Voltamos para Madri antes do tempo. Na verdade, no primeiro trecho da caminhada, me machuquei razoavelmente feio, nada grave ou que me deixará sequelas, mas me impossibilitou continuar. Ainda tentamos dar um dia de intervalo, mais por minha teimosia que se negava a acreditar que não tinha dado certo. Às vezes leva um tempo para a gente entubar que precisa sair da rota planejada e que nem sempre as coisas acontecem como a gente quer.
É frustrante, e para falar a verdade, me dá uma vergonha danada, mas é importante entender as experiências que a gente passa e tentar aprender um pouco com elas. A gente acaba compartilhando muito mais as boas histórias, acontece que os erros também ensinam.
Então, vamos por partes. Saímos na sexta-feira de manhã e fomos de trem até Pamplona. Estávamos um pouco na dúvida por onde iniciaríamos. As notícias anunciavam que havia nevado antecipadamente a 1.500 metros de altitude e chegaríamos aos 1.400. Para ser bem sincera, preferia começar de Roncesvalles e evitar a travessia dos Pirineus logo no primeiro dia de caminhada. Por outro lado, acreditava que era justamente esse trecho que mais empolgava o Luiz e, além do mais, também tinha muita curiosidade de conhecer a cidade de St Jean Pied-de-Port, a outra opção de início de trajeto.
Na estação de trem em Pamplona, pegamos um taxi e resolvemos ir direto para St Jean. Dormiríamos alí e, dependendo do tempo que amanhecesse, ou iniciaríamos a caminhada, ou pegaríamos outro taxi direto para Roncesvalles.
Ficamos em um bom hotel, não foi difícil achar hospedagem. Desfrutamos de um excelente jantar e decidimos tentar aproveitar a viagem, fazer com que na medida do possível a gente também pudesse se divertir.
Luiz é bom de montanha, eu não, sou melhor na resistência. Mas pensei que estava mais preparada que ele e poderia fazer um esforço a mais. O que não havia entendido, por mais que os sinais estivessem praticamente se esfregando na minha cara, foi o tamanho desse esforço adicional.
A temperatura estava abaixo do que havia me proposto como limite, mas ignorei, afinal de contas, caminhando a gente aquece. Tive pesadelos por toda a noite, onde de maneiras variadas, nunca conseguia fazer o tal trajeto do dia seguinte. Também ignorei. Havíamos decidido não caminhar se estivesse chovendo, pois poderia ser perigoso e tinha toda pinta de que choveria, mas advinha? Ignorei. Havia lido exatamente como era o trecho, mas só me fixei no que me interessava: os primeiros oito quilômetros são os piores, depois melhorava. Melhor não significava que eram fáceis, mas para variar um pouco, ignorei outra vez.
Acordamos cedo, diria até empolgados e partimos para o desafio do dia. Pés preparados com compeed, vaselina, joelheira protegendo o joelho mais fraco, dois sticks de caminhada, mochila leve, bota amaciada por mais de mil quilômetros, enfim, tudo certo.
Logo no primeiro quilômetro começou a chover. Sem problemas, colocamos nossas capas novinhas em folha e até isso parecia engraçado, estávamos de bom humor. Luiz começou a me chamar de “cunda”, porque com a capa por cima da mochila, fiquei com aquela belíssima aparência de corcunda de notre-dame. E você, cara-pálida? Acha que está bonitinho? Tirei uma foto dele e mostrei. Chegamos a conclusão que éramos a dupla “corco” e “cunda”, dois filhotes de cruz credo. Ele, ainda por cima, usava um chapéu que o deixava com pinta de cangaceiro das montanhas.
Fomos avançando bem, em uma boa velocidade para subida, mas sem exageros porque sabíamos que seríamos muito exigidos.
