XL – Colesterol existe?

Será que colesterol existe mesmo? Alguém já viu de perto um colesterol? Porque se alguém conseguir concentrá-lo e industrializá-lo, pode ter certeza que aqui ele será vendido em poções generosas! 

Na verdade, ele terá um balcão exclusivo nos supermercados do El Corte Inglés e será vendido em lonchas (fatias) ou trozos (pedaços). Também terá sua versão ralada, a ser salpicada sobre os ovos com batatas. 

Nos anúncios da TV aparecerá uma mocinha bem magrinha passando colesterol sobre uma torrada e um mocinho atlético comendo uma barra de colesterol enquanto faz seus exercícios diários. 

Bom, é claro que haverá o comércio ilegal de colesterol líquido injetável na veia! Quem sabe o em pó, para se cheirar; e por que não a versão em fumo, para os mais práticos que querem resolver tudo ao mesmo tempo. 

Olha, sei que exagerei para ser didática. Mas garanto que não estamos muito longe disso. Madri é um milagre! Não há outra explicação! Aqui se bebe, se fuma e se come para caramba (porque hoje estou educada)! Entretanto, praticamente não há obesos e as pessoas parecem saudáveis, além de viverem muitos anos! Será que o álcool derrete a gordura e o fumo queima as calorias? 

Como diz a piada, o que mata é falar inglês!  

XLI – Palavrotas

Vamos ser sinceros, afinal de contas, depois de quarenta capítulos, mesmo quem não me conhece já pode dizer que tem alguma intimidade, certo? Então, falemos a verdade, qual a primeira coisa que queremos aprender quando estudamos uma nova língua? Os palavrões, é claro! Mesmo que a gente nunca use, a curiosidade é quase infantil. Que tal um intervalo para baixar o nível sem culpa e satisfazer a curiosidade da galera? 

Palavrões são chamados palavrotas, entretanto, se você tiver mais de doze anos, é melhor dizer tacos. O Espanhol fala uma porrada de tacos. Viu? Já comecei a baixar o nível. A partir de agora, favor tirar as crianças da sala. 

O que mais escuto, escrevi uma vez, é o tal do Joder. Joder, quer dizer foder e se usa com tranquilidade. É muito falado assim no infinitivo: joder! Entretanto, existe a versão foda-se, que é jódete. Essa é a versão light, você pode falar para um amigo sem problemas. Mas se quiser ser ofensivo, tem que dizer que te jodan!. Foder-se você pode, mas que te fodam é muito agressivo! 

Bom, o mierda é universal, né? Ninguém precisa de explicações.  

Hostia é ambíguo. Não é exatamente um palavrão, mas dependendo de como é dito, soa como um. Pode-se dizer la hostia! para uma coisa muito legal, ou hostia!, que soa como mierda. 

Acho que há um pouco de machismo na língual. Quando uma coisa é boa, pode-se dizer que é cojonuda, que provém de cojones ou culhões. Cojonuda é do cacete! Mas se é ruim, se reclama dizendo coño! (órgão sexual feminino). Também há a variação coñazo, muito ruim. 

Outra machista, um zorro é uma raposa, uma zorra é uma puta. 

Conhecidíssimo é o “me cago en…”. O espanhol, aparentemente, adora cagar em alguma coisa. Isso normalmente quer dizer que ele está puto. O mais comum é o me cago en la leche, não se preocupe tanto com a tradução, afinal de contas, cagar no leite não parece muito ofensivo nem inteligente. Mas é muito utilizado quando você quer reclamar no trânsito com o outro motorista barbeiro. Grite com voz grossa e testa franzida: me cago en la leche!  

Pero, você pode cagar em muito mais coisas para xingar os outros. Os que já ouvi na rua são: 

Me cago en la hostia

Me cago en tu puta madre
Me cago en la mierda (isso não seria um pleonasmo vicioso?)
Me cago en la virgen (ou a derivação “me cago en las tetas de la virgen”)
Me cago en dios (desculpem-me os religiosos, mas só estou repetindo)
Me cago en tus muertos (gravíssimo para um cigano! Cuidado ou ele puxa uma faca e será crime com atenuante)
Me cago en… etc… a criatividade nunca acaba! Cague no que quiser!
 

Há uma coisa divertida, as pessoas mais velhas, às vezes se sentem constrangidas em dizer “me cago en…” e substituem por “me cachís…”. Acho que nesse caso, é só uma cagadinha. 

Por outro lado, se você bostezar, está apenas bocejando. 

Pegadinha: se alguma coisa é de puta madre, isso é bom! 

Como no Brasil, também há um ritual masculino de confraternização. Nunca vi meu marido cumprimentar um amigo dessa maneira: Olá, Jorge! E o outro responder, Como vai Luiz? É sempre assim: Oi, homossexual-passivo-cachorro-corno! E o outro responde, Fala viadinho-filho-da-puta-beijo-na-bunda! Daí eles se abraçam e isso quer dizer que são muito amigos. Aqui é a mesma coisa. Só que sai algo como cabrón-hijo-de-puta-jódete 

Nessa linha, há o gilipollas. Esse é bastante utilizado, mas difícil de traduzir, é algo como babaca ou dick-head. Pode ser dito entre amigos nos rituais masculinos se – e somente se – forem muito amigos, mas é preciso dominar a arte ou pode pegar muito mal. Na dúvida, não utilize. Segue a mesma cartilha do homem carioca, cuja lógica diz que filho-da-puta, tudo bem, mas otário o cacete, “mermão”!  

Também há as expressões sexuais, não necessariamente palavrões, mas é bom saber para não falar bobagem e não parecer um guiri (gringo, turista). Assim como o brasileiro pode “molhar o biscoito”, o espanhol molha outra coisa, ele pode “mojar el churro“, o que anatomicamente faz até mais sentido. Também pode “pasar por la piedra”, “echar un kiki” ou “echar un polvo“. Atenção! Estoy hecho polvo, quer dizer apenas que você está cansada/o, como em “estou o pó”! Você só “afogou o ganso” mesmo se disser “hecho un polvo”. Esse “un” faz toda a diferença.  Agora, se quiser ser mais direto, é “follar”. 

Um rapazinho pode “ponerse burro“. Na verdade, ele teve uma ereção. Essa é outra que faz sentido, um homem pode ficar meio burro nessa situação! Mas acho mais engraçadinho o termo “ponerse cachondo/a”. Se uma mulher disser a seu parceiro, “hombre, me pones cachonda!”, não estará reclamando e sim cheia de amor para dar. 

Viu só como morar na Europa deixa as pessoas mais cultas?  

Carai, que hoje estou uma lady! Joder! 

XLII – Meu urso

Quem assistiu o filme “Lendas da Paixão”? Pelo menos, acho que assim foi o título em português. Aquele onde o Brad Pitt aparecia com a cabeleira longa e loira. Não é o máximo quando o irmão certinho, apaixonado pela mesma mulher, lhe diz com raiva: você nunca a fará feliz! E ele seco e decidido responde, tentarei. Vá lá, não é para um Oscar, mas bem que animou a mulherada! 

Bom, mas falei desse filme por uma coisa que lembro. A história que ele desistiu de matar um urso e, desde então, seus espíritos se misturaram. Quando o urso acordou dentro dele,  precisou partir e buscar seu destino. Quase no fim do filme, o narrador diz algo como, finalmente seu urso acalmou. 

