Na minha infância e adolescência, mais ou menos entre os 2 e 17 anos de idade, morei em Brasília. E como todos naquela época, desaparecíamos da cidade nos quatro meses de férias. Sim, nessa época, tínhamos férias em julho, dezembro, janeiro e fevereiro. Na verdade, no primeiro grau, se você tivesse boas notas (e eu tinha) já saía de férias em novembro. Além do mais, pela origem da minha família e pelo trabalho do meu pai, sempre soubemos que um dia voltaríamos para o Rio. Quero dizer com isso que cresci com a cabeça meio cá, meio lá. A prática do desapego foi uma constante em minha vida desde sempre, ou talvez tenha nascido assim, difícil saber o que veio primeiro e à essa altura nem importa mais.
Acelerando um pouco a história, pelos 16 anos, a possibilidade de ir para o Rio finalmente surgiu. Para mim, era perfeito! Foi uma das minhas piores fases em Brasília. O colégio em que estudava na época decaiu bastante e, como representante de turma, vivia brigando e me desgastando na direção… meus amigos favoritos mudaram desse mesmo colégio, me sentia bastante sozinha mesmo tendo companhia… certamente, meus hormônios adolescentes não estariam ajudando muito… enfim, a mudança de cidade me parecia providencial! Ou quem sabe, a possibilidade de fugir, também já não importa.
O fato é que não mudamos, adiou-se a decisão por mais um ano e fiquei completamente arrasada! Só queria que o tempo passasse muito rápido e, às vezes, a gente precisa ter cuidado com o que deseja. Porque durante esse mesmo ano em que odiei a possibilidade de estar em Brasília, também foi o ano em que mais amei estar nessa cidade.
Saí do tal colégio que não gostava mais e fui para o LaSalle. Nem sei exatamente porque escolhemos lá, acho que era a escola que me aceitou, pois o segundo semestre do terceiro ano já havia iniciado. Imagina, momento perfeito para uma mudança como essa, ainda mais para uma adolescente!
Assim que um belo dia de setembro acordo eu, com pouco menos de 16 anos, e vou parar em um colégio em que não conhecia absolutamente ninguém! Nunca tão literalmente, sabia que pegaria o bonde andando. Não tinha grandes expectativas em relação às pessoas, não esperava ser aceita ou bem tratada, não esperava nada! Só queria terminar o ano e fazer meu vestibular em paz! Mas, obviamente, era um dia nervoso e estava ansiosa. Fui orientada a chegar e ir para a direção, onde o tal do diretor me levaria até à sala no início da aula para me apresentar. Imagina a vergonha!
Cheguei completamente sem graça na frente de uma turma inteira, onde fui apresentada. E, logo de cara, uma voz do fundo me chamou: pode sentar aqui! Ufa! Não precisar tomar essa decisão no escuro e ainda me sentir bem recebida foi um alívio tão grande que nem eu mesma tinha ideia do quanto precisava daquilo. Até a hora do recreio, havia feito amizade com quem sentava em volta e, no fim da aula, juro que me sentia parte da turma, parecia que estava ali há anos!
Foi a primeira vez na minha vida em que me senti parte de um grupo como um todo. Uma turma, no sentido literal da palavra. Lógico que havia tido amigos queridos, mas normalmente eram pequenos grupos, o que na época chamávamos de “panelinhas”. Foi a primeira vez que estava em um grupo sem as tais panelinhas. Eles já haviam tido seus problemas e resolveram, tive a sorte de chegar com tudo resolvido e a possibilidade de me relacionar com todas as tribos que, por algum motivo cósmico, se entendiam perfeitamente!
E eu me senti completamente acolhida. Ter uma turma foi fundamental para me sentir normal. Até então, navegava por diferentes grupos e “panelinhas”, mas sem me prender ou pertencer. O que hoje considero uma certa vantagem, mas na época me fazia sentir muito diferente. Diferença na adolescência é sinônimo de solidão, mesmo que você tenha amigos. Nessa turma, as pessoas seguiam diferentes entre si, só que não importava. O que nos unia não eram as mesmas diferenças, mas o que tínhamos em comum. E entendi o quanto precisava me identificar, ser aceita, queria pertencer.
Seguimos nossos rumos, cada um para sua faculdade, mas em contato, dentro do possível. E uma das amigas desse mesmo colégio foi quem me apresentou meu futuro namorado, com quem quase me casei. Resumindo, aos 17 anos, tinha os melhores amigos do mundo e o primeiro relacionamento sério da minha vida. E é claro, que foi exatamente quando veio a confirmação da nossa mudança para o Rio de Janeiro!
