Como pode alguém que não tem trabalho fixo esperar tanto pelas férias? Mas sou assim. Na prática, mesmo sem um emprego, tenho minha rotina de atividades e acabo seguindo o calendário de férias do Luiz. Ele acabou de tirar duas semanas e resolvemos viajar de carro.
Saímos em plena sexta-feira 13, que de uruca não teve nada. No máximo, um trânsito meio chato para deixar a cidade. Aqueles engarrafamentos colossais de férias e feriados não são privilégio só dos brasileiros. Pouco depois de sair de Madri, o tráfego melhorou bastante.
Dormimos em San Sebastián, costa basca na fronteira com a França. O lugar é uma graça, gostaria de voltar com mais calma e para aproveitar a praia. Mas dessa vez, foi só uma passagem rápida.
Seguimos rumo ao norte. Nossa próxima parada foi Orleáns, uma cidade pequena, não tão turística e com um centro histórico muito bonitinho. O objetivo era simplesmente dormir e seguir viagem. Nossa meta era chegar em Amsterdam o mais cedo possível, mas é um trecho longo para ir direto e ainda por cima levamos o Jack. Depois de seis ou sete horas, meu pobre felino fica tontinho no carro. Meu outro felino, Luiz, também fica cansado. Dessa vez não pude revezar a direção, meu dedo mais ou menos quebrado ainda estava se recuperando.
Enfim, chegamos despretenciosamente em Orleáns, só para uma dormidinha básica. Saímos para jantar e ainda tive o desplante de dizer ao Luiz que não ia levar a máquina fotográfica porque afinal de contas, a noite de Orleáns não deveria estar exatamente bombando.
Muito bem, começamos a caminhar e as ruas pareciam meio desertas, as lojas já fechadas e tal, até que finalmente encontramos o centro, onde para nossa surpresa estava animadíssimo e cheio de gente. Era 14 de julho, dia em que se comemora a Queda da Bastilha, portanto há uma série de celebrações por toda a França. Claro que não lembrei disso, nunca lembro as datas históricas nem no Brasil. Mais de uma vez já nos pegamos no meio de eventos hiper badalados que não tínhamos a menor idéia, a sorte ajuda.
Logo depois do jantar, começamos a ouvir um som familiar, era uma batucada brasileira. Bom, não sei se era assim tão brasileira, mas o maestro era e não é que estava bom? Pois o grupo saiu andando e tocando pelas ruas em direção ao rio Loire, onde a noite terminaria com uma queima de fogos. E lá fomos nós seguindo a batucada. Considerando que ainda tinha um dedo quebrado, não foi muito prudente nos metermos no meio da muvuca, mas não tivemos nenhum problema. Fora que era hilário assistir aquele samba de gringos.
Quando chegamos na frente do rio, havia uma quantidade enorme de gente na rua, uma verdadeira multidão, parecia reveillon carioca! Me arrependi de não haver levado a máquina fotográfica e para queimar minha língua, a noite de Orleáns estava realmente bombando! Fechamos a noite vendo os fogos de artifício brilhando no céu e refletindo no Loire, muito bonito.
No dia seguinte, pé na estrada novamente e dessa vez fomos direto até Amsterdam. Eu adoro aquela cidade! Acho o holandês moderno e aberto, o típico gente-boa. Essa atitude se reflete na arquitetura, na comida, no comportamento, enfim, pelo menos aos meus olhos de visitante.
Ficamos em um hotel não tão central, mas de fácil acesso a pé, para quem gosta de caminhar um pouco. Um casarão amarelo localizado bem de frente a um parque, separado deste apenas por um canal, coisa que não falta na cidade. Engraçado, nessas férias a água foi um elemento sempre presente e fundamental. O lugar era um charme e ainda tinha uma terraza bem de frente para o tal canal, de onde curtimos um vinhozinho e um bom livro. E uma coincidência engraçada, Luiz já havia ficado nesse hotel uma vez, a trabalho, e achou o máximo. Óbvio que ele não lembrava onde era, e agora quem fez as reservas buscando pela internet fui eu. Na porta do lugar, assim que chegamos, ele reconheceu: é aqui! Acredite se quiser, fui reservar exatamente o hotel que ele adorou e não lembrava onde era.
Gosto de comer em Amsterdam. Estava precisando provar sabores diferentes, aqui na Espanha a comida é sempre muito regional, tudo bem que é ótima, mas chega uma hora que quero variar. Pois fomos a um asiático divino, um italiano estupendo e um francês gourmet, como não poderia deixar de ser. Claro que também não deixaria de comer os famosos croquetes, né? Caminhamos bastante na tentativa de consumir parte das calorias adquiridas. Mas para falar a verdade, nossa velocidade em ganhá-las era insuperável.
Ainda estava meio lenta, com o dedo bem dolorido, mas andei assim mesmo e sem reclamar. A temperatura estava agradável e fresca, coisa que sabia que não aconteceria na Espanha, melhor aproveitar o máximo que pudesse ao ar livre.
De Amsterdam, resolvemos seguir para Bélgica, país que não conhecia. Ficamos na dúvida se íamos para Bruxelas, mas todo mundo sempre conta que é um lugar bem sem graça, então resolvemos ir para Brugges, o que acredito ter sido uma boa decisão.
Brugges, mal comparando, é uma mistura de Veneza com Amsterdam. Achei a cidade bem charmosa, toda cortada por canais, ou seja, lá estava a água novamente.
Outra vez, comemos muito bem, vai ser gulosa assim lá longe! Em uma das noites não resisti ao moules et frites, que consistiu em uma verdadeira panela de mariscos com batatas fritas. Mas a verdadeira covardia são aquelas vitrines das lojas de chocolates, cassilda, como um ser humano pode resistir? Impossível! Perdi totalmente a compostura! No dia seguinte, me atraquei de babador e tudo a uma belíssima lagosta.
