… Marrocos, uma viagem diferente (final)

Chegou domingo, 9 de novembro, meu aniversário! Finalmente, faria os esperados 40 anos! Agora sim, era uma bauzaca que se preze!

Inevitavelmente, às cinco da matina acordamos com a oração, que nesse dia foi especialmente longa, ou assim pareceu.

Nos levantamos por volta das dez da manhã e tomamos um café sem pressa e sem grandes planos. Decidimos caminhar pelas ruas de Marrakech por nossa conta e risco.

A cidade já não me parecia perigosa, havia me acostumado. Mas podia ser bem confusa e não era muito difícil se perder nos becos e vielas, que mais pareciam labirintos sem nomes ou indicações. Nós não tínhamos mapa da Medina, havia um pregado na parede do Riad, o qual demos uma olhada para nos localizarmos melhor. Diferente do que falsamente se prega das mulheres, tenho um excelente senso de direção e detesto perguntar o caminho.

Pois saímos nós três, a pé, em direção à praça Jemaa el fna, principal da cidade. O início do trajeto era fácil, tinha memorizado. Até que chegamos a uma trifurcação. Sabia que o da direita era o caminho do carro, mas pela direção, seria o do meio ou o da esquerda. Começamos no do meio, mas Luiz achou que estava errado, voltou e pegou o da esquerda. Algumas pessoas nos olharam e um rapaz de bicicleta parou e perguntou onde estávamos indo. Nos avisou que aquele era o caminho para o curtume, se quiséssemos ir a praça, deveríamos seguir pelo meio.

O engraçado é que ele olhava para o Luiz com o olhar meio confuso, até que não aguentou e perguntou de onde ele era. Luiz respondeu, brasileiro. Ele sorriu, como quem finalmente entende a charada, dizendo que parecia um marroquino. Claro! Todo mundo achava que Luiz era árabe ou algo do gênero!

Depois desse episódio, acertamos todo o caminho, com meu irmão duvidando um pouco se sabíamos o que estávamos fazendo ou se deveríamos parar e perguntar. Mas Luiz e eu já estamos acostumados a sensação de descobrir trajetos e lugares, o que me parece bem mais divertido que perguntar.

 

É bem provável que a aparência do Luiz tenha nos livrado de um certo assédio. Muita gente reclama de ser abordada ao incômodo pelas ruas e mercados, mas nós passávamos bem tranquilos. Facilitou também estar de óculos escuros. Ao não saberem para onde olhava, não sabiam qual era meu interesse. O que me liberou para observar tudo em volta. Não quer dizer que ninguém falasse conosco, mas nada que fosse realmente desagradável.

Cada vez me sentia mais à vontade na cidade. Gosto de caminhar pelas ruas, e os “souks”, ou mercados, são um capítulo à parte. Visualmente é muito familiar à Andaluzia, sendo que na Espanha as coisas estão mais conservadas. Mas se nota claramente a influência cultural no sul espanhol.

A maioria das tendas é de roupas e objetos de decoração e são muito parecidas entre si. Pelo menos para mim, chamavam mais atenção as lojas de temperos e o aroma que exalam pelas ruas, tudo tem um pouco de cheiro de comida. Há muitos lugares para comer também e estão sempre movimentados, mas não nos atrevemos. Os açougues não tem refrigeração para as carnes, é tudo exposto nos balcões. Passamos por uma loja cheia de pequenos botijões de gás, o que me fez apressar o passo com medo daquilo explodir.

Os gatos passeiam livremente, parecem ser bem vindos. Vi gente alimentando e deixando água disponível. Já os cachoros se vê pouco. Na cultura muçulmana o cão é considerado sujo. O gato pode entrar em casa, o cachorro não.

Finalmente, vi uma roupa que me interessou. Luiz topou negociar para mim, porque eu não tenho o menor saco. Comprei uma túnica branca e prata comprida para usar na mesma noite e uma azul turquesa mais informal. Meu irmão também se animou para comprar para minha mãe e a namorada dele. Servi de modelo para todas as roupas e já não aguentava mais colocar tanta túnica!

É engraçado como prestam atenção em quem está passando pela rua. No meio de tanta gente, tentam identificar quem é da onde e se é um possível comprador. Passamos por um senhor sentado em frente a uma loja, no que ele nos diz em português arrastado: obrigada! Não sei como ouviu nossa conversa, já que nem falamos tão alto assim, mas puxou papo, perguntou da onde éramos e disse que tinha família em São Paulo. Conversamos um pouquinho, ele convidou para ver seus tapetes, agradecemos e nos despedimos.

