que eu era um caracol!

A dona do imóvel nos alugou por um ano, quase se desculpando, pois é um contrato muito curto. É que talvez ela precise do apartamento para morar. Para nós, um ano era uma vida! É mais do que já morei na maior parte dos meus endereços. Esse é meu 30o (trigésimo – não foi erro de digitação). Estou com 35 anos, faço 36 em novembro. Faça as estatísticas, se quiser.

Quando criança mudava por causa dos meus pais, depois mudava em função do meu trabalho, agora pelo trabalho do Luiz. O fato é que, por um motivo ou por outro, essa era a minha vida, o meu destino. Muita gente me pergunta se não me faz falta ter raízes. Claro que eu tenho raízes! É que elas são aquáticas e vão comigo. Com o tempo você aprende que resistir é pior. Depois, nem pensa mais, vai de acordo com a maré!

E voltando ao nosso apartamento, havia muitas malas, mas não tinha móveis. A previsão é que nossa mudança chegasse em uma semana. Achamos uma previsão fantástica, pois em Atlanta esperei apenas quatro meses por isso! De qualquer forma, ainda havia uma semana para dormir… sem cama!

E lá fomos nós procurar uma cama para ontem! Na verdade, um sofá-cama que, posteriormente, ficaria para as visitas. Quando estávamos quase desistindo e nos conformando em dormir sobre o edredon, esse veio em uma das malas, descobrimos no caminho para o apartamento uma loja de móveis na mesma rua, cerca de duas quadras do imóvel. E não é que tinha o tal do sofá-cama para pronta entrega? Luiz ainda teve o disparate de perguntar se havia outra cor! Cor? A essa altura? Aquela estava ótima! Só um probleminha, não tinha quem entregasse no prazo que precisávamos. O dono, meio sem graça, mas vendo nossa necessidade, perguntou se morávamos longe dali. Quando dissemos que era quase na próxima esquina, ele se ofereceu para levar com o Luiz, se ele não se incomodasse. Se a gente se incomodava? Eu me incomodava era em dormir no chão! Saímos da loja a pé pela rua, com Luiz e o vendedor carregando o sofá-cama e eu as almofadas e o forro. Mantive a elegância! Fui andando como se estivesse fazendo a coisa mais normal do mundo. Toda vizinhança conhece nosso sofá! Que mico!

E assim foi a primeira noite em Salamanca. Com um sofá-cama, muito confortável (ou será que era o cansaço?), duas cadeiras esquecidas pela dona do apartamento e várias malas!

O telefone, a internet e a televisão ainda demorariam mais de um mês para serem instalados! Quase enlouqueci! Mas Luiz descobriu que conseguia roubar uma conexão wi-fi, lentíssima, de um vizinho distraído. Às vezes, funcionava.

Abrimos uma garrafa de vinho, nacional é claro, e sentamos no chão da sala para comer jamón. Jack corria pelo apartamento feliz da vida! Ele gostou de cara daqui. Fazia muito tempo que não o via tão alegre e à vontade. Voltou a ser nosso pateta feliz!

XIII – Chegou a mudança!

Nossa mudança veio de navio. Levou um mês para chegar, o que é um ótimo prazo! Como os primeiros apartamentos alugados eram mobiliados, ficamos sem móveis apenas por uma semana. 

Quando saímos do Brasil para Atlanta, nossa mudança demorou quatro meses para chegar! Como já tínhamos duas camas de casal e a esperança que elas chegaríam um dia, compramos uma cama inflável provisória que virava uma mala e podia ser guardada sem ocupar muito espaço. Olha, para uma visita dormir um fim-de-semana… umas duas semanas… até um mês, vá lá! Muito prático e não é tão desconfortável. Mas dormir q-u-a-t-r-o meses sobre um balão! Me poupe, ninguém merece! Não há cristão que aguente! Era assim, se eu estivesse na cama antes e o Luiz entrasse muito rápido, eu pulava do outro lado. Quando ele levantava pela manhã, eu rolava para o meio da cama. Um dia não aguentamos e dormimos no chão. Foi uma merda! Mas pelo menos variamos um pouquinho e foi mais fácil aturar a porcaria da cama inflável outra vez! 

E os móveis improvisados em Atlanta? O escritório onde Luiz trabalhava estava mudando de local e eles estavam dando ou vendendo alguns móveis a preço de banana. Óbvio que eram móveis de escritório. Arrecadamos duas mesas desmontáveis, quatro cadeiras rígidas e duas poltroninhas de recepção. Fora dois aparelhos de fax, em perfeitas condições de funcionamento, que iriam para o lixo! Um amigo sul-africano do Luiz, que passou por um calvário pior, pois já ficou nove meses esperando pela mudança, nos emprestou alguns acessórios como luminárias, espelho, aparelho de CD. O resto a gente foi improvisando com caixas. Por exemplo, compramos uma TV e a caixa de papelão da TV virou seu próprio suporte, assim, como uma mesa pós-moderna. As caixas da cafeteira e do forno elétrico se converteram nas nossas mesinhas de cabeceira. Em linguagem artística, podemos dizer que minha casa seguia uma linha de “arte povera”. Bom, uma hora os móveis chegaram e pasme, não havia nem um copinho de cristal quebrado.  

Portanto, pode acreditar que, ao saber que nossa mudança chegava em Madri após apenas um mês, eu dava pulos de alegria! Só não conseguia entender onde o caminhão ia estacionar, pois se achar uma vaguinha para carro era um parto, imagina achar umas quatro ou cinco vagas juntas para parar o tal do caminhão? E os móveis subiriam como? O elevador era mínimo e subir com tudo pela escada… imaginei o que eles iam xingar! E mais uma vez, por que não darmos uma chance ao caos? 

Muito bem, olha que incrível, alguém no governo pensa! As empresas de mudança pedem uma autorização para prefeitura, que marca as vagas na frente do endereço da entrega por um determinado prazo. Ou seja, no dia que minha mudança chegou, as vagas na frente do edifício, estavam separadas para o caminhão. Isso não evita que um ou outro engraçadinho arrisque parar por pouco tempo, antes do caminhão chegar, mas você pode chamar a polícia ou a grua (nosso reboque). 

Segundo passo, ainda não estava segura que meus móveis entrariam e como eles fariam isso. Entrou o responsável da equipe no apartamento para verificar as condições da entrega. Ele nem mediu porta ou corredor, foi direto para a janela da sala, disse que o espaço era tranquilo para passar tudo e achou ótimo. Fiz a cara 17, a de o-que-ele-está-vendo-que-eu-não-estou. O apartamento é pequeno, o elevador é mínimo, a escada é alta, o corredor é apertado, a abertura da janela é estreita e meus móveis são grandes! Mas se tem uma coisa que tenho aprendido ultimamente é ter fé! Se ele disse que era fácil… E olha que coisa linda, eles tinham uma solução! 

