52 – O dia real do aniversário e aí encerramos esse assunto!

Para quem já está de saco cheio em ouvir falar do aniversário, sinto muito, mas adoro fazer aniversário! E ainda fui comemorar com a festa antes! Quer dizer, fico fazendo aniversário todo dia até chegar o dia de verdade! Não é ótimo? 

Hoje foi o legítimo. Nasci em 09 de novembro de 1969, ano em que o homem pisou na lua. Gostava de acreditar que isso me faria predestinada a algo fora do comum. Com o tempo, vi que era apenas um dia como qualquer outro. Mas por que não celebrá-lo? Estou viva e aqui! Trinta e seis, com corpinho de vinte e nove! Yo creo que estoy estupenda! 

Saí na véspera só com o Luiz para jantar e comemorar. Coitado! Estava morto de gripe e eu me recuperando dela! Por isso, fui legal e escolhi um restaurante perto de casa mesmo, o El Buey. É um tradicional que, como o nome denuncia, tem seu ponto forte na carne. Um dos poucos lugares onde encontramos uma carne de boi excelente. É uma peça de carne pedida por peso que chega fatiada meio crua na mesa e terminamos de adequá-la ao ponto desejado em pratos quentes de pedra que recebemos. Mucho bom! 

Regado a um belo Ribera, que este ano está bem melhor que o Rioja, na minha singela opinião. Mas não abusamos. Luiz ainda tinha os olhos vermelhos de gripe e eu tomando anti-alérgico. Caramba! Parece comemoração de velhinhos!  

A parte engraçada é que Luiz foi colocar um pouco de azeite no seu prato de pedra quente para dar um gosto na carne. Exagerou no azeite e seu prato se transformou em uma frigideira espalhando óleo para as mesas em volta. No El Buey, as mesas são meio juntinhas, como em um bistrot. Daí o óleo quente começou a espirrar na mulher ao lado do Luiz. Que roubada! E tinha se produzido toda para seu acompanhante! Mas ela, como uma boa espanhola, não se intimidou, acendeu seu cigarro e contra atacou com fumaça. Aí é que Luiz colocou mais azeite no prato mesmo. A primeira vez foi acidente, a segunda foi piraça pura! 

E eu só rindo! Minha fome havia passado, portanto estava de bom humor! 

Enfim, nossa farra de idosos gripados durou até umas 23:00 horas, no máximo! Não aguentamos mais e voltamos para casa. Ficamos esperando até meia noite para Luiz me dar os parabéns e eu liberá-lo para dormir!  

Durante o dia, foi ótimo! Falei com a família e um monte de amigos por telefone e virtualmente. Essa é uma das melhores partes, é um pretexto para conversar ou juntar pessoas. Além do mais, aqui é feriado. Olha que maravilha, feriado no aniversário! 

53 – As pessoas-rolha

Não sou uma fã ardorosa, mas curto histórias em quadrinhos. Gosto dos nomes dos super-heróis e, mais ainda, dos infâmes nomes dos vilões. 

Pois nas ruas de Madri há vilões de histórias em quadrinhos, são as “pessoas-rolha”. Elas se disfarçam de pessoas normais e se distribuem pelas calçadas cheias. A função é atrapalhar o máximo possível o fluxo normal de caminhada dos outros pedestres. 

A mulher-rolha costuma andar com enormes sacolas bem d-e-v-a-g-a-r-i-n-h-o no seu caminho. Ela espera ardilosamente a hora que você vem caminhando distraída para saltar na sua frente e montar uma barreira quase intransponível. Sua variação mutante pode ser ainda mais perigosa, pois vem acompanhada da criança-rolha.  

O homem-rolha é competitivo. Ele anda devagar na sua frente, mas se você tentar ultrapassá-lo, ele acelera o passo para você dar de cara em uma árvore. Se você recuar, ele volta a diminuir a velocidade. Sua periculosidade pode aumentar caso se sinta terrivelmente ameaçado. Ele acende um cigarro bem fedorento e tenta jogar as cinzas em você. 

A espécie mais cruel e inteligente são os velhinhos-rolha. Esses fazem questão de andar lentamente na diagonal, fazendo zig-zags cronometrados com sua tentativa de ultrapassagem. São perversos e jogam com sua culpa de se aborrecer com um idoso. 

Agora, dose mesmo é quando as pessoas-rolha se encontram. Óbvio, tudo combinado para te atrapalhar! Aparentemente, elas não se conhecem, mas emitem um som inaudível aos seres humanos comuns e, dessa forma, se reunem rapidamente.Elas se especializam em qualquer tipo de entrada ou saída: desembarque de aeroporto, escadas rolantes, entradas de metrô etc. Eventualmente, eles também utilizam a versão móvel, o “arrastão”, aquela onde o grupo todo quer andar um do lado do outro e ninguém mais passa. 

É possível contra atacá-los, mas exige experiência.  

Quando você estiver atrás deles:  

a)      Amadores – finja que vai para um lado, dissimule, pule rapidamente para o outro e continue. Nem sempre funciona, principalmente com os velhinhos-rolha que são muito astutos.

b)      Profissionais – Pise bem forte, como um dançarino flamenco. Faça com que eles escutem seus passos se aproximando e a batida do coração seja alterada. Respire alto para aumentar o suspense, e vá invadindo o espaço vital da pessoa-rolha, de preferência no lado em que ela tiver uma bolsa ou algo de valor. O bafo da sua respiração deve alcançar a nuca do seu adversário-rolha. Intimide! Agora o golpe de misericórdia, comece a tossir como estivesse com uma terrível gripe, aquela tosse disseminadora de vírus. Essa tática, quando bem executada, é infalível! 

Quando eles estiverem vindo na sua direção: 

a)      Amadores – atravesse rapidamente para a outra calçada. Funciona, entretanto, você demonstra fraqueza.

b)      Profissionais – pratique sua postura ameaçadora. Costas retas, passos firmes, olhando para frente, mas não nos olhos. Olhe para o horizonte com o olhar de um toureiro raivoso. Ombro direito um pouco mais à frente, assim como quem vai dar um sopapo. Não sorria em nenhuma hipótese, qualquer sinal de gentileza nesse momento é fatal! E siga em frente, ao ataque! 

Gente! Acaba de me ocorrer: será que acabei de desvendar como surgiu a dança flamenca? 

54 – Um ótimo dia, porém longo e difícil

Os pais do Luiz também nos deram o prazer de uma visita. Tenho a sorte de gostar dos meus sogros. Contrariando a fama das sogras, a minha me defende.Vieram com um casal de amigos, muito simpáticos, que ficaram hospedados em um apart hotel bem próximo à nossa casa. 

No primeiro dia em Madri, decidimos dar um passeio a pé pelo centro da cidade. O tour tradicional, mas imperdível. Não conheço outra maneira melhor de conhecer o centro histórico que não seja caminhando. E nunca me cansa! Começamos por Opera, de lá fomos ao Palácio Real, subimos a Calle Mayor e entramos na rua do antigo Mercado de San Miguel. Paramos para almoçar no Maestro Villa, em frente ao Arco de Cuchilleros. Muito agradável! 

Depois de almoçar e, claro, tomar um vinhozinho de Ribera, prosseguimos em direção à Plaza Mayor. Na minha opinião, considero o ponto alto da visita. Seus quatro lados vermelhos e encravados de história sempre me intrigam. É como se fosse uma sala pública de visitas com o teto aberto para o céu. Ali, coisas boas e más ocorreram.  Inclusive, fatos duros, como por exemplo, julgamentos da inquisição católica. Mas por algum motivo, essa energia estranha não me faz sentir mal, como ocorre no Coliseo de Roma. 

Entretanto, nesse dia foi diferente. Pela primeira vez não me senti nada bem logo que entrei na praça. Havia um protesto, ainda por iniciar, do povo saharaui. Explicando um pouco dessa confusão, existe uma região no Sahara Ocidental que foi reclamada como colonia pela Espanha em 1885. A ocupação efetiva do território não se realizou até 1934. Seu território foi cedido em 1976 a Marrocos e Mauritania, entretanto, a Frente Polisaria proclamou a República Árabe Saharaui Democrática (RASD), iniciando uma Guerra que duraria até 1991. Continuam a espera de um referendo, o qual Marrocos se negou a convocar em repetidas ocasiões. O status legal do território e a questão da soberania continuam sem se resolver. Atualmente, Marrocos tem um muro com radares, artilharia e minas no interior do deserto. Uma missão da ONU tenta controlar a situação para organizar eleições livres que decidam o destino do território. O objetivo desse protesto era de pedir ajuda à Espanha. 

Talvez fosse por isso, não tenho certeza, repentinamente senti o ar pesado. Fiquei muito incomodada. Tenho um tipo de intuição que às vezes me assusta, mas me protege. Sinto a proximidade de situações de risco, sei quando algo ruim está propenso a ocorrer. Não chega a ser uma premonição porque não consigo saber o que é, mas funciona como um sinal de alerta. Algumas coisas acontecem sem que você possa evitá-las, mas a maior parte delas é uma questão de não estar prestando a atenção suficiente. Ninguém consegue ser atento 24 horas por dia, porém consigo ser quando meu radar me avisa. Fico séria, mais calada e concentrada. 

