Há um longo tempo não escrevo. E me inventei mil desculpas para deixar de escrever, não queria ficar o tempo todo reclamando; não caminho mais pelas ruas e essa é minha maior fonte de inspiração; tenho medo de me expor no Brasil, parte por causa da violência e parte pela mentalidade à minha volta, mas também não queria me censurar… todos esses motivos tinham e tem um fundo de verdade, mas a verdade real é que, simplesmente, não tive vontade. Eu não quis. Achava que não podia ser eu mesma e escrever sobre quem não sou ou não quero ser, soava como contar a história de uma personagem que representava. E não que estivesse fingindo, só que não conseguia me reconhecer. Talvez nem quisesse me analisar. Mas hoje resolvi, mais uma vez, chamar meus demônios pelos seus nomes, então vamos passar por cada um deles!
A definição de hibernação é a “condição de inatividade parcial e de redução metabólica extrema que ocorre em certos animais durante invernos rigorosos”. Quando tomamos a decisão de vir para o Brasil, sabia que passaria um um inverno rigoroso, reduzi meu metabolismo, poupei minha energia e direcionei toda ela para o que realmente me importava em todo esse período, minha família. O resto, era contingência. Calculista, né? Pois é, mas gostando ou não, tenho esse lado também. E é sobre isso que finalmente quero falar, quero contar sobre esse período. Preciso passar a página e me resolver por escrito, porque na prática, já fechei esse ciclo.
Não é que não tivesse gostado de ir para o Brasil, eu odiei! Odiei nas minhas entranhas, eu não queria ir nem a pau! Só fui porque precisei. Cheguei no dia 5 de novembro de 2014, no dia 9, saí para celebrar meu aniversário com esse belíssimo presente recebido. Bebi feito uma louca, até me anestesiar. Cheguei em casa e tive o primeiro ataque de pânico da minha vida, não conseguia respirar, sentia que ia morrer e me odiei por isso. Pobre do Luiz do meu lado, sem saber o que fazer para ajudar e não havia nada, esse problema era meu. Acordei mais calma no dia seguinte e decidi que não ia enlouquecer. Era só uma questão de tempo e perspectiva, não adiantava julgar desde dentro do olho do furacão. Eu tinha uma missão, que aceitei e quis cumprir, por mim. Eu que buscasse o que tivesse de bom, fizesse o que tivesse que fazer e aprendesse com isso. Deixa de mimimi e toca o barco!
E assim foi. Posso dizer, sem hipocrisia, que realmente melhorou. Continuava insatisfeita, fora de lugar, mas sofria menos.
O CONTEXTO EM QUE VIVI E AS CONTRADIÇÕES
Não foi só por isso, afinal, nunca é por uma coisa só, mas a situação política no país contribuiu bastante para minha insatisfação. Não pertenço mais, novamente essa sensação de estar fora de lugar. Não temos mais direita nem esquerda, há uma pasta disforme, sem valores, se dividindo em lados que fingem ser opostos, mas sem nenhuma coerência ideológica. Como pudemos ter um regime de esquerda sem nenhum avanço em assuntos sociais básicos como, por exemplo, sexualidade e equilíbrio de direitos? Como poderíamos ter um governo de direita que fala em liberalismo e aceita a ditatura como possibilidade? Como entender a insistência em defender bandidos e corruptos declarados? Por um mal menor? Menor mesmo? Como não ver o tamanho do rombo deixado no país? E o pior de tudo, quem sobrou para oferecer alguma sombra de mudança? De sincero, sobraram os extremos, uma esquerda retrógrada e fora da realidade ou uma direita facista e cruel; com um centro embolado e tendando dizer o que as pessoas querem ouvir para permanecer no poder. Um completo show de horrores, onde o resumo da ópera é: nunca vivi nesse país tamanha intolerância às diferenças, nunca me senti tão insegura nas ruas e nunca vi as pessoas, as mulheres principalmente, serem tão desrespeitadas. Eu não caibo aqui! Não tenho um time, não tenho um lado! E não tenho um pingo de esperança que vá melhorar durante a minha vida. E isso me dá muita raiva! Porque eu queria muito querer ficar. Eu queria dizer que sou brasileira com orgulho. Eu queria caber em algum lugar aqui. Fiquei com raiva dos políticos, fiquei com raiva dos meus amigos, fiquei com raiva de mim!
Não seria a primeira crise que passaria no país, outras houveram e outras mais haverão. O problema é que agora tenho 48 anos, sou eu que não tenho mais tempo para esperar resolver. Sou eu que não tenho mais energia de tentar fazer parte da solução. Meu otimismo crê que, em algum momento, as coisas podem efetivamente melhorar. Infelizmente, não na minha geração. A possível felicidade no Brasil, que é real, não é para mim.
Mais ou menos em setembro do ano passado, surgiu uma notícia que chegou de repente, voltaríamos a morar em Londres no final de 2017. Completos três anos de vida em solo brasileiro. E conto logo no início desse texto, para evitar o suspense. Porque sei que essa crônica será quase um livro, porque preciso de muitas histórias para resumir o que quero dizer de verdade sobre esses anos e porque nada na vida é tão simples.
Então, para quem quiser e tiver paciência para ouvir, vou contar meus principais flashes de memória e tentar eu mesma entender essa quantidade de sentimentos contraditórios que povoam minha cabeça nesse exato momento.
Com poucos meses vivendo por terras brazucas, próximo ao carnaval, Luiz conseguiu ingressos de camarote para um show do Jorge Benjor. Nossa, saber que íamos ouví-lo foi uma emoção! Fui animada para o show, em uma casa de espetáculos enorme. De cima do camarote, de um lugar privilegiado, olhei para aquela multidão e comecei a sentir falta de tanta gente que gostaria que estivesse ali. Na verdade, comecei também a achar que faltava algo ou alguém… sei lá, visualmente era estranho. Até que vi um grupo de músicos passando pela frente do palco e chamaram minha atenção. De repente, entendi que não chamavam minha atenção porque eram músicos, mas porque eram negros. Praticamente, os únicos negros de todo o enorme lugar. Olhei novamente em volta e percebi que o que sentia falta mesmo era da mistura. A tal mistura que tanto me orgulhei do meu país, não existia na prática. Era parte de uma memória afetiva irreal. Querendo ou não, pensei que minha vida se tornaria mais restrita à uma única camada social, uma visão pasteurizada, me entristeceu. Fui remetida imediatamente a quando morava em Atlanta, 11 anos antes, e fomos parar em um restaurante onde eu era a única branca do local, escrevi por aqui uma crônica chamada “O Dia em Que Fui Negra”, foi o dia em que percebi como vivia em uma bolha no Brasil e, por não ser racista, nunca havia dado a devida atenção. Nem havia entendido, até aquele momento, que o silêncio dos bons é conivente com os que não são. Não é só uma questão racial, mas também e acho que até mais forte no Brasil, uma questão sócio-econômica. Depois de viver tantos anos na Europa e me acostumar a frequentar o mesmo espaço dividido por executivos e operários, afinal, as diferenças sociais são radicalmente menores, não há mais como voltar para bolha sem me sentir menor. Novamente, me senti fora de lugar. Até que finalmente o concerto iniciou, entra o Benjor no palco, todo de branco com sua pele negra, já não tão jovem, mas com todo seu carisma, energia boa e solta sua voz inconfundível em um: Jorge sentou praça, na cavalaria, eu estou feliz porque também, sou da sua companhia… Na nossa vida itinerante, várias vezes ouvimos “Jorge de Capadócia” como uma oração de proteção. Naqueles momentos do caraca-o-que-a-gente-vai-fazer-agora, respirávamos fundo, abríamos um vinho e ouvíamos a bendita música. Uma injeção de ânimo e de poder imaginário, afinal, quando acreditamos que estamos protegidos, podemos muito mais. Um sopro, um fôlego de alívio, uma pontinha de esperança que ia dar tudo certo e que ficaria tudo bem.
Talvez fosse um presságio de como seria minha vida ao longo desses três anos, um conjunto de contradições andando e se chocando em pares. Um lado de raiva, de frustração; outro de ternura, de proteção; um vulnerável, medroso; outro cheio de coragem e força. Foi assim.
Pouco depois desse mesmo carnaval, ainda em 2015, uma amiga me procura para dizer que o Monobloco estava abrindo uma oficina em São Paulo e as inscrições estavam praticamente se encerrando! Oi? Como assim? O Monobloco? Aquele que eu assistia o DVD cantando junto com os amigos brasileiros em Madri? Aquele que eu sonhava em assistir no Circo Voador? Esse mesmo! Meus ídolos estavam aqui pertinho e existia a possibilidade de tocar com eles! Lógico que eu fui e essa história está contada pelo blog em alguma crônica passada. Uma das melhores coisas que consegui fazer nesse período e só consegui fazer porque estava aqui, e na hora certa! Não é fácil, é suado. Admito que pensei em deixar no ínicio, mas é um orgulho, um prazer e um privilégio ter conseguido fazer parte dessa história! Participei do primeiro e do segundo desfile do Monobloco em Sampa, 2016 e 2017, e fiz todo o possível para participar em 2018. Meu naipe é o surdo de terceira e, como diz meu mestre, o surdo é foda! Outra coisa que aprendi nesses anos, a ter e respeitar um “mestre”. Enfim, queria muito que minha despedida do país fosse na rua, com meu surdo nos braços! Era pessoal.
Quando mudei para o Brasil, tinha na cabeça um prazo médio para ficar entre 2 e 5 anos. Lógico que não tínhamos nenhuma garantia de nada, mas era nossa intenção. Ficamos 3 anos, nossas previsões foram bastante certeiras de modo geral. Sabendo que minha estada era temporária, tentei sempre que possível estar presente na família, assim que, pelo menos uma vez ao mês, eu ia ao Rio. Sempre bate-volta, afinal minha vida era em São Paulo, mas era uma maneira de estar fisicamente presente, ajudar um pouco e aproveitar o máximo.
Nós tínhamos dois motivos principais quando decidimos morar no país, preparar a nossa aposentadoria e a família. A primeira parte era obviamente financeira e fizemos o melhor possível para encaminhar um futuro razoavelmente digno. Nós não temos filhos, sou Luiz e eu, contamos um com o outro, assim que já passava da hora da gente começar a se preparar para a velhice. Em relação à família, queria estar próxima à minha sobrinha em seus primeiros anos, queria estar na maternidade no dia que ela nascesse, ser uma das primeiras a pegá-la no colo, ver ela começar a andar, a falar… enfim, era muito importante para mim poder estar entre as suas primeiras lembranças. E, sendo brutalmente sincera, também queria estar presente nos últimos anos do meu pai. Minha previsão era que ele tivesse algo em torno de dois anos de vida, talvez um pouco mais com o nascimento da sua neta. Queria estar para o que precisasse, para garantir seu conforto e aliviar o peso para minha mãe. E, olha novamente essa polaridade, o que me trouxe ao Brasil foi, literalmente, o final de uma vida e o início de outra. Eu ainda não havia entendido que seria mais por mim do que por eles, mas chegarei lá.
Ir ao Rio estava entre os momentos mais legais desses anos! Não só pelos motivos óbvios, mas acredito também que porque, como não morava no Rio, permanecia a sensação de “visita”. Conceitualmente, na minha cabeça parecia mais leve, vai entender!
Em junho de 2015, lá fui eu para o aniversário de 70 anos da minha mãe! Um festão, celebrado em um chiquérrimo chá da tarde, nada mais, nada menos que no Copacabana Palace! Fui para o Rio adorando poder participar de mais um evento importante! Tudo muito bem! Tudo muito bom!
Mas lembra que falei que tudo acontecia em um jogo de contradições? Pois é, tudo parecia que ia bem, de repente ficava uma confusão, de repente ficava bem outra vez… enfim, meu pai não estava passando tão bem no aniversário, cismou que tinha que vir embora mais cedo… foi aquela confusão para achar alguém para trazê-lo e minha mãe poder ficar na sua festa… ele acabou vindo mais cedo para casa com minha prima… minha mãe se aborreceu porque afinal, meu pai não podia colaborar um pouquinho… o pau quebrou em casa! Eu no meio dos dois.
Putz, mas aquela festa ótima acabou em discussão! Caramba, que droga, né? Mais ou menos, porque no fundo foi bom. Há algum tempo, meu pai estava bastante dependente da minha mãe. Andava em casa, mas era muito difícil (e perigoso) caminhar sozinho na rua. Mesmo em distâncias pequenas, as calçadas cariocas são um lixo! Ele já havia começado a usar cadeira de rodas eventualmente, mas ainda não aceitava muito bem essa necessidade. Nos últimos meses, minha mãe estava quase prisioneira em casa, porque era uma preocupação só do meu pai cair, dele passar mal etc. Mas pergunta se alguém queria saber de colocar cuidadora com ele? Nada! Falei infinitas vezes! Quando um aceitava o outro não queria e vice-versa, na verdade, nenhum dos dois queria! E eu queria ter um filho pela orelha, só vendo ele cada vez mais limitado e minha mãe às voltas de uma bela depressão! Até essa tal briga do aniversário. Porque na hora da raiva, os dois aceitaram que precisavam de ajuda em casa. Era tudo que eu precisava! Saiu da boca deles, certo? Lógico que, como eu ia embora no dia seguinte, eles provavelmente acharam que fossem me enrolar e aquilo ia ficar por isso mesmo. Mas não iria perder essa chance nem morta! Acordei cedinho, antes deles, liguei para uma empresa de cuidadoras e já agendei para responsável nos visitar antes que eu viajasse de volta para São Paulo. Foi a reunião mais bizarra do planeta, eles com a maior má vontade do mundo e eu com cara de paisagem! Mas o importante é que a partir daí, finalmente, entrou uma dupla de cuidadoras em casa, se revezavam em turnos de 12 horas todos os dias. Só por isso, já teria valido à pena minha ida ao Brasil!