Pois também tenho meu urso. Nunca me atraquei com ele, felizmente. Acho que no meu caso veio no sangue mesmo. Pelo lado materno, minha bisavó era índia. Como minha avó costumava contar, “índia pega no laço”. Os outros foram imigrantes italianos. Uma geração mais tarde, meus avós não mudaram de país, mas de casa e de cidade algumas vezes. Dos dois lados, mais do lado da minha mãe, normalmente, por causa da minha vó. Meus pais também mudavam; de cidade por causa do meu pai e de casas por causa da minha mãe. Uma parte considerável dos meus trinta endereços veio daí. Com essa origem, acho que comecei minha vida predestinada a mudar. 

No início, era natural, era a vida que eu conhecia. Quando comecei a ter meus próprios amigos e me apaixonar, foi mais complicado. Entretanto, depois da primeira mudança mais difícil, aprendi que resistir era pior. A resistência não mudava meu destino, me fazia perder tempo e ficar triste. Um dia tomei uma decisão: queria ser feliz. 

Por experiência própria, aprendi que se pode matar uma saudade quando se sabe que a pessoa está bem, mesmo que não esteja ao seu lado. E que muitas vezes, os amigos que sentia tanta falta se viam entre si na mesma frequência que os encontrava. Que desperdício! Entendi também que boa parte dos meus planos de mudar o mundo nunca se realizaria e era melhor que cuidasse do meu próprio umbigo. Quem sabe aprendendo mais me torno útil em alguma coisa? Nunca se sabe, até o momento em que você precisa. 

Mas o mais importante mesmo é que aprendi na pele que no dia seguinte não te falta um pedaço e o mundo não parou. Tirando a morte, praticamente todo o resto é reversível. E normalmente, não importa que seja, pois a gente acaba nem querendo voltar atrás. 

Daí você começa a gostar e se vicia na mudança. Ainda é desconfortável e continua dando medo, mas você sabe que pode e isso torna impossível negá-la. Começo a sentir no ar, parece que fica mais pesado, os lugares ficam pequenos e tenho um sentimento que não caibo mais ali. Tem sido menos angustiante, não sei se meu urso está envelhecendo. 

Entretanto, devo admitir que cansa! Dessa última vez estava muito cansada. Antes de vir, tinha uma estranha sensação de estar indo para casa. O que era um pouco absurdo, considerando que estava vindo para Espanha. Agora já não sei mais se era uma premonição ou cansaço mesmo. Acho que, naquele momento, precisava acreditar que teria uma casa em algum lugar concreto e que não me sentisse afogada como nos EUA. 

Descansei. 

E contei essa longa história para dizer que meu urso acordou. Sereno, sem fome e sem pressa, mas só para me lembrar que ainda está vivo. 

XLIII – As estações do ano

O frio está começando agora. Quer dizer, frio para uma brasileira. Estamos no outono e a temperatura cai na velocidade das folhas, está entre 5 e 18 graus. Ainda há muitas folhas para cair. 

Gosto das estações definidas, uma te prepara para a outra. Chegamos aqui na primavera, minha favorita. Temperatura agradável, pura poesia. No primeiro solzinho corre todo mundo para rua. Os parques se enchem e as mesas dos bares se mudam para o lado de fora. É uma delícia! 

Até que chega o verão infernal! Seco e pesado, 40 graus fácil. O pior é que à noite não refresca, não tem brisa, o calor é físico, bate na sua cara. Madri se muda de cidade. Todo mundo tira férias, ninguém fica! Até o escritório do Luiz fechou por duas semanas. Nós ficamos por aqui e era difícil até achar um restaurante bom para jantar, porque eles também entram de férias. Restaurantes, lojas, escolas, galerias… todos fecham suas portas e colocam uma placa avisando que voltam a funcionar em 01 de setembro. Até vaga para estacionar sobra! Agosto é morto! 

O interessante é notar que ninguém vai à falência. No Brasil a gente se culpa tanto por causa de umas fériazinhas. As empresas fazem o maior escarcéu! Tá aí, todos os anos eles fecham as portas por um mês e pronto. Ninguém morre por isso. 

E que calor! Na rádio, Luiz escutou um programa avisando que entraria uma frente de calor africano. Ele achou que fosse força de expressão, como a gente costuma dizer, um calor sahárico! Mas não, era da África mesmo! A África está aqui embaixo, lembra? Quente para cassilda! 

A parte triste é que muita gente viaja e abandona seus animais de estimação, e se achou chocante, também abandonam seus parentes idosos nas emergências dos hospitais. Não entendo! Fico mal só de pensar! Cada vez que via um animal na rua ficava desesperada até achar o dono (eles andam muito soltos aqui). Dos idosos então, nem se fala, que coisa cruel! Está melhorando, nessa época há campanhas para conscientizar as pessoas, mas ainda ocorre.  

Setembro entra como um suspiro de alívio. Sacode a cidade. Do dia para a noite as ruas voltam a se animar, os carros voltam a buzinar e fica tudo mais feliz. A temperatura é bem amena também. 

Em outubro, começa a esfriar, é quando fazemos a troca de armário. Aqui não guardamos todas as roupas no armário do dia-a-dia. Primeiro, que espaço é coisa difícil; segundo, porque é inútil e a roupa ficaria com cheiro de mofo. No fim da primavera, guardamos os casacos e as roupas pesadas em malas e vai tudo para o maleiro ou para os trasteros. Trastero é como um quartinho para guardar trastes, tralhas. Costuma ser fora do seu apartamento, na garagem ou no terraço do edifício.  

Mais ou menos pelo meio de outubro, descemos a casacada toda. Alguns já nem me lembrava mais que tinha. Finalmente a época das roupas bonitas e da maquiagem que não derrete! 

No dia 01 de novembro, oficialmente, as caldeiras dos aquecedores devem ser ligadas. Sinto frio no apartamento antes disso, mas é bem tolerável.  

O resto, ainda vou descobrir. Deve esfriar mesmo em dezembro, e até fevereiro é congelante. É a época que você aproveita para fazer os esportes de neve.  

Nos EUA, pegamos inverno. Não era nenhuma novidade, mas pela primeira vez fiquei todo o inverno morando no local e não uma viagem de alguns dias. No sul, onde morei, o inverno é mais ameno. Além disso, você vive em uma temperatura artificial. Dentro do apartamento tinha o aquecedor com termostato, ou seja, fosse a temperatura que fosse lá fora, dentro de casa era a mesma o ano inteiro. Todos os lugares que você vai também tem aquecimento.  

Na prática, acho que sentia mais frio mesmo era no inverno de São Paulo. O apartamento e os locais públicos não tinham estrutura para temperaturas mais baixas. Não eram tantos dias assim, mas quando esfriava era fatal! 

Por enquanto, deixa eu aproveitar. Para mim, o ano só deveria ter primavera e outono! Só isso que queria, fácil, né? 

XLIV – 5 minutos

Todo mundo tem ou deveria ter seus 5 minutos. Aquela pequena fração de tempo quando o universo parece que explode e você sente que brilha. Cada um a sua maneira. Pode ser público ou secreto, reconhecido ou não. O que vale é que você sabe. Não deve depender de ninguém além de você. Nada tem a ver com felicidade ou com as pessoas que ama. É um momento só seu. 

Os meus 5 minutos são quando percebo que estou no caminho certo para realizar um trabalho importante, ou quando termino de realizar esse trabalho. Não me interessa se vai vender, se vai para alguma exposição, se alguém vai ver ou se vai cair da mesa e se destruir no dia seguinte. Não importa! Eu sei que fiz! Sei que é meu e é bom! É quando lembro quem sou. 

Acho que todo ser pensante se pergunta alguma vez, ou várias, o que faz aqui? Por que? Para que? Às vezes, esse ritmo louco da vida nos  faz esquecer. Mas quando vem os 5 minutos a gente sabe. 