Nesse dia não quis ficar muito tempo na praça. Também não queria estragar o passeio de ninguém com meus devaneios, então só comentei com Luiz que não estava gostando dali.  

Saímos em direção a Calle de Postas, que leva à Puerta del Sol. Vi três garotos, arrumados como os outros garotos. No Brasil, a gente crê que pode identificar o risco através da aparência relacionada à pobreza. É um engano, nesse caso, por exemplo, a aparência era de garotos da classe média. Só que tinham um olhar familiar que reconheço, o de quem não tem muito a perder. O maior subia a rua com um mastro de bandeira na mão, sem bandeira nenhuma. Quando viram um carro de polícia estacionado, voltaram do caminho. Não sei se mais alguém percebeu, porque a rua estava bem cheia. Mostrei ao Luiz e entendi que não era só a Plaza Mayor. As bruxas estavam soltas e era melhor se cuidar. Foi a primeira vez que senti Madri assim. 

Subimos a Calle de Preciados, uma rua movimentadíssima, em direção ao El Corte Inglés. Estava atenta, entretanto cometi um erro. Minha sogra e sua amiga estavam comigo, então achei que estava tudo bem e relaxei. Os maridos vinham atrás, o último era o amigo do meu sogro, que estava um pouco distraído filmando e fotografando a rua. 

Entramos, as mulheres conversando, no El Corte Inglés e de repente me ocorreu que eles não entraram. Na hora sabia que havia acontecido algo e voltei para rua sem saber bem o que fazer. 

Um cidadão meteu a mão na carteira do amigo do meu sogro e, provavelmente, a passou rapidamente para outro. Acontece que eles  perceberam e agarraram um dos ladrões. Um outro homem entregava dinheiro ao Luiz e apontava uma carteira no chão. Acho que era o outro ladrão, mas não dava para ter certeza. Como ele mostrava a carteira para o Luiz, ele acreditou que o sujeito estava ajudando. Nunca saberemos. 

 O fato é que meu sogro e seu amigo seguraram o primeiro ladrão e começamos a gritar por polícia. As esposas se juntaram em volta e os quatro não deixaram que o homem saísse de lá. Foram muito corajosos! Uma roda de pedestres rapidamente se fez em volta da confusão. Luiz correu em direção à Plaza Callao tentando pegar o segundo homem. Não fazia muito sentido pois não sabia quem era. Mas nessas horas a gente não pensa claramente, é tudo muito rápido. Fiquei com medo de deixá-lo sozinho agarrando o suposto segundo ladrão e fui atrás dele. Quando vi que ele nunca o alcançaria e não entendi o que ele estava tentando fazer, olhei em volta para ver se havia polícia e não havia. Voltei correndo para o El Corte Inglés para chamar a segurança. Meus sogros e seus amigos ainda seguravam o bandido. No que saí da loja com o segurança, alguém já havia conseguido avisar os policiais que chegaram pelo outro lado e prenderam o assaltante. 

Enquanto a polícia revistava o homem, conferimos se faltava algo na carteira. Por sorte, não havia tido tempo de nada ser levado. Até o dinheiro retirado foi recuperado, pois os batedores de carteira, quando percebem que o golpe deu errado, deixam as provas para trás. O ladrão foi detido e entramos na loja para acalmar os ânimos. Subimos até a cafeteria, sentamos e tentamos relaxar um pouco. A verdade é que tudo aconteceu tão rápido que só depois as peças foram se juntando. 

Acho que Luiz e eu fizemos errado, não deveríamos tê-los deixado sozinhos com o bandido. Meu reflexo foi de buscar ajuda, mas não sei se foi o melhor. Me senti um pouco impotente de ter percebido que alguma coisa poderia ir mal e mesmo assim não estar preparada. Sabia o que fazer se acontecesse comigo, mas não estava pronta para ajudar outra pessoa. 

Na mesa, meu sogro contou que enquanto segurava o cidadão que tentou fugir, usou o velho-truque-índio de apontar um dedo firme em suas costelas. O ladrão poderia ficar na dúvida se era uma arma.  

Acho que não teriam reagido se fosse no Brasil, até porque lá os bandidos usam armas. Aqui raramente as usam. Costumam se aproveitar da distração dos turistas. De toda maneira, achei os quatro muito corajosos e de pensamento rápido. O homem era jovem e forte. Naquele dia, ele e seu possível parceiro pensaram que se aproveitariam de um senhor distraído, alvo fácil! O que ele nunca poderia esperar é que o senhor poderia ser rápido, e que seu amigo e as esposas estariam dispostos a ajudá-lo. E que os outros alvos fáceis fariam uma roda em sua volta apontando quem era o alvo dessa vez.  

Apesar da sorte e de estarmos todos bem, logicamente, a adrenalina foi alta. Saímos da loja por outra porta, por precaução, e tomamos direção à Gran Via para pegar o metrô. No caminho, ainda não estava tranquila. A frequência do lugar estava diferente. Pelo menos, dessa vez, estávamos todos mais atentos. 

Ainda pude notar um outro cidadão na porta do metrô, que desceu um pouco antes da gente e, logo em seguida,  subiu outra vez pela escada rolante. Estava procurando vítimas e o mostrei para Luiz, mas não seríamos nós.  A medida que o metrô chegava na nossa estação, meu coração também ia sossegando. Soube que estaríamos em segurança novamente. No bairro de Salamanca, o ar já estava mais leve. Respirei aliviada, nenhuma das bruxas nos seguiu. 

No apartamento, assistindo ao noticiário, soube que houve outro grande protesto no mesmo dia, além da manifestação da Plaza Mayor. Esse era contra uma lei referente à educação na Espanha. Na Puerta del Sol também houve uma concentração de Marroquinos. Não houve nenhum incidente grave, mas movimentou muita gente e o clima da cidade não estava para muitos amigos.  

Dormir naquela noite foi difícil para todos nós. O que passou na cabeça de cada um, quem pode saber? Na minha passava uma sensação de incompetência e a dúvida se aquele era realmente o ladrão. E se fosse, o que deveria estar passando naquele momento. A cena se realizou no meu pensamento de várias maneiras diferentes, imaginava formas como poderia ter certeza que a coisa certa foi feita. Era absurdo! Sei disso, já estava feito, mas era inevitável, não conseguia apertar o botão de desligar. 

Até que ouvi a chuva caindo, levantei e fui para janela da sala. A chuva lavava a rua e as calçadas. O ar ficou mais limpo também. As bruxas se dissolviam. No corredor, meu gato me seguiu com cara de sono, curioso para saber o que fazia ali. Agarrei meu felino gordo e voltei para cama. 

Fiquei pensando se não poderia passar uma tesoura na metade daquele dia que havia sido tão agradável em quase sua totalidade. Se apagar não era possível, ao menos dividí-lo em dois e chamar um deles de dia bom. Acontece que a vida é inteira e ensina que a verdade é sempre melhor, mesmo que de maneiras tortas. A vida não é toda boa, mas aprendemos a superar e a compensar as dificuldades e os erros.  Aprendi que o bem une e o mal divide. 

Nesse dia, na sala de justiça, os super-amigos decidiram que o bem ganharia. 

55 – Céu de Brasília

Sempre escolho uma música para as cidades que gosto. Normalmente, ela começa a tocar na minha cabeça enquanto caminho pelas calçadas. Funciona como uma trilha sonora muito particular. É impossível passear por Salvador sem ouvir batuques africanos, assim como é impossível passear por Veneza sem ouvir violinos, reais ou imaginários. 

Não precisa ser uma música da mesma cidade ou país. É até natural que muitas vezes coincida, mas não é uma regra. 

Desde que mudei, procurava uma música para Madri e não encontrava. A minha lógica dizia que deveria ser algo flamenco, mas não encaixava. Quer dizer, encaixava com a cidade, mas não com meu estado de espírito nela. Tentei outros ritmos, jazz ficava papagaiado; blues, assim como flamenco, ficava meio triste; as clássicas me pareciam fora de contexto. Passados mais de sete meses, já havia desistido, a hora que viesse estaria bem. 

Até que hoje, caminhando pela Universidade entre as árvores de outono, olhei para cima e reconheci o céu de Brasília! Não era igual, mas estava muito parecido. O céu de Brasília é lindo! É um azul mais claro e limpo, com partes meio avermelhadas ou alaranjadas. Não sei descrever bem, mas sempre sabia notar na TV que uma reportagem estava sendo realizada lá quando era feita ao ar livre. O céu entrega. 

Hoje Madri do meu caminho estava assim, com o céu ligeiramente avermelhado no fim da tarde e com as árvores de folhas caindo amarelas. Daí foi até covardia! Só uma pessoa poderia resolver essa questão: Djavan. Olha que chic! Agora andarei pela Complutense com o Djavan cantando no meu ouvido! 

…passa mais além do céu de Brasília, traço do arquiteto, gosto tanto dela assim, gosto de filha, música de preto, gosto tanto dela assim…mas é doce morrer neste mar de lembrar, e nunca esquecer, se eu tivesse mais alma pra dar, eu daria, isto pra mim é viver.