Uma das coisas que os vendedores tentam fazer é apertar sua mão enquanto você passa na frente da loja. As pessoas ficam sem graça em não retribuir o aperto de mãos e quando você vê, já se envolveu em uma negociação chata. Um único vendedor tentou fazer isso comigo, mas ignorei. Depois, sei que na cultura muçulmana, um homem nunca deve estender a mão primeiro a uma mulher. Logo, também poderia usar a mesma prerrogativa. Luiz vinha logo atrás negando e ninguém me perturbou mais.

Afinal de contas, estava acompanhada do meu marido saudita e era uma moça de família, porque também nos seguia meu irmão. Fiquei de onda com Luiz, dizendo que os “brimos” estavam invejosos porque ele faturou a francesinha, nacionalidade que sempre me atribuem.

Passeamos pela caótica Jemaa el fna, que nesse momento estava até relativamente tranquila. Decidimos comer alguma coisa por ali. No primeiro dia, a guia nos indicou um restaurante na praça, dizendo que era confiável. Sabe-se lá o que isso significaria, mas Luiz achou o restaurante ao lado mais bonitinho. Realmente, parecia melhor, ainda que estivesse um pouco desconfiada. Arriscamos. Meu irmão e eu comemos um macarrão  meio sem graça, mas também sem maiores consequências. Verdade que já não aguentava mais tomar água com gás! Luiz se atreveu em um omelete, possível causador de uma dor de barriga por uma semana. Sobrevivemos, e a vista era ótima.

 

Na saída ainda fomos negociar uma mala para meu irmão, que agora com menos limite de peso por bagagem, precisava distribuir melhor suas coisas. Até que conseguiram bom preço, mais o Luiz, porque meu irmão também não tinha muita paciência para negociar. Eu saía de perto, demonstrando a maior indiferença possível, além de conveniente para mim, poderia servir na negociação.

Tivemos que voltar para o Riad de taxi, meu irmão se recusou a voltar arrastando a mala. Pois lá fomos nós na aventura de nos meter em um taxi, sem taxímetro é óbvio. Até que nem fomos muito roubados, só um pouquinho.

Quase chegando ao Riad, encontramos o gerente saindo, ia buscar as duas espanholas na praça. Perguntou se queríamos ir junto e topamos. Achava divertido andar de carro no meio daquela confusão, principalmente porque não era eu quem dirigia. Antes de chegar em Marrakech, cogitamos alugar um carro, coisa que nesse momento nos parecia a pior decisão do mundo!

Passeamos um pouquinho até encontrar as meninas. O gerente era divertido. Um marroquino muito sorridente, solteiro convicto e de aparente mentalidade aberta. Às vezes me parecia que queria ser amigo, mas tinha um pouco de receio de misturar a relação de trabalho. A simpatia em Marrakech sempre vem acompanhada de uma etiqueta com preço. A dele era natural, mas sabia deixar claro que estava trabalhando.

 

Chegamos todos ao Riad no fim da tarde. Eu me sentia como se morasse ali há algum tempo, havíamos visto tanta coisa. Tomamos mais chá, fumamos a shisha, eu pouco, com medo da alergia ao tabaco.

 

Chegou a hora do jantar e da nossa pequena comemoração familiar. Havia dito ao gerente que era meu aniversário e se ele poderia nos sugerir um lugar especial. Ele nos reservou no “Dar Dif”, não tenho certeza se escreve assim, pois não encontrei referências, mas em árabe “dar” significa “casa” e “dif”, hóspedes.

Vesti minha túnica branca comprida e me senti feliz por estar em um traje marroquino autêntico, quem sabe pareceria um pouco mais local. Na saída do Riad, pela primeira vez me senti observada. Luiz comentou, você está chamando atenção. E eu, mas não faz sentido, justo no dia que me vesti de marroquina? Será que estou vestida de noiva e não sei? Perguntamos ao guia e ele disse que não, era uma roupa de festa normal, bonita.

Bom, não entendemos bem. Talvez fosse o fato dele parecer árabe, comigo vestida com um traje marroquino, é possível que as pessoas esperassem que também usasse um véu. Ou simplesmente tivessem achado a roupa bonita.