Passo meses martelando uma idéia, é angustiante e solitário. Tento executá-la de maneiras diferentes e falho em muitas delas, ainda não é. Acordo sem vontade de levantar porque não sei bem o que fazer naquele dia. Meu sono é uma droga. Mesmo assim, continuo por fé. A arte me ensinou a acreditar sem lógica. É olhar para o vazio e crer que vai dar certo. E na hora que funciona é puro êxtase! Dura 5 minutos, mas parece que é mais porque o tempo para. 

Comecei uma escultura que gostei. Acho que foi porque no fundo tocava Nina Simone e não se pode ouvir à Nina impunemente, há responsabilidades. Passou minha fome, passou a dor de cabeça e passou o cansaço. Tive meus 5 minutos e foi muito bom! Hoje vou dormir bem. 

XLV – Um pouco de história espanhola recente

Para se entender a Espanha atual, principalmente Madri, é importante saber pelo que passaram há bem pouco tempo. Muitas coisas, inclusive, foram semelhantes no Brasil; algumas foram bem piores.  

A falta de liberdade até o final dos anos 70 explica essa vontade de exagerar em tudo. Se sai muito, bebe-se muito, fuma-se muito. É como se houvesse uma urgência em se viver o presente, uma necessidade constante em se fazer o que quer. 

Até 75, foi o período da ditatura de Franco. Na minha opinião, bem mais barra pesada do que no Brasil. Principalmente, porque antes eles ainda enfrentaram uma violentíssima Guerra Civil. Depois houve um período de transição e as últimas barreiras foram caindo a partir de 77.  

Vou dar alguns exemplos. O primeiro deles é em relação à liberdade religiosa. Que não havia! A única possibilidade era ser católico. A diciplina religião foi obrigatória nas universidades até 1977. Dois anos depois se tornou optativa ou não avaliável no ensino secundário. As pessoas que gostariam de ser protestantes, tiveram que esperar até 1980. 

O casamento civil só foi possível a partir de 1978. Até esse momento, só se casava no religioso. Se um casal quisesse realizar a cerimônia civil, devería pedir permissão à igreja católica e passar por intermináveis barreiras burocráticas. 

Os homossexuais eram presos sempre que as autoridades queriam. Como justificativa, bastava dizer que eram exibicionistas ou que estavam causando escândalo público. Considerava-se que eram perigos sociais até 1979. Costumavam ser presos e torturados, nos subsolos de onde é hoje a Puerta del Sol. Muitas vezes, junto com professores delatados por estudantes (espiões contratados). 

As mulheres não podiam trabalhar à noite, nem tinham acesso a trabalhos considerados duros ou significativos, como a mineração e o exército. Em 1988, começaram a entrar para o exército e em 1994 puderam trabalhar nas minas, com autorização do Supremo Tribunal. 

Até 1977, mulheres não tinham o direito a vender seus bens móveis ou imóveis, nem possuir passaporte sem autorização do marido. As raríssimas mulheres que frequentavam uma faculdade eram extremamente mal vistas e consideradas não dignas para o casamento. 

A “camisinha” era mal vista por todos. Proibida pela igreja (até hoje) e ignorada nas farmácias. A pílula era um luxo permitido apenas aos que tinham amigos médicos, pois se necessitava receita e não era simples conseguí-la. A legalização só chegou em 1978. 

O divórcio era proibido até 1981. As pessoas que viviam juntas sem se casar, as adúlteras que mantinham sexo fora do casamento, poderiam ser presas. 

Só existia um informativo. Apenas a partir de 1977, as emissoras privadas puderam emitir suas notícias. 

A pena de morte se eliminou em 1978. 

E por aí vai… 

Observando-se essas datas e fazendo algumas contas, percebe-se que é tudo muito recente. Nos anos 80, surgiu um tipo de movimento conhecido por “La Movida”, que foi como uma explosão de liberdade. Surgiram muitas bandas, artistas, escritores etc. Poucos permaneceram em destaque, foi quase como um grito. Radical e imediato, mas não muito persistente. Muita gente morreu, houve um excesso de consumo de drogas e sexo. Um tipo de movimento hippie atrasado e fora do contexto mundial – com a aids, drogas mais pesadas e quando os países desenvolvidos estavam bem mais maduros. Mas aqui fazia algum sentido. 

Essa poeira baixou e a vida tende ao equilíbrio, felizmente. Mesmo assim, ainda há resquícios muito claros. Os excessos, a maneira de se viver intensamente, a desconfiança das pessoas e a neurose com a perda de direitos. 

Por outro lado, acho louvável como eles deram a volta por cima. Como conseguiram correr atrás do prejuízo e se recuperar dessa forma. É um país culturalmente moderno, economicamente bem e politicamente atuante. Tiro meu chapéu! 

46 (cansei dos algarismos romanos!) – Meu niver

Está chegando meu aniversário! Adoro fazer aniversário! Gosto tanto, que nem ligo em ficar mais velha. Aliás, nunca sei quantos anos tenho e nem dá para dizer que é conveniente, porque sempre erro para mais. Só penso nisso quando entra novembro, daí faço as contas direitinho, porque sei que vão me perguntar. De qualquer forma, vivo errando! 

Meu niver, ou meu cumple – como eles abreviam cumpleaños – é dia 09 de novembro, mas vai cair em uma quarta-feira. Por isso, resolvi dar a festa nesse sábado, dia 05. Será nossa primeira festa em Madri. Será que meus convidados virão? Será que são animados? Será que os vizinhos vão reclamar? Terei alguma vizinha penetra? 

Queria ter dado uma festa antes, com o pretexto de inaugurar a casa nova. Mas Luiz fica me assustando. Aliás, fica todo mundo me assustando com essa história de que espanhol é desconfiado, arredio etc. Quer saber? Não me importa mais. Não é possível que alguém se sinta ofendido por ser convidado para uma festa, certo? Resolvi arriscar, posso dar o primeiro passo. 

Convidei algumas alunas do curso de espanhol, algumas pessoas do atelier de artes que frequento, algumas do trabalho do Luiz, outros brasileiros exilados… e quem mais passar na calçada olhando para cima!  

Hoje é quinta e já estou agoniada! Doida para que chegue sábado! Passa logo semana! 

47 – O dia em que fui negra

Ontem, quando pegava o metrô para casa, entrei no último vagão. Foi estranho, 90% dos passageiros era de negros. Não é o fato de serem negros que achei estranho, mas achei esquisito estarem todos juntos no último vagão. Como se estivessem separados. 

Entrei com outra menina branca. Ela nem sentou, ficou em pé na porta. Eu sentei, queria entender o que estava passando e porque me sentia desconfortável. Liguei minha antena. 

Na parada seguinte, ficou mais esquisito ainda. O único branco, além de mim, que estava sentado entre eles, se levantou e saltou. Do fundo do vagão, o único negro que estava entre os poucos brancos, levantou-se e sentou no lugar em que estava ocupado pelo primeiro branco que havia saltado. Como se juntasse ao grupo. 

Eles pareciam da mesma etnia, mas não trocavam uma palavra nem se olhavam. Fiquei sem entender se eram conhecidos ou se aquilo foi uma coincidência. Infelizmente, essas coisas não se perguntam. Principalmente, porque poderiam ser imigrantes ilegais com medo de serem descobertos em grupo. Essa questão da imigração é bem complicada, mas vou deixar para outro capítulo porque esse já me é difícil o suficiente. 

Enfim, na segunda parada, onde salto, saí. Pude notar, com um certo alívio, que entrariam várias pessoas brancas ou não. O vagão tornaria a se misturar. A mistura me conforta. 