E, a propósito, no dia do aniversário, meu pai não inventou que estava passando mal. Ele estava com zica, foi internado no dia seguinte. Quanto às cuidadoras, alguns meses depois desse episódio, ouvi minha mãe dizendo que em casa podia faltar comida e não ia faltar a tal da cuidadora! Fez muita diferença! Trouxe mais liberdade ao meu pai para fazer as coisas na hora que ele quisesse. Além do que, pouco tempo depois ele só conseguia caminhar dentro de casa, porque na rua, só com a cadeira de rodas. E também mais liberdade e sossego para minha mãe poder sair e fazer as coisas dela durante o dia.
A VIDA E SEUS CONTRASTES
Em paralelo a tudo isso, acontecia minha sobrinha! Ela nasceu no final de janeiro de 2015. Para minha sorte e felicidade antecipei minha ida ao Rio, por puro acaso, um encontro de colégio, e consegui estar presente na sua chegada, fui com os pais dela para maternidade às 5 da matina! Vi seus olhinhos se abrirem pela primeira vez, ainda azulados em um primeiro momento. Pura emoção e amor instantâneo! Também só por esse momento, já teria valido à pena estar no Brasil.
Mas vamos voltar um pouco o filme, no exato dia do nascimento. Fui com meu irmão e minha cunhada para o hospital às 5 da manhã. O resto da família bem próxima, foi chegando em uma hora mais razoável. Pela hora do almoço, todo mundo morto e querendo descançar. A mãe, coitada, não tinha alternativa, apesar de ser a que mais precisasse de uma folguinha e com todos os motivos para isso. Precisava de um/uma voluntário(a) para acompanhar. Já me candidatei logo, não estou cansada, pronto! Fico por aqui com elas e vocês vão almoçar e descansar um pouco. Ficamos minha cunhada e eu, com aquele ser minúsculo, adorável, cheias de amor e disposição… mas nenhuma experiência! Aliás, vamos combinar que, por experiência, eu era a menos indicada a estar ali, né? Admito que foi um pouco assustador, minha sobrinha teve um tipo de engasgo, mas nos saímos muito bem e ficamos bastante orgulhosas!
No início da tarde, a família e alguns amigos começaram a aparecer novamente para visitar a ilustre recém-chegada! Entre as pessoas, o avô, meu pai. Foi antes dele ter cuidadora, chegou com minha mãe numa dificuldade enorme para se locomover e respirando mal pacas! Visitou a neta, ficou feliz… e minha mãe me chamando de lado, alertando que ele não estava bem e me pedindo para eu ligar para o cardiologista. Dali mesmo telefonei.
Resumo da ópera, saí da maternidade com meu pai direto para o hospital. Fomos para emergência fazer alguns exames. No início, os médicos achando que ele podia estar emocionado com o nascimento da neta e blá, blá, blá… e eu, gente, pode esquecer que não é isso, meu pai não tem essas emoções mimimi! Vocês não conhecem a peça! Não era emoção, era um trombo no coração e dali ele já internou. Nem lembro que horas consegui sair do hospital, mas foi um dia bastante longo! Novamente as dualidades, amanheci em uma maternidade, anoiteci em uma UTI.
Foi resolvido. Quer dizer, foi endereçado, curado a gente nem tinha mais expectativa. Há algum tempo, apelidei meu pai de Highlander, só morre se cortar a cabeça! Lembra que lá em casa é todo mundo politicamente incorreto entre nós mesmos, né? Mas os primeiros dias da minha sobrinha foi essa divisão de tempo entre o cuidado dos dois. Não que eu fosse responsável direta pelo cuidado de nenhum, mas queria estar próxima deles. O tempo se encarregou de sanar, assentar as coisas e ele voltou para casa.
Por sorte, meus pais e meu irmão moravam no mesmo bairro e era rápido me locomover entre as casas. Ainda que estivesse me dividindo para acompanhar meu pai no hospital, pude também acompanhar a chegada da minha sobrinha logo nos primeiros dias de nascida. Completamente neurótica, trocando de blusa e higienizando as mãos quando chegava da rua, como uma louca!
A lembrança mais bonita que guardei, entre tantas, foi dela recém-nascida, no primeiro ou segundo dia que havia chegado em casa. Sentei na poltrona da sala com ela no meu colo, quentinha, e ela foi se encolhendo sobre a minha barriga em posição fetal, dormiu assim, parecia não haver entendido ainda que havia nascido. E eu fui grávida por alguns minutos.
A ideia é que ela fosse para a creche só depois de um ano e, quando a licença maternidade da minha cunhada acabou, minha sobrinha ficou aos cuidados das avós durante o dia. Em princípio, passava mais dias lá na casa dos meus pais e, à noite, meu irmão ou minha cunhada a buscavam após o trabalho. Essa proximidade da neta em casa, certamente, trouxe uma canseira danada para avó e avô tardios, mas também foi um furacão de energia boa que entrou em casa. O prazo de um ano acabou se expandindo, ela não se adaptou à creche logo de cara, teve uma pneumonia… Enfim, de maneira que seu começo de vida foi muito perto dos meus pais. Não tenho dúvidas que ela trouxe um fôlego de vida para dentro daquela casa e igualmente para meu coração.
No final de 2015, comecei a achar que era hora de comprarmos um apartamento para nós. O mercado imobiliário estava fraco e era um ótimo momento para comprar. Chega de aluguel, quero a minha casa! Encontrei um apartamento dos sonhos, enorme! Ficava bem na frente do trabalho do Luiz, um duplex antigo no centrão da cidade, emblemático, preço ótimo, perfeito! Acontece que estava em inventário… ups! Alugamos com prioridade na compra, esperamos um ano e nada de resolver. Desistimos de esperar. Mas demos ótimas festas por lá!
Outra coisa curiosa essa no Brasil, o preconceito por bairros! Cada vez que dizia o nome da minha rua, via no rosto das pessoas aquele ar de preocupação e podia ler na testa delas aquela cena de drogados zumbis se esbarrando na minha porta! Havia moradores de rua, catadores de papel… mas a gente já conhecia quem era do bairro, não me incomodavam. Na verdade, me sentia muito mais tranquila em pleno centrão da cidade, do que em Higienópolis, meu bairro anterior. Diga-se de passagem, em Higienópolis, havia uma guarita com um segurança bem na frente da minha garagem e outros seguranças circulavam pelo meu quarteirão. Ainda assim, eu não andava a pé, não me sentia segura. No centrão, era mais misturado, a mistura me conforta. Contraditóriamente (mais uma vez), onde teoricamente se considerava mais arriscado, eu tinha menos medo, me sentia menos alvo.
Era um edifício pequeno, de apenas 3 andares. Por ter poucos moradores, para o condomínio não ser absurdo, não havia porteiro. Apenas uma faxineira que ficava pela portaria de vez em quando, depois da limpeza do prédio. Meus amigos e minha família achavam estranho. Eu acharia super estranho há alguns anos. Mas depois de 10 anos de Europa, não dava a mínima para ter porteiro! Pois é, era em um apartamento em pleno centro da cidade, sem as mordomias habituais, com gente misturada, que eu me sentia melhor, minha vida era mais próxima à européia. Gostava de lá.
Mas tínhamos um propósito, certo? Precisava comprar um imóvel! Então, paixões para o lado e vamos para a prática! Passava horas e horas buscando casa pela internet! Acho que conheço mais planta de apartamento do que muito arquiteto na cidade! Mas o esforço valeu. Consegui boas alternativas para negócio.
No final de 2016, após um ano morando no meu ex-apartamento dos sonhos, achei meu seguinte apartamento dos sonhos! Conseguimos comprar, finalmente a N-O-S-S-A casa! Mas só poderia iniciar a obra no início de 2017. Tudo bem, é um apartamento duplex, com entradas independentes em cima e embaixo. Resolvi fazer uma obra simples no andar de baixo para mudar rápido e, no futuro, isolaria a escada e faria a obra da parte de cima, essa sim, bem maior e mais complexa.
Obra prevista para ser feita em 4 semanas. As 3 primeiras semanas, acompanhei de perto, ficava todos os dias desde manhã até o fim da tarde direto! Nenhum atraso! Todos os problemas resolvidos na hora! Dentro do cronograma! Mudança já programada para entrar, nós mudaríamos para o apartamento menor de quarto e sala com os gatos por mais ou menos uma semaninha até ajeitar tudo e mudarmos de vez para nossa casa.
Tudo perfeito… até a sexta-feira da terceira semana. Pelas 16h, eu na obra, o celular toca. Meu pai internou e precisaria fazer uma cirurgia de emergência. Senti imediatamente que a coisa era séria. Larguei tudo, obra, marido, gatos… e fui como uma desvairada para o Rio.
Era sério. Tudo no meu pai era sério. Devido ao seu histórico, praticamente se ele gripasse precisava ir para UTI, a gente até tinha se acostumado. Há cerca de uns 15 anos, eu acho, meu pai infartou e iniciou sua curva descendente, mas foi em 2008, após o AVC em pleno voo para Espanha, indo me visitar, que a coisa ficou mais complicada. Podemos dizer que nos últimos 10 anos a gente levava um susto atrás do outro! Entretanto, ele sempre foi muito forte e contrariava qualquer previsão médica. O Highlander, lembra? Cada vez que aparecíamos com ele na emergência do hospital e faziam toda a bateria de exames, o costume era aparecer algum médico de olhos arregalados dizendo que os números dele estavam ruins… que ele tinha que internar… a gente nem se abalava muito e perguntava sobre os resultados que ele se referia. Um diálogo mais ou menos assim:
_ A creatinina dele está altíssima!
_ É, quanto?
_ A creatinina está 3! Está ruim.
_ Ah, 3? Então, está normal, doutor, os números não “estão” ruins, eles “são” ruins! Não é disso que ele morre não… Podemos ir para casa já?
Meu pai teve praticamente tudo, só não pariu! Cada vez que alguém perguntava o que ele tinha, me dava até preguiça de explicar. Minha mãe acabou fazendo um resumo numa folha de papel, assim quem fosse com meu pai na emergência só entregava a página de tudo que ele tinha e toda a medicação que tomava. Acho que uns 15 remédios que só minha mãe sabia em que ordem dar!
Acontece que dessa vez era diferente. Senti de cara que era diferente. O bicho pegou! Meu pai removeu, às pressas, a vesícula completamente necrosada. Qualquer cirurgia nele era de risco altíssimo e o tom dos médicos era muito cauteloso, quase que nos preparando para o pior, achando que pela nossa relativa aparente tranquilidade e tipo de perguntas, não estávamos entendendo exatamente do que se tratava. E pensava com meus botões, doutor, é o senhor que ainda não entendeu de quem se trata, todo mundo morre um dia, mas meu pai não vai sem briga.
Segundo o anestesista, meu pai entrou tranquilo para cirurgia, conversando e brincando um pouco. Sou igual, entro na faca batendo papo com os médicos. É um momento onde não temos mesmo o que fazer, o problema é dos médicos, eles que se virem! Muito bem, ele chegou na UTI pós-operatória razoavelmente estabilizado, considerando todo o quadro. Entretanto, estava estabilizado por máquinas. Foi entubado, dializado, medicado… um monte de “ados”! Era difícil até reconhecê-lo ligado a tantos aparelhos e ruídos diferentes à sua volta. O bicho pegou e foi feio. Minha mãe perdeu o chão. Ele não estava em coma, mas parecia, porque precisava ficar sedado direto, afinal, o tubo é muito desconfortável, a pessoa acorda meio confusa, não consegue falar… é complicado. Então, eles usam sedativos bastante fortes, o corpo precisa dormir para curar.
Fomos informadas que as primeiras 48 horas eram as mais críticas, a partir daí, não é que tudo estivesse resolvido, mas o tempo estaria a nosso favor.
Ao longo da vida, por motivos diferentes, passei por incontáveis momentos de estresse profundo, de beirar às raias do desespero e não ter nenhuma ideia do que fazer. Não sou melhor nem pior do que ninguém, mas felizmente, aprendo com a experiência, a minha e a dos outros. Nesses momentos, não surto, respiro fundo, recorro a minha natureza escorpiana, divido o problema rapidamente em partes e dou foco no que posso solucionar. O que não posso, aceito e não perco meu tempo com isso. Sofrer gasta energia, e preciso de toda ela, toda minha energia é voltada para um objetivo! E o que tenho de energia não é brincadeira, sério, eu queimo lâmpadas! Nessas horas, não gosto de ser consolada, não quero abraços, não quero chorar, não quero nada que me distraia. Fazer isso com relativa ternura é um desafio que fracasso com frequência, mas eu tento. Até conseguir colocar tudo em perspectiva novamente. Um leão por dia, qual é o leão de hoje?
Uma parte considerável da minha família está nas redes sociais, de maneira que facilita muito centralizar esse tipo de notícia por lá. Publiquei no Facebook sobre o que estava acontecendo, mais pela família, mas acaba que meus amigos também tomam conhecimento e, quando me dei conta, a corrente de energia boa que foi gerada em torno do meu pai foi de impressionar e emocionar. Uma quantidade enorme de pessoas generosamente torcendo por nós e enviando boas vibrações, da maneira de cada um, na crença de cada um. Fui, sou e serei eternamente grata por todo essa corrente de carinho e boas intenções. E, entre nós, acho que realmente ajudou, e muito!