56 – Paella

A melhor paella espanhola que já comi foi em… São Paulo! A campeã é a do Don Curro, sinto muito! Não é que aqui elas sejam ruins, mas ainda não achei aquela definitiva. The Ultimate Paella! Enfim, continuarei tentando, fazer o que? Acabo de pegar algumas dicas de locais para comer uma boa paella com legítimos madrileños, a ver… 

Nos restaurantes, diferente do que imaginava, costuma ser sevida como entrada. Mas, se quiser, você pode pedir como prato principal que ninguém faz cara feia. Quer dizer, podem até fazer, mas é mala leche mesmo. Ignore! Se isso acontecer, utilize a cara 9, a de caguei-sou-cliente-e-você-não-está-fazendo-nenhum-favor.  

O arroz costuma ser bem gostoso, mas os frutos do mar são regulados. Um pouquinho de nada e mais casca que carne. Nem entendo porque, já que os frutos do mar daqui são excelentes e fresquíssimos. Todo pescado do país é concentrado em Madri e depois distribuído aos outros lugares, ou seja, é tudo de primeira. 

Não existe uma versão oficial para o nome “paella”. Entretanto, ouvi uma história que faz sentido e achei muito bonitinha. Normalmente, as mulheres cozinhavam durante toda a semana e os maridos para dar-lhes uma folguinha, às vezes, cozinhavam para elas. O “para” aqui pode ser abreviado como “pa”, assim como o nosso “pra”, e o “ela” se diz “ella”. Portanto, quando o marido cozinhava para a esposa, ele cozinhava “pa ella”. Pa +  Ella = Paella 

Meninas, a paella é nossa! Meninos, uma dica, aprendam a história e a fazer paella, pois pode ser muito romântico! Um homem cozinhando para sua amada é super sexy! 

Receita de paella de frutos do mar  (do jeito que faço, há outros) 

Ingredientes – nunca sei exatamente, mas aqui vai uma aproximação razoável: 

Arroz (1 xícara e meia)

Água (3 xícaras)

Azeite (cobrindo levemente o fundo da panela)

Alho (1 cabeça inteira bem picada)

Cebola (1 cebola inteira)

Tomate (1 tomate, sem sementes, picado em cubinhos)

½ xícara de ervilhas

Pimentão vermelho (metade de um, picado em cubinhos)

Pimentão verde (metade de um, picado em cubinhos)

Açafrão (o equivalente a uma colher de sopa)

Frutos do mar (uns 6 camarões grandes e outros menores,  100 gramas de lula, umas 20 conchinhas de vôngoles, uns 5 mexilhões…)

Cuentro ou Salsinha (mais ou menos meia xícara bem picadinho – dica, use uma tesoura de cozinha ao invés de uma faca e pique em cima da panela na hora de usar) 

Modo de fazer: 

Refogar o arroz no azeite, alho e cebola. Seja generoso nos três últimos ingredientes. Acrescentar pedaços bem picadinhos de tomates, pimentões verdes e vermelhos, e as ervilhas. Adicionar o fundamental açafrão.  

Em paralelo, ferver a água a ser adicionada, aproximadamente o dobro da quantidade do arroz, e reservar.  

Colocar os frutos do mar, com casca e tudo. Use os que você gostar mais, gosto de usar camarões, lulas, vôngoles, mexilhões, langostinos e carabineiros pequenos. Os mexilhões devem ser colocados por cima de tudo, dentro de suas conchas. Os vôngoles podem ser misturados, mas também dentro de suas conchas. 

Adicionar a água fervente, salpicar o cuentro ou salsinha e baixar bem o fogo. Esperar a água secar e servir na hora. 

Atenção: Caso não tenha a panela apropriada, utilize uma rasa e de fundo largo. Originalmente, esse prato deve ser feito no fogo ao ar livre. Diz a lenda que o ideal é utilizar folhas de parreira para alimentar esse fogo. O aroma e a fumaça sobem e alteram o sabor da paella, no mesmo estilo dos defumados. Mas se estiver na sua cozinha, pode levar a panela ao forno (se isso for possível sem ter partes derretidas). A maneira mais simples é no fogão mesmo, em fogo baixo, tampando a panela enquanto a água do arroz seca. 

Existe a versão onde também se adiciona frango e coelho. Mas se é sua primeira paella é melhor não complicar muito. 

Boa sorte! 

57 – O Flamenco

Assim como a paella, não existe uma versão oficial quanto à origem do flamenco. E quando não há uma versão oficial, simplesmente elejo a explicação que acho mais interessante. 

Não há uma certeza sobre quando se iniciou. Possivelmente, antes do século XVIII já existia alguma forma de flamenco nos lugares onde viviam os ciganos, ao sul de Andaluzia. Só em meados do século XIX foram realizadas apresentações públicas. 

Os ciganos são os grandes responsáveis pela difusão do flamenco, entretanto, sua origem e estrutura musical vem de uma fusão entre diferentes culturas que passaram por Andaluzia. Sofrem influência de cantos hindus e gregos, cantos religiosos medievais, melodias persas, cantos judaicos, sons africanos e música caribenha.  

Além disso, há uma grande flexibilidade na forma de interpretação do cantor, conhecido como “cantaor” – os ciganos, como os Andaluzes, não pronunciam o “d” de “cantador”, portanto, também o tablado onde dançam é dito “tablao”. 

O canto flamenco, ou cante jondo, é dividido em estilos chamados de palos. Acho que são bem uns trinta palos, mas não sei como diferenciar a todos. Alguns exemplos: Tonás, Seguiriyas, Petenera e Tangos.  

As canções tonás estão entre as mais antigas. Possivelmente, derivam de canções populares do século XVII e da palavra “tonada”, “tono”, “melodía”. É uma criação genuinamente cigana e permaneceu muito tempo oculta entre suas famílias. Apenas ao final do século XVIII, quando o rei Carlos III proíbe a perseguição aos ciganos, as canções começam a ser mais conhecidas. As letras falam de sua vida errante e seus problemas frente às injustiças. Como quase todos os cantos originais, não tem acompanhamento musical nem baile. É uma maneira de deixar a voz ainda mais dramática, acompanhando a história que se explica. 

As seguiriyas são, possivelmente, uma derivação das tonás. Especialmente, um tipo delas chamadas plañideras, que derivam da palavra plañir (chorar). É um canto difícil, reservado a poucas famílias ciganas. Cada “cantaor” lhe dá uma interpretação pessoal e sempre soa como um lamento. 

O estilo petenera é pouco divulgado, por uma razão muito simples. Os ciganos são muito superticiosos e dizem que dá má sorte cantar essas canções em público. Assim que basicamente são cantadas em círculos menores entre as famílias. 

Os tangos estão entre os mais populares. Não é nada parecido ao tango argentino. São canções mais fáceis de entender e mais alegres. 

Bom, há diversos outros estilos, mas acredito que já tenha passado o espírito da coisa.  

Em relação a origem do nome “flamenco”,  há uma explicação curiosa, ainda que não seja historicamente comprovada. O ano de 1492 é bem conhecido por aqui, foi quando os mulçumanos foram expulsos do território espanhol. Essa expulsão se deu do norte para o sul e muitos refugiados se esconderam com os ciganos de Andaluzia. Boa parte desses fugitivos era de lavradores. Lavrador fugido em árabe antigo se diz “felag mengu”. Tudo bem, eu também não sei falar árabe antigo, mas leia em voz alta – felag mengu – e notará a semelhança com “flamenco”. 

Finalmente, acredito que mais importante que entender o flamenco é sentí-lo. Das primeiras vezes que se escuta, um ouvido mais distraído percebe apenas gemidos e lamentos. Mas se esquecer um pouco o preconceito e se deixar levar pela batida, aos poucos, o canto começa a soar como um mantra que te envolve. Há tantas matizes na voz como possibilidades de sentimentos. O ritmo ainda me parece um pouco irregular, mas assim como o coração, nada tão profundo e vivo pode ter uma batida óbvia. Nada tão visceral pode ser fácil. Quando me entrego nesse transe do violão dedilhado, aprendo um sofrimento que não tive e que alguém generosamente digeriu para mim. 

58 – Las Croquetas

Preciso fazer uma confissão que pode me custar muito caro no futuro: adoro croquete! Aliás, adoro salgadinhos em geral, coxinhas, empadinhas, risólis, bolinhos de bacalhau, bolinhas de queijo… huuummm… minha boca encheu de água! 

Infelizmente, depois do Caco Antibes, todas essas deliciosas mini-tentações foram classificadas de “coisa de pobre” e sumiram das festas brasileiras. Fazer o que? Gosto das comidas exóticas e também das sofisticadas, apenas acredito que um prazer não exclui o outro. E tem dias que morro por uma coxinha cheia de catupiry legítimo derretido. 

Muito bem, ainda resta salvação para o mundo! Aqui em Madri, um dos aperitivos mais populares são as fabulosas croquetas! É a redenção do croquete! São encontradas tanto em bares mais despojados, como em restaurantes elegantes. Lógico que na segunda opção sempre há algum diferencial, mas que é croqueta… é croqueta! 

Entretanto, há uma pegadinha para brasileiros. Quando a gente prova a primeira croqueta, esperamos um recheio mais sólido. Pois, nesse caso, a massa já é o recheio. Só que essa massa é salpicada com algum tipo de acompanhamento. A clássica vem com pedacinhos de jamón, mas é comum também encontrar as de pollo (frango). Os restaurantes mais descolados inovam mesclando outros recheios, como camarões ou queijo brie. Mas nunca em pedaços generosos, costuma ser triturado com a massa. 

