Pois é, os que acompanham o blog (apesar de admitir que anda meio parado desde que voltei ao Brasil) sabem que sou fissurada por percussão! Os que frequentam nossa casa, tiveram a experiência de participar de festas muito bem invadidas por música ao vivo, profissional ou não, e sempre foi a hora em que matava um pouco minha vontade de batucar.
Voltando no tempo, quando morávamos na Espanha, em uma festa na casa de um amigo rolou um DVD do Monobloco tocando no Circo Voador. Quem mora ou já morou no exterior entende o quanto a música e a comida te aproximam do seu país de origem. Muitas vezes a gente nem se sente mais brasileiro, discorda de um monte de coisas, critica, renega… mas na hora que sente um cheiro de pão-de-queijo ou escuta um samba… ferrou! O sangue fala mais alto, o santo baixa, sei lá, mas você se lembra na hora de quem você é e onde nasceram suas primeiras raízes. Bate muita saudade também, mas essa parte você já aprendeu que não importa onde estiver, não se livrará nunca desse sentimento. Como costumo dizer, sou colecionadora de saudades.
Mas o que importa agora é dizer que meu lugar favorito para concertos ao vivo é o Circo Voador, nem tanto pelo local em si, mas ao que me remete em lembranças boas, tenho um certo carinho. Amo o repertório do Monobloco, acho bárbaro o passeio que eles dão pela música brasileira, com uma leitura mais moderna e descontraída, uns arranjos super bem elaborados, contagiantes e, ao mesmo tempo, fazendo parecer algo simples e despretencioso. Passa aquela sensação de ser um grupo fantástico de gente normal, que você se identifica instantaneamente. Você canta todas as letras de músicas que nem se lembrava conhecer, como se estivesse no inconsciente coletivo do brasileiro em geral (pelo menos, da minha geração).
Portanto esse tal DVD ganhou um toque afetivo e cansou de participar em festas e encontros entre pessoas muito queridas e com aquela vontade de aliviar um pouco a saudade da família e dos amigos no Brasil. Enfim, fiquei completamente fã e com muita, mas muita vontade de algum dia conseguir assistir um show deles ao vivo.
Pois muito bem, passou o tempo e viemos parar novamente em São Paulo. Situação dura para mim, porque na verdade eu não queria vir, não estava feliz, mas precisava. Isso não é uma reclamação, eu realmente precisava vir, por mim, pela família, por assuntos pendentes aqui… enfim, o fato é que eu vim e pronto! O jeito era usar nossa estratégia de sempre, parar de comparar e buscar o que tem de bom em cada lugar.
Chegou maio, uma amiga me avisa que o Monobloco estava abrindo uma oficina em São Paulo para ensinar percussão e que os alunos podiam ser amadores. Só que o prazo para as inscrições havia passado um pouco.
Eu quase infartei! Sério! Como assim, existe essa possibilidade? E eu posso perder por tão pouco! Ah, não, ne-ces-si-to participar dessa oficina! Enviei mensagem, catei o telefone e liguei direto para lá (sim, gente, eu, aquela que não telefona, não atende celular etc, não pensei duas vezes!). Resumindo, consegui entrar!
A proposta era exatamente ensinar percussão para amadores, com o objetivo de no carnaval seguinte, 2016, colocar literalmente o bloco na rua, com percussionistas de São Paulo. Possivelmente, haveria algumas apresentações antes disso. Sabe coisa de sonho, que você nem acredita? Teria a oportunidade de aprender percussão com o pessoal do Monobloco e ainda por cima, fazer parte do primeiro desfile em Sampa! Conhecendo a trajetória deles no Rio de Janeiro, vamos combinar, histórico, né? E eu estava exatamente aqui nesse momento!
Muito bem, chegou o grande dia das aulas começarem, tínhamos aula uma vez por semana. Confesso que estava meio nervosa, era um pouco intimidador, mas ao mesmo tempo, com confiança que seria legal, afinal, todos ou quase todos estavam ali no mesmo barco. No início, você roda por diferentes instrumentos até decidir o seu, a oficina tem caxixi, agogô, tamborim, caixa, repique e surdos de primeira, segunda e terceira.