Meu pai passou das 48 horas, como nós acreditávamos e torcíamos. Sabíamos que o caminho seria difícil, mas havia um caminho e isso fazia toda a diferença. Perdi um pouco a noção de tempo, mas acredito que ele ficou inconsciente por mais ou menos umas duas semanas. Entubado. Podia receber visitas diariamente, apenas da família, de 13h às 16h. E todos esses dias, estive segurando sua mão por 3 horas ao dia. Colocava um banco sequestrado do corredor ao seu lado, me sentava, segurava sua mão por baixo do cobertor e ficava ali, em conversas silenciosas navegando entre vivos e mortos. Às vezes, me sentia uma bateria humana, filtrando energia. Às vezes, conversava com ele, como se estivesse me escutando. Explicava todos os dias que ele fez uma cirurgia, que tinha ido tudo bem, que ele não conseguia falar porque colocaram um tubo para ele respirar melhor, que ele precisava descansar para acordar bem, que eu ia para casa porque a visita terminou, mas voltaria no dia seguinte… e assim seguia com nosso diálogo imaginário, em um tom de voz normal. Quando vinha mais alguém na visita, avisava no seu ouvido quem havia chegado para visitar, quem havia enviado um abraço, quem tinha perguntado por ele, quem estava lá fora esperando para entrar… acho que para quem passasse ao lado eu parecia uma maluca. Talvez ele não soubesse que eu estava lá, mas eu sabia que ele estava, ainda estava.
E se ainda havia alguma dúvida que ele escutava, um desses dias, ainda com a sedação bem alta, totalmente inconsciente e entubado, minha mãe falou perto do ouvido dele para animá-lo: acorda logo, rapaz! Ele abriu os olhos na hora e começou a tentar levantar! Foi um susto! Tive que mergulhar rapidamente sobre ele para segurá-lo, porque a pessoa acorda muito assustada e desorientada! Não sabe onde está nem o que está fazendo. Foi médico aparecendo de todos os lados, máquina apitando e minha mãe desesperada sem saber o que fazer! Agora acho até bem engraçado, mas na hora foi um sufoco. Lição de vida para os maridos: com quase 50 anos de casados, se sua mulher falar para você levantar, se vira! Sai do coma e acorda!
O corpo foi se fortalecendo e começaram a diminuir a sedação para desentubá-lo. Cada vez que ele acordava, explicávamos a mesma coisa, para ele ter calma, que não ia conseguir falar porque estava entubado, que ele havia feito uma cirurgia, que estava tudo bem… e ele respondia com os olhos, apertava nossa mão ou movimentava a cabeça. Até mais tranquilo do que eu imaginava. Mas logo que dormia, esquecia tudo e tínhamos que repetir a mesma história. E cada vez que acordava, parecia um touro bravo até explicarmos tudo outra vez. Assim que precisou ser contido, o que em outras palavras, significa que amarraram seus pulsos nas grades da cama, dando alguma possibilidade de movimento, mas impedindo que ele se machucasse. Às vezes, ele nem se dava conta que estava amarrado, só quando tentava um movimento maior.
Começaram a avaliar se o desentubariam direto ou se fariam uma traqueostomia por garantia e ficamos nessa expectativa do que seria. Torcendo, é lógico, para não ter traquestomia. Com meus botões pensava, puxa, chamo ele de Highlander, porque só morre se cortarem a cabeça. A traqueostomia não deixa de ser um corte no pescoço, assim que não gostava desse presságio.
Um belo dia, chegamos para a visita e lá estava meu pai, sem tubo nenhum, falando normalmente! Uma alegria só, a melhor notícia de todas! Nós achamos que isso era um ótimo sinal, os médicos decidiram tirar o tubo e ele reagiu bem, né? Acontece que descobrimos quase uma semana depois que quem arrancou o próprio tubo foi ele mesmo! Sim, sedado e contido, ele deu um jeito de meter a mão no tubo e arrancá-lo! E quando as enfermeiras e médicos se deram conta e chegaram correndo para acodí-lo ou segurá-lo, ele já estava falando normalmente. Ou seja, como os médicos não chegavam a um acordo de quando tirar ou não tirar o tubo, fazer ou não fazer a traqueostomia, ele mesmo decidiu e tirou, pronto! Sua recuperação foi impressionante, lógico que a situação ainda era bastante grave, mas para quem chegou desacreditado de passar das primeiras 48 horas, era uma façanha! Para nós, era normal. Esse era o meu pai.
Não foi o único susto que ele deu no pessoal da UTI, ainda contido, ele também conseguiu arrancar o acesso da diálise! Foi sangue para tudo que é lado e outra vez, por mais alguns minutos, ele teria morrido. Conseguiram contornar e ele começou a virar lenda no andar.
Na verdade, essa costumava ser uma rotina nas suas internações. Ele sempre dava um trabalho do cão para todo mundo, começava enlouquecendo todos à volta, mas com um pouco mais de tempo, as pessoas iam entendendo e se acostumando ao seu jeito, ia cativando, ficando conhecido e até ganhando alguns admiradores. Minha mãe colaborava bastante para isso também, sempre rolava um ingênuo suborno, como chocolates, bananadas… essas coisas que adoçam a boca e a alma. Ser técnica ou enfermeira não é exatamente a profissão mais simples do mundo e quem não gosta de um agradinho, né? Além do mais, comigo morando em São Paulo e meu irmão trabalhando nos horários de visita, minha mãe precisava ir sozinha algumas vezes. Por mais bem conservada que estivesse e está, ela já é uma senhora, ficava nervosa, chorava… de maneira, que a equipe do andar, acabou por cuidar um pouco dela também.
Normalmente, na UTI “pós-operatória”, como o próprio nome indica, os pacientes ficam muito pouco tempo, apenas até se recuperarem das cirurgias. É uma UTI bastante rigorosa e com acompanhamento muito de perto, porque é justamente quando os pacientes sofrem maiores riscos. Mas como o caso do meu pai era de tão alto risco e sua recuperação era tão peculiar, a equipe decidiu segurá-lo o máximo por ali, para ele já sair em uma boa condição. E, acredito ou gosto de acreditar, que também ganharam certo carinho pelo casal.
O seu aniversário de 78 anos, no final de fevereiro, foi passado nessa UTI. Há uma expressão em espanhol que diz, “al mal tiempo, buena cara”. Sou de natureza otimista e minha mãe é muito alegre, não achamos que por estar tristes ou preocupadas, todo o planeta precisa compartilhar desse sentimento. Eu sei sorrir triste, ela também. Assim que fomos arrumadas e maquiadas para o hospital! Levamos alguns chocolates para as enfermeiras, fizemos até uma baguncinha ali mesmo e já imaginamos como celebraríamos em casa quando ele voltasse. Escolhemos a comida, eu falei que iria ao Rio para preparar, minha mãe pensou em contratar um garçon… e fizemos, ali no leito mesmo, nossa futura festa imaginária.
Desde o início, meu pai estava especialmente mais carinhoso nessa internação, principalmente com minha mãe. As pessoas tem maneiras diferentes de demonstrar carinho e meu pai nunca foi muito meloso, nem minha mãe. Isso não é uma queixa nem julgamento, apenas uma constatação. Cada família e mais ainda, cada casal tem a sua dinâmica e eu nem tento entender as dinâmicas alheias, porque só quem convive sabe o que sente e entende seus próprios códigos. Mas o fato é que ele estava claramente mais aberto, falando e demonstrando mais carinho e gratidão. E não, essas não eram características típicas do meu pai. Talvez no final, ele houvesse perdido a vergonha de dizer o que sentia e houvesse entendido o quanto dependia da ajuda alheia. Na verdade, todos nós dependemos em algum momento e nada como um hospital para nos esfregar na cara, num banho frio de realidade, o quanto somos pequenos e vulneráveis e o quanto nossos pudores são ridículos.
Em paralelo a isso, lembra que larguei uma obra em São Paulo na última semana? Pois é, entre um sufoco e outro, me enfiava na ponte aérea para tentar limpar a casa e organizar uma mudança com dois gatos.
Indo direto ao assunto, a obra ficou uma merda! As três semanas que estive presente, foram show de bola! Sem atrasos, os problemas sendo resolvidos na hora, no prazo, beleza! A única semaninha que não estive e ficou na mão da decoradora responsável, que estava sendo paga para isso, foi um completo caos!Luiz trabalhando o dia inteiro, não tinha condição de acompanhar de perto e o pouco que conseguiu acompanhar e encaminhar os problemas, não foi ouvido.
Resumindo, o plano A era empacotar a mudança numa sexta-feira e levar para o apartamento novo no sábado. Foi isso que disse à decoradora. Mas, por experiência e instinto, achei melhor ter algum lastro. Então, cheguei em São Paulo numa sexta-feira, a companhia de mudança empacotou tudo e levou para um depósito no sábado, para a gente ter o domingo para faxinar o apartamento novo e a mudança entrar na segunda-feira. Bendita a hora que resolvi dar esse lastro!
Quando chegamos ao apartamento no domingo, que teoricamente estaria pronto para mudarmos no dia anterior, estava absolutamente imundo! Luiz teve que descer no braço quase 20 sacos de entulho sozinho! Até um banheiro cagado e entupido de bosta me deixaram! Que aliás, igualmente foi o próprio Luiz que desentupiu. E eu sei que ele só resolveu isso tudo correndo para que eu não ficasse ainda mais arrasada. Acho que a decodora ou o pessoal da obra me fazerem passar por isso e naquele momento, era uma tremenda sacanagem, mas fazerem sobrar para o Luiz limpar bosta, me subiu as tamancas! Eu que já vinha no estresse do meu pai internado no Rio, o cansaço de empacotar tudo no dia anterior, chego e me deparo com essa cena! Sério, eu queria matar pessoas! Enviamos algumas fotos por whatsapp para a maldita decoradora, reclamamos duramente e dissemos que ela não aparecesse mais. O serviço estava pago, ainda que não merecido, assim que não queria mais vê-la pintada de ouro!
No dia seguinte, segunda-feira, com o apartamento já limpo, começou subir a mudança. No meio do dia e daquele caos de caixas, aparece quem? A decoradora e o pessoal do piso (que largou a sujeira e queria terminar o serviço com o pessoal da mudança em casa! Pasmem!). Subiram direto, nem avisaram por interfone. Luiz, felizmente, havia ido resolver alguma coisa no trabalho. Alguém consegue imaginar a minha reação? Porque nem eu imaginava que poderia chegar a aquele limite da ira! Coloquei todo mundo para fora aos berros! Juro, aos berros! Descasquei geral! Saíram com o rabo entre as pernas, não sei se com mais medo ou mais vergonha.
Posso ser muito dura e às vezes, realmente, preciso ser, mas para chegar ao ponto de levantar a voz, precisam me tirar muito do sério! Perdi o controle e passei de todos os limites. Achei que o que fizeram ultrapassou a incompetência e a falta de profissionalismo, faltaram com respeito dentro da minha casa e com meu marido e isso não poderia admitir.
Sentei em um canto com um pouco de privacidade, comecei a lembrar da história e, inesperadamente, comecei a rir sozinha de mim mesma. Liguei para o Luiz e tratei de contar, como criança que fez arte, você não vai acreditar no que aconteceu… Acho que devia estar totalmente descompensada, mas o fato é que colocar para fora toda aquela ira me fez bem. Ainda estava aborrecida, mas me acalmei muito rápido.
A equipe de mudança, que assistiu a esse espetáculo, não dava um pio! Desconfio que também ficaram com medo de mim. E a mudança? Foi uma beleza! Todo mundo comportado! Parecia ser feita por lordes ingleses!
Bom, mas não tinha tempo de arrumar nada porque precisava voltar para o Rio. Daí nós resolvemos mudar mesmo em etapas. Também havíamos comprado um apartamento pequeno para investimento, um quarto e sala bem jeitozinho e perto do lugar que íamos morar. Levamos os gatos e ficaríamos dormindo por lá, enquanto não conseguisse arrumar o apartamento direito. Era para ser no máximo por uma semana, já que costumo arrumar qualquer mudança em até três dias. Mas com toda essa confusão do meu pai, levou quase um mês para conseguirmos realmente mudar de mala e cuia. Resumindo, ficou Luiz e os gatos no quarto e sala, um apartamento cheio de caixas de mudança fechadas e eu para cima e para baixo na ponte aérea.
O apartamento é um duplex, com entradas independentes nos dois andares. O plano era fazer logo o primeiro andar, que era mais simples, mudarmos e pararmos de pagar aluguel, isolar a escada interna e começar a obra no segundo andar conosco já morando no local. Com a confusão de hospital e as viagens frequentes, se mal conseguimos mudar de casa, imagina começar outra obra! O segundo andar ficou adiado para a hora que desse.
Mas a vida não para, não é mesmo? E lembra que faço parte da bateria do Monobloco? O carnaval se aproximava e com ele apresentações importantes, culminando no desfile na rua, motivo pelo qual ensaiamos o ano inteiro. A essa altura e no meio dessa confusão, não sabia se conseguiria tocar no bloco. Escrevi para o meu mestre, explicando a situação e que não podia dar certeza nem garantir a presença em todos os ensaios, não queria nem achava justo atrapalhar. Ele me respondeu muito gentil que não tinha problema, preferia que eu fosse e errasse do que não fosse! Vocês dificilmente entenderão o que significava ele falar isso para mim, meu mestre era foda! Mexeu comigo, me senti importante, me fez acreditar que faria falta. E me virei para estudar, mesmo quando não podia ir aos ensaios.
Até meu pai colaborou e estabilizou sua situação perto da nossa apresentação. Me enchi de coragem, vim para São Paulo e consegui desfilar! Não posso dizer que estava feliz, não consegui ir a celebração do grupo depois do desfile, mas foi muito significativo e emocionante estar lá, fazer parte daquele desfile me recarregou algumas baterias! Na semana seguinte, também poderia tocar no carnaval de Belo Horizonte, seria a primeira vez que sairia da minha cidade base para dar uma força a outra bateria do grupo. Mas já não consegui, o bicho estava pegando no Rio, precisava arrumar minha casa em São Paulo e não tinha mais de onde tirar tempo e ânimo. Alguns dias depois, uma companheira de surdo que foi a Belo Horizonte, me contou que meu surdo estava lá, colocado no meu lugar, pronto para ser tocado. Foi retirado quando eu não cheguei. Chorei sozinha, mas gostei de saber. De alguma forma, me senti representada, de alguma forma, eu fui.