Deve ser frita na hora e no azeite estalando de quente. Hombre, o sabor é de maravillas! 

Caso queira aprender a fazê-las, a receita segue abaixo. E se algum despeitado se atrever a torcer o nariz dizendo que é “coisa de pobre”, nada como responder que é um velho hábito adquirido na Europa.  

Ingredientes:

         1 colher de sopa de azeite

         2 colheres de sopa de farinha de trigo

         ¼ de litro de leite (pode ser um pouco mais)

         1 ovo

         100g de farinha de rosca

         noz moscada

         100g de jamón em pedacinhos minúsculos (ou o recheio que você preferir)

         sal 

Modo de fazer: 

Levar a panela ao fogo com o azeite. Deixar o azeite esquentar, mas não ferver, não deixe levantar fumaça. Tire a panela um pouco do fogo e adicione lentamente a farinha, movendo com uma colher-de-pau até que forme uma massa. 

Retorne a panela ao fogo médio, adicione lentamente o leite, mexendo sem parar até que a massa esteja cozida e consistente. Colocar uma pitada de noz moscada, sal a gosto e os pedacinhos de jamón. Continue mexendo a massa até que se espesse. 

Coloque essa massa, já espessa, em um recipiente e deixe-a esfriar. Depois de fria, modele os bolinhos no formato de croquete. 

Bata o ovo em outro recipiente. Molhe o croquete (epa! Isso ficou meio sexual!) nesse ovo e depois passe na farinha de rosca. Como se fosse um bife à milanesa. 

Estão prontas para fritar. Devem ser fritas no azeite bem quente que as cubra. Quando estiverem douradas, estão prontas para serem servidas. 

Coma sem arrependimento e ria dos pobres de espírito! 

59 – Crônica de minuto

E não é que logo após escrever o capítulo anterior e falar de salgadinhos, um amigo ligou e nos convidou para conhecer uma churrascaria brasileira em Majadahonda chamada Mistura Fina. Fica fora de Madri, uma meia hora de carro. Uma delícia! Mas o mais curioso é inacreditável. Adivinha qual era o couvert? Coxinha de galinha quentinha! Putz! Dá para imaginar com que vontade comi a dita cuja? 

60 – E chegou dezembro…

Ontem saímos para comprar não-sei-o-que. Para variar, ía distraída pela rua, já um pouco escuro no começo da noite. Quando fomos atravessar a Calle Conde Peñalver e olhei para cima levei um susto, estava lá: a decoração de Natal! Caramba, chegou dezembro! 

As decorações de Natal sempre me assustam. Não porque não goste, pelo contrário, mas é quando tomo consciência que o ano passou. E esse ano, especificamente, voou! 

Passaremos Natal e Reveillon aqui. Nas duas datas, faremos festa em casa. Nada tão grande, mas acho que será divertido. No Ano Novo, inclusive, teremos hóspedes. Para nossa família, acredito que será um pouco chato, pois não poderemos estar no Brasil. Mas tudo bem, ano que vem quem sabe a gente passe por lá? 

E voltando a dezembro em Madri, a temperatura chegou a zero. Nas redondezas da cidade já nevou, mas ainda não há neve suficiente para esquiar. Na cidade mesmo nem sempre neva, o que não é de todo mal. Neve é lindo, mas não é nada prático! Nos primeiros dias é uma alegria. Acontece que depois de um tempinho, aquilo tudo vira gelo e lama, escorrega que é uma maravilha. Fora o pessoal que mora em casa e tem que limpar calçada, vidro de carro etc. Portanto, acho ótimo viajar para a serra, curtir a neve, um belo chocolate quente e voltar para minha casinha no conforto da calefação. 

Pelo menos, em termos de roupas, dessa vez estamos super preparados. Temos casacos e roupas interiores para vários tipos de temperatura. Isso faz toda a diferença do mundo! Minha tolerância ao frio melhorou muito também. O problema é só nos últimos minutos antes de sair de casa e quando entramos de volta no apartamento, a gente só falta cozinhar! Na frente da porta de saída, fica um tipo de cabideiro com todos os casacos. Assim fica mais fácil e não ocupa tanto lugar no armário.  

O chato é que volta a escurecer cedo, às sete está escuro. Nesse ponto, gosto é de primavera e verão, quando escurece lá para às dez da noite e temos aqueles dias enormes que cabem tudo. 

Mas o inverno também tem seu charme, vá lá. As roupas principalmente, acho lindas! Quer dizer, o guarda-roupa do espanhol médio não é lá essas coisas em termos de bom gosto. Eu, pelo menos, detesto aquele negócio de meia-arrastão com mini-saia tipo puta, meia-calça colorida parecendo doença de pele, botinha por cima da calça igual a jóquei, lencinho amarrado na cintura, calça sem dar bainha arrastando nojentamente no chão…e por aí vai. Mas no inverno, felizmente, melhora muito! Por outro lado, devo admitir, que quando se vê uma mulher bem vestida, ela arrasa! Quando é elegante, é elegante mesmo. 

Enfim, é dezembro, que venga el invierno! 

61 – Adoro um balcão!

Adoro um balcão de bar! Deveria ter aprendido isso no Rio de Janeiro, a cidade especializada em botecos. Não aprendi por um motivo muito simples, desculpa gente, sei que é uma coisa horrível, que é possível que seja execrada com toda razão, é algo imperdoável, repugnante, tentei modificar acreditem, mas eu não gosto de chopp nem cerveja. É duro! Foi um trauma na época em que morei no Rio, um problema social,  PORQUE NINGUÉM PERGUNTA O QUE VOCÊ QUER BEBER, o garçon simplesmente conta as cabeças e pergunta em voz alta, de maneira retórica, “x”chopps? Daí tinha que me manifestar timidamente, 20 cm menor que minha altura original, e dizer: é que não tomo chopp. Os olhares confusos se dirigiam a mim, junto com o garçon com um ponto de interrogação na testa, como assim não toma chopp? Será que ela tem algum problema, coitadinha! 

Cheguei a tomar as terríveis sangrias só para ter alguma opção alcoólica fresquinha nos bares. Quando mudei para São Paulo facilitou minha vida, o clima mais ameno da cidade me dava outras opções, como o whisky. Além de poder apreciar a deliciosa cachacinha, entre minhas bebidas favoritas. A cultura do vinho ainda era iniciante. Sou da época onde um restaurante oferecia as opções “vinho branco” e “vinho tinto”. Depois melhorou, você ainda podia escolher entre seco e suave (mesmo que fosse só no nome). E eu, burramente, escolhia suave, putz! Que mancada! Em seguida, como todo mundo já sabe, veio o alemão fraquinho da garrafa azul, com gostinho de uva, que abriu corajosamente caminho para outros vinhos e experiências mais interessantes. Descobri que não era que não gostasse de vinho, é que não gostava de vinho ruim! Bom, hoje nem preciso dizer, mas São Paulo é a melhor cidade para se beber e comer do mundo. 

Não bebo tão intensamente assim, nem acho que uma pessoa precise de álcool para se divertir. Bebida, pelo menos para mim, é algo social, deve vir junto de algum motivo e sem prejudicar ninguém. Caso contrário, perde a graça. Não sabe brincar, não brinca! 

Mas vamos lá, em um balcão de bar, qual é a graça em pedir coca-light?  O balcão te convida a interagir, tem um “quê” de ritual, é um lugar para os iniciados. Não tem a formalidade das mesas, não é para namorar, não é para segredos. O balcão é para amigos. 

Aqui encontrei meu chopp! Adoro cava, o espumante espanhol. Também há a possibilidade de pedir uma copa de vino. Pronto! Resolvi meu problema dos balcões de bar e finalmente desfrutei essa delícia que é beliscar descompromissadamente em pé ou nos bancos altos de apoio. 

Ainda amo os jantares românticos e formais, mas mantenho minha fisolofia que um prazer não precisa eliminar o outro. Por exemplo, há um restaurante e bar que adoro, o “Finos & Finas”. Apesar do nome meio brega, tem uma cozinha excelente e criativa! Para um jantar mais elaborado, nada como o atendimento da super simpática Marta. Ela te indica os vinhos corretos, te explica os pratos com boa vontade, uma gracinha!  Mas houve o dia em que chegamos sem reserva com um amigo americano, já meio tarde, e não havia mais mesas. A cozinha estava praticamente fechada. O Luis (não o meu marido), gente boa como qualquer barman, disse meio sem graça, se vocês quiserem, podem ficar pelo balcão que tento pedir na cozinha algo mais simples. Se alguma coisa aprendi na noite é saber em quem se deve confiar. Na mesma hora, Luiz (esse meu marido), eu e nosso amigo, concordamos quase que em coro: fechado! O que você disser a gente topa! Putz! A gente se deu muito bem! Além das dicas do barman serem de primeira, acabamos batendo o maior papo e provando todo tipo de vinho, por nossa conta ou por conta da casa! 

Outro balcão que adoro é do “El Barril”, tem dois da mesma rede perto de casa. Esse não é tão barato e é frequentado por uma clientela mais, digamos, adulta. Oferece frutos do mar fabulosos! Nada melhor que as dicas do Benjamin, outro barman-gente-boa, do que está mais fresquinho. A cava está sempre geladinha e, apesar de não gostar, o chopp, que aqui se pede caña, é lindo e bem tirado. 

