Meu primeiro ataque de cólera sério com o mundo foi logo após terminar a faculdade, pelo menos que me lembre. Não que fosse exatamente calminha, mas não sou de me queixar da vida. Às vezes, saio praguejando um pouco, entretanto, estou falando daqueles chiliques mesmo, que você toca o fundo do poço e por alguns momentos tem vontade de não subir.
Pois o meu primeiro foi no fim da faculdade, parecia haver uma nuvenzinha negra na minha cabeça. Nos meus planos, a essa altura eu já deveria estar morando sozinha e me sustentando, isso era muito importante para mim. Acontece que, por ter mudado de faculdade logo no início do curso, meus créditos ficaram uma bagunça e no último semestre, precisei fazer apenas três matérias, sendo uma pela manhã, uma à tarde e outra à noite, parecia uma piada de mal gosto. Assim que precisei deixar o trabalho, pois não me sobrou nem um período livre. A outra opção era adiar minha formatura por mais um ano, optei pela formação.
Nesse mesmo ano, participei do famoso programa de trainee de uma indústria de bebidas, era mais difícil que vestibular, coisa de 400 bons candidatos para 20 vagas. Fui até a última entrevista, que foi fatalmente marcada para o mesmo dia em que recebi antes a notícia da morte da minha avó. Não sei se em outras condições teria conseguido entrar na empresa, mas certamente não fui capaz de ir tão bem na última etapa. Meus nervos estavam à flor da pele, e em um momento onde se contam os detalhes, isso não ajudou.
Aliás, também nesse mesmo ano, alguns meses antes, também morreu minha outra avó, as duas se foram quase juntas e houve um período de luto forte em casa. Completando o drama mexicano, namorava um dependente químico, que acreditava que eu era a salvação da sua vida, e eu, parte por inexperiência e parte por vaidade, acreditei. Um inferno!
O chute no pau da barraca foi logo após a formatura, quando fui recusada em um emprego porque estava super estimada para o cargo. Como assim? Eu recebi um não porque era melhor do que eles queriam? Eles estavam certíssimos, mas não podia enxergar isso naquele momento e foi a gota d’água para minha explosão.
Eu me rebelei contra o mundo! Estava fazendo tudo certo, tudo que seria importante para o meu futuro, tudo que escutei a vida inteira que me garantiria o sucesso, sinceramente estava tentando fazer o bem e fazer direito. E a mensagem que recebia era que não adiantava, parecia que estava patinando no mesmo lugar.
Na virada do ano, rompi com tudo e literalmente fugi do Rio de Janeiro. Meus pais adoraram, para eles estava rompendo com o namorado que ninguém gostava, ainda que não soubessem da missa a metade, mas acredito que havia o instinto de que ali havia algo errado. Para mim era muito mais que isso, era uma maneira de ir embora, de deixar para trás um ano de merda que achei que poderia ser minha vida.
Fui para Cabo Frio com uma amiga e ali conheci outras, fomos juntas para Búzios no reveillon, no mesmo dia. Foi amizade instantânea. Com uma delas, que vivia uma situação muito parecida à minha, a empatia foi imediata e nos tornamos grandes amigas. Tomei um porre histórico, daqueles de roubar bebida de macumba! Chorei o que podia e não podia. Paguei mico e não me importou. Lavei a alma e desinfetei com álcool. Nessa época, por algum motivo inexplicável, quando bebia começava a falar francês.
Por outra coincidência impressionante, no meio daquela muvuca, encontramos meu irmão, junto com os irmãos da amiga que foi comigo para Cabo Frio. Considerando que era reveillon, à noite, na praia, e com uma multidão em volta, foi um tanto bizarro, mas divertido. Voltamos juntos para casa.
No dia seguinte, tinha ressaca, é óbvio, mas me sentia bem. O fato do ano ter mudado me trouxe uma dose de otimismo. Talvez mais do que otimismo, me trouxe a vontade de mudar também. Era como se tivesse ganho fôlego para nadar mais um pouco, mas ainda não sabia para que lado. Tinha algumas escolhas importantes a fazer.
Alguns dias depois seria minha festa de formatura, no Rio de Janeiro. Meus pais haviam pago pela festa e eu deveria voltar. Eu não voltei, me recusei a participar. Para mim era um símbolo de fracasso, de um esforço inútil, com pessoas que nem eram minhas amigas.