O que desejei com tanta intensidade, se concretizou quando menos queria! Há um ano fiquei arrasada porque não íamos embora e, naquele momento, estava arrasada porque iríamos! Brasília passou a ser o lugar mais importante do planeta! Nunca poderia ser tão feliz em nenhum outro lugar! Imagina, jamais!
Acontece que fui. Depois de um tempo no Rio de Janeiro, namorando à distância e com Brasília sempre no foco do meu futuro, mudei de ideia. Desisti de casar, por mil motivos que não importam tanto, o principal deles, mal tinha feito 19 anos de idade. Romper com esse relacionamento foi a experiência mais difícil que havia tido até então. Mesmo hoje em dia, se fizer uma escala de momentos e decisões difíceis, seguirá entre as primeiras posições. A maneira imatura que encontrei para conseguir romper foi a mais brusca possível! Não queria contato, não queria ser amiga… e não queria saber de Brasília!
De um dia para o outro, me sentia com os pés afundados no solo, presa a um passado que nunca seria. Precisei muito cortar essas raízes no talo para poder prosseguir. E assim fiz! Acho que foi meu primeiro exercício radical de desapego e talvez tenha cortado as raízes tão curtas que dificilmente cresceriam novamente.
Como boa escorpiana, minha natureza só me dava três possibilidades: amar, odiar ou ser indiferente. A idade me fez aprender as diversas matizes entre esses sentimentos, mas ainda era bem jovem e o único lugar que me restou para guardar Brasília era num poço de indiferença. Foi há tanto tempo, que nem me lembrava mais, hoje me parece haver sido em outra vida.
E por que contei toda essa história? Para que se entenda o contexto. Acelerando 30 anos, voltei esse final de semana a Brasília. Revi anjos, confrontei demônios e fechei mais um ciclo.
Há um bom tempo, graças às redes sociais, reencontrei uma parte considerável desses amigos do passado. Alguns tive a sorte de poder encontrar pessoalmente, ou no Rio ou fora do Brasil, mas a maioria seguia por Brasília.
Essa turma do LaSalle, que contei a história, se reúne todos os anos. Na verdade, se veem ao longo do ano também, mas sempre há um encontro grande em agosto. E, mesmo quem não mora mais em Brasília, faz o possível para participar. Sempre fui louca para ir nesses encontros! Acontece que eles começaram quando já morava fora do país, o que me tornava praticamente impossível participar! Muito bem, agora, finalmente morando em São Paulo, ir a Brasília me parecia um pulo! Decidi que iria de qualquer maneira! Comprei passagem com antecedência e tudo!
Aproveitei e também combinei com o pessoal do Santo Antônio, onde estudei o primário e ginásio (se chamava assim, não sei mais como chama). Eles também se encontram, ainda que não com tanta frequência e os encontros são menores. Havia conseguido ver a maioria das amigas e amigos mais próximos, mesmo assim, tinha muita gente que gostaria de rever. Infelizmente, uma das amigas mais queridas faleceu um mês antes da minha chegada, tão perto e tão longe…
Nem anunciei muito minha ida para lá, porque sabia que teria pouco tempo e o final de semana já estaria todo tomado com esses dois encontros. Mas vamos por etapas.
Combinei de ficar na casa de uma amiga desde os tempos do Santo Antônio, mas que sempre nos reencontramos ao longo dos anos. Chegamos a estudar juntas novamente em Madri. Enfim, alguém que não estava apenas no meu passado e, portanto, posso até sentir saudades, mas não sinto a distância. Na semana anterior à minha ida, começamos a combinar a programação e ela tentava que, além dos encontros, eu também tivesse uma vivência da cidade atual.
Foi quando percebi que, apesar de estar louca para ver as pessoas, não tinha o menor, mas o mais remoto interesse em rever a cidade. Juro que eu mesma me surpreendi com tal atitude! Caçei nas entranhas alguma curiosidade e nada… que estranho! Precisei revirar o passado para me lembrar de tudo que contei e achar Brasília ainda ali, no mesmo poço de indiferença que havia deixado há tantos anos. Eu não sabia, mas precisava perdoar uma cidade. Como eu, ela também não era mais a mesma.
De maneira que, quando o avião pousou em solo brasiliense, minhas mãos estavam suadas e estava nervosa com tudo que tinha certeza que remexeria em poucos dias. Mas estava, sinceramente, de mente e coração abertos.