Tem o “Aranzabal”, um estilo mais jovem e despojado, mas onde se come os melhores huevos rotos de Madri. O vinho é bem honesto também. Nesse não dá para conversar muito com o barman, porque vive lotado e o coitado mal respira! Mas o bar é bom! 

Não posso deixar de contar do nosso pé-pra-fora mais frequentado, o “Panamá”. Esse é a extensão da nossa cozinha. Foi, inclusive, onde assinamos nosso contrato de aluguel desse apartamento. Ali, quando Luiz viaja e tenho preguiça de cozinhar, tomo uma copa de Rioja com umas almôndegas ou umas allitas de pollo super bem feitas. No balcão, claro, conversando com a dona do local.  

A propósito, aqui não tem nenhum problema em haver uma mulher sozinha no balcão do bar. Também não tem limite máximo de idade, é a coisa mais normal do mundo encontrar mayores tomando sua caña ou sua copa de vino! Mas sabe de uma coisa, é raro ver bêbados pelas ruas. De modo geral, as pessoas sabem beber e não exageram. 

Ainda não aprendi a jogar os guardanapos e outros lixinhos no chão, como os autênticos madrileños. Acho que sou a única pateta que procura ficar próxima às lixeirinhas, lugar mais limpo do recinto. Mas um dia chego lá… 

62 – Saudade

Hoje senti saudade.  

Isso nunca foi realmente um problema para mim. Não sei se por sorte, por experiência ou pela minha natureza, aprendi a lidar com a saudade e a solidão muito cedo. Falo também da solidão porque esses dois sentimentos estão sempre, de alguma forma, ligados. Acho que não sinto nem mais nem menos que ninguém, mas entendo que faz parte da vida e que não pode te limitar. Acredito que nem sempre é mau. 

Algumas vezes, é até difícil saber se estou com saudade ou não. Acho que não penso muito nisso. Pode ser porque em alguns casos confundo com nostalgia. Nostalgia é diferente, a gente sente um tipo de saudade, mas não quer voltar a fazer as mesmas coisas. É algo resolvido. Saudade a gente quer de novo. 

Hoje, andando na rua, me senti um pouco aborrecida. Na verdade, antes de sair já estava sem muita vontade de levantar. Tem vezes que o inverno te faz isso. O frio e as árvores com cara de meio mortas podem te baixar um pouco o astral. Mas notei que não estava brava com nada nem exatamente triste. Até que me dei conta que estava era com saudade. 

Deu vontade de sentar em um bar com Luiz e meus amigos. Não sei por que, mas me vinha na cabeça o Manoel e Joaquim, de Moema. Talvez porque tenha sido o último bar que fomos com amigos antes de mudar. Ouvi muitas gargalhadas na minha língua e meu sotaque meio misturado parecia não fazer nenhuma diferença. Também pude me imaginar pegando um avião às pressas em segredo para Rio, quem sabe com a cumplicidade do meu irmão, e aparecer sem avisar na casa dos meus pais. Depois ligar para alguns amigos, fingindo decidir para onde ir, e acabar indo à Academia da Cachaça e pronto. 

Senti na boca o gosto do sanduba de pernil do Mercado Municipal; quase passei mal de tanto que comi na casa da minha família paulista; vi os fogos de Copacabana, não nos barcos chatos de agora, mas aqueles que eram na areia e imitavam coqueiros gigantes; almocei com as lulus; fui ao Santa Maria comer salada de frutos do mar com champagne e comprar bem casado; li a lista de compras da amiga-que-mandava-em-minha-casa e fui buscar no Pão de Açúcar; desci a rua Augusta de carro, feliz mas com vontade de chorar, depois da exposição da Paulista; pendurei pêndulos imaginários no MAM; reclamei do trânsito e do rodízio absurdo; participei dos encontros da minha turma de colégio e tiramos várias fotos; ouvi Pink Floyd me sentindo inteligente; subi o morro da Urca para as Noites Cariocas; fiz escova com minha cabeleireira favorita e acreditei outra vez que meu cabelo é liso; fui numa festa junina e tomei capeta só para lembrar dos velhos tempos; preparei uma moqueca para os meus sogros; inventei fantasias de papel  para meu sobrinho; reencontrei meus primos; participei do amigo-ladrão e meu presente foi o mais disputado; fiz obras nos apartamentos e pintei muitas paredes. Fiz um monte de coisas hoje! 

Caramba, deu saudade e me pegou de surpresa.

63 – A despedida do curso de espanhol

Até que enfim acabou meu curso de espanhol. Foi excelente e é verdade que melhorei sensivelmente no idioma, recomendo. Por outro lado, já não tinha muita paciência para esse negócio de aula todos os dias, chamada, dever de casa… Sei lá, acho que estou velha para isso. 

Bom, no último dia do curso, combinamos de sair depois da prova final. A grande maioria dos alunos voltará para seus países de origem, poucos ficam por Madri. Fora as três amigas que vieram na minha casa para o aniversário, com os outros, nunca saí antes, acho que eles também não saíam juntos. Tinha dúvidas se me divertiria. Cerca da metade da turma é de americanos, nada contra, mas fiquei pensando se eles começariam a só falar em inglês e pareceríamos turistas pela noite madrileña. Estava errada. 

A maioria do grupo, me incluindo, saiu direto da aula para um bar, o El Buscón. Quem organizou nossa ida para lá foi a estudante francesa, minha primeira amiga do curso. Foi engraçado andar novamente pela rua com um bando de pessoas juntas. Me senti um pouco adolescente, mas relaxei logo e curti a sensação. O restante do grupo foi primeiro em casa se arrumar e nos encontraram no bar. Digo, no primeiro bar, pois foi uma via crucis! Aliás, isso é muito normal por aqui, dificilmente vamos a um lugar só. 

Nesse primeiro bar estávamos em dezessete pessoas. Luiz me encontrou lá, depois do trabalho. Só pôde nos acompanhar nesse lugar, pois tinha que trabalhar cedo no dia seguinte, mas pelo menos aproveitou um pouco. 

Dalí, os americanos tinham um jantar de despedida e também se foram, com a promessa de nos encontrar mais tarde. Nunca acreditei que realmente fossem voltar, mas de novo, estava errada. 

Um dos professores apareceu e fomos para o segundo bar, o Malaespina. Nesse, estávamos em seis pessoas, entre elas, minha amiga koreana preocupada com o horário de voltar para seu apartamento. Ofereci que ficasse em minha casa, bom para mim que voltava com companhia e bom para ela que podia ficar à vontade. 

É engraçado conhecer as pessoas fora do ambiente de trabalho ou de estudo, no caso. Todos estavam mais descontraídos e as diferenças de idades e de nacionalidades não faziam mais nenhuma diferença.  

Esse segundo bar foi escolhido pelo alemão. Dois minutos depois de entrarmos lá, descobrimos o motivo de sua escolha, estava apaixonado pela garçonete russa. Aparentemente, vivia por lá. De qualquer forma, também foi divertido e o lugar era legal. 

Sem nenhuma vontade de voltar para casa e recebendo ligações dos americanos querendo saber qual era a próxima parada, nos animamos a sair para dançar. Dessa vez, sugeri eu, o Berlin Cabaret. Acho que já comentei que é um dos meus lugares favoritos em Madri, mas às vezes pode estar muito cheio e não tão bom. Nessa quinta, estava perfeito! 

Os americanos apareceram super animados e voltamos a ser um grupo grande. Cantei as músicas que sabia e inventei as que não conhecia, até porque ninguém escuta mesmo, então qual é o problema, né? Finalmente, aprendi a dançar como se ninguém estivesse olhando e pouco me importou. Parecia que éramos velhos amigos de longa data. Nos acabamos de dançar até às cinco da manhã, só paramos quando começaram a acender as luzes e desconfiamos que o lugar iria fechar. 

Lá no Berlin, talvez porque seja pequeno, é comum que as pessoas se falem. Quem está mais perto do balcão acaba ajudando quem está mais atrás a fazer os pedidos, coisas assim, muito civilizado. No fim da noite, alguém veio nos perguntar se éramos um grupo de alguma empresa saindo juntos. Não éramos, mas achei curioso e acredito que a pergunta me explicou porque me sentia tão bem. Não sei se verei essas pessoas no futuro, algumas talvez sim, a maioria provavelmente não. Mas sei que nesse dia Madri foi uma cidade pequena e familiar, fomos uma mesma turma, uma galera, e foi muito bom. 

64 – As Luzes de Natal

Agora sim Madri está pronta para o Natal! Mil luzes acesas pela noite madrileña! Árvores natalinas reais ou estilizadas, luzes brancas ou coloridas e presépios de todos os tamanhos. Aliás, presépio aqui se diz “belén”, como a cidade. 

Tentei comprar uma árvore de natal, mas só achei umas cafoninhas. Daí resolvi fazer eu mesma uma modernosa, Luiz me ajudou a decorá-la. No Brasil, tinha uma “caixa-de-natal” onde guardava uma árvore, vários enfeites e velas. Adorava o dia de abrir a tal caixa! Antes de mudar, me desfiz da mesma. Não me arrependi, alguém estará aproveitando nesse momento. Mas me deu uma vontade danada de montar outra, o problema é onde guardar essa tralha toda depois!  