Em, literalmente, dois segundos eles desmontaram a janela da sala, cuja abertura ficou excelente! Encostaram um tipo de elevador elétrico portátil que ia do chão da rua até nossa janela, e subiram com todas as caixas e móveis por fora do edifício. Inclusive, foi rapidíssimo! 

Agora era moleza! Só tinha que arranjar lugar para tudo que havia nas trocentas caixas de papelão em um apartamento quase sem armários! Tudo bem vai, pelo menos ia dormir na minha caminha!

XIV – Joder… Claro… Vale

Meu espanhol de rua, aos poucos vai melhorando. Acho muito divertido o falar cantado das pessoas e presto atenção nos assuntos alheios como se fossem música. Entender é muito fácil, já falar… falo, mas fico sempre na dúvida se estou falando certo ou inventando algumas palavras. O famoso “portunhol”. 

E já que toquei no assunto música, como as músicas são cafonas! Cassilda! E todo mundo conhece as letras, canta junto, um mico compartilhado! Entretanto, depois de um tempo, o cafona é tão cafona que vira trash e me divirto! Agora também canto tudo! 

Comecei a perceber que algumas palavras são muito mais faladas que outras. Há três palavrinhas fundamentais: joder, claro e vale. Sem elas, o castellano não existe! 

Joder, pronunciado “rôder”, quer dizer “foder” mesmo! Acontece que aqui perdeu seu status de palavrão e virou uma palavra corriqueira. É mais ou menos como o “puta” do paulista ou o “porra” do carioca, se converteu em “vírgula” e ninguém mais nota seu real significado. Homens, mulheres, velhinhas, crianças… todos falam. Joder! 

Claro, é igual ao nosso. A diferença é só no sotaque, dando mais ênfase na segunda sílaba. Acredito que ele seja tão usado como o nosso “é” ou o “huhum”. Afinal de contas, se uma pessoa está falando com você, é importante frisar que você está acompanhando, claro! 

Agora, o campeão é o vale! Vale, pronunciado “bale”,  serve para tudo, é um bom-bril usado em diversas situações. Pode ser uma afirmação, exclamação ou interrogação. Funciona como: “é?”, “sim!”, “hein?”, “tem certeza?”, “ok”, “certo?” etc. Posso escrever uma página de sentidos para vale. 

Com essas três palavras, você fala espanhol como um nativo! Está em casa! Pode negar, afirmar, exclamar, perguntar… o que quiser! Vale? Claro, joder!

XV – Hombre!

O seu significado é simples, mas a forma como é usada a palabra hombre para mim é muito estranha. Hombre, ou “homem” em português, é muito utilizado na forma de gíria ou expressão para ganhar tempo ao pensar. Acredito que a tradução mais próxima seria “cara”. Mas a maneira de usar é bem mais parecida com o “ué”, ou “uai” no caso dos mineiros. 

O que acho engraçado é que tanto faz se você é homem, mulher ou que idade tenha, pois as frases começam com hombre do mesmo jeito. 

Vejo cenas hilárias, como de um pai falando com sua filhinha de uns cinco anos: Hombre! Maria que… Deu para entender que o “hombre” era a pobre da Marizinha de cinco anos, né?  

Senhorinhas também! Uma conversa com a outra, iniciando o diálogo: Hombre… E ainda por cima dão uma engrossadinha na voz para reforçar a entonação. 

Hombre, o pior é que já me escapa um ou outro quando falo! É contagioso, vale? Joder!

XVI – Minhas primeiras hóspedes

Essa mudança me deu trabalho para arrumar! Demorei mais do que o usual. Tenho muita prática e arrumo tudo em, no máximo, uma semana. Também, né? Depois de mudar tanto! Mas aqui foi um verdadeiro quebra-cabeças. Sabe cobertor curto? Que você puxa de um lado e falta do outro? 

Arrumei logo a cozinhae os quartos. O resto, empilhei no canto da sala para ir arrumando com mais calma. Além de definir a necessidade de novos armários, desde que fossem portáteis! 

Antes das caixas esfriarem, recebemos a notícia: uma amiga de São Paulo e outra de Brasília chegando na cidade! Uma coincidência, pois nem se conheciam! Beleza! Que venga el toro! A casa nova já começou animada. Avisamos que as caixas de papelão ainda estavam espalhadas, mas o quarto de hóspedes estava pronto (ou quase!). Se elas não se incomodassem… eu é que não fico mais constragida por tão pouco! Umas caixinhas de papelão aqui, uma baguncinha ali… bobagem! 

Foi ótimo! Aqui nós faremos amigos, é uma questão de tempo. Mas é que o espanhol é desconfiado, demora mais para se aproximar. Foi muito bom tê-las logo que chegamos, me ajudou a lembrar que ainda não tinha amigos aqui, mas iria acontecer.   

Acho que houve até uma certa simbologia na visita das duas. Gosto de prestar atenção nesses detalhes. Uma foi praticamente amiga de infância, coisa de mais de 20 anos atrás! A outra de São Paulo, último lugar que morei no Brasil. Esse trançado no tempo e o fato de nos encontrarmos em outro país, com vidas tão diferentes e tão próximas em alguns aspectos, parecia poesia. 

Em Atlanta não tivemos hóspedes. Na verdade, só meus pais, depois da chantagem sentimental do Luiz! Minto, pensando melhor, também houve um amigo que foi fazer uma entrevista de emprego, mas acho que ele só dormiu uma noite. Coisa rara, pois tem sempre alguém passando pela nossa casa. Mas também, convenhamos, qual o apelo turístico de Atlanta, né? Oi, gente… vamos visitar o museu da Coca-cola?! Ninguém sai do Brasil, ou de outro país, para isso! Sinto muito Coca-cola!  

Por outro lado, fizemos amigos incríveis em Atlanta! Definitivamente foi a melhor parte da nossa temporada por lá! Uma amiga em especial, que era minha companheira de cozinha, de compras e de desabafos. Com o cuidado de não desmerecer os outros, cada um com seu jeito de ser e sua própria história que tive o prazer de conhecer e aos poucos espero poder ir contando. Cantora de rap, imitador do Lombardi, admiradores do Balão Mágico, coreógrafas da Ivete Sangalo, churrasqueiros… Amigos brasileiros, americanos, mexicanos, alemães, sul-africanos… Acho que fizemos umas 35 festas de despedida! Juro! A primeira eu achei que era sério, depois, cada vez aparecia um novo passo a ser cumprido antes da nossa próxima mudança para Madri. Daí virou piada e todas as festas a gente dizia que eram de despedida. Bom, a última foi mesmo, com direito a rifa do que não conseguiríamos levar na mudança e o sacrifício de tomar quase tudo alcoólico que não caberia nas malas. 