Senti algo parecido em Atlanta, onde a população negra é bem grande. Nunca havia parado para pensar no Brasil que os lugares que ia eram frequentados por uma maioria branca. Era algo que olhava e não via. Confessar isso hoje me parece estúpido, mas é verdade. No início, quando passei a conhecer lugares onde se via igualmente negros e brancos, me senti feliz. Foi estranho aos meus olhos, era uma paisagem diferente da que estava acostumada, de alguma maneira, sentia que era mais justa. Me sentia bem.  

Mas depois comecei a notar, que nos mesmos lugares onde via igualmente negros e brancos, eles não se misturavam. Simplesmente, estavam no mesmo lugar. Nos restaurantes havia mesas com brancos, mas só brancos; e mesas com negros, mas só negros. Isso não gostei. E nem estou falando de casamentos entre raças, porque também passa por gosto pessoal que é outra história, estou dizendo amigos mesmo. Pessoas que, ao menos, saem juntas. 

Nesse ponto, acho o Brasil mais democrático e vou me explicar. Existe uma barreira econômica, que vem sendo vencida, mas ainda é muito forte para as pessoas descendentes de negros, porque no fundo, estamos falando de descendentes de escravos. E infelizmente, a escravidão condenou algumas gerações à pobreza. 

Entretanto, entre os pobres brasileiros há negros e brancos, e eles se misturam entre si. É difícil até se ver uma pele muito negra ou muito branca. Os negros daqui e dos Estados Unidos são muito mais pretos. Aqui, inclusive, pela proximidade da África, podemos identificar diferentes etnias negras. 

E ainda falando do Brasil, o negro que chega a ser rico não vai morar em uma comunidade para ricos negros, como nos Estados Unidos. Ainda são poucos, mas quando conquistam seu espaço, também se misturam. 

Isso me leva a pensar que entre os brasileiros não há um racismo propriamente dito, mas um preconceito social. Essa coisa de branco que não gosta de preto e de preto que não gosta de branco, simplesmente pela cor, é rara! Quando existe é entre os mais velhos e é muito mal visto! 

Pois bem, se isso talvez, e disse talvez, seja menos mal, ainda não é o suficiente. E vou descrever uma experiência também em Atlanta que me fez pensar novamente nesse assunto. 

Uma vez, Luiz e eu fomos jantar no Red Lobster. É uma cadeia de restaurantes relativamente popular que serve uma boa lagosta. Simples, informal e bom preço. Procurei na internet onde havia um desses restaurantes e anotei o único endereço que constava. Olhamos no mapa e era longe para burro! Mas como estávamos com tempo e afim de conhecer o lugar, não custava nada. 

O que não sabíamos é que era um bairro de negros. Nos Estados Unidos há essa separação, branco mora em um lugar, latino em outro e negro em outro. Eventualmente, latinos e negros moram no mesmo lugar. Admito que existe um esforço para se quebrar essas barreiras, inclusive com propagandas na TV e campanhas, mas ainda ocorre e em alguns casos, pode ser perigoso você ultrapassar essas tais barreiras. E quando digo perigoso é literalmente! Em muitos casos a agressão é física, de todos os lados. Às vezes, é só desconfortável. Mas por que desconfortável? 

Quando entramos no restaurante, estava lotado, com fila. Todos negros. Eu branquela e Luiz moreno, talvez como latino. Ele ficou apreensivo, mais pela minha segurança que pela dele. Não posso dizer que não fiquei, mas ao mesmo tempo, decidir ir embora naquele momento seria aceitar o preconceito e isso não seria justo com ninguém. 

Decidimos fazer exatamente como faríamos em uma situação “normal”. Pedimos nossa mesa e aguardamos nossos lugares. Se ali alguém tivesse sido hostil, me retiraria, caso contrário, não faria sentido. 

Esperando nossa mesa, comecei a refletir o que me deixava tão incômoda. E foi muito claro que não era a presença das pessoas que me incomodava, e sim a sensação que eu poderia estar incomodando alguém. Ninguém me olhou feio, ninguém me disse nada ofensivo, ninguém me ameaçou, e mesmo assim, me senti totalmente deslocada porque era visivelmente diferente de todos ao redor. Nesse momento queria ser negra. Não por que era melhor ou pior, mas para me sentir parte do contexto. Naquele dia eu fui a negra em um mundo de brancos. Dei sorte, eram brancos educados. E não foi fácil! 

Talvez isso explique o que algumas pessoas brancas chamam levianamente de negros que são racistas. Essa frase sempre me soa como uma justificativa ridícula e infantil. Como apontar um dedo para o outro lado, dissimulando sua própria culpa. Que importa? Preconceito é feio de qualquer lado que se olhe, seja negro ou seja branco. 

Imaginei o que os poucos amigos negros que estudaram comigo deveriam sentir. Conto no dedo quantos foram. Os primeiros dias de aula, naturalmente difíceis a todos, para eles continha uma dificuldade a mais. Ainda que fossem aceitos e bem tratados, é difícil não ver nenhum rosto parecido com o seu. Nunca pensei nisso na época, até porque para mim essa diferença não parecia relevante. 

Na situação do restaurante, tentei entender se havia alguma coisa que alguém pudesse fazer para que eu me sentisse melhor. Porque poderia repetir esse gesto no mundo de brancos. Mas não havia nada a ser feito. Tudo foi perfeito. O atendimento foi cordial, a comida estava boa e ninguém ficou me olhando. No fim, relaxei e aproveitei a noite e a lição. Nada além da mistura me faria mais confortável.  

Hoje, nos restaurantes que frequento em Madri, novamente não há muitos negros. Sinto falta do colorido nas mesas, mesmo que em mesas separadas, pois ao menos estavam ali. Meu olhar havia se habituado. 

Fico na esperança que na próxima parada, as pessoas voltem a se misturar no vagão. 

48 – A maior fila da minha vida!

Aturar o processo de imigração não é para qualquer um! Mesmo que seja absolutamente legal, é sempre burocrático e complicado. Mas essa chatice vou me abster de contar integralmente, contarei só esse finalzinho. 

Estou no penúltimo passo para conseguir meu NIE, que é a carteira de identidade de estrangeiros. A do Luiz saiu primeiro, como a minha é atrelada a dele, fica pronta depois. Esse passo consiste em ir até um órgão público, no dia que eles marcam, para tirar suas impressões digitais. Aqui se diz “sacar las huellas”, o que sempre me soa como alguém que vai arrancar as minhas orelhas.  

Isso quase foi verdade! Com o frio que passei, quase que minhas orelhas caíram! Juro! 

É claro que o dia que marcaram para mim caiu num sábado, no dia que marquei também minha festa de aniversário aqui em casa. Ou seja, se tivesse dado algum problema, meu humor na festa seria uma bosta! Além disso, os advogados encarregados do caso não trabalham no fim de semana. Assim que não havia ninguém que pudesse adiantar o procedimento. 

Tirar as huellas foi mole! O problema é que antes disso tive que enfrentar uma fila literalmente quilométrica! Nunca vi uma fila daquele tamanho! É de deixar qualquer fila do INPS com inveja! Por sorte, Luiz ainda foi comigo e me fez compania nas três horas e meia esperando em pé, na rua, em um frio de 5 graus. A última meia hora, completando quatro horas de espera, foi um pouco melhor, pois já estávamos dentro do prédio. 

Putz! Aturar 5 graus em pé, três horas e meia e sem poder andar muito é de matar! E olha que estava bem agasalhada! Quando nossos pés começavam a ficar dormentes, Luiz e eu nos revezávamos na fila para dar uma andadinha e fazer o sangue circular. O nariz não para de escorrer, é nojento! Mas é igual para todo mundo, todos com lencinhos de papel no bolso. 