Logo após o carnaval, temos férias no Monobloco. De maneiras que me liberou um pouco desse compromisso por um par de meses.
HIGHLANDER
Voltando ao Rio de Janeiro, a recuperação do meu pai caminhava lenta mas positiva, estavam com planos de transferí-lo para a UTI cardiológica muito em breve, era só questão de liberar a vaga. Ele não estava mais com o tubo, a diálise havia parado, havia tirado a sonda gástrica e começado a se alimentar… Estávamos otimistas.
Daí meu pai começou a piorar, descobrimos que ele estava com pneumonia. Foi um soco no estômago. Toda aquela evolução foi por água abaixo e decidiram fazer a bendita traqueostomia. Mudamos para a UTI ventilatória e começamos tudo, mas tu-do outra vez!
E eu só pensando que não gostava nada daquele corte no pescoço do Highlander…
A traqueostomia se inicia com uma cânula mais grossa, que não permite que ele fale, se alimente ou beba líquidos. Toda a alimentação é por sonda naso-gástrica. Em uma linguagem leiga, a ideia é que essa cânula vá se afinando, até que possa ser substituída por uma que permitisse que ele falasse e se alimentasse. E depois, finalmente, a cânula poderia ser tirada de vez. A parte da voz, até que não pareceu tão complicada, mas o resto é, a pessoa tem que reaprender a engolir, mastigar… coisas muito básicas!
Eu me lembro de muitos momentos de dor e sofrimento, de tempos em tempos, alguns me voltam à memória e tento enviar para longe, são histórias bastante parecidas umas das outras e não creio que mereça ser registrado individualmente. Mas foi complicado. Também me lembro de momentos engraçados, descontraídos e de demonstrações de carinho não habituais ao longo da nossa vida. Assim como toda ambiguidade que permeia nossa existência, nenhum dia era totalmente ruim ou totalmente bom. Mas todos eram um desafio à nossa resistência, dele e nossa.
E quando nos demos conta, quase 5 meses se passaram. Contra todos os prognósticos médicos, ele conseguiu se livrar da maldita cânula, ou seja, sem traqueostomia. Conseguiu comer, falar normalmente e levantar da cama, com dificuldade, mas para quem no primeiro dia que tentou sentar, mal conseguia manter o pescoço ereto… era um feito hercúleo! E, finalmente, o que pouca gente acreditava, conseguiu ter alta para casa!
Muita calma nesse momento! Ele teve alta, mas com o apoio de “home care”, ou seja, a sala da casa dos meus pais virou praticamente um quarto de UTI. Apoio de uma enfemeira e uma cuidadora por 24h, além da gente. Era muito trabalhoso cuidar dele, quase 1,90m e cerca de 115kg. Conseguia levantar, mas não conseguia andar e totalmente inquieto! Os primeiros dias foram enlouquecedores. Depois, começou a entrar em uma rotina, insana, mas rotina. E com toda confusão, a casa da gente é a casa da gente. Ficou muito melhor!
Veio uma recaída, começou a inchar muito e voltou para o hospital. Não ficou tanto e, porque conseguiu ter relativa melhora e era aniversário da minha mãe, seu médico o liberou para voltar para casa.
Fizemos uma festa de aniversário, por que não? Um jantar íntimo, só com a família, mas que deu um ar de normalidade naquela situação completamente surreal. Juro! Fui para cozinha me convencendo que era capaz de fazer poções mágicas… fiz a melhor pasta com molho de tomate da minha vida… abrimos um vinho… claro que meu pai queria vinho… quase que dei… mas a enfermeira brecou… fizemos vista grossa e ele comeu o que teve vontade. E com minha sobrinha, que ama ser o centro das atenções, garantiu a diversão de todos.
Criança é muito legal! Com toda aquela confusão na sala de equipamentos médicos, meu pai usando oxigênio, cuidadoras… mas como tratávamos como algo normal, minha sobrinha rapidamente se adaptou e, com seus 2 anos e meio, não se impressionou com nada! Ela entendia que ele estava doente, que ia para o hospital, mas como ela cresceu com ele assim, para ela era algo comum. Era muito bonitinho vê-la levar o vovô para almoçar, cerca de um ano antes disso.
Foi importante para meu pai voltar para casa, tenho impressão que era como uma missão na cabeça dele. Da minha parte, fazia todos os seus pratos favoritos, independente de serem ou não recomendados. Fala sério, a essa altura… deixa ele comer o que quiser! E essa parte foi gostosa para mim! Com todos os problemas, foram muitos meses de convivência próxima e resgate de uma relação que eu nem sabia que sentia falta.
Em paralelo, também estive 6 meses muito próxima da minha sobrinha. A ponto da gente ter nossa cumplicidade e brincadeiras, nossas fotos e filmes juntas, a esperança dela se lembrar de mim. E a certeza que me lembrarei dela.
As noites eram infernais! Ele simplesmente não dormia. A gente não sabia se era a medicação, se era medo de morrer, se ele não estava passando bem… ou se era uma mistura de tudo isso. E meu pai quando não dormia, ficava confuso, inquieto… e infernizava todo mundo!
Acabou voltando para o hospital novamente e, dessa vez, já não estávamos tão otimistas. Tivemos que nos preparar e tomar decisões muito difíceis, a maioria entre minha mãe e eu. Entre essas decisões, estava claro que faríamos o possível para que ele tivesse os melhores cuidados, mas não queríamos mantê-lo vivo “a qualquer custo”. Não queríamos ressucitá-lo ou entubá-lo novamente. Qualidade sobre a quantidade. E passamos a aprovar (ou negar) cada procedimento separadamente. Para meu irmão era mais complicado, porque qualquer conversa a respeito da possibilidade da morte soava para ele como desistência. Afinal, meu pai já havia saído de tantas situações tão improváveis, que fez muitas pessoas acreditarem que ele era invencível, imortal. Ele era só um homem, forte pacas, mas humano.
Meu papel passou a ser o de garantir que ele não tivesse dor, mantivesse a dignidade e não ficasse sozinho. Quando digo meu papel, não quero dizer que era a única a ter essa função, mas foi a minha decisão em relação à minha responsabilidade pessoal. Eu tive dois anos para me preparar para esse momento, estava pronta.
Minha vida social seguiu no Brasil. Eu não existo sem me socializar, gosto de gente. Mas admito que foi muito mais focada nos amigos que já tínhamos (e não eram poucos) do que em fazer novas amizades, o que é algo bastante atípico para mim. Uma mistura entre me conter para não falar com estranhos na rua, porque no Brasil os códigos são outros e não queria correr o risco de passar a mensagem errada. Mas também confesso que me batia um certo distanciamento, justificava para mim mesma que era preguiça em me esforçar para fazer amizades se eu sabia que ali não seria meu lugar. Talvez o que fosse mesmo era cansaço de sentir saudades, já havia muitas na minha grande coleção. Não adiantou, o mundo se encarrega em colocar pessoas especiais no meu caminho e, no fim, quase me arrependi de não ter me esforçado mais, me aberto mais. Não se pode tirar de onde não se tem, e talvez, naquele momento, não tivesse mais a oferecer, ou nisso acreditava. O brilho no olhar não era o mesmo e o sorriso não era tão fácil como de costume. Mas realmente, só percebi isso no final. E sentirei saudades do mesmo jeito.
Ainda assim, resisti! Modéstia às favas, posso dizer que bravamente, tirando energia sei lá de onde! Várias festas aconteceram, mesmo que não tantas quanto gostaria. E era quando minha natureza falava mais alto, esquecia de me controlar e, de vez em quando, antes desses eventos, me escapava para quem não conhecia muito bem um, vai ter festa lá em casa tal dia, passa lá! Numa dessas, o convite foi aceito!
Tinha acabado de retirar a vesícula, uma cirurgia fácil, feita preventivamente, mas meio que às pressas. A recuperação foi rápida e logo que recebi alta para beber, achei que era um bom motivo para dar uma festa! Acho divertido dar temas para as festas e também debochar dos problemas, assim que uni as duas coisas e essa se chamou: “O Velório da Vesícula”! Bebemos em homenagem à falecida, minha vesícula! Muito bem, como de costume, em algum momento saio distribuindo instrumentos para o povo tocar… os amigos que convidei numa dessas de “passa lá que vai ter festa” foram e levaram equipamento de som! Ninguém vivia disso, nenhum músico profissional, só para brincar mesmo. E rolou um barulho bem divertido! Ficamos mais próximos, chamei em outras festas… na “Feijoada do Luiz” o barulho já ficou mais selecionado… um amigo meu ia embora do Brasil, ia fazer uma festa na casa dele, me convidou e me perguntou se eu não podia levar esses meus amigos para a gente tocar lá… eles toparam também! Foi outra vez, super divertido! Conversa para lá, conversa para cá… a gente devia fazer isso mais vezes, de maneira organizada, mas falta alguém para organizar, reunir o pessoal… Oi? O que falta é alguém para reunir o pessoal para tocar e cantar? Então, faltava!
E assim nasceu os “Simpáticos +1”, cuja a história mais detalhada, acho que já contei antes por aqui. Resumidamente, um grupo de amigos que gostava de cantar, tocar e animar festas! Sem fins lucrativos, nenhum músico profissional, ninguém com pretenções de fama ou glória. Nada além de beber e comer de graça, ir ao maior número de festas possíveis e alegrar as pessoas! A brincadeira cresceu! A cada festa que participávamos, sempre havia algum convidado querendo nos “contratar”. Cobrávamos apenas o combustível: duas garrafas de cachaça boa! Finalizadas ao vivo, sempre. Ganhei amigos queridos, fiz outras amizades com os convidados que participavam dessas festas dos outros e me diverti bastante!
No começo de julho, tocamos em uma dessas festas. Não sabia se conseguiria ir, estava direto indo para o Rio por causa do meu pai e meu planejamento era quase inexistente. Luiz ficava com praticamente toda a carga da casa em São Paulo, eu ia ajudando dentro do possível, em doses homeopáticas nas paradas em casa. Mas nesse dia deu! Outro desses dias completamente ambíguos, em que fiquei feliz porque não ia furar na apresentação… e sem um pingo de ânimo para celebrar. Celebrar o que? Vai lá, respira fundo, veste um sorriso aí e ocupa a cabeça com música. Um dia de cada vez e é o que temos para hoje. E lá vamos nós na montanha russa! E sabe como foi? Sinceramente, foi muito bom! A tarde foi ótima! O pessoal era super legal e cutiram bastante. Consegui me desconectar, me distrair de verdade, não fingi. Energias renovadas, gente alegre, fiz novas amizades, fiquei na festa com Luiz depois que acabamos de tocar, cachaça pacas…
Eu sabia que não era dia para eu beber. Não devo beber triste, me abre portas que às vezes não estou preparada para abrir, mas naquele dia elas precisavam estar abertas. Voltamos para casa com o som de tambores na minha cabeça e ouvindo o que sabia que estava para acontecer. Meus fantasmas vieram me informar e se despedir de mim, por mais que quisesse eu já não precisava e tinham mais o que fazer. Senti a solidão mais profunda e a saudade mais difícil, a que não se pode sanar, porque não tem mais volta. Chorei alto e tão doído que ouvi o cachorro do vizinho chorar junto. Chorei um rio, chorei até secar. Respirei, levantei, enxuguei o rosto e fui dormir. E dormi como uma pedra. Acordei séria, mas serena. Eu realmente, estava pronta.
Assim que quando o telefone tocou para eu voltar para o Rio rápido, porque a situação estava complicada, não tive tanta pressa. Pela primeira vez não larguei tudo correndo e peguei o primeiro voo. Procrastinei o que deu, tentei deixar a casa organizada e as coisas encaminhadas. Afinal, não tinha data para voltar.
A MORTE E O LUTO
Cheguei no Rio para passar a última semana com meu pai. E quem achar forte esse momento, não leia esse capítulo. Eu preciso escrever, faz parte do meu processo de luto.
Entrei no quarto da UTI com a mesma empolgação de quem ia levá-lo para casa, como de costume. Quem está internado não se olha no espelho, se vê nos olhos de quem olha para eles. Em quase 6 meses de internação, ele nunca me viu chorar e nunca olhei para ele com pena. E essa parte não era difícil, sou de uma família que tem sobrenome de pedra. Eu não tenho pena de ninguém que amo, nunca! Quebramos todos os protocolos do hospital, com a autorização do médico. E se não houvesse autorização, quebraríamos de toda maneira. Fui descobrir onde tinha para comprar jamón ibérico de bellota e mortadela italiana… minha mãe levou nhoque… quindim, broa de milho, jujuba… foda-se! Ele vai comer o que quiser. Exame de sangue da puta que pariu que vai furar ele todo, para que mesmo? Confere com o médico, por favor! Precisa não, né? Nosso horário de visita foi liberado e, além da nossa presença, por 24 horas ele tinha cuidadora particular. Minha mãe decidiu que ele não ficaria sozinho nem um minuto, o que também era minha opção. Nossa única condição deixada claríssima para o médico responsável era de que ele não sentisse dor, o que o próprio doutor também concordou e garantiu. Ele recebeu visitas nessa semana, a gente conversou, a gente riu, ele dormiu, ele acordou. Não lembro se na mesma tarde ou se no dia anterior, a cama dele estava cercada pela família. Conversamos animadamente, minha mãe e suas primas contando do passado. Por algumas horas, parecia que estávamos na sala de casa. A sedação foi aumentando aos poucos, o nível de consciência foi diminuindo, como uma chama se apagando devagar. As técnicas e enfermeiras foram instruídas a não falar o nome “morfina” dentro do quarto, porque ele saberia o que isso significava.