Eu parei o tempo e me perguntei seriamente se tudo aquilo fazia algum sentido, se a vida valia a pena. No fundo, o que me questionava era se o esforço em seguir o caminho do bem e fazer as coisas consideradas corretas, me levaria a algum lugar. Não gosto de admitir, mas estive em dúvida entre o bem e o mal.
Era possível que houvesse um caminho mais rápido e mais fácil, e por muito pouco acho que não optei pelo lado negro da força. Decidi que não voltaria para o Rio, ia ficar por ali, aproveitando a praia e sem planos. Enterrar a cabeça de avestruz na areia me parecia uma escolha tentadora e confortável. Eu poderia ter escolhido esse caminho, a grande amiga que conheci no reveillon escolheu e seu fim foi triste. Mas hoje estou falando do meu umbigo.
Não demorou tanto assim e recebi uma ligação dos meus pais. Uma empresa multinacional estava me procurando para uma entrevista. O engraçado é que era um lugar para onde não havia enviado nenhum dos meus 939 currículos. Eu podia ser um pouco rebelde, mas não era idiota e resolvi tentar mais uma vez. Talvez tenha sorte, talvez seja protegida, mas talvez, e preciso acreditar nisso, minha natureza seja boa. Voltei para casa.
A empresa era de embalagens de alumínio para bebidas, ou seja, ainda que nunca tivesse provas porque é informação confidencial, tudo indica que foi alguém da tal empresa onde perdi a vaga de trainee que me recomendou para lá. Fui contratada em seguida, com um ótimo salário para a minha idade e experiência. De uma certa maneira, voltava para os trilhos. E a propósito, foi lá que conheci Luiz.
Há poucos meses nessa empresa, recebi outra ligação. Um banco estava premiando os primeiros colocados da faculdade. Foi quando descobri que havia sido a primeira colocada do curso, eu não sabia, afinal de contas, nem fui à minha formatura. Com o dinheiro do prêmio, paguei minha pós-graduação. Achei que era o melhor a fazer, reinvestir e acreditar novamente que o esforço compensaria.
Às vezes, algum acontecimento faz com que várias pontas se unam e eu consiga entender que um ciclo foi fechado. Esse foi um deles. Para mim foi um tapa de luva, como se de repente uma voz me respondesse com outra pergunta, você não queria saber se seu esforço seria reconhecido? Se valia a pena? Valia.
O mesmo mundo que praguejei conspirava a meu favor e eu não percebi, porque tomei como base um momento que ainda não era o fim. De perto, não vi a imagem em perspectiva e quase tomo o caminho equivocado. Eu nunca fui muito paciente. Fiquei com a história e a lição, sem saber que sensação se repetiria no futuro.
No fim do ano passado, também toquei o fundo do poço e perdi a paciência outra vez. O lamentável sentimento de vítima impotente. Por que me aborreci tanto? E de novo a mesma pergunta, será que vale a pena?
Eu não quero sofrer de graça, sou contra. Escrevo crônicas e não poesia, só sofro o necessário.
O problema é que tinha outros planos para os 38 anos, achava que seria mais, mais qualquer coisa. Qualquer coisa que pudesse ser definida. Um trabalho que não precisasse explicar o que era, um caminho. Ficar perdida aos vinte anos abala a esperança, mas você sabe que tem tempo; ficar perdida com quase quarenta, me pareceu ridículo.
Parte desse sentimento se deve à situação. A impossibilidade de trabalhar legalmente, o eterno questionamento da identidade e da língua-pátria não ajudam muito. Mas faço mea culpa e acho que também interpretei isso de maneira limitada. Talvez tenha vestido a carapuça da imigrante discriminada antes mesmo que ela tenha sido posta na minha cabeça. É importante estar atenta a essas questões, mas a crítica só dói quando tem um mínimo de credibilidade, ou quando no fundo você acredita nela.
Acho que o que me doeu tanto foi o fato de por um instante acreditar que não era nada mesmo. Que não faria diferença um visto de trabalho, porque talvez não soubesse o que fazer com ele. Porque era a representação literal de que eu não tinha mais o que fazer, que meu esforço de um dia apostar em um sonho não valia mais merda nenhuma. Valeu um dia, mas esse dia passou e preciso seguir adiante.