Em São Paulo também tenho amigos muito, mas muito queridos mesmo! Animados e alto astral! Aqui conto os milagres, mas não conto os santos. Até porque, acredito que isso deixaria as pessoas com medo de vir na nossa casa e virar assunto! Podem ficar tranquilos que jamais revelarei os nomes, ok? Cada um que vista sua carapuça. Tem festeiros, caseiros, família, dorminhocos, lulus, furões, pontuais, casados, solteiros, separados, cachaceiros, afilhados, gulosos, artistas, executivos…  

Mas voltando a São Paulo e falando em festas de despedida, na nossa última, além do DJ na sala, rolou até polícia reclamando do barulho. É verdade que um certo amigo nosso que abriu a porta para o policial, quando viu do que se tratava, entrou em pânico e bateu a porta na cara do indivíduo! Como sempre, no final deu certo. Não acabou em pizza, mas em sopa. Sempre rolou a sopa do fim da noite. Ah! E esclarecendo o mistério, quem chamou a polícia foi a ex-vizinha-penetra-com-dor-de-cotovelo, assim que der, conto essa história também.

A sopa é tradição que veio do Rio. Meu querido Rio de Janeiro, afinal de contas, ainda não deu para perceber, mas para quem não me conhece, sou carioca da gema! Branquela e com sotaque misturado, afinal ninguém é perfeito! Enfim, do nosso grupo de amigos cariocas, eu e Luiz fomos os  primeiros a casar e, portanto, a ter uma casa que não era a dos nossos pais. Logo, o lugar mais provável para festas e reuniões, certo? 

Bom, me casei na ponte-aérea Rio/São Paulo, história longa que conto outra hora. Mas o fato é que, no primeiro ano de casada, eu passava a semana em São Paulo trabalhando e voltava no fim-de-semana ao Rio para encontrar o Luiz. O tempo era curto para ver todo mundo e eu adorava festas. Por isso, a melhor solução era receber os amigos em casa no sábado. Nos primeiros, a gente convidava, depois nem precisava. Lá pelas quatro da tarde o telefone começava a tocar: E aí? Vai rolar? Claro que vai!

A gente não se preocupava muito com o que oferecer, pois cada um aparecia com sua contribuição. Era engraçado ver a geladeira lotar de cerveja e ir esvaziando ao longo da noite. A partir das nove horas o pessoal começava a chegar. Rolava uns turnos, alguns chegavam mais tarde… alguns iam embora mais cedo… um queria colocar alecrim na minha sopa… Porque depois de um tempo, eu é que não ia deixar o povo bebendo a noite toda sair dirigindo para casa, né? Juízo não tenho, mas felizmente me resta um pouco de responsabilidade. Então, no fim da madrugada, fazia um sopão para dar um mínimo de sobriedade à galera! Uma coisa é certa, sempre acabava com dois cantando um rock pesado do Body Count na janela – voodoo – e duas velhinhas do prédio da frente assistindo. No início achei que elas se incomodavam, depois cheguei a conclusão que elas achavam divertido. Os outros vizinhos não deviam entender porque durante a semana era um silêncio sepulcral no apartamento, e no sábado aquela zorra! Mas nunca reclamaram, talvez se divertissem também.

Agora preciso incluir os amigos virtuais de Brasília, onde também morei mais jovem. Nesse ano de 2005, tenho a felicidade de reencontrá-los pela internet e compartilhar lembranças de infância e adolescência.

Além dos espalhados pelo mundo, que adoro um bom pretexto para encontrá-los!

Resumindo, sei que não digo o suficiente aos meus amigos – nacionais, internacionais e virtuais – o quanto eles são importantes e queridos. Mas definitivamente, minha vida seria muito chata sem eles!

XVII – Hamman

Hamman, é o conhecido banho árabe ou banho turco. Aqui em Madri tem um que adoro. É misto, você frequenta usando traje de banho e, antes que comecem as piadinhas, é super família!  

O local é formado por cisternas centenárias, reformadas com os materiais da época. São três piscinas com temperaturas diferentes e uma sauna a vapor. Além disso, se quiser pode receber uma massagem. Não são só os banhos, o ambiente é mágico, você se transporta para outra região em outra época! Como já deve ter dado para perceber, o local é um culto ao relaxamento. 

A primeira vez que fui, estava com uma hóspede em casa e marcamos com amigos no local. Claro que perdemos a hora, acordamos afobadíssimas e fomos correndo como duas loucas! Em situações de pressão, na vida ou no trabalho, sou muito eficiente, porém, uma “generala”. E ainda por cima com sono! Pode imaginar como devia estar simpática. Chegando lá, uma das amigas já estava, e seu marido com a irmã chegaram correndo esbaforidos como a gente, alguns minutos depois. Caramba! Nunca vi um relaxamento tão estressante, viu! 

Bom, mas apesar dos pesares, conseguimos chegar bem em cima da hora e entrar. Uma das regras do local é manter o silêncio. Puxa vida! Depois daquela correria, dentro de um local maravilhoso e exótico, alguém acha que é possível manter quatro mulheres mudas? Que tortura! A gente ficava catando uns cantinhos mais vazios para dar uma fofocada básica. Depois de um tempo, baixada a adrenalina, conseguimos finalmente relaxar. Infelizmente, já era hora de irmos embora. 

Pequeno detalhe, naquela pressa toda, ninguém conseguiu comer antes de ir. E assim que saímos de lá, o estômago colava nas costas. Acho que já contei aqui o que ocorre com meu humor quando estou faminta, né? Entretanto, eram quatro da tarde e essa hora os restaurantes já fecharam. Foi um custo para achar um caro e ruinzinho aberto, mas fazer o que, pelo menos matou a fome. 

Comemos setas, que são nossos cogumelos. Se pronunciam “sêtas”. Dá para imaginar o potencial de piada que isso proporciona. E aí? Comeu as sêtas? Gosta de sêtas? Posso pegar sua sêta? Enfim… aquela baixaria! Mas até que foi engraçado! É verdade que o garçon não devia entender o que de tão divertido havia em dividir um prato de setas, talvez ele tenha pensado que errou na qualidade dos cogumelos… 

Voltei ao hamman algumas vezes, sem a mesma pressa nem gaiatice. Mais relaxante, admito, mas não tão divertido!

XVIII – Pues… yo creo que estoy estupenda!

Há um comercial de TV que gosto muito. É de uma maionese light. Começa com uma moça se olhando no espelho, conversando com a amiga e dizendo algo como: Pablo disse que tenho o peito pequeno… Pablo disse que tenho um pouco de barriga… Pablo disse… de repente, ela enche o saco e diz: Pues…yo creo que estoy estupenda! E eu creio que a frase dispensa tradução. 

É um comercial normal, nada demais, mas acho que tem muito a ver com o universo feminino. Essa coisa da gente estar preocupada com a comparação, com o que o parceiro acha… e finalmente, a própria aceitação. O alívio e o prazer de acreditar: quer saber, estou ótima! Não é mais uma questão de ser ou não perfeita, mas de se sentir bem assim. 

Outro dia conversava com amigas que reclamavam que aqui na Espanha é muito difícil você levar uma cantada na rua. É uma coisa cultural, o espanhol não é um azarador! Elas diziam, talvez com outras palavras, que uma boa cantada podia recuperar seu estado de espírito. Sentiam falta disso aqui. Achei engraçado e me diverti com os comentários, mas lá no fundo fiquei pensando se não seria um pouco de carência ou insegurança da parte delas.  