As ruas, como de costume, estão abarrotadas de gente! Inclusive, muitas crianças. Dá uma falta de paciência para entrar nas lojas, porque tem fila para tudo! Também, nem tenho para quem comprar presente agora mesmo. Tô reclamando por que, né? Melhor esperar um pouco e aproveitar as liquidações. 

Mas nos supermercados tenho que ir e, cassilda, haja saco! Só tenho tido tempo nos sábados e, aparentemente, todo mundo tem a mesma idéia, pelo menos, todas as pessoas-rolha. Vocês não imaginam o que estou sofrendo depois de ter revelado o segredo da conspiração-rolha. Enfrento terríveis congestionamentos de carrinhos de compra! ¡Joooooder! 

Vá lá, tudo passa quando vejo aquelas luzes acesas e me sinto em uma vitrine gigante. Ando sempre na torcida que o músico da rua daquele momento toque saxofone! 

No dia 24 haverá uma festinha aqui em casa, no jantar. No dia 25, almoçaremos na casa de amigos. Mas até agora, não achei tender, acho que eles não comem por aqui. É uma pena porque adoro tender e só lembro de comer no fim de ano, acho que vai ficar para o próximo. 

O importante é, na falta do resto da família, poder passar com Luiz e amigos. E mais uma vez, temos a sorte de ter bons amigos!  

Gente pelo mundo todo, Feliz Natal!  

65 – Sobre o Ano Novo

O dia de Ano Novo é a data que mais gosto de todas! É o fechamento de um ciclo. O lugar que prefiro passar a noite de reveillon é em Copacabana. Acho lindo o ritual das pessoas vestidas de branco se misturando nas calçadas e na areia. 

É como se conhecêssemos a todos e marcássemos um grande encontro. Parece que ligamos para estranhos e dizemos: …e como vamos nos reconhecer? Vou de branco! Fechado, eu também! E assim nos encontramos na praia, como antigos conhecidos que celebram juntos. 

Alguns anos arrisquei pensar em vestir outra cor. Mas na hora que estou quase pronta, me sinto como se estivesse traindo o grupo. Volto correndo e troco minha roupa por branca! Agora sim. 

Nem sempre posso passar no Rio e também aproveito em outros lugares. Mas, para mim, é muito importante que tenha água por perto. 

Nos dias de Natal e Ano Novo sempre houve muita festa nas casas da minha família. Quando minhas avós morreram, e as duas faleceram no mesmo ano, houve um longo luto. Respeitei esse luto e o entendi, mas nunca participei dele. Minha saudade das minhas avós é assunto meu e só foi tristeza nos primeiros meses, depois mudou. 

Felizmente, um dia minha mãe se cansou da tristeza de fim de ano e as festas voltaram a acontecer na casa dos meus pais. Agora é novamente um ponto de encontro para família e amigos. 

Nessa época, ainda penso nas minhas avós e em meus outros mortos. Lembro com o mesmo respeito dos canibais que digeríam seus adversários na esperança de incorporar seus dons. 

Quando minhas avós faleceram, deixaram heranças. Ambas tinham qualidades que admiro e não possuo. O que mais me impressionava era como eram mulheres de fé. Minha mãe herdou essa crença e hoje carrega o peso e a benção da fé da família. Herdei a proteção da alma de duas bruxas boas e o amor da terceira. E é por isso, e só por isso, que os deuses fazem vista grossa à minha displicência, ao meu senso crítico cáustico e à minha arrogância atrevida em sempre achar que posso tudo. Sabem que isso é assunto nosso, das mulheres da casa. E é também com uma mulher que acerto as contas no final. 

No último dia do ano sou puxada para o mar. Depois da meia-noite, preciso me encontrar com a água, na forma em que ela estiver. Volto ao meu elemento natural para dele sair renascida. Mergulho com meu ceticismo e descrença e levanto com os cabelos mais compridos. Nesse dia me permito a contradição e o alívio da fé. Pulo as sete ondas e me lembro que, apesar do meu ateísmo, sou filha de Iemanjá. 

66 – E saiu meu NIE

O documento de identidade para estrangeiros aqui na Espanha se chama NIE. O meu, finalmente saiu. Após oito meses de espera, nem posso dizer que foi um parto prematuro, pois nada que sugira antecipação é adequado. Não é que estivesse ilegal no país, enquanto você está no processo e cumprindo todos os passos, pode continuar morando legalmente. Mas você só sente que a coisa toda funcionou quando tem sua carteirinha de identidade. 

Esse processo de nova documentação é uma coisa muito estranha. No Brasil, tenho carteira de identidade desde os doze anos de idade. Antes disso, já tinha as carteirinhas de estudante do colégio. Ou seja, desde que me entendo por gente, sempre tive documento. Entretanto, nunca percebi sua importância até que passei a ser uma “imigrante”. 

Começa com o termo “imigrante”. Soa como algo alienígena, como se o planeta terra não fosse único. O termo nos EUA, inclusive, é “alien”. É como se todo seu passado fosse nada de repente e você só voltasse a ser humano quando seus documentos locais estiverem na sua mão, fisicamente falando. Daí um dia esse documento chega e você percebe que é exatamente a mesma pessoa. O céu não abre, não tocam trombetas nem há uma banda na sua porta para te receber. É só parte do procedimento. Resulta que a carteira de identidade é só a carteira, não a identidade. 

Não aparece no meu documento que fui convidada a vir, que pagava minhas contas ou que sou honesta. Muito menos fez alguma diferença no meu sotaque. É só um pedaço de plástico com minha foto. Alías uma foto que nem parece mais comigo de tanto que demorou a sair. 

E a pergunta nesse momento é, deveria voltar? Quero voltar? Por que não volto? E a dura verdade é que tenho sérias dúvidas se quando voltar, e se voltar a morar no meu país, me sentirei brasileira. 

Não é uma reclamação, a escolha foi minha. Sou do tipo tubarão, se parar morro e sei disso. É só o preço que se paga e não é baixo. Não estou triste nem só, acho que é apenas o inverno. Talvez por isso goste tanto da primavera. 

No dia em que busquei meu documento, uma figura me chamou atenção por duas vezes. A primeira vez, quando em algum momento olhei para ver quem era o primeiro da fila. Era um homem negro, muito alto, com um rosto tão bem traçado que parecia um desenho animado. Ele devia estar morto de frio, porque começou a enrolar seu cachecol em volta da cabeça até que só os olhos ficaram de fora. Fez isso com uma habilidade de quem está acostumado a fazê-lo para se proteger do sol, como um tuareg. Fiquei pensando, talvez seja outra criatura dos trópicos, como eu, tentando se habituar com o frio. Esqueci, mas alguns minutos mais tarde, o vi saindo com seu documento na mão. O lenço não estava mais no rosto e, olhando seu NIE, abriu um sorriso tão largo que quase me fez valer à pena a hora perdida na espera da fila. Era o sorriso que havia planejado dar e não dei. Acho que ele é mais sábio que eu.

68 – O Natal e as coincidências

Passamos o Natal em Madri, aqui em casa mesmo. Jantaram conosco um casal de amigos muito queridos e seu filho. Foi surpreendentemente bom, pois não digo que não bateu uma saudade, mas depois da ceia, fomos para internet e vi pela câmera uma parte da minha família em uma festa que me pareceu animadíssima. 

Meus pais e meu irmão foram passar o Natal em Belo Horizonte, a maioria da família por parte do meu pai está lá. Na casa da minha tia, meu primo instalou uma webcam e pudemos fazer um encontro virtual. Além dos meus pais e meu irmão, vi meu avô, meus tios e primos, com direito ao fundo musical do meu tio tocando carinhoso e a aparição da mais nova priminha que nasceu quando eu já estava fora do Brasil, uma fofa! Viva a tecnologia! 

Também falamos por telefone com a parte da família do Luiz. Pena que não foi com o video, pois a imagem é sempre muito forte, mas também foi bem gostoso. É sempre bom saber que quem a gente gosta está bem e bem acompanhado. 

Aqui em casa, fiz o tradicional lombo de porco, recheado de damasco e pêssego, coberto por uma camada de presunto cru. Minha amiga trouxe o peru e uma cheese cake deliciosa. E claro, havia os básicos arroz branco, bem refogado, e uma farofinha na manteiga e alho. Acompanhados da sequência campeã de cava, vinho tinto português e um vinho de sobremesa catalão. 

De presentes, ganhei um tambor do Luiz e dei uma bota de esquiar para ele. O Jack, nosso famoso gato, ganhou uma poção extra de patê, além do direito a permanecer na festa. Nossos amigos, conhecendo nossa fama de gulosos, nos deram uma lata de biscoitos amanteigados dinamarqueses. 

E agora que contei o Natal, vamos às coincidências. Nós fomos padrinhos de casamento desses amigos, há uns cinco anos atrás, no Brasil. Nessa época, todos nós morávamos em São Paulo. Depois disso, eles foram para Suécia e nós para os Estados Unidos. Esse ano, mudamos juntos para Madri, por caminhos e motivos diferentes, quase no mesmo mês! 