Nos primeiros 5 km meus calcanhares começaram a dar sinais de ardência. Mas como assim? Minhas botas estavam mais que amaciadas e estava usando compeed para prevenir! Tudo bem, vou colocar outro compeed para garantir. Não tinha onde sentar para arrumar os curativos, teve que ser pelo mato mesmo. Pouco depois, Luiz começou a sentir um calcanhar também, queria esperar um lugar melhor para parar. Insisti, não espere! Se começar a incomodar, tome uma providência imediata. Pois ele, meio equilibrado em mim e em uma cerca, na chuva, colocou também um curativo no local.
Continuamos até Orisson, a única parada desse trajeto, 8 km depois de St Jean Pied-de-Port. Levamos mais ou menos três horas para chegar lá, se fosse um terreno plano, faríamos na metade desse tempo. Mas enfim, tínhamos a esperança que dali para frente a coisa melhoraría.
Paramos para almoçar e descançar um pouco. De Orisson a Roncesvalles são mais 17 km, sem nenhuma estrutura. Nada além de ovelhas e cavalos. A propósito, quase fomos atacados por uma ovelha! Fomos salvos por um cachorrinho mínimo, que acompanhava um casal de peregrinos. De humanos, as ovelhas não tem medo, mas os cachorros elas respeitam.
Chequei os pés, os calcanhares estavam bem sensíveis, mas não havia aberto bolhas. Luiz estava bem cansado, mas sem danos sérios aparentes. Buscamos um pouco de animação, afinal de contas, a partir dali não melhorava?
Não, não melhorava. As subidas são menos íngrimes, mas na prática isso não significa muita coisa. Ao todo, são 21 km de subida pesada e 4 km finais seguidos de descida em pirambeira. Ou seja, se você não se ferrar na subida, pode ficar tranquilo que na descida você se ferra.
Aviso aos navegantes, se não estiverem preparados especificamente com subidas e descidas em montanha, não comecem em St Jean Pied-de-Port! Comecem em Roncesvalles. Existe a falsa teoria de que é melhor pegar esse trecho ruim no primeiro dia e que depois tudo parece mais fácil. Não é verdade, o que acontece é você se machucar logo de cara e sofrer desnecessariamente os próximos dias. E isso se for capaz de continuar. É bem melhor pegar trechos mais difíceis depois de alguns dias de caminhada, seu corpo aprende no caminho e ganha muita resistência e velocidade. Eu já sabia disso, não sou amadora e me ferrei de verde e amarelo. Tem gente que consegue? Um monte! Mas tem outro monte que se machuca e não fica para contar a história.
Resumo da ópera, após 21 km de bota roçando atrás dos pés, me soltou o couro dos dois calcanhares. E como notícia ruim não anda sozinha, é claro que com os pés doloridos, forcei muito mais a musculatura. No fim da subida, minhas pernas não levantavam mais e precisava literalmente arrastá-las. Fiquei muito preocupada se havia me lesionado seriamente, porque a dor que sentia ao levantar as pernas era próxima a dor que senti uma vez que desloquei o ombro. Chega um momento em que seu próprio corpo te protege e a perna trava de um jeito que não levanta mais.
Acontece que as horas vão passando e você tem que chegar, porque sabe que vai escurecer e não tem onde ficar no caminho.
Luiz começou a ficar agoniado e insistir para carregar minha mochila. Em um primeiro momento achei bonitinho, mas depois começou a me irritar seriamente. Primeiro porque não iria resolver nada. Não colaria a pele dos calcanhares, nem diminuiria a dor na musculatura da virilha. E pior, se ele dobrasse o peso dele de mochila, se ferrava também. Tudo que não precisava era de outra pessoa machucada. A verdade é que com dor a gente também fica mais irritada e queria matar o primeiro que cruzasse a minha frente.
Quando estava chegando realmente ao meu limite, passou uma caminhonete em direção contrária e Luiz pediu informação a ele. Faltava mais ou menos uns 700 metros de subida e finalmente chegaria a parte da descida. É quando você tira aquele restinho de força não se sabe da onde e pensa que só um pouco mais e virá o alívio.