A verdade é que, pessoalmente, sempre achei esse negócio de ganhar cantada na rua um saco! Fico muito sem graça e, em relação a isso, me sinto mais confortável aqui. Não sei, também acontece que sou mais preparada para uma crítica do que para um elogio. Acho uma distorção, mas é a verdade. Quando recebo um elogio, tenho vontade de me enterrar embaixo da primeira mesa; já uma crítica, posso ouvir e não dar a menor bola ou, se estiver de bom humor, até tentar entender para melhorar. 

Muito bem, sabe toda essa segurança? Foi à PQP por causa de um simples botãozinho! A porcaria do botão da calça jeans que custou a fechar! Merda… engordei! Me arrumando para levar o Jack na veterinária, tive essa infeliz constatação: minha calça estava mais apertada!  

Acho que o processo cerebral que ocorre na mulher quando ela percebe que engordou é muito parecido ao do homem quando ele quer transar. Há uma completa falta de bom senso, a gente perde a noção das coisas e não consegue ver nada em uma perspectiva razoável! Fome na África, guerra no Iraque,  corrupção no Brasil… nada disso importava: eu en-gor-dei! 

Saí do edifício com os ombros arrastando no chão, arrasada! E ia pensando comigo mesma: Merda, tô gorda! Não… sou uma gorrrrrrda! E que idéia de jirico vir com esse saltinho… gorda e de saltinho… putz! Mas eu devo tá muito ridícula mesmo! Ainda bem que é perto… 

Nisso, acho que o anjo da guarda das mulheres desesperadas cutucou um transeunte, que deu aquela parada na calçada para eu passar e me soltou algo em espanhol que poderia ser traduzido como “gostosa!”. Sério, a maneira de falar do cidadão era de uma falta de respeito comovente! Lembrei das minhas amigas reclamando da falta de cantadas! Ok, hoje e só por hoje, vou baixar a bandeira feminista um pouco.

Meus próximos passos foram absolutamente desconcertados e tive que prestar muita atenção para não dar de cara em um poste ou tropeçar. Assim que recuperei o rebolado, só uma coisa podia vir à minha mente: Pues… Yo creo que estoy estupenda! 

Fui rindo sozinha o resto do caminho. Na veterinária tem uma parede espelhada e, me olhando nela, nem me achei tão mal. Pensando bem, até que não tinha engordado tanto assim…e o saltinho, tinha lá seu charme. 

E mais uma coisinha, que eu mesma deveria escutar. Atenção meninas! Já dizia Buda, quem gosta de osso é cachorro!

XIX – O dançarino do metrô

Sou fã do Almodóvar! Gosto de tudo que ele faz. Sempre achei seus personagens de uma criatividade fantástica. Pois bem, continuo gostando dele, entretanto, já não sei mais se ele é assim tão criativo ou simplesmente sai na rua com um bloco de anotações. Sério! Sabe aquelas pessoas esquisitas dos filmes? Elas existem! Estão todas nas ruas de Madri! 

Então, aí vai a viagem de metrô mais engraçada que fiz – até agora. Infelizmente, estava sozinha e não tinha uma câmera, pois duvido que consiga reproduzir a cena em todos os seus detalhes. Almodóvar conseguiria! 

Aqui tem sempre músicos pelo metrô, boa parte fica nas estações, mas alguns entram nos vagões e, entre uma estação e outra , fazem suas apresentações-relâmpago. Nesse dia, o vagão estava razoavelmente cheio, mas não lotado. Entrou uma mocinha com uma guitarra e um aparelho de som, começou a tocar e cantar aquela música do gordinho da internet que fica dançando na frente da webcam. Bom, se não conhece qual é a música, só imagine que era uma animadinha. Sabe que até dava vontade de dançar? Mas claro que era só na imaginação. 

Imaginação para quem cara-pálida? Do outro lado do vagão, um homem dos seus 45 anos, de chapéu preto, começou a pular e dançar freneticamente com a música! Ele tinha uma voz rouca e ia cantando alto bem debochado: ai, que bom! Agora se pode dançar no metrô! E pulava… balançava o chapéu… dançava para as pessoas… 

Ninguém sabia o que fazer. A verdade é que dava vontade de ficar olhando e rindo, era contagiante, mas e o medo dele ver e resolver vir dançar com você? Começou um olhar para o outro e fazer piadinhas do tipo “E agora? A gorjeta a gente dá para quem?”. 

Na próxima parada, a menina da guitarra saiu sem nem tentar recolher seu dinheiro, acho que ela percebeu que a concorrência ali estava alta para ela!

XX – La Daniela e o bom humor de seus garçons mal humorados

Perto da minha casa tem um restaurante chamado “La Daniela”. Creio que é um dos tradicionais por aqui, bastante conhecido por seu cocido madrileño. Uma boa parte dos restaurantes, incluindo o Daniela, tem um balcão onde as pessoas comem as tapas e bebem de pé.  

Uma dica, não sei por que raios, mas todo mundo tem a mania pouco higiênica de comer e jogar (ou deixar cair) os guardanapos usados, palitos, guimbas de cigarro etc no chão mesmo. Ou seja, se quer avaliar o quanto um bar é popular, averigue o quanto o chão está sujo em volta do balcão! Se estiver muito limpinho… xiiiii… caído! 

Voltando ao caso do Daniela, na primeira vez que tentamos jantar por lá estava muito cheio e não tive o menor saco com o atendimento meio confuso e mal humorado. Fomos embora. Mas tinha ouvido falar bem da comida e Luiz estava curioso para voltar. Muito bem, para provar que não sou uma pessoa de todo rancorosa, um belo dia, tomei uma dose de paciência e me propus a encarar o desafio. 

Quando chegamos estava cheio, como sempre, e perguntamos ao gordinho do balcão se havia mesa. Ele mal olhou para nossa cara, apontou para trás e disse algo como, tem que falar ali com a minha “companheira”. A companheira chamava Lola e, por sua vez, nos disse que não tardaria muito a vagar uma mesa. Sentamos pelo balcão, enquanto esperávamos, e ficamos observando o local e as pessoas. Sei que ela chama Lola, graças a outra garçonete – uma baixinha que devia bater no meu umbigo, mas de uma voz poderosa – que berrava: Looooooolaaa… sluoxvmeo%^&ajfnvoa*f#ijoaiganfaoifñugoer! E a Lola respondia bem alto também: Pues… hombre! Laljfo#aiugal*gj%odgogoaivones! E quando eu achava que elas iam se pegar pelo cabelo e rolar no chão brigando, as duas morriam de rir! Foi quando começamos a entender como funcionava o esquema! 

Não era uma questão de mal humor, era o jeito deles se comunicarem. No fundo, eram uns debochados! Além do que, era uma zorra! Uma reclamava da outra que não escutava direito, que demorava a entregar os pedidos, o barman fumava enquanto servia as bebidas, quando algum pedido ficava pronto e o garçon não sabia para quem era, berrava o nome do prato até um cliente berrar também “é meu!”. Um caos! 