Lógico que meu coração bateu pelos surdos de cara! Sou louca por marcação! Sabe aquela maluca que durante os shows ao invés de olhar para o cantor, acompanha o percussionista? Ao mesmo tempo, sendo um pouco razoável, pensava que tocar um surdo dentro de um estúdio paradinha, tudo bem, mas como é que eu, com essa minha estrutura física, vou aguentar horas de desfile, com sol na quenga, carregando esse trambolho? Que mania de gostar do que não é para mim! E será que não era mesmo para mim? Enfim, segui o conselho dos mestres e dei uma passada por instrumentos diferentes.
Mentira, ou meia verdade, só passei por instrumentos diferentes na primeira aula, porque os surdos foram logo ocupados. Na segunda aula, já fiquei do lado deles para não correr o risco de ficar sem. Não entendia a diferença entre surdos de primeira, segunda e terceira, mas o de terceira era o menor deles, grande mesmo assim, mas o único que eu tinha condição de carregar com alguma dignidade! Paixão à primeira pancada, não sei se sou adequada para ele, mas, definitivamente, ele era o meu número! Eu que me virasse durante o ano, me acostumasse, fosse malhar braço, pilates para as costas, foda-se… queria o surdo.
Bom, novamente, quando você mora no exterior, são criadas algumas ilusões quanto às suas próprias capacidades. Porque qualquer reboladinha que você dá, acreditam que você é uma passista de escola de samba e qualquer batucadinha dentro do ritmo… caraca, brasileiro tem isso no sangue! Só que não, é relativo, apenas uma questão de com quem estão te comparando.
De maneira que, quando as aulas começaram a sério, cada um com seu instrumento elegido, não é que achei que fosse arrebentar, juro que não. Mas achei que seria fácil! Era para ser uma distração, um momento de descarregar, relaxar… ledo engano!
Taqueopariu que coisa tensa! Peraí, achei que levasse algum jeito… que fosse sair assim naturalmente… essa porra é difícil pacas! Quequeutôfazendoaqui? E cada chamada que levava (e o pessoal do surdo leva esporro mesmo, porque não pode errar) ficava mais puta da vida! Não com a bronca, porque era justa, mas porque eu errava! E que raiva dá errar quando você sente que está errando, quando você escuta certo, mas a mão parece que não obedece! Passou pela minha cabeça desistir algumas vezes! Eu não precisava disso, sério! Não preciso de mais um compromisso, mais uma preocupação! Ainda tive que fazer uma cirurgia, perdi algumas aulas… Onde está aquela parte de relaxar, curtir? Caramba, mas eu já deixei os cheques pré-datados para pagar todos os meses de aula… que saco!
Até que chegou um dia que achei que seria o limite para decidir se afinal, queria ou não queria fazer parte daquilo. Sentei uma tarde na frente do computador e fui buscar pelo youtube os vídeos do Monobloco que assistíamos e cantávamos juntos em Madri. Admito que bateu uma emoção, por vários motivos que já não importam. O mais importante é que reconheci nos shows nossos mestres de bateria, Celso Alvim, Sidon Silva, CA Ferrari e Mário Moura (meu mestre). Acho que foi quando finalmente a ficha caiu para mim, esse pessoal que tantas vezes tinha alegrado nossas festas, de quem era fã, não eram mais personagens de um vídeo. Estavam ali, ao vivo e a cores, com toda boa vontade para nos ensinar. E eu, depois de 11 anos fora do país, estava exatamente aqui, nesse mesmo momento. Aonde mais eu teria uma oportunidade como essa? Por que ainda não havia entendido a proporção desse privilégio? E vamos combinar, saber que daqui há alguns anos, quando o Monobloco construir sua tradição em desfiles nas ruas de São Paulo, eu poderia dizer, independente de que parte do mundo eu estiver, que participei do primeiro desfile. Fiz parte da primeira bateria!
Ok, Bianca, então deixa de mimimi, senta o rabo na frente dos vídeos que você tem para acompanhar, estuda as apostilas, compra o instrumento e faça por merecer!