Luiz perguntou se não queria pedir carona. Mas como assim? Agora? Depois que você está na m#$%^@, você pelo menos quer chegar e completar o trecho. Já estava machucada mesmo, queria o gostinho de alguma vitória.
Chegamos ao fim da subida, onde existe uma placa avisando que os próximos 4 km são de descida. Meu ânimo se renovou. Ainda sentia dor nos calcanhares, mas na descida não precisava levantar as pernas, o movimento exigia outros músculos e rapidamente ganhei velocidade.
Dessa vez, foi Luiz que começou a sentir. A descida exigiu muito mais dele que a subida. Mas já era possível avistar Roncesvalles e isso é de uma motivação indescritível. Era minha vez de tentar incentivar um pouco.
Chegamos mortos, depois de mais ou menos oito horas e meia de caminhada dura, com um único ponto de descanso. Não demoraria muito a escurecer. Ficamos em um apartamento turístico recém reformado, tudo novinho. A cidade é mínima, não tem quase nada, mas muito charmosa.
Depois do banho, fui verificar o tamanho da encrenca nos pés. Comecei a tirar os curativos e não queria acreditar no que via. Primeiro tirei do pé direito, havia uma bolha enorme que tomava todo o calcanhar. O mesmo aconteceu com o pé esquerdo. Fiquei arrasada no mesmo instante, sabia que uma bolha desse tamanho me impediria de continuar. E uma em cada pé era muito sofrimento. Quando Luiz saiu do banho, mostrei para ele e a primeira coisa que me disse foi algo como, tudo bem, voltamos para Madri, assim não dá para continuar.
Mas como é que vou voltar para casa depois do primeiro dia? Comecei a tratar das bolhas meio automática. Furei as duas, limpei e deixei em cada uma dois pontos com linhas drenando o líquido. Melhorou muito. Luiz também não tinha boa aparência, estava bem dolorido, tinha algumas bolhas menores e muito frio. Tomei um quilo de analgésicos e fomos jantar.
Andar me doía muito, mas sei que uma noite de sono recupera bastante a musculatura, meu problema eram as bolhas.
Durante o jantar Luiz foi me animando e sugeri que ao invés de voltar para casa, porque a gente não parava um dia para descansar? Talvez no dia seguinte eu me recuperasse, a pele grudasse novamente nos calcanhares e o coelhinho da páscoa pudesse nos acompanhar.
Depois de mais um vinhozinho, achava até que talvez pudéssemos seguir de Roncesvalles. Felizmente, essa idéia absurda não foi muito longe e ele mesmo achou que o trajeto seria complicado. Não era um trecho fácil, diferente de Zubiri, a parada seguinte, onde o caminho seria quase plano.
Luiz estava feliz, ou tentava demonstrá-lo para diminuir minha frustração. Achava que era muito importante o fato da gente ter conseguido chegar. Disse que estava orgulhoso de ter atravessado os Pirineus a pé.
Fomos dormir bem doloridos, mas com um certo otimismo. Acordei ainda com as pernas travadas, e ficou evidente que a caminhada desde Roncesvalles seria impossível. Pegamos um taxi direto para Zubiri.
Em Zubiri, novamente ficamos bem hospedados. Fomos dar uma caminhadinha pela cidade, é bom para desenferrujar. Minhas pernas não estavam melhorando, começaram a travar totalmente. É uma dor que dá no músculo da virilha, como se suas pernas estivessem desencaixando. Doía tanto que não conseguia sentir nenhuma outra dor. Não sentia as bolhas nem qualquer outro músculo, mas simplesmente não podia andar em nenhum ângulo positivo de inclinação. Cheguei a achar que esse era meu maior problema. E se fosse alguma lesão mais séria? Deveria procurar a cruz vermelha? E se me dissessem que eu precisava parar?
Subi para o quarto e passei o maior tempo possível deitada. Tomei um tipo de coquetel de dorflex, iboprufeno e aspirina. E o que acredito ter sido o que realmente resolveu, massageava constantemente o local com pomada de Voltaren.