No meio daquela bagunça o que mais eu poderia pensar: caramba, mas esse lugar é ótimo! 

Finalmente, nossa mesa vagou e nos sentamos. Fomos atendidos pela baixinha invocada. Quando ela dava as costas, eu ficava de onda com Luiz, dizendo: olha, o que ela recomendar você aceita, hein! O que ela disser a gente obedece, entendido? Pois, no fim da noite ela já fazia algumas piadinhas e buscava nosso olhar de cumplicidade. 

Resumindo, com um pouco de boa vontade e respeito pela cultura local, tivemos um jantar divertidíssimo! Além da melhor tortilla espanhola de Madri!

XXI – La Tortilla Española

A tortilla española é uma instituição, uma espécie de orgulho nacional! Acho que é o “arroz-com-feijão” daqui. 

Da primeira vez que experimentamos, tanto eu quanto Luiz não achamos lá essas coisas. Muito cá entre nós, hein? Porque se algum espanhol me escutar dizer isso, é capaz de eu ser extraditada! Me pareceu um omeletão de batata meio sem graça. Com o tempo, fui pegando gosto e vendo que também depende muito se é bem feita. Atualmente, adoro! 

Receita: 

Cortar a batata em rodelas finas ou pedaços pequenos, secar e fritá-las em azeite. O azeite tem que cobrir as batatas e elas não precisam ficar morenas, mas cozidas. Adicionar cebola picada na fritura e deixar o cheiro subir (aquele cheirinho delicioso da cebola fritando no azeite…hummm).  

Em paralelo, bater os ovos, como em um omelete. Quando as batatas e a cebola estiverem no ponto, misturar rapidamente aos ovos batidos, adicionar um pouco de sal e fritar tudo, também como um omelete. Tem que fritar dos dois lados. Pessoalmente, prefiro quando o interior fica um pouco molhadinho. 

Pues… hombre! É muito bom! 

Essa combinação de ovos com batatas aqui é comum. Putz! É mortal! Mas como resistir? Falando nisso, tem também os huevos rotos, que são os ovos mexidos. Entretanto, costumam vir com batata frita no azeite e cubinhos de jamón curado. Um chute no balde! 

E os pinchos e as tostas? São torradões, o pincho do tamanho de uma bruschetta e as tostas maiores. Varia a cobertura: camarões, gulas, jamón, queijos… combinações criativas. Também perto de casa, tem um bar de copas que serve uma dessas torradas com camarõezinhos ao alho e óleo, que estou segura que um certo amigo meu,  também hóspede aqui, vai mexer na cadeira só de ouvir! 

Tem as croquetas, mas essas merecem um capítulo especial. 

Para terminar de meter o pé na jaca mesmo, só pedindo o vinho da casa para acompanhar. Ultimamente, nem me preocupo em saber a marca, pois é sempre bom. Me conformo em pedir pela região e estamos conversados. 

Bom, agora preciso ir, porque me deu uma fome…

XXII – El Corte Inglés

Para quem nunca veio a Madri, El Corte Inglés é um tipo de loja de departamentos que tem absolutamente tudo: supermercados, perfumaria, roupas, CDs, eletrônicos… tudo! E para quem já veio, é impossível que não tenha notado algum pela cidade. Eles são tantos que parecem saltar na sua frente quando você passeia. Acredito que eles se reproduzam à noite. Não tem como fugir! 

Então, se não pode com eles… por que não dar uma entradinha, né?  

Claro que perto da minha casa também tem El Corte Inglés! Na verdade, acho que perto da casa de todo mundo. Mas enfim, é onde faço a maior parte das minhas compras de supermercado. 

Sabe aqueles carrinhos de fazer compra na feira? Aqueles que normalmente são usados pelas velhinhas? Pois é, tenho um. É um pouco mais chic, porque é revestido de um material térmico. Até porque há uma variação de temperatura maior aqui que no Brasil. Continua parecendo um andador de velhinha, inclusive muitas o utilizam também com essa função. Mas não quero nem saber, carregar compras no braço não é tarefa simples e o tal do carrinho quebra o maior galho! 

Além do que, faz parte da minha “malhação” gratuita. Preciso arrumar alguma forma de gastar os milhões de calorias que a gente tem consumido. Portanto, enquanto ando, malho perna; nas escadas do metrô e me equilibrando em seus vagões, malho bumbum; com o carrinho de compras, malho braço; e por aí vai. 

Você pode optar por te entregarem as compras em casa. Se as fizer até às 14:00 horas, eles te entregam no mesmo dia. Se passar desse horário, só no dia seguinte. As compras mais pesadas, peço que me entreguem porque não tenho automóvel. 

Os entregadores fazem seu trabalho a pé, porque estacionar é um inferno! Normalmente, usam um tipo de carrinho de mão onde se empilham pequenos containers de plástico rígido. Param na calçada, em frente ao edifício do cliente, sobem com suas compras, e deixam as outras ali na calçada mesmo esperando. Assim, sozinhas! Ninguém mexe! Nunca chegou faltando nada para mim. 

O restante das compras, faço nas lojas menores e mais específicas. Nunca entre 14:00 e 17:00 horas! Não insista que isso é considerado pecado mortal! Nesse horário, quase todo o comércio está fechado para a siesta. É impressionante! Os únicos mercados que não fecham nessas horas são os administrados por orientais e, lógico, o El Corte Inglés.

XXIII – El Museo del Jamón

…se a loja do El Corte Inglés se reproduz à noite, quem será seu parceiro? Na minha opinião, só pode ser o Museo del Jamón! De vez em quando, ele dá uma escapadinha e também se relaciona com a Zara, outra espécie muito fértil! 

Numa cidade onde se cultua a boa (e calórica) comida, faz todo sentido do mundo haver um museu do presunto! O Museo del Jamón é uma cadeia de bares/restaurantes muito popular que, como o próprio nome denuncia, é especializada em jamón. Seu preço é bem razoável e sua decoração inconfundível! São vários presuntos crus espanhóis pendurados ao teto. Quando digo vários, quero dizer centenas! 

O jamón é outra instituição por aqui! O espanhol adora e come mesmo com frequência. Entretanto, não é tão barato, como muita gente imagina. É preciso entender também sua classificação e não pagar gato por lebre ao comprar. Essa classificação é extensa, mas vou falar só do básico.  

Há o jamón serrano, que é mais comum e muito bom; o jamón ibérico é de qualidade superior e, portanto, mais caro que o serrano. O ibérico é proveniente de uma raça específica de porcos, de capa negra, que possuem como característica a capacidade de acumular gordura embaixo da pele e infiltrá-la em seus músculos. Outro fator importante que os diferencia é serem criados livres no campo, e não confinados nem com alimentação forçada. Digamos assim, são porquinhos felizes.   

