Há algum tempo, tenho notado que está me custando mais para escrever as crônicas. Assim como o “Vida de Caracol” chegou ao fim, o “Troca de Pele” também. Na verdade, pouco antes de viajar para Santiago, já sabia disso. A partir daí, parei de numerar os capítulos e a escrever quase que por disciplina, uma maneira de não perder a mão.
Em paralelo, tenho viajado o que posso e o que não posso. O que também serviu para adiar o fato de entender porque essa dificuldade havia surgido. Conveniente pensar que isso estava acontecendo por falta de tempo, se quando viajo não tenho acesso ao computador, natural que estivesse escrevendo menos, certo?
Claro que não. Primeiro porque não estou escrevendo menos, mas outras coisas. Também não estou saindo menos, o que não justificaria uma possível falta de assunto. Assuntos sobram, falta vontade.
Só ontem me caiu a ficha que as viagens e a falta de vontade de atualizar as crônicas se deviam ao mesmo motivo. Cansei de Madri. E agora?
Na primeira fase das crônicas, equivalente ao primeiro ano que morei na cidade, havia uma curiosidade em ver a realidade com outros olhos, era uma observadora, quase voyeur, havia o otimismo de quem não tem certeza mas acredita que tudo vai dar certo. Na segunda, na transição entre o segundo para o terceiro ano aqui, minha perspectiva era mais realista, não digo negativa e sim mais participativa, não assistia a um filme, era parte dele. Agora já não há grandes mistérios e me custa manter o bom humor.
Madri é provinciana e os madrileños se orgulham disso. Não provam outras línguas, nem outros sabores. Atrás da máscara da tradição, escondem uma enorme covardia em tentar. Insistem em manter-se na década em que quase foram modernos, como uma paranóia coletiva. Falam bem alto e enfaticamente, mas sempre os mesmos temas, nenhuma surpresa nem coragem. Batem no peito por serem europeus, mas desprezam Portugal e são desprezados pelo resto. Na verdade, se desprezam entre si, na própria Espanha. Descontam suas angústias nos imigrantes, como se nunca houvessem sido um dia, sem perceber como é bom ter uma desculpa fácil para a própria incompetência.
A gente é boa, animada, as qualidades já ressaltei muitas vezes. E por uma razão que ainda não entendo, me dói muito falar mal daqui. Acho que por isso anda me faltando vontade de escrever sobre a cidade. De certa forma, me sinto permitida a falar bem ou mal do meu próprio país, mas qual seria exatamente minha pátria nesse momento?
Não me lembro quantas vezes ouvi e repeti com convicção que é quem se muda que deve se adaptar à outra cultura, às novas regras. Mas será mesmo? Até que ponto realmente escolhi estar aqui? E não me refiro à opção de vir para a Espanha, mas tratando-se o assunto de maneira mais aprofundada, não fui eu quem decidiu globalizar o mundo. Por que não deveria aproveitar a oportunidade de ampliar minhas perspectivas? E onde estava escrito em letras miúdas que isso significaria me restringir? Não elegi trocar de quarto e me fechar nele, saí para o jardim.
Retornar ao Brasil resolveria o problema? Duvido. Difícil voltar a ser escrava do medo e me sentir uma palhaça cada vez que vejo o noticiário ou leio um jornal. Mudar para outro lugar? Talvez. Resolveria nos dois primeiros anos, assim como aqui, mas e depois?
Há algum tempo atrás, ainda em São Paulo, era totalmente viciada em revistas de decoração. Muitas idéias, inclusive, aproveitava e adaptava aos lugares onde morava. Não houve um local onde moramos que não houvesse feito algo de obra. Nas horas vagas, várias vezes me peguei desenhando a planta da casa dos meus sonhos, a que um dia construiríamos, ainda que não soubesse onde essa casa pousaria. Até nome a casa tinha! Hoje, em uma recepção enquanto esperava Luiz, me peguei outra vez com uma revista de decoração e tudo que gostava me parecia longe ou impossível. O fogão que não terei, a sala que não terei, a casa que nunca terei.
Aprendi a ter orgasmos múltiplos por arranjar espaço para uma cafeteira nova e um espremedor de sucos. E não sei exatamente se isso é bom. Aprendi a disfrutar de pequenos prazeres ou a me contentar com pouco? Sinceramente, não sei, acho que um pouco dos dois. Talvez só esteja mais velha.
Como as outras fases, essa também vai passar. Fico um pouco curiosa com as próximas. De qualquer forma, me surpreendeu a calma com que me veio essa reflexão, que não é absolutamente nada mais que uma reflexão. Provavelmente, em outras épocas seria o estopim para uma crise existencial novinha em folha.
Quem sabe é a dieta que estou fazendo, dietas me deixam num mal humor… Abstinência é uma merda!