E nem adianta querer ir embora e voltar outro dia. Primeiro que o “outro dia” vai estar tão cheio quanto, segundo porque você recebe um papel pelo correio com uma data fixa para ir. O meu era dia 05 de novembro e acabou. É quando você se pergunta: o que estou fazendo aqui? Haja saco! Ninguém merece! 

Daí, fazer o que? Comecei a tomar conta da vida dos outros, né? Atrás de mim, havia uma moça que devia ser do leste europeu, mas não tenho certeza de onde. Na minha frente, definitivamente hispânicos, mas também não sei de que parte. Talvez equador. Ela com as sobrancelhas pintadas. Não era feia, mas não sei porque, raspava toda a sobrancelha e a desenhava em negro. Ficava horível! Era hipnótico, difícil de não ficar olhando. Mas acho que o marido gostava, parecia apaixonado e ela estava grávida. Na frente deles, tenho quase certeza que eram marroquinas, uma loira e uma morena. Essas já sabiam da fila incomensurável, pois levaram água, frutas secas e pistache. Quase no fim da espera, chegou outra marroquina se fazendo de amiga delas para ver se podia pegar lugar na frente. Não entendo o idioma, mas entendo muito bem os espertinhos, fiquei olhando com a cara bem feia, o que naquele momento não era nada difícil, e a furadora de fila acabou desistindo. Acho que não foi pela minha cara, mas as duas marroquinas também não deviam estar muito afim de quebrar o galho só pela nacionalidade da outra. 

Finalmente, chegou minha vez. Fico sempre na expectativa que na hora eles vão me dizer que falta algum papel. Não faltava nada e saquei minhas orelhas, quer dizer, huellas. Agora é só esperar mais quarenta dias e voltar lá para buscar o documento pronto. Aparentemente, a fila é menor, mas não vou marcar bobeira e chegarei bem cedo. 

Que bom que ainda pude chegar em casa a tempo de dar uma cochiladinha e me recuperar para a festa de aniversário. Meio gripada, mas satisfeita por, no fim das contas, ter dado tudo certo. Que parto! 

49 – Nossa primeira festa em Madri

Vou logo acabando com o suspense, foi ótima! A-do-rei! Caramba, depois de sete meses de jejum, que vontade que estava de dar uma festinha! 

Vieram umas vinte pessoas, para variar, uma torre de babel. Divididos, mais ou menos igualmente, entre brasileiros, espanhóis, franceses, alemães, uma coreana e um casal de argentinos. O idioma comum foi o espanhol mesmo e, finalmente, o meu não era o pior! Na minha opinião, é claro! Tá certo que eu estava sendo ajudada pelo Mr. Glenfiddich, mas os outros também tiveram ajuda. 

Gostei de todo mundo! A maior parte já conhecia, óbvio, mas não conhecia alguns acompanhantes nem alguns amigos do trabalho do Luiz. 

Aliás, o sucesso da festa foram as caipirinhas do Luiz, a clássica de limão e a de uva, considerada novidade. Foram devidamente evaporadas, duas garrafas de cachaça – das boas! É a primeira festa que damos que, ao final, temos mais vinho que no início! Excelente pretexto para uma próxima.

Ultimamente, só tenho tomado vinho. Mas na festa, queria fumar um puro, Hoyo de Monterrey na umidade perfeita, e aí com vinho não dá. Como não misturo, parti logo para agressão e fui de single malt 15 anos no tradicional copinho de shot. Como é bom chutar o balde! 

Comidinhas, havia de todos os tipos, afinal de contas, era a primeira vez que esses amigos vinham aqui em casa. Tentei fazer um pouco de cada nacionalidade. Mas acho que o forte mesmo foram as caipirinhas. 

Só tocamos música brasileira, começando por bossa e evoluindo para MPB, Pop Rock, Funk (sem baixaria), os baianos etc. Um pouco de tudo. No Brasil, temos uma variedade musical riquíssima! Dá para oferecer uma festa inteira com música nacional, variando o tempo todo. 

Os últimos convidados, brasileiros é lógico, saíram por volta das 4:30 da manhã. Me arrependi de não ter feito a tradicional sopa para fofocarmos juntos. Que seja a primeira de muitas! 

50 – A ressaca sem culpa

No dia seguinte, inevitável, a boa e velha ressaca!  

Normalmente, as ressacas são seguidas de uma interminável lista de desculpas esfarrapadas e de não-faço-isso-nunca-mais, por-que-bebo, charuto-que-idéia-de-jirico, etc-etc-etc. Pois quer saber, dessa vez veio sem um pingo de culpa, talvez porque não tenha sido tão forte. 

Alguém acha que depois de passar a manhã em pé num frio de 5 graus faria algum bem beber e fumar charuto? Claro que não, né? Isso eu já sabia! Mas também, ia ficar me regulando no aniversário? Nem morta! A única coisa que sempre tento me lembrar é de tomar bastante água.  

No dia seguinte, arcar com as consequências: uma gripe chata e uma alergia horrorosa! Sem falar do cérebro que não cabe na cabeça e parece que vai derreter pelas orelhas. A culpa foi muito mais do frio da fila da manhã que do balde chutado – ou será essa uma das desculpas esfarrapadas?  

Pois que seja, tudo bem, vai curar. 

51 – Uma boa idéia!

Na verdade, não tenho nenhuma boa idéia, mas não resisti ao capítulo “51”. Vai ver o álcool ainda está circulando pelo meu sangue desde a festa! 

O que quero contar é que costumo eleger um esquisito por dia. Sim, porque esquisitos vejo o tempo todo, mas sempre tem um que se supera. O problema é que hoje haviam três e fiquei na maior dúvida quem eleger. Alguém quer votar? 

O primeiro esquisito vi no metrô, infelizmente foi rápido e só pude notar seu visual, mas não consegui estudar seu comportamento. Muito bem, era um homem todo vestido de jamaicano, com direito a boina colorida, cabelo dred e camiseta com raminho de cannabis. Até aí, vá lá. O que deixava essa figura curiosa era que tinha uns 60 anos, cabelos grisalhos,  barba por fazer e branco. Desculpe, mas um coroa branco vestido de jamaicano com trancinhas afro me parecia uma contradição em si mesmo. Não havia nada errado, mas a imagem não batia com o conceito. Era tão exagerado que parecia uma fantasia ou caricatura. Preconceito meu? Tá bom, tá bom, então vamos às próximas candidatas. 

A próxima era uma “Christina-Aguilera-wanna-be”, ainda por cima, com a imagem ultrapassada. Um cabelo de medusa pintado com mechas claras, uma maquiagem fortíssima de olhos coloridos e uma bota vermelha, bico fino, por cima da calça. 

A terceira candidata era uma “colegial”, vestida com saia curta plissada, meia até o joelho, sapatinho comportado, camisa e casaquinho por cima. Até aí, imagino que rola um fetiche, sei lá, não entendo, mas sei que há. O engraçado era olhar o rosto de CDF que ela tinha, com óculos fundo de garrafa e tudo! E não era uma estudante de verdade, ok? Pela idade era impossível. De qualquer maneira, uma CDF fetichista, para mim, era outra contradição!  

E aí? Quem ganha? 

52 – O dia real do aniversário e aí encerramos esse assunto!

Para quem já está de saco cheio em ouvir falar do aniversário, sinto muito, mas adoro fazer aniversário! E ainda fui comemorar com a festa antes! Quer dizer, fico fazendo aniversário todo dia até chegar o dia de verdade! Não é ótimo? 

Hoje foi o legítimo. Nasci em 09 de novembro de 1969, ano em que o homem pisou na lua. Gostava de acreditar que isso me faria predestinada a algo fora do comum. Com o tempo, vi que era apenas um dia como qualquer outro. Mas por que não celebrá-lo? Estou viva e aqui! Trinta e seis, com corpinho de vinte e nove! Yo creo que estoy estupenda! 