Sinceramente, para mim foi um divisor de águas, a hora que entendi que a coisa era séria e quis, de verdade, aprender a tocar bem. Uma vez por semana é pouquíssimo! Comecei a estudar 3, 4 vezes por semana. Nos dias de ensaio, estudava o repertório que seria visto com antecedência. Decidi que se ainda assim não levasse jeito, me pedissem para trocar de instrumento, eu sairia, porque não seria correto atrapalhar o projeto. Mas se isso não acontecesse, estava disposta a dar o melhor, me dedicar. E a verdade é que o esforço valeu muito a pena! Continuava não sendo fácil, mas sentia a evolução, fazia diferença o tempo de dedicação. Talvez eu não levasse no sangue, talvez seja sempre assim, o fato é que entendi que podia aprender, se não puder ser uma exímia percussionista, posso com certeza melhorar! E também passei a ser menos intransigente com meus próprios erros, não existe aprendizado sem errar. Paciência.
Levou quase 4 meses para eu começar a tocar relaxada! Bom, parcialmente relaxada! Até hoje preciso estar completamente atenta, sigo os comandos dos mestres com certa obsessão, passo o tempo inteiro contando, mentalizando a onomatopeia das levadas, marcando no pé, marcando com a mão esquerda… às vezes, nem sei o que estão cantando no palco, na minha cabeça a música é outra, é toda marcada. E eu gosto! Não é mais tenso, os cortes e breques que me deixavam ansiosa, agora são pequenos desafios que me deixam mais atenta ainda, curto quando vejo os sinais nas mãos dos mestres e sei o que tenho que fazer. É torturante e prazeroso como aprender um idioma novo.
Ok, eu devo ser masoquista!
Muito bem, começamos a fazer apresentações abertas ao público, os chamados “ensaios abertos”. O dia em que o Celso anunciou a data da nossa primeira apresentação, acho que fui a única ou uma das únicas a sorrir, a expressão geral era meio tensa. Ele brincou dizendo algo como: galera, essa é a parte que vocês fazem u-hu! E se ouviu aquela risada nervosa geral. Sinceramente, adorei a notícia, porque por experiência, sei que sempre que existe uma apresentação marcada, as pessoas se dedicam mais, evoluem. E assim foi.
Fizemos três apresentações. Quando fizemos a primeira, achei que foi boa, principalmente considerando que foi a primeira. Algumas coisas para melhorar, mas tudo bem. Quando fizemos a segunda, achei que em comparação, a primeira não havia sido tão boa, porque melhoramos bastante. Na terceira, cheguei a conclusão que a primeira foi uma merda! Ok, estou exagerando e brincando um pouco, mas a evolução era clara, tanto para mim, quanto para Luiz, que escutava o show de outra perspectiva, a do público. E isso considerando que na terceira apresentação, tudo que podia dar errado, deu! Não conseguimos ensaiar na semana anterior com os mestres, caiu um temporal monumental, faltou luz… A luz só voltou com o público entrando na casa e, inclusive, foi com esse mesmo público já presente que fizemos a passagem de som! Ainda assim, foi show e o pessoal se divertiu horrores! Para mim, esse é o maior termômetro de missão cumprida.
E… finalmente… tcham, tcham, tcham, tcham… chegou o grande dia do desfile do bloco! Chegou domingo, 31/01/2016, nossa estreia nas ruas de São Paulo! Saindo do Monumento às Bandeiras, em frente ao Parque do Ibirapuera, até o Obelisco. Paisagem mais paulistana não poderia existir!
Cheguei às 10 horas para a concentração, montaram uma estrutura legal para a gente, tendas com água, cerveja, comidinhas e… sombra! Uma das bateristas casou no dia anterior e levou docinhos do casamento para a gente, muito gentil! Passa um pouco do clima gostoso que estava rolando entre os integrantes. Somos 120 bateristas, não nos conhecemos tão bem, esqueço o nome de vários, tenho certeza que meu nome também é esquecido, mas não importa, o clima é bom e o pessoal parece bem legal. Nos aproximamos mais depois que começaram os ensaios abertos.
Pelo meio-dia, fomos chamados para frente do carro de som. Não gosto de atrasos e me irrita muito essa coisa brasileira de privilegiar os atrasados, enfim, para a gente que tinha apoio não foi ruim, mas acho que deve ter sido chato para o público que chegou cedo e encarou o sol na cuca. Sim, porque o dia estava lindo, mas fazia um calor saharico!