Achou pouco? Então, conto mais uma. Uns dois dias antes do Natal, recebi um presente muito bacana, fui aceita na pós-graduação da Universidade Complutense, no curso de Teoria e Prática em Arte Contemporânea. Na verdade, fui aceita junto com uma amiga brasileira que preciso voltar no tempo para contar a história. Na minha época de colégio, estudava em Brasília e com uns doze anos conheci essa amiga. Depois disso, o mundo deu muitas voltas, mudei várias vezes, nos encontramos e desencontramos pela vida. No ano passado, morando em Atlanta, um dos meus passatempos era buscar amigos perdidos pela internet. Acabei achando essa amiga e fiz contato. Ela respondeu e descobri que sua irmã morava em Madri, cidade para onde já sabia que me mudaria. No início desse ano, quando morava aqui, ela veio visitar sua irmã e nos reencontramos. Curiosamente, tínhamos muitos pontos em comum e um interesse na mesma área, artes. Daí começamos a buscar cursos para fazer e tal. Encurtando a história, vinte e quatro anos depois, estudaremos juntas outra vez, agora aqui em Madri! 

Continuando, essa não é exatamente uma coincidência, mas um capricho do destino. Morando nos Estados Unidos, conhecemos um amigo americano que estava em plena crise existencial, tentando mudar sua vida radicalmente. Essa história é bem longa, mas também encurtando um pouco, com nossa vinda para a Espanha ele ficou muito inspirado e achou que poderia ser a mudança que ele tanto desejava. Nos visitou como hóspede, há alguns meses atrás e esse mês veio com a esposa para que ela também conhecesse a cidade. Pois não é que também estão tentando se mudar para cá! 

Será que Madri está na moda? 

No dia 26 de dezembro, chega um casal de amigos para passar o reveillon conosco. Ela é brasileira, a conheci no Rio de Janeiro, quando ainda solteiras morávamos lá. Ela foi nossa madrinha de casamento. Depois disso, conheceu seu marido alemão em Nova York e foram morar em Munique. Agora, moramos todos na Europa. Não chega a ser a mesma cidade, mas acho que pode entrar para o grupo de coincidências. 

Enfim, voltando às festas, foi um feliz Natal. Agora é esperar a virada do ano, mas essa é uma outra história… 

69 – Os Idiomas dentro da Espanha

Quando te perguntam que idioma se fala na Espanha, qual é a resposta mais óbvia? Espanhol, claro! Certo? Médio. 

O castellano é apenas uma das quatro línguas que se fala na Espanha. Isso sem falar dos sotaques, que às vezes soam como dialetos de tão distintos! 

Vamos por partes, ao noroeste, acima de portugal, há uma região chamada Galícia, onde se fala gallego. É quase um misto de castellano com português. Inclusive, olha que legal, se você fala “portunhol” e não quer admitir, diga que fala gallego. Muito parecido! 

Ao norte, temos a região Basca, onde se fala euskara. Nem se parece com espanhol! Francamente, não entendo chongas ao cubo! 

Pelo leste, que inclui Barcelona e Valência, se fala  catalão. Quer dizer, em Valência, eles dizem que falam valenciano, mas para mim e boa parte dos espanhóis é a mesma coisa. Esse dá para entender, se falado devagar. Algumas palavras lembram o português do Brasil, sem o cantado de Portugal. 

E no resto, que inclui Madri, se fala o castellano, conhecido mundialmente como espanhol.  

Entretanto, em algumas regiões ao sul, o sotaque é tão marcado que parece mudar a língua. Por exemplo, a palavra “escucha” (escuta), soa como “úushaa”. A palavra “quitado”(tirado), soa como “quitao”. Eles engolem “d”, “s” e sabe-se lá mais o que! 

Sabendo disso, não parece incrível que no Brasil, com esse tamanho todo, a gente ainda consiga falar a mesma língua! 

1 – O caminho mais curto ao paraíso pode passar pelo inferno

Meu primeiro ataque de cólera sério com o mundo foi logo após terminar a faculdade, pelo menos que me lembre. Não que fosse exatamente calminha, mas não sou de me queixar da vida. Às vezes, saio praguejando um pouco, entretanto, estou falando daqueles chiliques mesmo, que você toca o fundo do poço e por alguns momentos tem vontade de não subir. 

Pois o meu primeiro foi no fim da faculdade, parecia haver uma nuvenzinha negra na minha cabeça. Nos meus planos, a essa altura eu já deveria estar morando sozinha e me sustentando, isso era muito importante para mim. Acontece que, por ter mudado de faculdade logo no início do curso, meus créditos ficaram uma bagunça e no último semestre, precisei fazer apenas três matérias, sendo uma pela manhã, uma à tarde e outra à noite, parecia uma piada de mal gosto. Assim que precisei deixar o trabalho, pois não me sobrou nem um período livre. A outra opção era adiar minha formatura por mais um ano, optei pela formação. 

Nesse mesmo ano, participei do famoso programa de trainee de uma indústria de bebidas, era mais difícil que vestibular, coisa de 400 bons candidatos para 20 vagas. Fui até a última entrevista, que foi fatalmente marcada para o mesmo dia em que recebi antes a notícia da morte da minha avó. Não sei se em outras condições teria conseguido entrar na empresa, mas certamente não fui capaz de ir tão bem na última etapa. Meus nervos estavam à flor da pele, e em um momento onde se contam os detalhes, isso não ajudou.  

Aliás, também nesse mesmo ano, alguns meses antes, também morreu minha outra avó, as duas se foram quase juntas e houve um período de luto forte em casa. Completando o drama mexicano, namorava um dependente químico, que acreditava que eu era a salvação da sua vida, e eu, parte por inexperiência e parte por vaidade, acreditei. Um inferno! 

O chute no pau da barraca foi logo após a formatura, quando fui recusada em um emprego porque estava super estimada para o cargo. Como assim? Eu recebi um não porque era melhor do que eles queriam? Eles estavam certíssimos, mas não podia enxergar isso naquele momento e foi a gota d’água para minha explosão.  

Eu me rebelei contra o mundo! Estava fazendo tudo certo, tudo que seria importante para o meu futuro, tudo que escutei a vida inteira que me garantiria o sucesso, sinceramente estava tentando fazer o bem e fazer direito. E a mensagem que recebia era que não adiantava, parecia que estava patinando no mesmo lugar. 

Na virada do ano, rompi com tudo e literalmente fugi do Rio de Janeiro. Meus pais adoraram, para eles estava rompendo com o namorado que ninguém gostava, ainda que não soubessem da missa a metade, mas acredito que havia o instinto de que ali havia algo errado. Para mim era muito mais que isso, era uma maneira de ir embora, de deixar para trás um ano de merda que achei que poderia ser minha vida. 

Fui para Cabo Frio com uma amiga e ali conheci outras, fomos juntas para Búzios no reveillon, no mesmo dia. Foi amizade instantânea. Com uma delas, que vivia uma situação muito parecida à minha, a empatia foi imediata e nos tornamos grandes amigas. Tomei um porre histórico, daqueles de roubar bebida de macumba! Chorei o que podia e não podia. Paguei mico e não me importou. Lavei a alma e desinfetei com álcool. Nessa época, por algum motivo inexplicável, quando bebia começava a falar francês. 

Por outra coincidência impressionante, no meio daquela muvuca, encontramos meu irmão, junto com os irmãos da amiga que foi comigo para Cabo Frio. Considerando que era reveillon, à noite, na praia, e com uma multidão em volta, foi um tanto bizarro, mas divertido. Voltamos juntos para casa. 

No dia seguinte, tinha ressaca, é óbvio, mas me sentia bem. O fato do ano ter mudado me trouxe uma dose de otimismo. Talvez mais do que otimismo, me trouxe a vontade de mudar também. Era como se tivesse ganho fôlego para nadar mais um pouco, mas ainda não sabia para que lado. Tinha algumas escolhas importantes a fazer. 

Alguns dias depois seria minha festa de formatura, no Rio de Janeiro. Meus pais haviam pago pela festa e eu deveria voltar. Eu não voltei, me recusei a participar. Para mim era um símbolo de fracasso, de um esforço inútil, com pessoas que nem eram minhas amigas.  

Eu parei o tempo e me perguntei seriamente se tudo aquilo fazia algum sentido, se a vida valia a pena. No fundo, o que me questionava era se o esforço em seguir o caminho do bem e fazer as coisas consideradas corretas, me levaria a algum lugar. Não gosto de admitir, mas estive em dúvida entre o bem e o mal. 

Era possível que houvesse um caminho mais rápido e mais fácil, e por muito pouco acho que não optei pelo lado negro da força. Decidi que não voltaria para o Rio, ia ficar por ali, aproveitando a praia e sem planos. Enterrar a cabeça de avestruz na areia me parecia uma escolha tentadora e confortável. Eu poderia ter escolhido esse caminho, a grande amiga que conheci no reveillon escolheu e seu fim foi triste. Mas hoje estou falando do meu umbigo. 

Não demorou tanto assim e recebi uma ligação dos meus pais. Uma empresa multinacional estava me procurando para uma entrevista. O engraçado é que era um lugar para onde não havia enviado nenhum dos meus 939 currículos. Eu podia ser um pouco rebelde, mas não era idiota e resolvi tentar mais uma vez. Talvez tenha sorte, talvez seja protegida, mas talvez, e preciso acreditar nisso, minha natureza seja boa. Voltei para casa. 