Enfim, chegamos ao restaurante e era um lugar bem elegante, um enorme pátio interno coberto e de pé direito muito alto, azulejos em tons predominantemente azuis, chão de mármore, mesas grandes e bem espaçadas umas das outras, o que garantia privacidade nas conversas.

E sim, a recepcionista e todas as garçonetes tentavam falar com Luiz em árabe.

Duas mesas enormes, com mais de dez homens cada uma, parecia jantar de empresa. Fizeram um papel um pouco ridículo durante a dança do ventre. Fiquei na dúvida se estava mais interessados na moça ou nisso demonstrar uns para os outros. Homem é muito bobo! Mas a menina dançava muito bem.

A música era ao vivo e os músicos passearam um pouco pelo salão. O cantor parecia em transe eufórico, o sorriso mais intenso que vi e o olhar de quem estava em outro lugar. Tive vontade de entender o que ele estava cantando.

O jantar foi bem farto e a comida muito boa. Não há muita variação de cardápio, mas o tempero me agrada.

Um pouco depois de terminar, vejo uma mocinha saindo da porta da cozinha com uma torta de aniversário. Frio na espinha, isso só pode ser para mim! Pois é, o gerente do Riad me dedurou e vieram as garçonetes e os músicos cantar parabéns em alguns idiomas. Talvez em outra época tivesse morrido de vergonha, mas a verdade é que curti e aproveitei.

 

Telefonamos para meus pais, que estavam com vontade de estar lá também. Ligamos para uma amiga para acordá-la, ela tem mania de fazer isso com a gente e foi nossa revanche. No mais, curtimos a noite e tomamos champagne.

Pedimos uma champagne árabe, que me pareceu excelente. Na hora de pagar a conta, descobrimos porque. Haviam “substituído” por Dom Pérignon, cujo preço era ligeiramente diferente. Nem quis saber, estava acompanhada de dois cavalheiros e não ia estragar meu aniversário justo no final, que resolvessem enquanto fui ao toilet. Estavam com cara meio aborrecida quando voltei, mas não tive vontade de perguntar.

Em Marrakech, não importa o nível do lugar onde você esteja, é preciso prestar atenção.

Na saída, o gerente do Riad nos esperava. Meu irmão, para variar, queria esticar a noite, mas todos estávamos um pouco cansados e decidimos encerrar por ali mesmo.

Nosso vôo de volta sairía no fim da manhã seguinte. Fui embora com gosto de quero mais, me sentia diferente de quando cheguei ali, literalmente mais velha, mas em um bom sentido.

Os 40 que esperei tanto chegaram, tão longe e tão perto de casa. Da maneira que mereci, sem fantasias, de verdade, com o que é melhor e o que é pior, humano. Ninguém pisa na África e volta indiferente. Mas cada um com sua própria experiência.

Tenho avaliado muito as relações de confiança. Passei os últimos anos forjando minha natureza em confiar nas pessoas e parar de ser tão autosuficiente. Eu realmente me esforcei. Agora já não sei. Sinto falta da sensação de imunidade que dava minha segurança em contar comigo.

Aprendi em Marrakech que tudo é relativo e tem um preço, até os sorrisos tem um preço. Às vezes, é mais honesto que seja em dinheiro.

Gosto das casas com pátio interno, dos riads, de construir meu próprio mundo protegido. Mas sinto muito falta das janelas abertas, caminhar na rua e observar as pessoas. Gosto de gente e que gostem de mim, mas essa recíproca nem sempre é verdadeira. E às vezes detesto gente e as coisas que são capazes de fazer, outras faço pior.

Como diria meu sábio e escatológico amigo, merdas cagadas não voltam ao cú. O jeito é seguir adiante, da melhor maneira possível.

Aprendi também que boa parte das minhas eternas angústias vem da consciência do fato de ter escolha. Eu tenho escolha e isso é muita coisa. Acabei de ver um monte de gente que não tem. Conheço um monte de gente que não tem.

Chegamos em Madrid no dia 10 de novembro, finalzinho da tarde. Cansada, mas feliz. Não deu muito tempo para descansar, nem para absorver tudo que tinha visto e aprendido. Na sexta-feira 13 estava marcada um festão em casa e ainda havia muito que organizar.

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