Consciente ou não, todos os dias quando saíamos para comer ou para ir para casa dormir, falava perto do seu ouvido que estávamos saindo, mas que havia a cuidadora com ele no quarto e que já voltaríamos.
No dia 15 de julho, fiz hora para irmos embora, estava inquieta, queria saber que haviam limpado ele direito, se ele estava dormindo, enfim, procrastinei um pouco. Mas já estávamos cansadas e assim que garantimos que estava tudo certo e ele estava confortável, nos despedimos e fomos para casa do meu irmão. Ainda no taxi, recebemos a notícia, meu pai faleceu. A cuidadora contou depois que assim que descemos, ele virou o rosto para o lado, estendeu a mão, ela segurou e os aparelhos começaram a apitar. Minha mãe ficou inconsolável, porque queria estar ao lado dele nessa hora. Se acalmou um pouco depois, quando soube que alguém segurava sua mão. Talvez ele nem tivesse certeza de quem estivesse ao lado, mas certamente, não estava só. Eu achei que foi melhor assim. Acho que a lembrança desse momento não seria algo bom para ela ter na memória. Francamente, acho que ele ouviu e esperou a gente descer, sabia que ela também não estava sozinha, esperou ela sair para protegê-la até o final. Porque esse era o meu pai e essa a versão que escolhi.
Recebemos a notícia na portaria do prédio do meu irmão, assim que subimos para minha mãe se acalmar um pouco, dar a notícia ao meu irmão, Luiz e minha cunhada. Tentando na medida do possível, não deixar minha sobrinha entender. Ela percebeu que algo estava errado, mas colaborou. Minha mãe e eu já vínhamos nos organizando, ela sabia para quem ligar para providenciar funeral e essas coisas, eu já tinha separado a roupa para ele vestir, enfim, essa burocracia da morte que é mórbida e difícil de tratar, mas precisava ser feita e não queríamos ser pegas de surpresa. Nos dividimos e fomos minha mãe e eu para o hospital novamente e meu irmão foi com Luiz buscar a roupa para meu pai vestir. Nos encontraríamos no hospital.
Durante o caminho, só vinha na minha cabeça uma imagem do meu pai feliz, sorrindo, alegre, com um rosto mais jovem e saudável, bem. A sensação completamente fora de lugar de que estava tudo bem, dele me dizendo que estava tudo bem.
Quando chegamos, tudo ainda era muito recente. A cuidadora que estava com meu pai tremia e chorava nervosa. Precisamos entrar no quarto, minha mãe queria e lembro dela chorando e dizendo que o corpo dele ainda estava quente e que não era justo ela não estar lá um pouco antes. O corpo estava quente mesmo, ainda parecia meu pai, dormindo. Chegou o pessoal para prepará-lo, o que não foi demorado, ele tinha acabado de ser todo limpo antes da gente sair de lá. Mas precisavam retirar os acessos e o desfibrilador do coração, porque ele seria cremado. Meu irmão chegou com Luiz, ele não queria ver o corpo de jeito nenhum, é mais complicado para ele.
Nesse ínterim, o rapaz da funerária chegou e fomos decidir caixão, flores, funeral, crematório… Sim, você tem que decidir isso logo na sequência, é parte da tal burocracia da morte. Mas a gente sabia disso e também não nos surpreendeu. Vou dizer uma coisa que pode parecer estranha, mas essas coisas que a gente tem que resolver depois, apesar de bastante chatas, ajudam a passar por isso. A gente acaba ocupando a cabeça com algo que pode controlar, distrai o cérebro, a conversa assume um tom de normalidade bizarro, mas é assim. É duro, mas vai acontecer.
Nos enviaram para uma sala em outro andar para esperar todo o procedimento com meu pai. Antes de levá-lo, alguém precisa reconhecer o corpo. Meu irmão, sem chance, minha mãe já tinha passado o suficiente… fui eu. Já me ofereci por reflexo e por instinto. Não sou mártir de nada, nem estava tentando ser mais forte que ninguém. Na verdade, faço uma confissão agora, eu queria. Todos os dias, quando eu ia embora da UTI, dava um beijo na mão do meu pai. Primeiro, porque era o lugar mais fácil, depois porque sabia que ele gostava que tomasse a benção. Ele pediu a tal da benção para meus avós até adulto, ouvi várias vezes. Mas nem eu, nem meu irmão criamos o hábito, não tomávamos nunca. Eu então, a religiosidade em pessoa! Mas no hospital, não me custava nada, até gostava. Eu não pedia a benção, só beijava sua mão, mas ele dava assim mesmo que eu sei. Nessa noite, eu esqueci. É uma bobagem, eu sei, mas aquilo estava me agoniando e não sabia como ia dizer que precisava beijar a mão do morto, iam pensar que eu estava doida, né? Até eu pensava! De maneira que, quando vi a oportunidade, para mim não foi um sacrifício, foi um alívio.
O problema é que é mais fácil falar que fazer. Não foi como no quarto, com ele ainda quente e parecendo dormir tranquilo. Quando me dei conta, estava numa sala com um enorme saco plástico branco, meio transparente, fechado com um zíper. Na hora em que se abre, sai um cheiro forte de algum produto químico, sei lá, cheio de morte. O rosto é envolvido com uma gaze segurando a mandíbula. A pele estava completamente pálida, acinzentada. Nem parecia meu pai, porque não era mais. Cumpri minha parte que faltava para encerrarmos nosso ciclo de pai e filha, beijei sua mão, fechei o zíper e assinei o que precisava.
Não me lembro se chorei, na verdade, não lembro da sensação de ter vontade de chorar. Havia chorado uma semana antes. Havia chorado tanto tempo antes. Meu peito estava completamente dividido entre minhas típicas contradições, a sombra de tristeza pela saudade antecipada que eu sentiria e uma alegria aliviada de saber que ele estava livre. Não senti sua morte como um momento específico que acabava de acontecer, mas como algo que vinha acontecendo há anos. Ele vinha morrendo há anos, eu também, desde que nascemos.
Não sei dizer direito do que meu pai morreu. Foram várias de coisas juntas, um monte de problemas ao longo dos anos. Enfarte, entupimento de carótida, AVC, câncer, pneumonia, embolia, rins, vesícula necrosada… pense em alguma doença grave, ele teve! E o mais curioso é que todos esses problemas isoladamente ele venceu. E não dava a mínima! Acontece que esse conjunto foi minando seu coração, já de um tamanho maior do que o natural e um trombo dentro dele. Então, gostaria de acreditar e acho que posso dizer que ele morreu por causa do seu enorme coração.
Meu pai faleceu num sábado à noite, não daria tempo para organizar o funeral para o dia seguinte. Porque ele não seria enterrado, seria cremado e o processo é um pouco mais demorado, porque tem uma papelada para acertar. Então, ficou marcado para segunda-feira. Luiz não estava de férias e ficou sem saber se ficava comigo ou se voltava para trabalhar na segunda. Quer saber, estou bem, meu papel aqui é muito mais o de apoiar do que de ser apoiada, se eu precisar, eu grito! Nem vou conseguir te dar atenção! Prefiro que você vá, porque daí sei que posso contar com você lá, os gatos estarão cuidados, a casa estará em ordem… é menos um problema (ou vários) para resolver! Fico mais tranquila para me focar no que precisa ser feito aqui. A gente faz um bom time. Depois, não tinha data para voltar, só queria sair do Rio com minha mãe bem, na medida do possível, e com as principais encrencas resolvidas.
O funeral correu bem. Honestamente, dentro das minhas descrenças, para mim não faz tanta diferença, mas respeito muito esses rituais de passagem. Importa para as pessoas, elas querem se despedir, querem ter um momento de prestar uma homenagem, querem apoiar a família e os amigos. Muita gente compareceu e acho que isso foi importante para minha mãe, para mim também, é um sinal do quanto ele era querido. Vira e mexe, a gente saía descobrindo pessoas que ele ajudou em momentos significativos que nunca soubemos! Pessoas simples, pessoas que não estavam no nosso convívio, não importava muito, todo mundo precisa de uma mão de vez em quando, de um apoio na hora certa e meu pai sempre foi muito generoso. E também demonstrou o quanto nós somos queridos, porque o funeral não é para quem foi, é para quem ficou. Saber que a família, as amigas e amigos da minha mãe foram por ela, assim como saber que meu irmão tinha minha cunhada com ele, me tranquilizava.
Com a missa de sétimo dia, conceitualmente era parecido. Apesar de meu pai não ser católico (ele se dizia espírita Kardecista, não lá muito praticante), esse é um momento de se prestar um tributo, também é um ritual de passagem importante. Não interessa muito no que eu acredito, a missa não foi para mim. A maioria da família próxima e dos amigos foi ao funeral ou à missa, ou ambos. E tenho certeza que minha mãe sabe e se lembra de cada um deles. Na minha opinião, a missa foi importante para meu irmão também, porque foi ele quem falou sobre meu pai lá na frente. No funeral, ele ficou arredio o tempo inteiro, porque não podia estar no mesmo ambiente do meu pai morto. Durante a missa, ele pôde prestar seu tributo e acredito que isso fará diferença na sua consciência no futuro. Não por nenhuma obrigação ou cobrança de ninguém, mas porque é a gente mesmo que se cobra e se martiriza por esses detalhes depois.
Faltava a última coisa que eu precisava fazer dentro desse aspecto, de todos esses rituais, o único que importava de verdade para mim. Receber e dar um destino para as cinzas do meu pai. Uma amiga da minha mãe insistia para que ela deixasse as cinzas dele na igreja, porque essa era a orientação do papa. Veja bem, não conto isso de maneira crítica, juro! E tenho certeza absoluta que sua intenção era a melhor possível, honestamente. Entretanto, a católica era ela, não meu pai. Nenhum de nós estava muito preocupado com o que o papa ia pensar e, seguramente, ele estava muito ocupado para decidir onde a gente jogava nossas cinzas. Até acho ele gente boa, tenho certeza que ele também não se importaria tanto assim. Essa decisão era para ser tomada em família, na nossa família, e assim foi. Não podia nem imaginar meu pai preso numa igreja, não tinha nada a ver com ele. Parte de se cremar um corpo é justamente liberar! Deixa ir! Minha sugestão foi de jogar as cinzas dele no mar, na praia, em frente de casa. Para onde ele gostava de olhar, para onde ele achava que nunca era uma paisagem igual.
Fomos nós três juntos para a praia levando a urna, que não é nada mais que uma caixa de papelão com um saco plástico que contém as cinzas. As cinzas não tem cheiro, não tem pedaços, não tem sujeira, são só cinzas. Um pó fino. Fomos para o caminho dos pescadores no Leme e buscamos um lugar mais discreto, o que nem foi tão fácil, porque não estava vazio. Mas não tivemos problemas, ninguém interferiu. Cada um de nós se despediu da maneira que quis, em seus pensamentos, e joguei as cinzas na água. Foi bacana, porque mesmo sem haver vento, as cinzas fizeram uma pequena nuvem e se direcionaram diretamente para o mar. Acho que esse momento e o caminho de volta, foram os únicos que me emocionei a ponto de ter que segurar um pouco o choro. Mas não era de tristeza, era de alívio, de missão cumprida. Fiz tudo que você queria?
O resto foi operacional. Arrumar o armário, separar as roupas para doação, acompanhar minha mãe para dar entrada em pedido de pensão, confirmar que estava tudo certo com o plano de saúde… e acho que em um par de semanas estava tudo bem encaminhado. O que ajudou muito foi o fato dela já estar tomando as rédeas da casa há algum tempo, assim que não ficou atordoada sem saber por onde começar. A partir daí, não é que fosse fácil, não é que não seja duro, mas era e ainda é uma questão de tempo e de se ajustar a uma nova rotina. Concluímos que eu não tinha mais o que fazer e que precisava cuidar da minha própria casa. Qualquer coisa, grita!
Minha família encontrará sua forma de viver o luto. Cada um tem a sua e aqui só tenho o direito de falar sobre a minha.
Nunca achei que fosse me descabelar ou me descontrolar, porque não é da minha natureza. Mas admito que eu mesma me surpreendi um pouco como tão bem estava convivendo com meu luto. A ponto de me questionar várias vezes se estava em processo de negação, se não tinha posto para fora o suficiente, sei lá! Porque é verdade que, às vezes, eu sou durona na frente dos outros, principalmente se acho que precisam de mim, fico macha pacas! Mas com meu travesseiro ou eventualmente em privado com Luiz, eu despenco. Me deu um pouco de medo de despencar de uma vez em queda livre, mas não aconteceu. Seguramente, o fato de estar próxima fisicamente nesse período ajudou muito. Acho que me salvou. Posso até nem ter feito, mas tenho a sensação de que fiz tudo que estava a meu alcance, sei que fiz o que pude, dentro do meu limite. E isso foi melhor para mim do que para ele, ou para eles. Ainda tenho uns desânimos, alguns dias que tenho pouca vontade de levantar da cama, alguns dias que bate aquela vontade de dar uma choradinha, mas não me paralizou e vem melhorando. Acho que ajuda o fato de ter me acostumado a sobreviver dentro da contradição, de opostos, de extremos. É bom ter a habilidade de ser feliz e triste no mesmo dia, várias vezes ao dia e não necessariamente nessa mesma ordem! Mas um passo de cada vez. Não vou me cobrar, meu luto ainda segue e seguirá o tempo que precisar. Importa que ele não está me atrapalhando.
E a vida seguiu e segue!