Não esqueci das bolhas, estavam secas, ainda muito sensíveis. Coloquei um compeed do tamanho de um bonde e me convenci que isso resolveria. Quando a gente vai para uma caminhada assim, sabemos que dor a gente vai sentir, e minha tolerância estava bem razoável.
Muito bem, quando descemos para o jantar, minha musculatura havia se recuperado totalmente. Não sentia cansaço e estava aliviada que não havia sido uma lesão grave. Novamente fui invadida por uma onda de otimismo. Luiz também me parecia bem. Dolorido, mas isso é normal, ele tinha condições de continuar. Sabia que ele não continuaria sem mim e isso por um lado me incentivava, por outro me deixava responsável.
Não dormi tão mal, eu realmente acreditei que no dia seguinte seria capaz de continuar. O único detalhe escatológico é que, para complicar um pouquinho mais, acordei algumas vezes com dor de barriga. Fiquei me perguntando, o que falta agora? Uma otitezinha? Dor de dente? Cabeçada? Cassilda, dá para alguma coisa colaborar!
Acordamos e nos preparamos com todo cuidado. Notei que estava muito lenta para me arrumar, às vezes o inconsciente sabe mais que a gente. Esquecia coisas básicas e no final, quando passava protetor, me passou uma única vez pela cabeça: e se eu não precisar de nada disso?
Calçar as botas foi a última coisa que fiz e no momento em que levantei, senti que o buraco era mais embaixo. Vi estrelas!
Mas saímos assim mesmo. Caminhamos o primeiro quilômetro, de um trecho fácil e agradável, mas que me custava horrores. Sabia que não chegaria a Pamplona. Pensei que poderia aguentar até Larrasoaña, mais ou menos 6 km dalí, e só então, se não aguentasse mais, pegar um taxi. Já havia começado a pisar torto e não demoraria muito a lesionar a musculatura outra vez.
Lembrei da noite anterior. No jantar, Luiz me disse que eu era muito valente, acho que para me animar. Naquele momento pensei que entre a valentia e a estupidez existe um limite tênue que já havia passado. O que me faltava? Passar agora para o auto-flagelo? Não fomos ali buscar sofrimento. Era hora de voltar para casa.
Parei, virei para trás e disse ao Luiz que não podia mais, ia voltar para Zubiri. Ele não perguntou duas vezes, deu a volta e perguntou se eu preferia ir na frente. Não, eu preferia ir atrás, não queria ninguém me vendo voltar, mancar e chorar decepcionada em um trecho ridículo daqueles. Cruzamos com alguns peregrinos no sentido contrário e desejei que eles chegassem em segurança, ainda que não quisesse olhar para nenhum deles.
Sentei em um banco, para trocar as botas pelo chinelo e Luiz foi buscar um taxi, que demorou mais ou menos meia hora para chegar. Foi o tempo de melhorar um pouco a cara, para Luiz não se sentir tão mal. Acho que ele fazia o mesmo.
A volta para casa não foi a coisa mais fácil do mundo, mas também não foi tão ruim assim. Tentávamos ver o lado bom, que realmente houve. Ou mal ou bem, atravessamos os Pirineus e chegamos. Estávamos juntos e tivemos bons momentos, até bem divertidos. Conhecemos St Jean, Roncesvalles e Zubiri. Digamos que um fim de semana intenso.
E a lição que achei mais importante, compartilhar um sucesso é muito fácil, qualquer um faz. Fizemos mais que isso, não somos um casal perfeito, nem exemplo para ninguém, temos nossas diferenças e implicâncias. Mas na hora que o bicho pega, somos um time. E chegamos.
Estou muito p… da vida! Frustrada também, mas vai passar, as bolhas vão cicatrizar. Não moramos longe, podemos tentar outra vez. Essa história ainda não terminou.
nossa
parabens
Oi, ??
Obrigada 🙂