Saí na véspera só com o Luiz para jantar e comemorar. Coitado! Estava morto de gripe e eu me recuperando dela! Por isso, fui legal e escolhi um restaurante perto de casa mesmo, o El Buey. É um tradicional que, como o nome denuncia, tem seu ponto forte na carne. Um dos poucos lugares onde encontramos uma carne de boi excelente. É uma peça de carne pedida por peso que chega fatiada meio crua na mesa e terminamos de adequá-la ao ponto desejado em pratos quentes de pedra que recebemos. Mucho bom! 

Regado a um belo Ribera, que este ano está bem melhor que o Rioja, na minha singela opinião. Mas não abusamos. Luiz ainda tinha os olhos vermelhos de gripe e eu tomando anti-alérgico. Caramba! Parece comemoração de velhinhos!  

A parte engraçada é que Luiz foi colocar um pouco de azeite no seu prato de pedra quente para dar um gosto na carne. Exagerou no azeite e seu prato se transformou em uma frigideira espalhando óleo para as mesas em volta. No El Buey, as mesas são meio juntinhas, como em um bistrot. Daí o óleo quente começou a espirrar na mulher ao lado do Luiz. Que roubada! E tinha se produzido toda para seu acompanhante! Mas ela, como uma boa espanhola, não se intimidou, acendeu seu cigarro e contra atacou com fumaça. Aí é que Luiz colocou mais azeite no prato mesmo. A primeira vez foi acidente, a segunda foi piraça pura! 

E eu só rindo! Minha fome havia passado, portanto estava de bom humor! 

Enfim, nossa farra de idosos gripados durou até umas 23:00 horas, no máximo! Não aguentamos mais e voltamos para casa. Ficamos esperando até meia noite para Luiz me dar os parabéns e eu liberá-lo para dormir!  

Durante o dia, foi ótimo! Falei com a família e um monte de amigos por telefone e virtualmente. Essa é uma das melhores partes, é um pretexto para conversar ou juntar pessoas. Além do mais, aqui é feriado. Olha que maravilha, feriado no aniversário! 

53 – As pessoas-rolha

Não sou uma fã ardorosa, mas curto histórias em quadrinhos. Gosto dos nomes dos super-heróis e, mais ainda, dos infâmes nomes dos vilões. 

Pois nas ruas de Madri há vilões de histórias em quadrinhos, são as “pessoas-rolha”. Elas se disfarçam de pessoas normais e se distribuem pelas calçadas cheias. A função é atrapalhar o máximo possível o fluxo normal de caminhada dos outros pedestres. 

A mulher-rolha costuma andar com enormes sacolas bem d-e-v-a-g-a-r-i-n-h-o no seu caminho. Ela espera ardilosamente a hora que você vem caminhando distraída para saltar na sua frente e montar uma barreira quase intransponível. Sua variação mutante pode ser ainda mais perigosa, pois vem acompanhada da criança-rolha.  

O homem-rolha é competitivo. Ele anda devagar na sua frente, mas se você tentar ultrapassá-lo, ele acelera o passo para você dar de cara em uma árvore. Se você recuar, ele volta a diminuir a velocidade. Sua periculosidade pode aumentar caso se sinta terrivelmente ameaçado. Ele acende um cigarro bem fedorento e tenta jogar as cinzas em você. 

A espécie mais cruel e inteligente são os velhinhos-rolha. Esses fazem questão de andar lentamente na diagonal, fazendo zig-zags cronometrados com sua tentativa de ultrapassagem. São perversos e jogam com sua culpa de se aborrecer com um idoso. 

Agora, dose mesmo é quando as pessoas-rolha se encontram. Óbvio, tudo combinado para te atrapalhar! Aparentemente, elas não se conhecem, mas emitem um som inaudível aos seres humanos comuns e, dessa forma, se reunem rapidamente.Elas se especializam em qualquer tipo de entrada ou saída: desembarque de aeroporto, escadas rolantes, entradas de metrô etc. Eventualmente, eles também utilizam a versão móvel, o “arrastão”, aquela onde o grupo todo quer andar um do lado do outro e ninguém mais passa. 

É possível contra atacá-los, mas exige experiência.  

Quando você estiver atrás deles:  

a)      Amadores – finja que vai para um lado, dissimule, pule rapidamente para o outro e continue. Nem sempre funciona, principalmente com os velhinhos-rolha que são muito astutos.

b)      Profissionais – Pise bem forte, como um dançarino flamenco. Faça com que eles escutem seus passos se aproximando e a batida do coração seja alterada. Respire alto para aumentar o suspense, e vá invadindo o espaço vital da pessoa-rolha, de preferência no lado em que ela tiver uma bolsa ou algo de valor. O bafo da sua respiração deve alcançar a nuca do seu adversário-rolha. Intimide! Agora o golpe de misericórdia, comece a tossir como estivesse com uma terrível gripe, aquela tosse disseminadora de vírus. Essa tática, quando bem executada, é infalível! 

Quando eles estiverem vindo na sua direção: 

a)      Amadores – atravesse rapidamente para a outra calçada. Funciona, entretanto, você demonstra fraqueza.

b)      Profissionais – pratique sua postura ameaçadora. Costas retas, passos firmes, olhando para frente, mas não nos olhos. Olhe para o horizonte com o olhar de um toureiro raivoso. Ombro direito um pouco mais à frente, assim como quem vai dar um sopapo. Não sorria em nenhuma hipótese, qualquer sinal de gentileza nesse momento é fatal! E siga em frente, ao ataque! 

Gente! Acaba de me ocorrer: será que acabei de desvendar como surgiu a dança flamenca? 

54 – Um ótimo dia, porém longo e difícil

Os pais do Luiz também nos deram o prazer de uma visita. Tenho a sorte de gostar dos meus sogros. Contrariando a fama das sogras, a minha me defende.Vieram com um casal de amigos, muito simpáticos, que ficaram hospedados em um apart hotel bem próximo à nossa casa. 

No primeiro dia em Madri, decidimos dar um passeio a pé pelo centro da cidade. O tour tradicional, mas imperdível. Não conheço outra maneira melhor de conhecer o centro histórico que não seja caminhando. E nunca me cansa! Começamos por Opera, de lá fomos ao Palácio Real, subimos a Calle Mayor e entramos na rua do antigo Mercado de San Miguel. Paramos para almoçar no Maestro Villa, em frente ao Arco de Cuchilleros. Muito agradável! 

Depois de almoçar e, claro, tomar um vinhozinho de Ribera, prosseguimos em direção à Plaza Mayor. Na minha opinião, considero o ponto alto da visita. Seus quatro lados vermelhos e encravados de história sempre me intrigam. É como se fosse uma sala pública de visitas com o teto aberto para o céu. Ali, coisas boas e más ocorreram.  Inclusive, fatos duros, como por exemplo, julgamentos da inquisição católica. Mas por algum motivo, essa energia estranha não me faz sentir mal, como ocorre no Coliseo de Roma. 

Entretanto, nesse dia foi diferente. Pela primeira vez não me senti nada bem logo que entrei na praça. Havia um protesto, ainda por iniciar, do povo saharaui. Explicando um pouco dessa confusão, existe uma região no Sahara Ocidental que foi reclamada como colonia pela Espanha em 1885. A ocupação efetiva do território não se realizou até 1934. Seu território foi cedido em 1976 a Marrocos e Mauritania, entretanto, a Frente Polisaria proclamou a República Árabe Saharaui Democrática (RASD), iniciando uma Guerra que duraria até 1991. Continuam a espera de um referendo, o qual Marrocos se negou a convocar em repetidas ocasiões. O status legal do território e a questão da soberania continuam sem se resolver. Atualmente, Marrocos tem um muro com radares, artilharia e minas no interior do deserto. Uma missão da ONU tenta controlar a situação para organizar eleições livres que decidam o destino do território. O objetivo desse protesto era de pedir ajuda à Espanha. 