MÚSICA, FESTAS E UMA PROPOSTA
Os ensaios do Monobloco, toda quarta-feira, continuaram acontecendo e fui criando um laço afetivo com meu surdo, velho amigo e companheiro, de avenida e de terreiro, de rodas de samba e de solidão… sabe aquela minha generosidade em sair distribuindo instrumentos pelas festas para qualquer amigo tocar? Meu surdo não, tenho ciúmes. Foi só no último ano que me abri para algumas amizades nesse grupo. Talvez nesse momento, minha gratidão por tantas pessoas que me apoiaram ao longo desses meses, me deixaram novamente mais aberta e sentimental. E também porque senti que meu tempo no Brasil estava acabando. A consciência que o tempo de todo mundo estava passando.
Foi também nesses ensaios, como comentei anteriormente, que entendi de verdade o respeito por um mestre e o quanto isso é legal. Eu já tive outros mestres, mas porque eu precisava ter, ou era em outros níveis; por exemplo, no sentido de direcionamento, como um mentor, não de obediência. Foi a primeira vez que aprendi a obedecer, sem achar que isso me deixava em uma posição de desvantagem. Até então, questionar (ao invés de simplesmente obedecer) me fazia ver outras perspectivas e, com isso, aprendia mais. Nesse caso, foi totalmente diferente. Não tinha o que questionar, ele sabia e eu não! Simples assim. Aprendi que com o reconhecimento dessa superioridade veio o respeito, com ele a confiança e, a partir daí, a obediência. Não precisava pensar se havia outro caminho melhor, havia um único caminho, seguir a condução do mestre. Para quem me conhece, contra todas minhas expectativas, eu gostei. E, para minha surpresa, foi libertador! Descobri que dentro dessa relação, quando você faz algo bem e recebe o reconhecimento, recebe também esse mesmo respeito de volta e não é só um prazer, é uma honra! É bom pacas!
Os ensaios do “Simpáticos +1” passaram de quinzenais ou eventuais para praticamente toda quinta-feira. E era uma delícia! Juntava dois prazeres, porque também sempre cozinhava alguma coisa para a gente nessas noites. E achei muito legal porque Luiz e eu conseguimos fazer parte de algo assim juntos. A gente sabia que, mais cedo ou mais tarde, iria embora. Mas também sabia que a ideia tinha se concretizado, a base estava estabelecida. O que não sabia é que iria gostar tanto deles e o quanto seria dolorido desapegar mais uma vez. Enfim, mas não nos apressemos ainda, nesse momento, não sabíamos que iríamos embora.
Tínhamos um casamento de amigos marcado na Espanha no início de setembro de 2017. Não confirmei por motivos óbvios, podia precisar estar no Rio a qualquer momento. Chegou o final de julho, meu pai já havia falecido, podia me programar um pouco melhor. Estava tão cansada, falei com Luiz, quer saber, vamos? A gente está precisando dar uma espairecida e ficar juntos. Sair um pouco desse ambiente de obra, problema, hospital… Depois, de tempos em tempos, eu precisava ir até a Europa, saber que ainda estava lá! Aquela coisa animal de ir fazer xixi nos cantos, deixar meu cheiro, marcar territorio! Como de costume, ele topou e compramos as passagens. Resolvemos aproveitar e também passar em Madri e Londres, nossos antigos endereços.
Lembra que tudo acontece em paralelo, né? Começamos a obra do segundo andar em julho mesmo, assim que pousei em São Paulo. Teoricamente, não seria uma hora tão boa para viajar. Acontece que o pessoal da construtora parecia legal e a arquiteta que fez o projeto poderia acompanhar enquanto estivéssemos fora. Nenhuma decisão urgente que não pudesse ser tomada através do whatsapp. E, finalmente, minha prima poderia ficar lá em casa com nossos gatos e, lógico, sem deixar o apartamento vazio com todo povo trabalhando por lá. Na prática, os dois andares ficaram realmente isolados, a obra no andar de cima não interferia na vida normal no andar de baixo. De toda maneira, era bom ter alguém por ali.
Muito bem, chegou iniciozinho de agosto e com ele uma proposta para Luiz voltar a trabalhar… em Londres! Assim de simples, na lata! A gente com férias marcadas, passagens compradas e obra iniciada! E alguém acha que na nossa vida, poderia ser diferente? Ele conseguiu negociar seu início para o começo de outubro, logo após nossas férias. Mas claro que a gente só teve essa confirmação menos de uma semana antes de viajar. Luiz pediu demissão num dia, pegamos o avião no dia seguinte. Todo mundo achando que a gente estava careca de saber que ia mudar e por isso estava viajando para a Europa, só que não.
Óbvio que não foram as férias mais relaxantes do mundo, mas foram providenciais! Conseguimos adiantar algumas pendências burocráticas de documentos, bancos, veterinária etc. E até chegamos a olhar apartamento em Londres. Mas não foi só trabalho, chegar na Europa sabendo que estaria de volta foi uma injeção de paz, de sentir que estaria voltando para casa, me senti totalmente em casa. Tudo na rua me parecia ser um sinal. Lembro em especial de uma plaquinha decorativa, dessas de madeira que dizia algo como, nosso lar é onde podemos ser nós mesmos. Sorri.
Com tantas saudades que povoam minha vida, nem tinha percebido que a saudade maior que sentia era de mim mesma.
NOVIDADES, ENCONTROS, DESPEDIDAS, TUDO JUNTO, AO MESMO TEMPO
Como tinha tão pouca coisa acontecendo ao mesmo tempo, uma notícia apareceu de repente! Minha cunhada foi fazer uma ultrassonografia abdominal e… ops! Tinha um neném! Minha sobrinha ganharia um irmãozinho e eu, mais um sobrinho! Meu coração se alegrou por saber que amaria mais alguém e, logo, apertou com saudades antecipadas. Adorei de verdade saber que chegaria um leãozinho na família, mas não posso negar que também houve um lado muito difícil para mim. Porque foi inevitável não pensar em todos os momentos que fiz tanta força para estar presente junto da minha sobrinha e não conseguirei o mesmo com ele. Mas esse é só meu lado egoísta falando, ele não vai sofrer por isso, não vai saber e sei que será feliz de toda maneira. Amarei igual, à distância e unilateralmente. Pelo menos, no início. Depois a gente dá um jeito.
Voltamos para São Paulo pelo meio de setembro, eu acho. Faltava um par de semanas para Luiz embarcar novamente e começar a trabalhar em Londres. Pequeno detalhe, a obra, em princípio, não acabaria antes de novembro (no mínimo) e a documentação dos nossos dois gatos não ficaria pronta até o início de dezembro. Bom, o que não tem remédio… lá vamos nós dar uma chance ao caos! Aquele momento em que você acredita que vai dar tudo certo, não por fé, mas por não haver outra alternativa!
Nos dividimos, Luiz ficou responsável por tocar o barco por Londres e eu por São Paulo. Cabia a ele achar um apartamento para morarmos e preparar a estrutura; cabia a mim terminar a obra, providenciar tudo que dissesse respeito à mudança e apagar a luz! Ele viria um final de semana em novembro, para meu aniversário, e no início de dezembro para embarcarmos juntos com os gatos. Ou seja, se tudo desse absolutamente certo, ficaríamos dois meses separados, exceto por um final de semana no meio deles. E, claro, com tão pouquinha coisa para resolver e tudo nada estressante, né? Mas calma que ainda vai complicar.
Pois é, em teoria, a obra deveria acabar bem no comecinho de novembro. Era nossa data limite porque dia 9/11 é meu aniversário e queria fazer uma festa de inauguração-aniversário-despedida, tudo junto! Afinal, como é que não ia fazer uma festa nesse apartamento depois de pronto? Tinha que ter, né? E ainda daria para Luiz ver a obra pronta.
Alguém tem alguma dúvida que não ficou pronto? Pequeno detalhe, eu já tinha convidado as pessoas. Minha mãe, meu irmão, cunhada, sobrinha… todos de passagem comprada. Galera, vai ter festa na obra!
Para vocês terem ideia do que estou falando, uma semana antes da festa, a sala estava assim:
O pessoal dessa construtora é muito bom! Os atrasos que houveram foram por problemas no elevador do edifício e por de um par de fornecedores básicos que não cumpriram data. O fato é que todo mundo comprou a história, digamos assim, e deram o maior gás para tentar fechar o que era prioritário. Ou seja, mesmo faltando alguns acabamentos, a gente ter condições de receber as pessoas. Conseguimos! E as prioridades eram, piso instalado, os banheiros operativos, e a geladeira funcionando… pronto! Com isso eu dou uma festa!
Nessa semana deviam ter uns 15 homens trabalhando no apartamento! Brincava dizendo que era tanta testosterona no ar que estava me nascendo barba! Luiz chegou um dia antes e, nessa noite, o pessoal ficou até umas 21h ou mais, literalmente escondendo o que tinha de entulho ou de material de obra por onde desse! Luiz e eu juntos também carregando coisa! Estava até engraçado. Quando eles foram embora, lá fui ele e eu darmos uma primeira limpada. Nem me lembro que horas acabamos, mas estávamos destruídos! Eu não tinha mais diarista, estava cuidando da casa eu mesma, assim já ia entrando no clima europeu.
Só que a arquiteta foi nesse dia dessa confusão, se sensibilizou, deu um jeito de achar uma faxineira e acabei marcando com ela, no próprio dia da festa, às 6 da matina! Tinha que ser assim cedo, porque os convidados chegariam no início da tarde, começava por volta de umas 14h ou 15h. E sim, ficou tudo limpo!
Faltou contar só mais uma coisinha, até o dia anterior a gente mal tinha água nesse andar. Quer dizer, água nós tínhamos, só não tinha pressão nas torneiras, porque era cobertura e eu quis porque quis a torneira X e o chuveiro Y, que por sua vez, precisavam de bombas pressurizadoras. As bombas atrasaram para burro, chegaram no dia anterior, e a pessoa que foi instalar, chegou na nossa casa no próprio dia da festa… pelas 10h! Por volta do meio dia, a gente descobriu que, finalmente, tinha água para a festa, aquela que começaria umas duas horas depois!
E, nesse momento, a sala estava assim como mostra a foto abaixo, faltando só arrumar e subir com as comidas. Aliás, nem entrei nesse detalhe, mas quem fez as comidinhas da festa fui eu mesma, no meio desse furacão! Por sorte, minha mãe estava por lá e me deu uma forcinha. Quem pisasse naquele apartamento durante essa semana, tinha que trabalhar!
E como foi? A festa foi ótima! Deu tudo certo! Casa inaugurada, aniversário comemorado e despedida divulgada! E, lógico, entrará para a história, legendária!
Dia seguinte, Luiz voltava para Londres e minha mãe, irmão, cunhada e sobrinha, para o Rio. Ficaram os gatos, eu e uma casa vazia. Não poderia ser diferente, o contraste de ter a casa cheia e completamente agitada, diretamente para o silêncio das minhas conversas imaginárias com meus gatos. Mas não é uma reclamação, fui dormir feliz, com o apartamento cheio de energias positivas!
Tudo muito bom, tudo muito bem, só que a obra não tinha acabado! E, menos de três semanas depois, eu ia embora.
Outra coisa, havia decidido que essa mudança seria com Luiz, gatos, malas e pronto! Chega de levar os móveis nas costas! Desapego completo! Parte de comprar esse apartamento era ter um lugar para meus móveis se aposentarem e viverem felizes para sempre. Acontece que, mesmo não levando os móveis, algumas coisas precisavam ir, documentos, instrumentos musicais, acessórios de cozinha, minhas peças de arte, fotos etc. Ou seja, de toda maneira, precisava contratar uma equipe de mudança. O ideal seria fazer isso logo no meio de novembro, mas enquanto a obra não acabava, não tinha nem como organizar as coisas que queria enviar. E o tempo passando…
E agora, José? Ferrou, né? Pois é, só que acho o seguinte, quando a gente chega em um problema sem saída, a solução é mudar o paradígma.
Pelo final de outubro, quando nos demos conta que não conseguiria viajar antes de dezembro, tomei uma decisão importante. Queria voltar no final de janeiro, assim estaria presente no aniversário de três anos da minha sobrinha e ficaria para o carnaval. Desfilaria pelo Monobloco uma última vez. Afinal de contas, ensaiei o ano inteiro! Seria esse meu encerramento de ciclo, meu próprio ritual de passagem, queria fechar com chave de ouro.
De maneira que, quando vi dezembro chegando, tínhamos duas opções, acabar a obra do jeito que desse ou acabar direito. Optamos por acabar direito e demos mais outra chance ao caos. Estendemos o prazo final para fevereiro de 2018, quando aí sim, deixaria o Brasil definitivamente. O dono da construtora, que esteve bastante presente em toda sua execução, ficou literalmente com a chave da nossa casa e carta branca para terminar o que precisasse. Pela internet, pagaria os boletos finais. Eles foram corretos até ali, acho que as pessoas merecem votos de confiança. Confiei, confiamos.
A obra seguiu sem a gente e deixei a empresa de mudanças para 2018! Quanto à construtora, deu tudo certo, eles foram super corretos e o apartamento ficou um escândalo de lindo! Quanto à mudança, conto mais para frente.
Bom, viagem marcada para o início de dezembro, Luiz chegou em São Paulo um par de dias antes. Faltava só entregar o carro que estava vendido “de boca”. Já havíamos feito as avaliações e estávamos tentando vender em particular, porque o preço é melhor que na agência sempre, normal. Também porque precisei do carro direto. Lógico que quando levamos o carro, bem próximo a nossa viagem, o preço mudou e estávamos ferrados, porque não havia mais tempo para anunciar o bendito veículo. Sim, tomamos um ferro! Fazer o que, né?