A empresa era de embalagens de alumínio para bebidas, ou seja, ainda que nunca tivesse provas porque é informação confidencial, tudo indica que foi alguém da tal empresa onde perdi a vaga de trainee que me recomendou para lá. Fui contratada em seguida, com um ótimo salário para a minha idade e experiência. De uma certa maneira, voltava para os trilhos. E a propósito, foi lá que conheci Luiz. 

Há poucos meses nessa empresa, recebi outra ligação. Um banco estava premiando os primeiros colocados da faculdade. Foi quando descobri que havia sido a primeira colocada do curso, eu não sabia, afinal de contas, nem fui à minha formatura. Com o dinheiro do prêmio, paguei minha pós-graduação. Achei que era o melhor a fazer, reinvestir e acreditar novamente que o esforço compensaria. 

Às vezes, algum acontecimento faz com que várias pontas se unam e eu consiga entender que um ciclo foi fechado. Esse foi um deles. Para mim foi um tapa de luva, como se de repente uma voz me respondesse com outra pergunta, você não queria saber se seu esforço seria reconhecido? Se valia a pena? Valia. 

O mesmo mundo que praguejei conspirava a meu favor e eu não percebi, porque tomei como base um momento que ainda não era o fim. De perto, não vi a imagem em perspectiva e quase tomo o caminho equivocado. Eu nunca fui muito paciente. Fiquei com a história e a lição, sem saber que sensação se repetiria no futuro. 

No fim do ano passado, também toquei o fundo do poço e perdi a paciência outra vez. O lamentável sentimento de vítima impotente. Por que me aborreci tanto? E de novo a mesma pergunta, será que vale a pena?  

Eu não quero sofrer de graça, sou contra. Escrevo crônicas e não poesia, só sofro o necessário. 

O problema é que tinha outros planos para os 38 anos, achava que seria mais, mais qualquer coisa. Qualquer coisa que pudesse ser definida. Um trabalho que não precisasse explicar o que era, um caminho. Ficar perdida aos vinte anos abala a esperança, mas você sabe que tem tempo; ficar perdida com quase quarenta, me pareceu ridículo. 

Parte desse sentimento se deve à situação. A impossibilidade de trabalhar legalmente, o eterno questionamento da identidade e da língua-pátria não ajudam muito. Mas faço mea culpa e acho que também interpretei isso de maneira limitada. Talvez tenha vestido a carapuça da imigrante discriminada antes mesmo que ela tenha sido posta na minha cabeça. É importante estar atenta a essas questões, mas a crítica só dói quando tem um mínimo de credibilidade, ou quando no fundo você acredita nela. 

Acho que o que me doeu tanto foi o fato de por um instante acreditar que não era nada mesmo. Que não faria diferença um visto de trabalho, porque talvez não soubesse o que fazer com ele. Porque era a representação literal de que eu não tinha mais o que fazer, que meu esforço de um dia apostar em um sonho não valia mais merda nenhuma. Valeu um dia, mas esse dia passou e preciso seguir adiante. 

Tempere-se essa panela com o fato de que minha família está envelhecendo e vez por outra me bate a preocupação de não estar fazendo o suficiente. Meu avô faleceu ano passado e eu não estava lá. Será que toda essa distância vale a pena? E os amigos que ficaram? Fico sempre oscilando entre a pretenção e a culpa, mudaria se eu estivesse lá? 

Na hora da raiva não vi nada disso, só queria ir embora. Pela segunda vez, praguejei contra o mundo e minha vida. E me vinha na cabeça toda a história do fim da faculdade. Era engraçado porque a situação era completamente distinta, mas depois entendi que o que se parecia era a sensação, os sentimentos. A diferença é que dessa vez já havia aprendido que precisava de um pouco mais de distância para entender o quadro. E pouco a pouco a pintura impressionista começou a fazer sentido. 

Passeei muito por Madri com olhar de despedida e, ao invés disso me trazer alívio, me deixou melancólica. Quando conversava com meus amigos espanhóis, me sentia injusta pela sua simpatia e consideração. Sem perceber, quase deixei as pessoas mesquinhas ganharem, elas não são maioria, só fazem mais barulho, aqui ou em qualquer lugar do planeta. 

E quando achei que não tinha mais nada a perder, as pontas das histórias começaram a se juntar novamente. Oportunidades apareceram, os amigos se aproximaram, a família se aproximou, o peso da cruz foi amenizado e levei outro tapa de luva. Ainda que esbravejasse, a vida continuava a me oferecer a outra face e a me lembrar da lição do perdão. 

Meus amigos vieram passar Natal em casa, meu irmão veio do Brasil passar o reveillon. O ano passou e a ira ficou para trás. Entrei zerada e de alma lavada, sóbria e serena. 

Não sei que caminhos tomarei esse ano, mas estou disposta a mudar se for necessário, quantas vezes for necessário. Não estou mais cansada. É que às vezes, nossas apostas são tão altas, custam tanto, que qualquer mudança de curso depois tem gosto de fracasso. Dá vergonha ter que recomeçar. Mas pensando bem, foi sempre quando arrisquei mais que fui mais feliz. Quando fazemos nossas escolhas, elas são sempre as certas, só se tornam erradas se a gente não souber corrigir o curso ou não quiser admitir que necessita de correção. Eu posso recomeçar e pode ser bom. 

Logo depois do reveillon, fui para Paris, em uma viagem cheia de metáforas e conclusões de ciclos. Caminhava pelas calçadas lembrando do final do filme “Henry e June”, gosto quando a Anais rompe a relação e sai arrasada, refletindo que odiou aquelas ruas porque elas a levavam para longe dele, mas em seguida ela amou aquelas ruas porque no fundo, sabia que eram as mesmas que a trariam de volta. 

No último dia da viagem, me recusei a pagar o preço absurdo do café do hotel e resolvi tomá-lo na rua. Saí sozinha caminhando com intimidade de quem conhece a cidade, entrei pela Rue Scribe em direção ao Boulevard des Capucines, sabia que logo ao atravessar havia um café com um cappuccino divino. Sentei de frente para a rua, olhando o movimento das pessoas, e decidi que era um bom momento para fazer uma retrospectiva do ano, da vida. Estou próxima aos quarenta, esse ano farei 39, e o que fiz? O que realizei? Onde estou? 

Acontece que não consegui lembrar de nada específico, só me vinha a estranheza da naturalidade em que sentei ali. Eu me senti uma senhora e não foi ruim, foi só uma consciência do tempo. Não me fez velha, me trouxe segurança e tranquilidade. Senti conforto na própria pele e essa nem sempre me foi uma sensação comum.  Comecei pensando que moro na Espanha, em Madri, e não é o primeiro lugar que moro fora do meu país de origem. Quantos kilômetros e um oceano de distância entre o que eu fui. Estava sentada em Paris, que já nem me lembro quantas vezes estive, totalmente à vontade, sem deslumbramentos, simplesmente tomando um café. Em paz. Saboreei a experiência com gosto de cappuccino. 

Não importa mais o que fiz ou o que tenho, mas no que isso me converteu, a pessoa que sou. Não adianta a gente ter tanta certeza para onde vai, porque os caminhos podem mudar. As perguntas mudam.  Felizmente, algumas das respostas são as mesmas: sim, ainda tenho tempo, ainda sei perdoar e ainda acredito que vale a pena. 

70 – O parque do Retiro e seus tambores

Moro perto do parque do Retiro. É como um “central park” de Madri. Grande, democrático, agradável e bem conservado. Ali você pode praticar sua corridinha diária (a sua, porque eu não corro nada!), sentar pela grama se o tempo favorecer, visitar os centros culturais com exposições interessantes, andar de pedalinho ou barquinhos a remo, namorar, brincar com os filhos, enfim, várias opções para o dia! 

Uma coisa me chamou atenção logo na primeira vez que fui lá, um som de tambores. A medida que chegamos perto do laguinho, esse som vai aumentando e o sigo hipnotizada até encontrá-lo. Em frente ao lago, há um tipo de monumento, formado por uma construção de colunas em semi-círculo. Nesse local, principalmente aos domingos, se encontram muitos jovens com tambores e iniciam uma batucada que me soa como um mantra tribal. Nem sei se eles se conhecem ou vão chegando e se agrupando, são muitos. Não há um ensaio nem uma música específica, o som parece que vem de dentro, como se buscasse uma origem há muito tempo atrás. E não é que fica bom? 

Daí, outras pessoas vão se agrupando em volta, algumas começam a dançar e outras simplesmente se sentam pelas escadas e aproveitam o sol. Assim como eles, é ali que também tenho vontade de ficar. É engraçado essa coisa do ser humano gostar de se agrupar. Por que a gente faz isso? Parece um instinto de sobrevivência que fala mais alto até quando não corremos risco nenhum. 

Quando Luiz me perguntou o que queria de Natal, não tive dúvidas: um tambor! Ganhei um, chamado Djembe, sua origem é o oeste africano (Mali, Guinea, Senegal) . Era utilizado para cerimônias, rituais de passagem, adorações ancestrais, rituais guerreiros e danças. Importa que é um tambor e há anos quero um. Agora, normalmente depois do café da manhã, sempre batuco um pouco, de mansinho para os vizinhos não reclamarem. Será que na primavera tomo coragem de levar meu tambor para passear no parque do Retiro?