… e não me arrependo!
Seguimos descendo de volta para casa e dessa vez paramos para dormir em Mosnes, no Vale do Loire. Há uma série de cidades pequeninas e charmosas ao longo do rio, o que torna o passeio bem agradável. Bom para relaxar do engarrafamento insuportável que aturamos nos arredores de Paris, onde demoramos duas horas para contornar a cidade. Alí também comemos bem, mas não ficamos muito tempo porque já conhecíamos a região. No dia seguinte logo pela manhã, continuamos nossa viagem.
Para terminar de chutar o balde de vez, resolvemos fazer nossa última parada no sudoeste da França, em Grenade sur l’Adour e Eugenie-les-bains. São duas cidades bem pequenas, que ficam a 10 minutos uma da outra. O que essas cidades tem em comum? Uma culinária dos deuses! E dessa vez, a conversa é séria.
Começando por Eugenie-les-bains, é onde se encontra o chef Michel Guérard, simplesmente considerado um dos fundadores da nouvelle cuisine e entre os melhores chefs do mundo. Um de seus seguidores, Philippe Garrett, continuou por suas próprias pernas e abriu um hotel e restaurante em Grenade sur l’Adour.
Pois é, resumo da ópera, em três dias com essa dupla fatal consegui ganhar uns três quilos! Mas vamos por partes.
Chegamos primeiro em Grenade, no hotel Pain Adour et Fantasie. De fora, logo que você chega, não se dá nada pelo lugar, tem uma cara de hotel de faroeste. O charme todo está do outro lado, por onde passa o rio Adour. Olha a água aí novamente!
O quarto é espaçoso e tem uma jacuzzi com um janelão bem de frente para o Adour, um escândalo! Além da varandinha charmosa que o Jack adorou. Como o hotel só tem dez quartos, eles sempre servem o café da manhã no seu quarto, olha que desagradável, ainda tinha cafezinho na cama!
E para completar esse sofrimento horrível, o restaurante, no primeiro andar, fica bem à margem do rio. É nessas mesinhas quase sobrevoando a água onde almoçamos ou tomamos o aperitivo do jantar.
A culinária do Philippe Garrett me parece arrojada e bem humorada ao mesmo tempo. Tem uma certa malícia e sensualidade, consegue ser equilibrada, ainda que ele vá no limite da ousadia. Ele domina o foie gras em maneiras diferentes, mas sempre no ponto perfeito. Comi um tartar de atum de ajoelhar e rezar, veio com um tipo de mini hamburguer de atum e alcachofras que só provando para entender. Oferece também um menu de vinhos que acompanham os pratos perfeitamente.
Eu era um foie gras! Era a própria gansa estacionada de boca aberta sendo alimentada sem parar! Não é uma imagem muito bonita, mas garanto que foi fenomenal!
Em Eugenie-les-bains se encontra o Les Prés d’Eugénie, é como se fosse um tipo de complexo hoteleiro e gastronômico, que pertence ao Michel Guérard e sua esposa, Christine. Nos hospedamos ali por um dia. É muito famoso pelas termas, ou seja, lá estava a água outra vez, mas acredito que o carro chefe seja a gastronomia. Há três restaurantes: Cuisine Minceur, Cuisine Gourmande e Cuisine de Terroir. O primeiro é uma culinária mais leve, o segundo é o gourmet, e o terceiro mais informal, como uma cozinha de fazenda. É claro que o de culinária mais leve a gente nem deu bola, fomos ao Gourmande e o Terroir.
Primeiro fomos jantar no Gourmande, onde o próprio Michel eventualmente passeava pelas mesas cumprimentando as pessoas. A primeira vez que fomos nesse restaurante foi há mais ou menos sete ou oito anos atrás, por acaso, aproveitando a reserva de um casal de amigos que não poderia comparecer. O engraçado é que nessa época era muito difícil conseguir uma reserva se não fosse feita com muita antecedência, e para não correr o risco de perdê-la, nos apresentamos no restaurante com o nome desse casal.
Enfim, anos depois, voltamos ao local com as expectativas nas nuvens e mesmo assim a comida ainda era capaz de provocar emoções. Só é um pouco complicado para a auto estima, pois antes de chegar lá achava que cozinhava alguma coisa. Esse cidadão está a anos luz na frente! Sofisticado, de precisão científica e apesar de tanta racionalidade, merecedor do termo arte culinária. Não é comida, é arte. Não há como descrever o que comi sem desmerecer o prato, mas posso garantir que salivo em lembrar. Quando o pão com manteiga do couvert merece atenção especial é porque o assunto é sério!
Mas ainda faltava conhecer o outro restaurante de Terroir, La Ferme aux Grives, onde se reproduz um tipo de casa de fazenda, com a cozinha aberta para as mesas. É bem mais informal e de preço mais acessível, serviço impecável e para nosso delírio, outra vez uma cozinha fabulosa! Acho genial você comer pratos absolutamente comuns, como frango ou purê de batatas e ainda assim, ter certeza absoluta que não é igual a nada que você comeu antes!
Voltei cheia de idéias e vontade de testar receitas novas! Infelizmente, isso terá que esperar porque a balança foi realmente cruel comigo, ultrapassei todos meus limites de segurança! Luiz e eu já começamos uma dieta e a caminhar pelo parque. Com ou sem dor no dedo, ando feroz na esperança insana da barriga deslizar rapidamente para as coxas!
Não será fácil, não tem milagre e o preço é esse. Mas como é bom chutar o balde!