Eu me preparei bem, conheço minhas limitações, sou magrela, branca pacas, minha pressão cai no calor, meus dois joelhos são ferrados, ou seja, o perfil perfeito para uma baterista de surdo, né? Iniciei os preparativos físicos no dia anterior, jantei pasta e carne, bebi litros de água, tomei um bom café da manhã e na concentração ainda comi mais um sanduíche e um bem-casado. Levei uma garrafinha de cachaça, tomei um pouco na concentração, o suficiente para relaxar a musculatura, mas sem exageros. Pensava em tomar durante o desfile, mas desisti, seria burrice, precisava estar o melhor hidratada possível! Protetor solar fator 50, joelheiras, botas de trekking, protetor de ouvido e uma garrafinha de água presa ao pescoço. Pronta para a guerra!
Coração acelerado, atenção a mil, fizemos uma passagem de som, intervalo de 10 minutos e partimos para a “avenida”! Daí para frente a memória fica nebulosa, porque mistura tanta coisa, uma série de imagens me vem a cabeça quase em câmera lenta… as mãos dos mestres comandando… as garrafas de água gelada passando de boca em boca, como um cachimbo da paz… alguém colocando gelo no meu pescoço… as pessoas em volta do trio sorrindo e dançando… um calor sufocante… um termômetro marcando 35º… a visão do obelisco de longe que parecia o km mais longo do mundo… a pele arrepiando… a vontade de rir sozinha… os olhos enchendo d’água… concentra… marca o passo… breque… chamada de repique… sombra de nuvem… baixei o surdo para acertar o talabarte, o bloco começou a andar e não conseguia colocar o instrumento de volta sozinha, surgiu uma mão segurando a baqueta para mim, o mestre suspendendo o surdo na frente para eu encaixar, e lá vamos nós outra vez… calor… sede… baqueta leve… surdo leve… vontade de pular com o surdo mesmo… vontade de acabar… vontade de continuar… não acredito que estou aqui… 1,2,3,4 e… tchum tcha tcha tchum tchum tcha… subida… saída… breque 22… 3e… olha para mim… Portela ou Monobloco… não estou vendo a contagem… cadê o mestre… cadê o Luiz… amigos acenando de fora…
E quando achava que já não aguentava mais, a levada acelerava, olhava em volta o povo saltando e cantando junto! Daí você tira fôlego dos rins, eu acho, porque não dá para saber nem de onde vem, mas a vontade é de dar tudo! Até que você escuta o “…uh, sai da frente, sai que o Monobloco é chapa quen-te”! E você realiza que terminou, a missão do dia, nesse caso a do ano, foi cumprida! Dá pena, apesar do cansaço nítido, no fundo, queria mais!
Rolou uma emoção geral, mas me segurei. Fui agradecer ao mestre que me disse algo como, parabéns, está batizada! Achei legal, não tinha pensado nesse sentido, mas foi realmente um tipo de batismo pagão, por contraditório que soe. É bacana essa relação que a gente tem com blocos, escolas de samba, times, grupos em geral com uma identidade, algo forte em comum, dá a sensação de pertencer. Para uma nômade como eu, pertencer é um privilégio esporádico que valorizo a peso de ouro! E depois dessa experiência, acho que mais importante do que lembrar desse dia como histórico, o primeiro desfile do Monobloco em São Paulo, vou me lembrar de um dia em que eu fui muito feliz.
#tonomonobloco
Estava esperando por este texto. Coisa bem boa te ler. Já estava com muitas saudades. Quero mais shows. Quero mais monobloco. Quero pra sempre carnaval. Beijao cheio de saudades!
Eu também, Deia! E esse carnaval ainda promete… em breve, outro sonho a realizar, desfile na Portela! 😀 Beijão
Fiquei com lágrimas nos olhos. Um texto real e muito intenso. Mas não dava pra escolher um instrumento mais de mulherzinha, não? 😁
Há quantos anos nos conhecemos, Claudia? rsrsrsrsrs… Você realmente acha que tinha alguma chance de eu escolher algo mais fácil… rsrsrsrsrs… Ainda tem a saga do desfile na Portela para contar, mas vai ficar para depois. Embarcando hoje para os Madriles! Vai lá no Feveillón! Dia 19 de fevereiro! Beijão