Ainda falando dos ibéricos, eles são subdivididos em “de recebo” ou “de bellota”. A diferença está em quanta alimentação provém exclusivamente dos pastos ou é complementada com ração. Os ibéricos de bellota possuem a alimentação mais natural e são os melhores. 

Essa questão da alimentação natural e de serem criados livres não é simplesmente ecológica. Interfere diretamente no sabor do jamón e, consequentemente, no seu preço. 

Conclusão: nesse momento, os judeus ortodoxos devem me odiar e me deu fome outra vez. Vou comer jamón!

XXIV – O dilema, não muito difícil, de não ter carro

Quando cheguei aqui, tomei uma decisão que nunca me passou pela cabeça antes. Não quero mais dirigir! Cansei. 

Há muitos anos o carro era quase uma parte do meu corpo, um prolongamento das minhas pernas e braços. Dirigir já não me dava tanta satisfação como no início, mas minha vida simplesmente foi se tornando inviável sem quatro rodas. 

Tirei carteira aos dezoito anos e uma semana. Nem fiz auto escola porque as aulas demorariam mais de um mês. Um mês quando a gente tem dezoito anos é uma eternidade para se esperar. Tive um tutor e, no próprio dia do aniversário dei entrada no processo no Detran para fazer as provas. Uma semana depois, a carteira estava na minha mão. Nessa época, morava em Brasília e o transporte público era caro e ruim.

Ainda por cima, os ônibus paravam à meia-noite. Um carro era minha independência! Ainda aos dezoito anos, voltamos a morar no Rio, onde realmente aprendi a dirigir. Eu gostava! Foi também quando comecei a viajar de carro, e era um prazer indescritível pegar a estrada. Era a minha liberdade. Cheguei até a entender um pouco de mecânica, muito importante quando seu carro é usado! 

Em São Paulo, os carros não eram tão usados e até bem confortáveis. Tinham que ser, quando você precisa passar mais de duas horas do seu dia no trânsito… Além de se adicionar a essa equação o fator “status”.  A marca do seu carro era algo fundamental até a violência crescer tanto, que as pessoas passaram a buscar os modelos mais simples para não chamar atenção. Aos poucos, fui perdendo o gosto por dirigir, mas não via outra alternativa. 

Em Atlanta então, nem se fala! É uma cidade construída para se andar de carro, muitas vezes as ruas nem tem calçada. E ainda por cima, para ter a carteira de motorista americana, tive que fazer prova de direção, teórica e prática, outra vez. O lado bom é que o trânsito não era tão ruim como o de São Paulo e o melhor ainda, não tinha motoboy! 

Enfim, quando cheguei aqui, já de saco muito cheio de dirigir, percebi que o transporte público era ótimo e as ruas razoavelmente seguras, não tive a menor dúvida: me aposentei do volante! O trânsito não é muito melhor que São Paulo e estacionar é bem mais difícil. É irritante! 

O melhor de tudo foi voltar a caminhar na rua. Engraçado que foi um prazer muito parecido ao de quando tirei minha carteira. De uma maneira antagônica, também significou independência e liberdade. Parece exagero, mas tive que reaprender a andar. Utilizar músculos que não me lembrava, proteger meus joelhos, selecionar os sapatos de forma diferente, calcular o tempo para cobrir determinada distância. Caminhando pela rua é quando vejo e penso mais. 

Por que demorei tanto a fazer algo tão fácil?

XXV – Os velhos amigos que andam de braços dados

Há muitas pessoas que caminham pela rua. Jovens, velhos, mulheres, homens, grupos, pessoas sozinhas… todo mundo! Tirando a hora da siesta, quando as calçadas se esvaziam, o resto do dia ou da noite, elas estão sempre movimentadas. 

Voltei a usar o verbo “passear”. As pessoas passeiam! Parece não ser muito importante onde estão indo, nem haver uma hora definida para chegar. Recuperou-se a sabedoria canina de aproveitar a delícia de sair de casa. 

Moro em um bairro onde as pessoas são mais velhas, aqui são chamados de “mayores”. Acho muito inteligente isso de quanto mais velho, mayor. E eles também saem para passear. 

Vejo muitos desses casais mayores passeando de braços dados. Vão com um ritmo e sincronia de quem anda junto há muito tempo. São como antigos parceiros de dança. É comum também se ver mulheres mayores andando com seus braços dados. Talvez viúvas, irmãs ou amigas. Mas o que me impressionou mesmo foi ver homens mayores com seus braços dados, normalmente com alguma dificuldade de locomoção. 

Dois homens de braços dados não é algo comum de se ver em uma cultura latina. Há um direcionamento imediato e preconceituoso ao homossexualismo. É algo difícil de se ver com naturalidade, pois por algum motivo louco isso choca. A homossexualidade não me choca e mesmo assim, não tinha em minha memória uma imagem de dois homens de braços dados com tanta naturalidade. Das vezes que vi, sempre me pareceu um pouco constrangido, provocador ou com intenção de humor. Não quero nesse momento levantar bandeiras, talvez o faça outro dia, mas hoje não. Só estou colocando a carga de pudor que existe em um gesto que é razoavelmente simples, ou que deveria ser. 

E não é só isso, acredito que também há um peso da masculinidade, onde esse gesto poderia significar assumir uma fraqueza publicamente. Ao homem foi dada a função de protetor e nunca de protegido. É difícil para meu marido me ver com frio sem me dar seu casaco, é difícil para meu pai me deixar carregar a mala mais pesada. Vai muito além de um machismo bobo, simplesmente é difícil para eles. 

Portanto, quando vejo dois homens mayores passeando de braços dados na rua, isso me emociona. É definitivo e não requer explicações! Eles colocam os pudores e preconceitos no seu devido lugar, pois há muitos anos estão acima dessas bobagens. Um homem mayor que tem um amigo para apoiar o braço e lhe ajudar a caminhar, só pode ter feito alguma coisa certa na vida. E o amigo que lhe dá esse braço sem a menor vergonha, só pode ser um homem bom. 

A vontade que me dá é de parar na calçada e fazer uma reverência, dessas que a gente faz para reis. Dois velhos amigos caminhando de braços dados é lindo!

XXVI – Aulas de Espanhol

Cansei de falar igual turista! Finalmente, resolvi e tive tempo de entrar em um curso de espanhol. Não há mais problema algum para falar na rua, mas queria fazer uma pós graduação ano que vem, e já me imaginou escrevendo textos com “nóis vai, nóis foi”! Não dá, né? 

Pesquisei e acabei optando pelo curso da Universidade Complutense, que é a maior aqui de Madri. É super bem recomendado. São todos os dias da semana, três horas por dia, de outubro a dezembro. No primeiro dia de aula, é realizado um teste para saber em que nível você está e se dividir as turmas. O limite mínimo de idade é de dezesseis anos (ui!). 

No primeiro dia, havia cerca de 150 alunos em um auditório para a abertura do curso e a divisão dos grupos a serem testados. Apavorada com o limite mínimo de idade, dei aquela olhada geral para ter uma idéia da faixa etária. Não estava tão mal. Definitivamente, a maior parte tinha mais de vinte anos. Infelizmente, não muito mais. 