Minha amiga me buscou no aeroporto e já fomos direto para um bar iniciar os trabalhos! Encontramos algumas amigas do Santo Antônio que não tínhamos certeza se poderiam ir ao encontro de domingo. Além do que, queríamos fofocar um pouco mais e nos encontros maiores, às vezes não há chance. Não pretendia ficar até muito tarde, porque o encontro de sábado prometia e começaria relativamente cedo. Mas acabamos sem resistir e emendamos no “Cenas Contemporâneas”, uma série de concertos ao ar livre, ao lado do Museu da República (que não existia quando morava lá). Resultado: poucas horas de sono, uma ligeira ressaca e nenhum arrependimento!
Sábado, acordei o mais tarde possível, mas havia um limite, pois o encontro era um churrasco e admito que, com todo cansaço, estava ansiosa demais para dormir. Uma coisa engraçada, reconheci a sensação de acordar em Brasília. Não era simplesmente saber que estava ali, reconheci mesmo! Não sei se pelo som ou ausência dele, a temperatura, cheiros do cerrado… sei lá, era a sensação de acordar “em casa” em Brasília.
Minha amiga-hospedadora me deu uma carona para o outro extremo da cidade. No caminho, fui observando tudo à luz do dia, tentando reconhecer algumas coisas, lembrando de outras, pensando em como seria o encontro… Ela não ficou comigo, porque era de outro colégio.
Cheguei na frente da casa do amigo onde seria o churrasco com a mesma sensação do meu primeiro dia de aula. Não era o primeiro encontro deles, novamente cheguei depois da turma formada. E logo na entrada, chegando junto outra amiga, pensei, ótimo! Nem preciso entrar sozinha! Até nisso parece ao meu primeiro dia de aula! Passamos por portas e portões abertos! De repente, tudo parecia ganhar um significado.
Nem deu tempo de pensar se ficaria sem graça! Minha bolsa e a jaqueta ficaram pelo caminho, queria os braços livres, porque abraçar as pessoas era o ato mais natural que me ocorria. Engraçado como a sensação boa e a energia do abraço é insubstituível! E a maneira de ser acolhida foi a mesma de tanto tempo atrás. Melhor agora, com a maturidade e segurança que os anos trazem, ainda que todos parecessem voltar um pouco no tempo.
Não faltou assunto e se algum silêncio rolasse, tampouco era incômodo. Muitos maridos, esposas e filhos já fazem parte do grupo, o que acho bacana, porque a ideia não é criar uma ilha presa às mesmas pessoas e histórias. Lembramos e nos divertimos com o passado, mas a vida seguiu e seguimos amigos ainda assim. Novas histórias a serem criadas.
O dia passando bem depressa, começando a escurecer, tudo muito bom, tudo muito bem, de repente vejo um dos amigos carregando alguns instrumentos, entre eles um cajón. Opa, um cajón! Tinha mais ou menos me agendado para ir embora no fim da tarde, início da noite, achei que até umas 20h o pessoal já estaria encerrando o expediente. Com a chegada de instrumentos, me informei qual era a previsão e parecia que o dia não estava nem perto de acabar!
Verdade que a maioria das pessoas foi embora até o final da tarde mesmo. Muitas com filhos e outras programações. Ficamos alguns, digamos, já meio calibrados a álcool e começou a cantoria. E eu doida para pegar a percussão, mas meio inibida, né? Deixa ver o esquema primeiro. Até que me encorajei a pedir a vez no cajón… aí já sabe, a combinação amigos queridos, cachacinha boa e percussão à mão! Poderia passar uma semana ali no mesmo lugar!
Bom, pela hora da Cinderela, achei que o povo estava pensando mesmo em encerrar o assunto e minha amiga-hospedadora veio me buscar. Difícil me despedir, mas não foi triste nem dramático. A sensação de que nos vimos na semana passada e nos veremos muito em breve.
Mas está pensando que daí fomos para casa? Na-na-ni-na-não! Lá fomos novamente para o “Cenas Contemporâneas”. Como se tivesse bebido pouca cachaça no churrasco, o marido da minha amiga leva mais cachaça para o evento. E eu toda, não, imagina, já bebi o suficiente… tudo mentira! Caí na cachaça deles também! Eles estavam com amigos no início, mas pouco a pouco o pessoal foi cansando. Menos a gente, é claro! Quando estávamos só minha amiga, seu marido e eu, resolvemos ir para frente do palco. Dali a pouco, uma pessoa da organização me chama e me dá três convites vips! Fomos chamados para ir para dentro da grade, coladinho ao palco, mas com mais espaço e lugar para deixar as bolsas. É lógico que nos acabamos de dançar! Nem fazia mais questão de saber que horas eram, mas foi madrugada adentro!