Talvez fosse por isso, não tenho certeza, repentinamente senti o ar pesado. Fiquei muito incomodada. Tenho um tipo de intuição que às vezes me assusta, mas me protege. Sinto a proximidade de situações de risco, sei quando algo ruim está propenso a ocorrer. Não chega a ser uma premonição porque não consigo saber o que é, mas funciona como um sinal de alerta. Algumas coisas acontecem sem que você possa evitá-las, mas a maior parte delas é uma questão de não estar prestando a atenção suficiente. Ninguém consegue ser atento 24 horas por dia, porém consigo ser quando meu radar me avisa. Fico séria, mais calada e concentrada. 

Nesse dia não quis ficar muito tempo na praça. Também não queria estragar o passeio de ninguém com meus devaneios, então só comentei com Luiz que não estava gostando dali.  

Saímos em direção a Calle de Postas, que leva à Puerta del Sol. Vi três garotos, arrumados como os outros garotos. No Brasil, a gente crê que pode identificar o risco através da aparência relacionada à pobreza. É um engano, nesse caso, por exemplo, a aparência era de garotos da classe média. Só que tinham um olhar familiar que reconheço, o de quem não tem muito a perder. O maior subia a rua com um mastro de bandeira na mão, sem bandeira nenhuma. Quando viram um carro de polícia estacionado, voltaram do caminho. Não sei se mais alguém percebeu, porque a rua estava bem cheia. Mostrei ao Luiz e entendi que não era só a Plaza Mayor. As bruxas estavam soltas e era melhor se cuidar. Foi a primeira vez que senti Madri assim. 

Subimos a Calle de Preciados, uma rua movimentadíssima, em direção ao El Corte Inglés. Estava atenta, entretanto cometi um erro. Minha sogra e sua amiga estavam comigo, então achei que estava tudo bem e relaxei. Os maridos vinham atrás, o último era o amigo do meu sogro, que estava um pouco distraído filmando e fotografando a rua. 

Entramos, as mulheres conversando, no El Corte Inglés e de repente me ocorreu que eles não entraram. Na hora sabia que havia acontecido algo e voltei para rua sem saber bem o que fazer. 

Um cidadão meteu a mão na carteira do amigo do meu sogro e, provavelmente, a passou rapidamente para outro. Acontece que eles  perceberam e agarraram um dos ladrões. Um outro homem entregava dinheiro ao Luiz e apontava uma carteira no chão. Acho que era o outro ladrão, mas não dava para ter certeza. Como ele mostrava a carteira para o Luiz, ele acreditou que o sujeito estava ajudando. Nunca saberemos. 

 O fato é que meu sogro e seu amigo seguraram o primeiro ladrão e começamos a gritar por polícia. As esposas se juntaram em volta e os quatro não deixaram que o homem saísse de lá. Foram muito corajosos! Uma roda de pedestres rapidamente se fez em volta da confusão. Luiz correu em direção à Plaza Callao tentando pegar o segundo homem. Não fazia muito sentido pois não sabia quem era. Mas nessas horas a gente não pensa claramente, é tudo muito rápido. Fiquei com medo de deixá-lo sozinho agarrando o suposto segundo ladrão e fui atrás dele. Quando vi que ele nunca o alcançaria e não entendi o que ele estava tentando fazer, olhei em volta para ver se havia polícia e não havia. Voltei correndo para o El Corte Inglés para chamar a segurança. Meus sogros e seus amigos ainda seguravam o bandido. No que saí da loja com o segurança, alguém já havia conseguido avisar os policiais que chegaram pelo outro lado e prenderam o assaltante. 

Enquanto a polícia revistava o homem, conferimos se faltava algo na carteira. Por sorte, não havia tido tempo de nada ser levado. Até o dinheiro retirado foi recuperado, pois os batedores de carteira, quando percebem que o golpe deu errado, deixam as provas para trás. O ladrão foi detido e entramos na loja para acalmar os ânimos. Subimos até a cafeteria, sentamos e tentamos relaxar um pouco. A verdade é que tudo aconteceu tão rápido que só depois as peças foram se juntando. 

Acho que Luiz e eu fizemos errado, não deveríamos tê-los deixado sozinhos com o bandido. Meu reflexo foi de buscar ajuda, mas não sei se foi o melhor. Me senti um pouco impotente de ter percebido que alguma coisa poderia ir mal e mesmo assim não estar preparada. Sabia o que fazer se acontecesse comigo, mas não estava pronta para ajudar outra pessoa. 

Na mesa, meu sogro contou que enquanto segurava o cidadão que tentou fugir, usou o velho-truque-índio de apontar um dedo firme em suas costelas. O ladrão poderia ficar na dúvida se era uma arma.  

Acho que não teriam reagido se fosse no Brasil, até porque lá os bandidos usam armas. Aqui raramente as usam. Costumam se aproveitar da distração dos turistas. De toda maneira, achei os quatro muito corajosos e de pensamento rápido. O homem era jovem e forte. Naquele dia, ele e seu possível parceiro pensaram que se aproveitariam de um senhor distraído, alvo fácil! O que ele nunca poderia esperar é que o senhor poderia ser rápido, e que seu amigo e as esposas estariam dispostos a ajudá-lo. E que os outros alvos fáceis fariam uma roda em sua volta apontando quem era o alvo dessa vez.  

Apesar da sorte e de estarmos todos bem, logicamente, a adrenalina foi alta. Saímos da loja por outra porta, por precaução, e tomamos direção à Gran Via para pegar o metrô. No caminho, ainda não estava tranquila. A frequência do lugar estava diferente. Pelo menos, dessa vez, estávamos todos mais atentos. 

Ainda pude notar um outro cidadão na porta do metrô, que desceu um pouco antes da gente e, logo em seguida,  subiu outra vez pela escada rolante. Estava procurando vítimas e o mostrei para Luiz, mas não seríamos nós.  A medida que o metrô chegava na nossa estação, meu coração também ia sossegando. Soube que estaríamos em segurança novamente. No bairro de Salamanca, o ar já estava mais leve. Respirei aliviada, nenhuma das bruxas nos seguiu. 

No apartamento, assistindo ao noticiário, soube que houve outro grande protesto no mesmo dia, além da manifestação da Plaza Mayor. Esse era contra uma lei referente à educação na Espanha. Na Puerta del Sol também houve uma concentração de Marroquinos. Não houve nenhum incidente grave, mas movimentou muita gente e o clima da cidade não estava para muitos amigos.  

Dormir naquela noite foi difícil para todos nós. O que passou na cabeça de cada um, quem pode saber? Na minha passava uma sensação de incompetência e a dúvida se aquele era realmente o ladrão. E se fosse, o que deveria estar passando naquele momento. A cena se realizou no meu pensamento de várias maneiras diferentes, imaginava formas como poderia ter certeza que a coisa certa foi feita. Era absurdo! Sei disso, já estava feito, mas era inevitável, não conseguia apertar o botão de desligar. 

Até que ouvi a chuva caindo, levantei e fui para janela da sala. A chuva lavava a rua e as calçadas. O ar ficou mais limpo também. As bruxas se dissolviam. No corredor, meu gato me seguiu com cara de sono, curioso para saber o que fazia ali. Agarrei meu felino gordo e voltei para cama. 