Tempere-se essa panela com o fato de que minha família está envelhecendo e vez por outra me bate a preocupação de não estar fazendo o suficiente. Meu avô faleceu ano passado e eu não estava lá. Será que toda essa distância vale a pena? E os amigos que ficaram? Fico sempre oscilando entre a pretenção e a culpa, mudaria se eu estivesse lá?
Na hora da raiva não vi nada disso, só queria ir embora. Pela segunda vez, praguejei contra o mundo e minha vida. E me vinha na cabeça toda a história do fim da faculdade. Era engraçado porque a situação era completamente distinta, mas depois entendi que o que se parecia era a sensação, os sentimentos. A diferença é que dessa vez já havia aprendido que precisava de um pouco mais de distância para entender o quadro. E pouco a pouco a pintura impressionista começou a fazer sentido.
Passeei muito por Madri com olhar de despedida e, ao invés disso me trazer alívio, me deixou melancólica. Quando conversava com meus amigos espanhóis, me sentia injusta pela sua simpatia e consideração. Sem perceber, quase deixei as pessoas mesquinhas ganharem, elas não são maioria, só fazem mais barulho, aqui ou em qualquer lugar do planeta.
E quando achei que não tinha mais nada a perder, as pontas das histórias começaram a se juntar novamente. Oportunidades apareceram, os amigos se aproximaram, a família se aproximou, o peso da cruz foi amenizado e levei outro tapa de luva. Ainda que esbravejasse, a vida continuava a me oferecer a outra face e a me lembrar da lição do perdão.
Meus amigos vieram passar Natal em casa, meu irmão veio do Brasil passar o reveillon. O ano passou e a ira ficou para trás. Entrei zerada e de alma lavada, sóbria e serena.
Não sei que caminhos tomarei esse ano, mas estou disposta a mudar se for necessário, quantas vezes for necessário. Não estou mais cansada. É que às vezes, nossas apostas são tão altas, custam tanto, que qualquer mudança de curso depois tem gosto de fracasso. Dá vergonha ter que recomeçar. Mas pensando bem, foi sempre quando arrisquei mais que fui mais feliz. Quando fazemos nossas escolhas, elas são sempre as certas, só se tornam erradas se a gente não souber corrigir o curso ou não quiser admitir que necessita de correção. Eu posso recomeçar e pode ser bom.
Logo depois do reveillon, fui para Paris, em uma viagem cheia de metáforas e conclusões de ciclos. Caminhava pelas calçadas lembrando do final do filme “Henry e June”, gosto quando a Anais rompe a relação e sai arrasada, refletindo que odiou aquelas ruas porque elas a levavam para longe dele, mas em seguida ela amou aquelas ruas porque no fundo, sabia que eram as mesmas que a trariam de volta.
No último dia da viagem, me recusei a pagar o preço absurdo do café do hotel e resolvi tomá-lo na rua. Saí sozinha caminhando com intimidade de quem conhece a cidade, entrei pela Rue Scribe em direção ao Boulevard des Capucines, sabia que logo ao atravessar havia um café com um cappuccino divino. Sentei de frente para a rua, olhando o movimento das pessoas, e decidi que era um bom momento para fazer uma retrospectiva do ano, da vida. Estou próxima aos quarenta, esse ano farei 39, e o que fiz? O que realizei? Onde estou?
Acontece que não consegui lembrar de nada específico, só me vinha a estranheza da naturalidade em que sentei ali. Eu me senti uma senhora e não foi ruim, foi só uma consciência do tempo. Não me fez velha, me trouxe segurança e tranquilidade. Senti conforto na própria pele e essa nem sempre me foi uma sensação comum. Comecei pensando que moro na Espanha, em Madri, e não é o primeiro lugar que moro fora do meu país de origem. Quantos kilômetros e um oceano de distância entre o que eu fui. Estava sentada em Paris, que já nem me lembro quantas vezes estive, totalmente à vontade, sem deslumbramentos, simplesmente tomando um café. Em paz. Saboreei a experiência com gosto de cappuccino.
Não importa mais o que fiz ou o que tenho, mas no que isso me converteu, a pessoa que sou. Não adianta a gente ter tanta certeza para onde vai, porque os caminhos podem mudar. As perguntas mudam. Felizmente, algumas das respostas são as mesmas: sim, ainda tenho tempo, ainda sei perdoar e ainda acredito que vale a pena.