Domingo, milagrosamente, acordei sem um pingo de ressaca! Bom, nem tão milagrosamente, apesar do teor alcoolico, era boa bebida, ao longo de muitas horas, com bastante água, me alimentando bem, me acabando de dançar, relaxada entre amigos, feliz… ou seja, tudo certinho como manda o manual!
Almoçamos em casa mesmo, achei até bom, queria uma comidinha caseira para repor as energias! Descansamos um pouco, no que era possível, porque a programação seguia. A amiga que me hospedou também estudou no colégio do encontro do domingo, assim que iríamos juntas.
Antes, ainda passamos no CCBB para conhecer o prédio e visitar uma exposição. Nesse dia, minha amiga ainda me fez um tour por alguns lugares que estava curiosa em ver. Passamos, por exemplo, em um dos meus antigos endereços e na frente do ex-colégio. Acho que nesse dia minha memória estava mais ativa, fui viajando por lembranças, fragmentos de histórias, momentos… meio solta no tempo.
Finalmente, chegou a hora de ir para o próximo encontro e lá fomos nós! As primeiras a chegar, guardamos uma mesa boa para umas 10 pessoas. Esse encontro ia menos gente, mas amigos que queria muito encontrar! Pois encontrei, foi leve, divertido e, como esperava, também passou rápido demais!
Está pensando que acabou? Veja bem, o que era mais uma noite para quem já tinha metido o pé na jaca mesmo? Para variar, lá fomos nós, minha amiga e seu marido, para o “Cenas Contemporâneas”, ainda arrastamos mais outra amiga do colégio. Dessa vez era o concerto que mais estava interessada, show da Céu, que adoro! Coroou a noite e a viagem. Voltamos para casa cantando alto no carro e definindo a lista de músicas para a minha próxima festa de aniversário! Que é só em novembro, mas não adianta buscar lógica em gente meio alcoolizada e que vira adolescente quando se encontra. Ainda escutamos música e falamos bobagem um tempão em casa mesmo. Deixei a mala pronta para o dia seguinte, porque não dormiria mais do que três ou quatro horas antes de sair para o aeroporto logo cedo.
Saí de Brasília com a impressão de haver se passado semanas! Tudo tão intenso! Tantas emoções, lembranças, encontros, reencontros, shows, sensações… tudo tão condensado e tão significativo! Precisei de um tempo para sentar e absorver tudo isso. Sinceramente, acho que ainda tenho algumas fichas para cair.
O momento em que isso aconteceu foi muito interessante, porque às vezes a própria vida nos cutuca e ajuda a entender ou, no mínimo, ver sob outra ótica o que passamos.
Há cerca de 30 anos, minha felicidade parecia ser adiada por um ano, uma mudança que queria muito não aconteceu. Pensava estar onde não devia e não havia escolha. Acontece que sempre estamos onde devemos ou precisamos estar.
Se não tudo, grande parte do que contei agora e tanto mais só existiu por causa desse ano. Essas pessoas fizeram parte da minha história, de quem sou hoje. Nos reconstruimos no olhar do outro, quis poder ser da maneira como esses amigos me viam e, por isso, me ajudaram (e me ajudam) a ser uma pessoa melhor, mais forte e mais generosa. Essa cidade foi minha casa e, por muitos anos, carreguei um sotaque que só lá era reconhecido. Foi o único lugar que me lembro morar onde não me perguntavam de onde eu era. Por tudo isso, sou grata.
O tempo passou e, como sempre, ajudou a colocar tudo em perspectiva. O que parecia tão horrível era apenas um momento cheio de oportunidades. Ainda guardo a sensação de poder tudo quando tinha aquela idade, todos nós podíamos tudo! Nada estava decidido. Ter essa sensação como referência fez toda a diferença do mundo, porque me fez acreditar que podia realmente ser tudo que quisesse. E quando acredito, sou.
Verdade que vivo me perdendo, indo ao inferno e tateando o caminho de volta para contar o que vi. É difícil voltar para a casa quando ela vive mudando de lugar e é uma surpresa quando esse caminho é leve. Mas é uma constante que ele só seja leve quando me ajudam e me protegem ao longo dele. E como sou protegida!
Sinto que voltarei a Brasília e, certamente, quero muito rever esses amigos. Mas agora sei que esse ciclo está fechado. Fui ansiosa por tantos encontros e nem sabia que o principal encontro era comigo mesma. Se me lembram, existi.
Gostei muito do texto! Amo Brasilia e sinto muita saudade. Fui muito feliz nesta cidade que nos acolheu.