Por outro lado, eu não era a mais velha. Acho que era, pelo menos, a 5a mais velha… dos 150! Tudo bem, enquanto não me chamarem de Mrs. Robinson, tá bom! 

Atrás de mim, aquela conversinha pós-adolescente: meu namorado atual… ah, nós não estamos mais juntos, mas nos tornamos grandes amigos… Putz! Ninguém merece! Como elas falavam em inglês, fiquei na esperança que fossem muito básicas e não caíssem na minha turma. Passei para o curso avançado, aparentemente, alguém acha que falo melhor do que acredito. 

No caminho de volta fui me sentindo assim, um pouco antiga. Peguei o metrô. A faculdade é longe da minha casa e não dá para ir a pé. Quando terminei de me sentar, tinha o casaco amarrado na cintura e ficou um pouco incômodo. Levantei para tirá-lo bem no momento que o metrô andou, claro! O maquinista devia estar de sacanagem só esperando para me derrubar. 

Saí catando cavaco uns três metros, até conseguir me segurar. Um senhor tentou me ajudar, quando falou mujer!. Olha, e eu achando que eles só diziam hombre!. 

Bom, me sentei outra vez e dei aquela verificada se havia me machucado, mas estava tudo ok. Foi quando percebi que ali havia uma mensagem divina! Olha que bom que eu tinha mais de trinta anos! Se eu tivesse vinte, naquele momento estaria morta de vergonha! Se houvesse um menino bonitinho no vagão, então? No dia seguinte eu mudaria meu horário ou me disfarçaria com enormes óculos escuros!  

Com trinta e cinco, eu não estava nem aí! Minha única preocupação eram meus joelhos! Pode?

XXVII – O bar da Plaza Paja

No caminho para Plaza Paja, em la latina, tem um bar que gosto muito. Ele oferece umas mesas do lado de fora, encostadas no muro de pedra da Igreja de San Izidro. Na frente das mesas há uma calçada larga por onde passa muita gente. 

Além de ir com Luiz, também levei uns dois ou três hóspedes ali. Depois de caminhar pelo centro, é um bom ponto para sentar, descansar um pouco e aproveitar o intervalo para um pipizinho básico em um banheiro limpo. Enquanto isso, fazer o que? Tomar uma cava para refrescar e, se a cozinha estiver aberta, comer umas tapas.  

Todas as vezes que vou lá, tem sempre um homem que vai de boné, óculos escuros, umas revistas e sua cachorrinha. Ele mesmo a gente não nota tanto, mas a cachorrinha faz o maior sucesso. É uma puggy muito sociável que senta na cadeira igual gente. Muitas pessoas que passam gostam de cumprimentá-la. 

Nos dias mais movimentados, há músicos que param e fazem suas apresentações. Sempre demos sorte e foi um instrumento clássico, tocando jazz ou bossa nova. Podia ser bem pior, na frente do Palácio Real, costuma ser acordeon tocando Macarena. Da última vez, tinha uma mocinha muito simpática que tocava flauta e nos apresentou uma música do maestro “xopim”. Só entendi de quem era quando iniciou “Garota de Ipanema”.  

Mas o mais interessante é olhar o pessoal passar na calçada. Também é daqueles lugares onde a gente senta um do lado do outro, olhando para rua. Ninguém quer ficar de costas. Ao Admirar as pessoas, francamente, não soube como categorizar seus estilos de se vestir. O estilo mais preciso que encontrei é o “estilo esquisito”. Como tem esquisito! Passa um mocinho com sapato azul turquesa de bico fino, mocinha com chapéu cor-de-rosa e aplique de flor, cintos metálicos localizados embaixo da bunda (tá segurando o que?), cortes de cabelos estapafúrdios… o difícil é achar alguém normal. 

Em uma das vezes, estava com Luiz e desceu um grupo de uns quinze esquisitos juntos. Assim, de uma vez só, em bando. Não tive dúvidas: Luiz, acho que aí embaixo tem uma reunião daqueles grupos de auto ajuda! Ficamos rindo e inventando nomes para a reunião do dia – “Sou esquisito, é daí?”, “Estranho, porém feliz”… Não demorou muito, desceu outro bando. Acho que era a outra sessão que iniciava em 20 minutos! 

Na hora de ir embora, depois de reparar e rir de um monte de gente, me olhei  bem e cheguei a conclusão que a esquisitinha deveria ser eu. Quem sabe se eu correresse conseguisse pegar também a próxima sessão!

XXVIII – Filho de Peixe

As pessoas quando viajam tem o costume de levar presentes ou lembranças para seus familiares. Os presentinhos de viagem variam dependendo do dinheiro, paciência ou tamanho da mala. Camisetas com o nome da cidade, bolsas de marca, miniaturas dos principais monumentos, aparelhos eletrônicos, coisas assim. 

Minha família leva comida! E o pior é que costuma ser o presente que mais agrada. 

Meus pais vieram nos visitar em outubro. Ainda no Brasil, me perguntaram o que queríamos que trouxessem. Do que sentíamos falta? Minha lista saiu rapidamente: carne seca, paio, costelinha defumada, pimenta malagueta, cachaça… Digamos, um kit-arataca. 

Não sabíamos se isso tudo passaria pela alfândega, porque oficialmente é proibido entrar com carnes no país, mas não custava tentar. Ao passarem pela saída do desembarque, a primeira frase do meu pai não foi “oi” nem “que saudade”, mas feliz da vida me disse: a feijoada passou! E eu mais feliz ainda, é claro! 

É verdade que ainda tinha carne seca no congelador. Recebo carne seca pelo Sedex! Meu pai compra no mercado embalada à vácuo e minha mãe põe no correio em Copacabana. Chega aqui em Madri na minha porta. A carne seca mais cara do mundo! Mas como me deixariam passar essa vontade? Pensando bem, acho que sou meio mimada, né? 

Bom, quando chegaram aqui, antes de mostrar o Museo do Prado e a Plaza Mayor, fui logo ensinando onde ficavam os mercados e restaurantes mais próximos. Vai que o armário e a geladeira, abarrotados de comida, não fossem o suficiente! Porque, lógico, havia comprado uma seleção de frios, queijos e comidinhas típicas. 

Comida para gente é coisa séria! Não é um ato realizado unicamente para se matar a fome. Tem um ritual de carinho, amizade, expectativa e, porque não, também uma boa dose de gula. Todos sabem cozinhar, não é uma coisa de homens ou mulheres. E gosto muito que seja assim. 

Como qualquer família, tivemos bons e maus momentos, nossos problemas também. Mas ao redor da mesa, não me lembro de nada de ruim, sempre era bom! A mesa era a Suíça da casa, território neutro. Talvez seja o motivo de até hoje eu gostar de alimentar as pessoas. É quase impossível para mim receber alguém e não oferecer comida. 