E a cerejinha do bolo, literalmente, na véspera da viagem, o cachorro da vizinha me mordeu pouco acima do joelho, no hall do elevador! Sério, eu só podia estar cagada de arara! Dava até medo de perguntar se não faltava mais nada! E, por sorte, o Luiz estava em São Paulo, porque pelo menos não tive que ir parar sozinha na emergência de um hospital, sem saber se precisava tomar vacinas ou que raio deveria fazer!
Dia 2 de dezembro, embarcamos! Chave da casa na mão do engenheiro responsável pela obra, um brutal hematoma no joelho dolorido pela mordida do cachorro, dois gatos apavorados a tiracolo e meia dúzia de malas! Do jeito que deu.
A SAGA DA VIAGEM, NATAL E VIRADA DO ANO
Agora, vamos ao assunto gatos! A documentação necessária para levá-los para Europa é mais complicada que levar uma criança! Mais caro também! Sozinha para resolver isso tudo… quer saber, vamos contratar uma empresa especializada nesses trâmites. Dei uma pesquisada, escolhi uma com boas indicações, contratamos e foi ótimo, menos um abacaxi nas nossas costas! Acontece que você só sabe que deu tudo certo quase que na véspera da viagem, quando chegam os documentos. Eles passam por quarentena que, felizmente, pode ser feita em casa, mas implica em exames de sangue, prazo correto de vacinação, atestados veterinários, aprovação pelo Ministério da Agricultura etc. O processo durou uns 3 meses, porque eles estavam vacinados, tinham chip e passaporte. Caso contrário, duraria pelo menos um mês mais. Por isso que eu só podia viajar em dezembro.
Você não achou que essa história seria simples assim, né? Porque acontece o seguinte, não existe voo para Londres em que os gatos pudessem ir conosco na cabine. Nenhum, nem com escala! Para chegar no aeroporto de Londres, necessariamente, os animais precisam ir via terminal de cargas. Sabe o que significa? Isso quer dizer que nem é garantido que eles viagem no mesmo voo que seus donos! Dependendo do horário de chegada do voo, às vezes, você não consegue resgatá-los sequer no mesmo dia. Alguma chance de Yo Myself enviar meus bichos assim? No fucking chance!
Aí vem a próxima saga! Nossa opção foi entrar por Madri, porque eles poderiam ir na cabine conosco e conhecíamos uma veterinária que cuidou do Jack, nosso falecido gato, por 8 anos. Além do que, em Madri estou em casa, vários amigos! Vai que precisava ficar por lá para nova quarentena! Na pior das hipóteses, a gente alugaria um carro, ia dirigindo até a Inglaterra e torcia para ninguém fiscalizar! Enquanto isso, na sala de justiça… Luiz saiu investigando e descobriu uma empresa especializada em fazer esse transporte de animais e seus donos de carro. Show! Só que era de Paris a Londres.
Pois é, quando saímos do Brasil, no dia 2 de dezembro, daquele jeitinho legal que contei acima, ainda não tínhamos ideia nem de que país passaríamos o Natal! Só sabíamos que estaríamos juntos, então, tudo bem!
Dito isso, aluguei um apartamento por uma semana em Madri para ficar com os gatos e tentar resolver toda a documentação. Luiz precisava viajar a trabalho, ele me deixou com os gatos em Madri de manhã cedo e, à tarde, pegou um voo para Dubai. Voltaria no sábado de manhã, torcendo para eu ter conseguido a documentação e a gente ver como faria. Vou encurtar o suspense, consegui a documentação toda em um único dia, logo na segunda-feira. A veterinária lembrava da gente e do nosso gato, havia uma relação de confiança. Ela revisou todos os documentos, viu se estava tudo certo, preencheu seus passaportes, me orientou sobre o que poderiam pedir. Não precisei nem levar meus gatos para ela examinar, o que seria um inferno, porque estava sozinha. Enfim, deixou tudo redondinho! Saí da clínica até mais leve, que peso ela me tirou! Liguei para Luiz, tudo certo, vamos tocar a ficha!
Estar em Madri essa semana foi bom para mim. Apesar de todas as incertezas e distância do Luiz, sabia que estava acabando, sentia que daria tudo certo, agora era só trabalho e variáveis que tínhamos algum controle. Foi como aqueles minutos finais depois de uma corrida longa, que você precisa diminuir o ritmo devagar, não dá para parar de repente. Tive algum tempo para mim mesma, para colocar minha cabeça em ordem. Encontrei amigos, saí, me diverti… foi bom, mas ainda estava muito ligada à família no Brasil, na dúvida se havia deixado algo para trás para resolver.
Um pouco antes dessa viagem, havia descoberto uma parte da minha família que não conhecia. Uma história bacana que me fez muito bem. Cresci ouvindo da minha avó materna que o pai dela havia deixado sua mãe e sumido! Assim que, nunca tive muita curiosidade por esse lado, achei que meu bisavô fosse um desses covardes que largam mulher e filhos e desaparecem. Nem sabia se eles haviam se casado mesmo ou não. Muito bem, uma prima resolveu ir atrás da árvore genealógica da família, porque precisava da documentação. E para a surpresa de todos, descobriu a família desse bisavô! Sintetizando, primeiro, sim, meus bisavós haviam se casado legalmente; segundo, ele não sumiu, seguiu morando na mesma cidade. Casou-se novamente e, inclusive, o irmão da minha avó teve contato com ele. Ou seja, ele não simplesmente desapareceu! O primeiro casamento não deu certo, eles se separaram, meu bisavô casou-se novamente e teve outras filhas. O porquê desse irmão da minha avó nunca haver contado nada para as irmãs, não tenho ideia! Mas lembro que naquela época era tudo mais difícil, minha avó encontrou esse irmão após mais de 20 anos sem se verem! Talvez, naquele momento, não fizesse mais diferença, acho que meu tio nem lembrou desse “pequeno” detalhe. Mas lembra da parte que disse que meu bisavô teve outras filhas, pois é, uma das irmãs da minha avó segue viva! A última! Foi o máximo descobrir que meu bisavô era uma pessoa boa, normal e que cuidou da sua família, que é em parte, minha também. Engraçado isso, mas no momento que descobri sobre eles, parece que o sangue falou mais alto e fiquei felicíssima em ganhar primos! Parece gente legal, animada e fiquei doida para ir encontrá-los! Aos 48 anos, descobri tias, primos e primas que foram bastante receptivos e também gostaram da ideia de nos encontrar. Minha mãe e suas primas foram para Recife conhecê-los, justo na semana que fui embora do Brasil. Assim que não pude ir a esse encontro, mas fizemos alguns contatos virtuais e estava super curiosa para saber como havia sido.
Pois muito bem, volto eu de madrugada, depois de sair com amigas em Madri, chego no apartamento e checo o celular. Fotos desse encontro! Começei a ver toda eufórica e, de repente, me deparo com uma foto da minha tia emocionada, abraçada à irmã da minha avó, a única viva. Despenquei! Queria muito ter sido eu abraçando também uma parte da minha avó. Foi como se toda a saudade do mundo me baixasse de uma vez! Tive a necessidade de ligar para minha mãe, de ter certeza que não havia algum assunto mal resolvido ou ficado algo por dizer. Senti falta de estar perto de um entorno familiar, cercada por avós, tias, primos. Senti mágoa por não conseguir ser essa pessoa, por sempre precisar ir e por saber que é sempre a minha opção, preciso ir. Deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar, rir pra não chorar…
Enquanto isso, Luiz entrou em contato com a empresa de Paris que fazia o transporte de gatos (e seus donos) e comprou nossas passagens para lá. Ele chegou de Dubai na sexta-feira à noite. Fomos no sábado de avião de Madri para Paris com os gatos no colo. Em Paris, o motorista nos encontrou no próprio aeroporto, pela hora do almoço. Gente boa, um carro confortável, gatos tranquilos. Wolverine, que é o mais complicado, veio fora da caixinha de transportes, no meu colo o tempo todo. A empresa era pai e filho, eles trabalhavam antes com mudanças entre Paris e Londres e perceberam a necessidade de um serviço assim. Não éramos só nós que não queríamos enviar nossos bichos por um terminal de cargas! Achei perfeito! A gente teve que mostrar a documentação antes de entrar no Eurotunnel, ele dá um apoio nessa hora. Por exemplo, vai que a documentação tem algum problema, eles já indicam veterinárias ali perto. Mas não foi nosso caso. Por ter o passaporte com tudo certo, nem chegaram a olhar a documentação brasileira e a quarentena. Para nós, todo um alívio. Chegamos em Londres por volta de 19h, com gatos são e salvos.
Adorei o apartamento que Luiz alugou e os gatos se adaptaram muito rápido, no mesmo dia! Quando sentei no sofá com ele, olhando para o rio Tâmisa, bem na frente, foi um suspiro de alívio! Passaríamos o Natal e o Réveillon juntos na nossa casa em Londres. Fui dormir feliz.
Aliás, uma coisa engraçada aconteceu com os gatos, o comportamento deles mudou quando chegamos em Londres. Ficaram mais alegres, próximos e começaram a repetir brincadeiras que faziam logo que os adotamos nas terras britânicas. Incrivelmente, parecia que eles reconheceram o lugar e voltaram para casa. Cheguei a pensar que pudesse ser o cheiro, mas nem morando na mesma vizinhança onde foram adotados estamos. Sei que é uma viagem na maionese, mas juro que foi essa impressão que passou e olha que conheço meus bichos! O importante é que estão bem e foi a adaptação mais rápida de todas.
O ENCERRAMENTO DO CICLO, MEU PRÓPRIO RITUAL DE PASSAGEM
Com pouco mais de um mês em terras britânicas, lá fui eu de volta para o Brasil! Na minha cabeça, uma confusão de onde eu ainda morava, ou não. Todos os instintos aguçados, consciência plena. Estava bem, tranquila, queria aproveitar muito esse momento, porque sentia que seria importante. E foi ímpar. Mas ainda não sabia disso.
Embarcar sozinha, sem a ansiedade de estar com os gatos, sem o medo de ter algum documento faltando, sem ter que sair correndo para algum hospital… só tinha que cuidar de mim! Foi quase relaxante! Estava bem curiosa para ver como havia ficado meu apartamento, a obra terminou comigo fora do Brasil. E queria aproveitar um pouco, né? Uma trabalheira danada e deixar para trás, tudo bem; mas sem nem tirar uma casquinha? Pô, eu tinha que, pelo menos, inaugurar minha banheira!
Ainda no caminho para o aeroporto, falei com Luiz animada que nem lembrava há quantos anos não ia ao Brasil tão bem, sem ser às pressas ou com algum problema grave. No segundo seguinte, me lembrei e me entristeci, também não tem meu pai. Claro que já tinha ido a casa dos meus pais depois dele falecer, mas tudo era recente e morava tão perto. Dessa vez, bateu mais forte a consciência que chegaria e ele não estaria lá.
Resolvi chegar e sair pelo Rio, assim ficava garantido que via a família e, principalmente minha sobrinha, é lógico! Não vou negar. Era seu aniversário de três anos e queria estar presente.
Meu voo foi diurno e com a diferença de fuso, o dia fica gigantesco. Cheguei cansada, mas bem, minha mãe foi me buscar no aeroporto. Eu levava duas malas enormes quase que vazias, a ideia era trazer o restante de toda a roupa, documentos, enfim, o que fosse importante e havia ficado em São Paulo.
Quando chegamos na casa dos meus pais, foi muito esquisito para mim. Fiquei confusa, parecia outra casa, foi uma sensação de estranhamento total! É verdade que ela havia feito obra, algumas coisas mudaram realmente, mas não o suficiente para eu ficar tão perdida. Fiquei como uma barata tonta! Passei rápido pela sala e pela poltrona vazia. Eu devia estar só cansada, precisava dormir. Tive pesadêlos, visões, um inferno de noite! Mas assim que clareou o dia, amanheci melhor. Não tive mais problemas depois, foi só na chegada. Eu devia estar mesmo bastante cansada.
Logo após o aniversário da minha sobrinha, peguei um avião para São Paulo, no mesmo dia! É que era uma quarta-feira, ensaio do Monobloco. Já havia perdido um monte de aulas e a esperança de estudar em Londres pelos vídeos nunca se concretizou. No sábado, nós teríamos uma apresentação, o último ensaio aberto, antes de colocar literalmente o bloco na rua. Assim que me virei do avesso para conseguir chegar nessa última aula a tempo. Resolvi alugar um carro no próprio aeroporto, as distâncias em São Paulo são muito longas e não estava afim de pegar Uber sozinha à noite, ainda mais sem ninguém em casa para saber se cheguei ou não. Ou seja, de volta à neurose brazuca!
Consegui chegar no ensaio. Poderia estar melhor, mas vi que dava para encarar, só prestar bastante atenção, dar uma estudada em casa e se ficasse na dúvida, simplesmente, tirava a mão e sorria, pronto! Foi gostoso, estava um clima bacana. Eu meio nostálgica, pensando que era minha última aula. A gente tem umas bobagens com “primeiras” e “últimas” vezes, né? Eu tenho. Para mim são pequenos ciclos dentro de ciclos maiores. Eu vivo em ciclos!
Fui do aeroporto praticamente direto para o ensaio. Por sorte, o aeroporto é perto do meu apartamento e subi às pressas para buscar meus equipamentos de guerra: joelheiras, talabarte, maceta e os protetores de ouvido. Voei para aula e fiquei até o finalzinho do finalzinho! De maneira que só cheguei em casa quase meia noite. Foi só o tempo de arrumar a cama no andar de cima, que foi o próprio pessoal da obra que montou para mim e apagar. Só um detalhe, um calor do cão, com um aparelho de ar condicionado novinho… e cadê que eu achava o controle remoto! Bom, abre as janelas e torce para ventilar. Ventilou e eu desmaiei até o dia seguinte.
