Uma história de amor

Levantei tarde. Decidi que hoje só sairia da cama quando o corpo doesse! É o primeiro dia, depois da mudança de casa, que não tenho um compromisso pela manhã. Aliado à notícia triste de ontem e, por consequência, uma baixa de resistência, uma gripe ou alergia me derrubou. Nada grave ou que uma manhã tranquila e um chá com gengibre não cure.

Ontem faleceu minha sogra e fiquei triste. Achei que aceitaria com mais facilidade, afinal a idade e a experiência têm me adestrado a isso. Mas me custou e ainda nem sei porque me abalou mais do que meu sogro, porque acho que amava os dois igualmente. Talvez porque meu sogro estivesse tão pronto, tão preparado, como simplesmente fosse dar o próximo passo. Então, foi mais natural para mim. Acho que ele teria inclusive dado esse passo antes, se não fosse pela preocupação em deixar minha sogra.

E hoje falo dela, ou pelo menos como interpreto a parte que conheci. Acho que era uma mulher à frente do seu tempo, uma cabeça técnica e científica em um período que esse era um privilégio para os homens. Pois coloquem essa cabeça “masculina” em um corpo ensinado que o certo era casar, ter filhos e viver só para eles. O resultado evidente seria uma pessoa amarga e frustrada, mas não aconteceu assim. Ela era doce, gentil, discreta e carinhosa a seu jeito. E, eu pelo menos, pouquíssimas vezes a escutei reclamar.

Não acho que era o tipo de se queixar e sim de tomar a iniciativa, mesmo que fosse através do meu sogro. Ele tomava à liderança, mas no fundo, fazia o que ela queria. E bom que fosse assim, pois eram mais e melhores dessa maneira.

Se não era adequado para uma mulher ter uma carreira ou se era impossível acompanhar o marido em suas mudanças se tivesse um emprego, novamente deu seu jeito. Virou professora particular de matemática, e ainda que não tenha sido sua aluna, não tenho a menor dúvida que sua inteligência amparada pela sua generosidade a fizeram uma professora genial! Não será à toa que ao Luiz lhe encanta ensinar e nem por acaso que tenha se formado em Matemática (Informática, no seu tempo, era atrelada à Faculdade de Matemática). Afinal, teve desde cedo o exemplo da melhor professora do mundo! Quando me casei com Luiz, ela ainda dava aulas, e mesmo décadas depois, não era incomum encontrar adultos, ex-alunos, pela rua lhe agradecendo com carinho. Coisa que a deixava sempre muito feliz.

O tempo passou rapidamente e talvez também seja por essa consciência que tenha me abalado tanto a notícia. Tenho mil histórias para contar, mas só vou contar mais uma. Com os dois já bastante idosos e meu sogro precisando dos cuidados de enfermeiras por 24h, minha sogra surtou. A carga foi demasiada e precisou ser literalmente internada. Sua saúde era de ferro, mas a cabeça não aceitava e começou a dar sinais visíveis de demência senil. Meu sogro, por sua vez, com a saúde extremamente debilidatada, mas as idéias mais lúcidas que nunca. Fomos ao Brasil para retirá-la da tal clínica e entender o quanto ela estava pronta para voltar para casa, sem significar um risco para ela nem para o meu sogro. Ela estava pronta. Precisava ser medicada, precisava de enfermeiras também, mas começava a aceitar que a realidade era outra, havia se convertido em outra.

Após a sua chegada, discretamente emotiva e pouco conversada entre os dois, afinal, acho que nem sempre a gente precisa de palavras quando se conhece tão bem, sentaram-se à mesa, comeram alguma coisa e foram se deitar, juntinhos e abraçados. Um suspiro de alívio e a respiração sincronizada de siameses.

A imagem dos dois deitados abraçados está entre as mais bonitas na minha memória. Um reencontro repetido sistematicamente por 60 anos. Um contraste entre a falta de privacidade em precisar fazer isso em meio às enfermeiras e nós mesmos, com a bolha de cumplicidade em um mundo paralelo só deles.

Quando meu sogro faleceu, minha sogra murchou. Ela tentou e confesso que, por muitas vezes, a sentia reagindo, melhor, tentando se animar mesmo sem vontade. Mas chegou ao seu limite.

Podemos buscar explicações, motivos ou enumerar os problemas de saúde que foram aparecendo ao longo do último ano. Podemos aceitar que se foi por velhice, por doença, por saudade… por tudo isso junto. Todos são motivos razoáveis e às vezes é uma questão de optar em qual versão preferimos acreditar.

Na minha versão da história e a que vou me lembrar, fico com a que acho mais bonita, prefiro pensar que ela simplesmente morreu de amor.

8 comentários em “Uma história de amor”

  1. Bianca, sinto muito! Eu penso que por mais que estejamos ´preparados´, por mais que as circunstâncias nos encaminhem a este momento, creio, nunca estaremos realmente prontos.
    Você me fez lembrar de meus avós, pais de minha mãe. Minha vó, que estava doente, faleceu. Oito meses (exatos) depois, meu vô faleceu. O médico dele disse à família que, apesar de algumas pequenas complicações (normais na idade dele) ele simplismente havia “atirado a toalha” e teria morrido de amor. A falta que sentia da minha vó o fez desistir desta vida.
    Fiquem bem. Um abração, mesmo virtual, para vc e Luiz.

  2. O Amor, sempre ele.
    Sem crença, religião, cor , classe ou nível social.
    Mola mestra e consequência.
    E é o que resta de lição para todos nós.

    Fica bem, Bianca.
    Com carinho,
    Bjs,
    Pat Pavão

  3. Linda e comovente homenagem que vc fez aos seus sogros com esse texto cheio de carinho… Beijo grande

  4. Oi Bianca, sou a Antonia aqui da Galicia lembra, sabe Bianca no dia 11 de fevereiro meu marido que nao estava enfermo, que nao tinha nada, se levantou sentou em uma poltrona , teve um infarto fulminante a morreu em dois minutos , nao me deu tempo a nada, a ambulancia chegou em 15 minutos, o medico do pueblo em dez minutos, mas ele nao resistiu, 36 anos de casamento, 42 anos de convivencia, e se foi.
    Estou começando outra vez, reinventando uma vida sozinha.
    Sinto muito sua perda, sei muito bem o que è que sua sogra passou.
    Um beijo fofa.

  5. Oi, Antonia! Claro que me lembro de você, como esquecê-la? Faz tempo que não te vejo por aqui. Fiquei triste e chocada com sua perda, não te conheci pessoalmente, mas de certa forma, dividimos por aqui alguns momentos importantes. Sinto muito mesmo e espero que você consiga passar por essa fase da maneira mais serena possível. E se quiser conversar de maneira mais privada, por email, fique à vontade, estou por aqui no que puder ajudar. Beijo grande e fique bem.

  6. Tati, Didis, Patricia, Claudia, Tereza e Antonia, muito obrigada pelas palavras. E quem passou, mas preferiu não escrever, não tem problema, as boas energias chegaram e agradeço também. A vida com amigos pode não ser mais fácil, mas os problemas ficam mais leves 🙂 Beijo a todas e todos.

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