E, certamente, na volta ao Brasil, as malas também foram cheias de guloseimas: uma peça inteira de jamón (ibérico de bellota, é óbvio! O alucinante pata negra!), lomo ibérico, fuet, azeitonas com e sem anchovas, mariscos enlatados… afinal de contas, do lado de lá também havia seus amigos e meu irmão.

XXIX – Ora, pois!

Passamos um fim de semana em Portugal. Pegamos um avião para Lisboa e lá alugamos um carro para passear pelos arredores. Fomos a Caiscais, Estoril, Sintra, Queluz e Mafra. Além de passear por Lisboa mesmo. 

Fui a Lisboa quando tinha uns sete anos, no máximo. Lembrava-me de algumas coisas, mas muito pontuadas e nebulosas. Agora voltando adulta, aos poucos fui me lembrando de outras e o resto conheci como se fosse a primeira vez. A cidade me lembrou muito o Rio de Janeiro, na sua parte mais antiga, e São Paulo, na mais moderna. Natural, né? Meus destaques, daria para Castelo de São Jorge, Monastério dos Jerônimos, Torre de Belém e Docas.  

No Castelo de São Jorge, quando criança, me lembrava de perseguir algumas galinhas-da-angola. Essas não estavam mais lá, devem ter virado canja faz tempo! Dessa vez haviam pavões. 

O que achei engraçado foi a minha dificuldade com o sotaque português. É que agora estou fora do Brasil há uns dois anos e me acostumei a mudar a chave na cabeça para “idioma estrangeiro”. Quando escuto o português de Portugal, me soa como estrangeiro e, automaticamente, tenho o reflexo de falar outro idioma. É ridículo! Mas paguei o mico de ter dificuldade em falar minha própria língua! Fiz um passeio de bonde, com narração por onde passávamos. Preferi usar a opção “espanhol” e o Luiz “inglês”, ficava mais fácil!  

Claro que teve a parte gastronômica! Comemos uns camarões enfurecidos no restaurante Ribadouro, próximo à praça dos restauradores, daqueles que devem dar surra em lagostas, juro! Cada dois camarõezinhos pesavam meio kilo – e isso não é linguagem figurativa! Também aproveitamos para ir a uma churrascaria brasileira, a Búfalo Grill, ai que delícia! Aqui em Madri, comemos muito bem, mas falta uma boa churrascaria. 

Em Atlanta havia excelentes churrascarias, todas brasileiras. Eram caras e bem frequentadas. Acho que nem no Brasil comi tanta picanha na vida! Além do que, conhecemos um amigo americano que se apaixonou pelo churrasco brasileiro. Na sua casa, Luiz o ajudou a improvisar uma churrasqueira com tijolos refratários. As carnes, podíamos comprar no “Brazileirão Supermercados” ou no “Coisas do Brasil” (os nomes eram exatamente assim, e lá dentro só o gerente sabia falar inglês!).  Esse amigo apaixonado por churrasco. Mudou-se depois para Vermont. Na sua bagagem, levou várias peças de picanha congelada. Passamos um Reveillon com ele e fizemos um churrasco, abaixo de zero, no meio da neve, daqueles que precisava se colocar papel alumínio em cima das carnes. As cervejas eram enterradas no chão, também na neve, para gelar. 

Caramba, e não é que estou falando de comida outra vez! Mas já que o assunto é esse… voltando a Lisboa, quase ao lado do Jerônimos, você compra o melhor pastel de belém do mundo! Sai quentinho, uma delícia! Tem sempre fila na porta. Também, a casa foi fundada em 1837. Depois de quase 200 anos, eles tinham que aprender, né? 

Gostei muito da parte moderna da cidade, onde fica o Parque das Nações. Foi fundado um shopping, Vasco da Gama, que apesar do nome é lindo! A sua volta tem um centro de exposições, prédios modernosos, teleférico, é bem interessante.  

Domingo à noite, voltamos para Madri. Exaustos! Adorei a viagem!

XXX – Eu e Jack

Depois de ficarem conosco por duas semanas, meus pais voltaram ao Brasil. De quebra, Luiz também viajou a trabalho para Boston. Que Boston! Caramba, como a casa fica vazia de repente!  

Já é a segunda vez que tenho hóspedes que vão embora com Luiz viajando. Fico com aquela cara de bunda. Desculpe, mas não sei como descrever de forma mais educada essa expressão de nádegas! Essas coisas tem que ter regulamento! Não pode ser assim! Vamos combinar, quem vier a partir de agora está proibido de dizer que está indo embora. Diz que vai comprar cigarros e não volta, pode ser?  

Vou saber que é mentira, quase ninguém que conheço fuma! Mas, pelo menos, consigo manter minha pose. Posso fazer a cara 43 e dar aquela olhadinha distraída por cima do ombro e dizer, ok! Dá para trazer pão também? Daí vocês respondem, claro, então vou levar a mala para ajudar a trazer tudo… E dessa forma nos despedimos civilizadamente! 

Ainda bem que eu sou flamengo e tenho meu Jack, que além de gato é um cavalheiro. Faz questão de fingir que precisa da minha companhia o tempo todo. Quando a casa se esvazia ele fica elétrico, faz um monte de gaiatices e quase me derruba para correr na minha frente se embolando nos meus pés. Depois vem dormir comigo e interrompe meu sono leve com seu ronco. Ele ronca! Acordo com um rosto de gato, colado no meu, com o bigode me fazendo cosquinha e ronronando bem alto. É hora de levantar e voltar à quase-rotina.

XXXI – As traduções

Por aqui, tudo se traduz! Inclusive nomes próprios. Acho que é resquício da ditadura do Franco, quando as traduções eram obrigatórias. Mas não tenho certeza disso, simplesmente ouvi em uma entrevista na TV. 

O fato é que da primeira vez que fui a um cinema em Madri, quase tive um treco! Descobri que os filmes são sempre dublados e não legendados. Há a possibilidade de vê-los legendados também, mas só em alguns cinemas específicos. Sem brincadeira, a experiência de ver o John Travolta com sotaque cucaracho é algo inesquecível! Ainda bem que não era sotaque portenho, ou juro que subiria na cadeira e berraria: saia desse corpo!  

Foi engraçado também quando fui ao Museu do Prado e havia uma exposição temporária chamada “Durero”. Não conhecia o significado da palavra e fiquei curiosa para saber do que se tratava. Só entendi quando entrei e vi a primeira gravura: Dürer! Aqui o pobre do Albrecht Dürer, se tornou o Alberto Durero. Assim como o príncipe Carlos de Inglaterra, pai do Guilhermo. 

Agora, dose mesmo foi quando compramos nossa passagem para Bordeux e ficamos na dúvida se haviam nos vendido o bilhete correto. É que quando lemos o destino da viagem, constava “Burdeus”. Francamente, você prefere tomar um vinho de bordeux ou de burdeus? Eu acharia que era alguma falsificação paraguaia mal feita! 

Estou pensando seriamente em adotar esse esquema. Já estou quase dizendo que me chamo “Blanca”, é menos mal do que ver meu nome escrito “Vianca”. Viu a anca de quem?