Acordei cedo. Sabiamente, marquei com a diarista para dar uma boa limpada na casa, afinal, por mais que fossem cuidadosos, o apartamento passou por uma obra! E logo pela hora do almoço, minha mãe chegaria, convenci ela de passar a semana lá comigo. Pretendia buscá-la no aeroporto, mas não sei o que tive que resolver que não deu. Acho que era algum detalhe que faltava de obra no quarto de empregada, ou estava ajudando a limpar a casa, sei lá, nem lembro mais! A verdade é que havia milhões de detalhes para resolver e eu com medo de não dar tempo ou não dar conta de tudo!
Chegou sábado, a apresentação do dia 27/01! Minha última apresentação, depois só haveria os desfiles. Estava em uma nuvem, às vezes me sentia nesses filmes onde o tempo para em volta e você só escuta um som, o som do meu surdo. Do meu lado direito, o mestre; do meu lado esquerdo, o aluno que tocava melhor; logo em frente o que chamamos de “diretoria”, o pessoal que puxa os ritmos e tem os instrumentos microfonados. Não havia posição melhor, ali eu tocava até por osmose! Nem todo mundo gosta de tocar ao lado do mestre, porque é a maior responsabilidade. Se você errar qualquer notinha ele vai saber que foi você! Mas eu adorei, não me senti intimidada, me senti protegida. E, na minha opinião, foi a melhor apresentação de todas! Muito especial! A que mais aproveitei e consciente do que estava tocando. Muito concentrada, mas relaxada. Curti horrores! Engraçado porque é um momento completamente coletivo, a bateria só é poderosa porque é em grupo. Entretanto, contraditoriamente, sentia duas realizações em paralelo, uma como unidade, como parte de um todo; e outra só minha, com minhas emoções e pensamentos. Quanta coisa aconteceu até eu chegar naquele dia. E eu cheguei, quase inteira.
Mas ainda não era o fim! Haveria o desfile de São Paulo e o de Belo Horizonte, que finalmente conseguiria participar! O desfile do Rio, eu nem tinha esperança, porque era para o pessoal mais antigo e com mais prática. Luiz ainda me atiçou, você não vai perguntar para o seu mestre se pode? E eu, Luiz, o Bloco tem 18 anos no Rio! Fiquei quase dois meses sem ensaiar, estou dando um duro danado para não fazer feio aqui! Já pensou se ele me diz não? Olha que constrangedor! Depois eu também estou cheia de coisa para resolver, acho que eu nem daria conta…
E era verdade, tinha muita coisa mesmo para resolver. A ponto de no final de tudo, lá na frente, a diarista virar para mim e dizer, dona Bianca, mas você trabalhou, hein? Quando até a diarista, ocupada e trabalhadora como uma formiga, te diz isso… você imagine!
Mais ou menos por aí, me aparece uma mensagem pelo Facebook de alguém que não me lembrava bem se conhecia. Ignorei, estava tão ocupada! Até que chegou uma mensagem me chamando de “prima”. Opa! Prima? Cheguei a pensar que poderia ser dos meus novos primos descobertos pelo lado da minha mãe, mas o sobrenome não batia. Tentando encurtar a história, era uma prima que não via há mais de 30 anos! Claro que eu não lembrava! Mas desse fio, fomos puxando as histórias, resgatando fotos antigas, fui me lembrando e reatando o contato com esse lado da família, que é da parte do meu pai. De repente, em um espaço de uns 3 meses, estava eu cercada de novos e antigos primos! Incrível! Todo mundo diz, eu mesma digo, que não é só por um laço de sangue que se criam afinidades, a gente também tem amigos que se tornam família, é fato. E, às vezes, infelizmente, também tem gente da família que a gente não quer nem ver! Mas foi curioso e interessante observar que, nesse caso, como no caso da minha família descoberta, a afinidade foi instantânea! Bom, pelo menos da minha parte. Foi saber que eram primos, pumba! São família! E achei essa sensação muito boa.
Chegou, finalmente, o desfile do Monobloco de São Paulo! Meu final de ciclo paulista! O que posso contar? Passou em 3 minutos, passaram-se 3 horas, passaram 3 anos, passei uma vida! O desfile mais fresco de todos, por assim dizer, a temperatura e o sol colaboraram bastante! Tocamos para 200 mil pessoas! Podia contar no futuro que, um dia, ajudei 200 mil pessoas a pularem, esquecerem, celebrarem! Tem ideia da energia e adrenalina que te envolvem? Terminei inteira, forte e me sentindo vitoriosa. Ao mesmo tempo, Luiz não estava lá no final me esperando e não podia dizer que tinha a mesma graça. Não precisava mais sair correndo para um hospital, só que não era porque meu pai estava bem, ele simplesmente não estava mais. Minha vida de opostos e contradições! Talvez eu devesse ir à festa de celebração após o desfile, até tinha deixado minha parte paga, estava bem. Mas sabe quando você tem a sensação que é melhor ir embora enquanto o time está ganhando? Quando você quer o final perfeito e não quer arriscar. Tive essa necessidade de um momento egoísta, meu papel no bloco havia sido cumprido. Agora, me restava despedir da cidade. Eu, tão medrosa de assaltos e agressões, após 3 anos de carros blindados, saí caminhando no meio da multidão. Sozinha, leve e me sentindo protegida, como se nem tivesse mais nada a perder. Vestida com a camiseta do Monobloco como escudo, e a maceta na mão como amuleto, o que poderia me acontecer? Querida São Paulo, por duas vezes você me recebeu de braços abertos e se despediu de mim generosa e sem mágoas. Apesar dos pesares, também em você há muito de que sentirei saudades! Obrigada!
Mas não era o final, ainda havia o desfile de Belo Horizonte na semana seguinte. E eu ainda tinha muito trabalho em casa! Precisava me desfazer de um caminhão de coisas, definir o que levaria para Londres, o que doaria e o que ficaria no apartamento para alugar. Parece que é algo que você faz em meia hora, só que não, porque é definitivo. E nem tinha contratado a empresa de mudanças, acredite se quiser! Mas tudo bem, essa parte é chata, trabalhosa, mas estou no meu elemento, sei o que fazer e como administrar o tempo que tiver. Tinha uma semana. Depois, iria para BH e quase que direto para o Rio de Janeiro.
Bom, lembra que Luiz tinha me perguntado porque não pedia para desfilar com o Monobloco no Rio de Janeiro também? Lembra que falei que nem tinha esperanças… que estava ocupada… que não estava nem ligando muito? Era mentira! Quer dizer, mais ou menos mentira. Realmente, não tinha nenhuma expectativa e estava bem ocupada, mas mandei tudo para o saco quando li uma mensagem recebida pouco depois do desfile de São Paulo. Era meu mestre, me convidando para tocar no desfile do Rio de Janeiro! Quase caí para trás! Lógico que eu quero! Quero muito! Quero para um palavrão bem grande! A despedida perfeita! Em São Paulo, minha base; em Belo Horizonte, pela família que tenho por lá e por um capítulo aberto no ano anterior; e no Rio, de onde sou, de onde fica a parte principal da minha família e de onde me despediria do meu país. Foi como se tivesse ganhado na loteria! Não existia final de ciclo melhor e mais significativo!
Vamos por partes! Consegui arrumar todo o apartamento, arrumar o que levaria para Londres, doar o que não podia levar, fechar com a corretora que ficou de alugar o imóvel… ufa! Ficou tudo encaminhado! Missão cumprida! Agora era só desfutar! Nem acreditava que dei conta! Rolaram até umas reuniões com amigos em casa, aproveitar a raspinha do tacho e terminar de beber o estoque etílico disponível! Quem foi, se deu bem, show de vinhos compartilhados, até porque, beber sozinha é um saco! O que sobrou, um amigo levou, disse que ia guardar para quando fôssemos por lá. Faz isso não, aproveita, curte, quando viermos e se viermos a gente vê, compra outras, sei lá… prefiro que alguém seja feliz e aproveite bem o que deixamos. Nada melhor que lembrarem da gente em momentos legais, né não?
BELO HORIZONTE
Ir a Belo Horizonte era importante para mim por alguns motivos. O que me levou foi o desfile do Monobloco, o mesmo do ano anterior que não havia conseguido ir. Era o máximo ir tocar em outra cidade, me sentia quase profissional! E havia ficado aquele gostinho de quero mais, de etapa não cumprida. Além do que, o povo de Minas é animado pacas! O pessoal que havia ido tocar por lá havia voltado falando super bem.
Mas não era só isso, tenho família em BH. Minha tia, irmã do meu pai, mora lá. É minha única tia em primeiro grau, meu pai só teve uma irmã e minha mãe é filha única. Minha tia casou com seu primo, ou seja, tenho uma boa parte da família do lado do meu pai por aquelas bandas. Esses tios tiveram 3 filhos, também meus únicos primos de primeiro grau. Passamos várias férias juntos na minha infância e adolescência. E eu nessa fase tão carente de tios e primos… queria muito passar por alí antes de ir embora. Aproveitei esse momento, me senti em casa, em família.
Resumindo, dois coelhaços com uma macetada só! E foi o máximo! Até a viagem foi legal! Fomos de carro. Uma amiga batuqueira dirigindo, eu e mais algumas de carona. Chegou a me bater um pouco de arrependimento de não haver me entrosado mais com o grupo. Naquela bobagem de cansar de tanta saudade, perdi eu a chance de haver me relacionado mais com gente bacana. Mas valeu assim mesmo, que bom ter dado tempo de perceber isso antes de ir embora.
Vou nem tentar ser politicamente correta ou não comparar, para mim, foi o melhor desfile de todos os anos! Foi uma delícia! Gostoso de tocar, público generoso, animado e estimado em 400 mil pessoas! Sim, meus caríssimos, centenas de milhares de pessoas se acabando com nossos tambores! Nunca me diverti tanto, nunca dancei tanto com um surdo pendurado, me emocionei, chorei, flutuei, foi incrível! Queria beber aquelas horas, comer aquelas horas, não queria esquecer nunca, não queria esquecer de nada! E uma das experiências mais legais foi quase no finalzinho, escurecendo, rolou um “momento diretoria” nos surdos de terceira (meu naipe). Só o mestre, eu e mais dois alunos tocando, soltando o braço numa rodinha íntima básica para 400 mil pessoas! Com licença, porque agora vou tirar onda mesmo, você sabe o que é tocar numa “rodinha” com o mestre dos surdos do Monobloco? E ainda por cima se sentindo segura, curtindo horrores? Pois é…
Se tivesse acabado ali, eu já era feliz! Só que tinha mais.
RIO DE JANEIRO
A cidade maravilhosa, purgatório da beleza e do caos! A cidade que amo e odeio, que me sinto em casa e me sinto estrangeira, que me dá e que me toma. O poço de contrastes e contradições, meu berço, de onde me originei. Tinha que ser por lá também que me iria. Sou carioca, porra!
E para completar, o desfile do Monobloco foi exatamente um dia antes que eu fosse embora! Como se tivesse sido planejado! Pela primeira vez, feita no Aterro do Flamengo. O mesmo trajeto que fiz inúmeras vezes do aeroporto para a casa dos meus pais e sempre tenho a chegada na memória. Agora teria também a direção oposta, a de ida. Tudo me parecia simbólico, tudo me parecia um sinal. E, sinceramente, era como se me confirmasse que a decisão foi correta. O Rio me deixou seguir livre meu caminho, como pais que criam seus filhos para o mundo e não para si mesmos.
O desfile foi legal, um pouco mais tenso, muita responsabilidade e achei o pessoal meio marrento. Muito carioca, né? Um mar de gente e aquele calorão típico! Não foi tão divertido como em Belo Horizonte, mas também não quero passar a impressão errada porque foi um momento bem importante para mim e o desfile foi igualmente lindo. Falo só da minha experiência pessoal. O desfile abre com o “Sino da Igrejinha”, uma batida forte pedindo passagem para as divindades do universo, de arrepiar! É porque não tenho fé, mas se tivesse, seria macumbeira, sem dúvida! Passei quase um mês com essa levada grudada e ouvindo na cabeça: … oi corre gira que Ogum mandou… Pode não ter sido tão divertido, mas foi poderoso. Foi bonito e foi difícil caminhar aquele trecho tentando não me desconcentrar. Vontade de chorar, de saudade, de orgulho, de alegria, de saber que a cidade seguiria lá e me dizia, marrenta e superior, vai ser livre! Se quiser voltar, seguirei aqui, com o mesmo sotaque e cheiro de maresia. Sou o Rio, porra!
E eu fui! Ciclo encerrado, ponto final.
… se alguém por mim perguntar, diga que eu só vou voltar, quando eu me encontrar…
Passei horas lendo isso. 3 anos em um post. Você abre as portas e janelas da sua vida e nos permite entrar sem ter que pedir permissão. Me senti novamente muito próxima mesmo estando distante. Percebi que estava sentindo muita falta dessa cumplicidade. Momentos especiais que deixam uma impressão para sempre.
É mágico como as palavras bem escolhidas podem carregar tanta energia e impressões. Que venha o novo ciclo. Eu estarei aqui ansiosa à espera dos próximos capítulos.
Oi, Claudia! Seja bem-vinda! Acho que agora volto a escrever com mais frequência, pelo menos, esse é o plano! 😉 Beijão
Uau! Li por partes. Fiquei feliz em “te ver de volta” na vida de blogueira. Me identifiquei com tanta coisa que vc nem imagina 😉 sorri e chorei … e até fiz as duas coisas juntas. Quanta coisa boa, quanta coisa intensa e quanta sabedoria e lucidez. Que a vida em Londres te dê muitos e muitos motivos para nos escrever. Beijão!
Obrigada, Tati! Assim espero! 🙂 Beijão
É aqui que te encontro?
Aqui também, peregrino! 🙂 Bem-vindo!