Fiquei pensando se não poderia passar uma tesoura na metade daquele dia que havia sido tão agradável em quase sua totalidade. Se apagar não era possível, ao menos dividí-lo em dois e chamar um deles de dia bom. Acontece que a vida é inteira e ensina que a verdade é sempre melhor, mesmo que de maneiras tortas. A vida não é toda boa, mas aprendemos a superar e a compensar as dificuldades e os erros.  Aprendi que o bem une e o mal divide. 

Nesse dia, na sala de justiça, os super-amigos decidiram que o bem ganharia. 

55 – Céu de Brasília

Sempre escolho uma música para as cidades que gosto. Normalmente, ela começa a tocar na minha cabeça enquanto caminho pelas calçadas. Funciona como uma trilha sonora muito particular. É impossível passear por Salvador sem ouvir batuques africanos, assim como é impossível passear por Veneza sem ouvir violinos, reais ou imaginários. 

Não precisa ser uma música da mesma cidade ou país. É até natural que muitas vezes coincida, mas não é uma regra. 

Desde que mudei, procurava uma música para Madri e não encontrava. A minha lógica dizia que deveria ser algo flamenco, mas não encaixava. Quer dizer, encaixava com a cidade, mas não com meu estado de espírito nela. Tentei outros ritmos, jazz ficava papagaiado; blues, assim como flamenco, ficava meio triste; as clássicas me pareciam fora de contexto. Passados mais de sete meses, já havia desistido, a hora que viesse estaria bem. 

Até que hoje, caminhando pela Universidade entre as árvores de outono, olhei para cima e reconheci o céu de Brasília! Não era igual, mas estava muito parecido. O céu de Brasília é lindo! É um azul mais claro e limpo, com partes meio avermelhadas ou alaranjadas. Não sei descrever bem, mas sempre sabia notar na TV que uma reportagem estava sendo realizada lá quando era feita ao ar livre. O céu entrega. 

Hoje Madri do meu caminho estava assim, com o céu ligeiramente avermelhado no fim da tarde e com as árvores de folhas caindo amarelas. Daí foi até covardia! Só uma pessoa poderia resolver essa questão: Djavan. Olha que chic! Agora andarei pela Complutense com o Djavan cantando no meu ouvido! 

…passa mais além do céu de Brasília, traço do arquiteto, gosto tanto dela assim, gosto de filha, música de preto, gosto tanto dela assim…mas é doce morrer neste mar de lembrar, e nunca esquecer, se eu tivesse mais alma pra dar, eu daria, isto pra mim é viver.

56 – Paella

A melhor paella espanhola que já comi foi em… São Paulo! A campeã é a do Don Curro, sinto muito! Não é que aqui elas sejam ruins, mas ainda não achei aquela definitiva. The Ultimate Paella! Enfim, continuarei tentando, fazer o que? Acabo de pegar algumas dicas de locais para comer uma boa paella com legítimos madrileños, a ver… 

Nos restaurantes, diferente do que imaginava, costuma ser sevida como entrada. Mas, se quiser, você pode pedir como prato principal que ninguém faz cara feia. Quer dizer, podem até fazer, mas é mala leche mesmo. Ignore! Se isso acontecer, utilize a cara 9, a de caguei-sou-cliente-e-você-não-está-fazendo-nenhum-favor.  

O arroz costuma ser bem gostoso, mas os frutos do mar são regulados. Um pouquinho de nada e mais casca que carne. Nem entendo porque, já que os frutos do mar daqui são excelentes e fresquíssimos. Todo pescado do país é concentrado em Madri e depois distribuído aos outros lugares, ou seja, é tudo de primeira. 

Não existe uma versão oficial para o nome “paella”. Entretanto, ouvi uma história que faz sentido e achei muito bonitinha. Normalmente, as mulheres cozinhavam durante toda a semana e os maridos para dar-lhes uma folguinha, às vezes, cozinhavam para elas. O “para” aqui pode ser abreviado como “pa”, assim como o nosso “pra”, e o “ela” se diz “ella”. Portanto, quando o marido cozinhava para a esposa, ele cozinhava “pa ella”. Pa +  Ella = Paella 

Meninas, a paella é nossa! Meninos, uma dica, aprendam a história e a fazer paella, pois pode ser muito romântico! Um homem cozinhando para sua amada é super sexy! 

Receita de paella de frutos do mar  (do jeito que faço, há outros) 

Ingredientes – nunca sei exatamente, mas aqui vai uma aproximação razoável: 

Arroz (1 xícara e meia)

Água (3 xícaras)

Azeite (cobrindo levemente o fundo da panela)

Alho (1 cabeça inteira bem picada)

Cebola (1 cebola inteira)

Tomate (1 tomate, sem sementes, picado em cubinhos)

½ xícara de ervilhas

Pimentão vermelho (metade de um, picado em cubinhos)

Pimentão verde (metade de um, picado em cubinhos)

Açafrão (o equivalente a uma colher de sopa)

Frutos do mar (uns 6 camarões grandes e outros menores,  100 gramas de lula, umas 20 conchinhas de vôngoles, uns 5 mexilhões…)

Cuentro ou Salsinha (mais ou menos meia xícara bem picadinho – dica, use uma tesoura de cozinha ao invés de uma faca e pique em cima da panela na hora de usar) 

Modo de fazer: 

Refogar o arroz no azeite, alho e cebola. Seja generoso nos três últimos ingredientes. Acrescentar pedaços bem picadinhos de tomates, pimentões verdes e vermelhos, e as ervilhas. Adicionar o fundamental açafrão.  

Em paralelo, ferver a água a ser adicionada, aproximadamente o dobro da quantidade do arroz, e reservar.  

Colocar os frutos do mar, com casca e tudo. Use os que você gostar mais, gosto de usar camarões, lulas, vôngoles, mexilhões, langostinos e carabineiros pequenos. Os mexilhões devem ser colocados por cima de tudo, dentro de suas conchas. Os vôngoles podem ser misturados, mas também dentro de suas conchas. 

Adicionar a água fervente, salpicar o cuentro ou salsinha e baixar bem o fogo. Esperar a água secar e servir na hora. 

Atenção: Caso não tenha a panela apropriada, utilize uma rasa e de fundo largo. Originalmente, esse prato deve ser feito no fogo ao ar livre. Diz a lenda que o ideal é utilizar folhas de parreira para alimentar esse fogo. O aroma e a fumaça sobem e alteram o sabor da paella, no mesmo estilo dos defumados. Mas se estiver na sua cozinha, pode levar a panela ao forno (se isso for possível sem ter partes derretidas). A maneira mais simples é no fogão mesmo, em fogo baixo, tampando a panela enquanto a água do arroz seca. 

Existe a versão onde também se adiciona frango e coelho. Mas se é sua primeira paella é melhor não complicar muito. 

Boa sorte! 

57 – O Flamenco

Assim como a paella, não existe uma versão oficial quanto à origem do flamenco. E quando não há uma versão oficial, simplesmente elejo a explicação que acho mais interessante. 

Não há uma certeza sobre quando se iniciou. Possivelmente, antes do século XVIII já existia alguma forma de flamenco nos lugares onde viviam os ciganos, ao sul de Andaluzia. Só em meados do século XIX foram realizadas apresentações públicas. 

Os ciganos são os grandes responsáveis pela difusão do flamenco, entretanto, sua origem e estrutura musical vem de uma fusão entre diferentes culturas que passaram por Andaluzia. Sofrem influência de cantos hindus e gregos, cantos religiosos medievais, melodias persas, cantos judaicos, sons africanos e música caribenha.  

Além disso, há uma grande flexibilidade na forma de interpretação do cantor, conhecido como “cantaor” – os ciganos, como os Andaluzes, não pronunciam o “d” de “cantador”, portanto, também o tablado onde dançam é dito “tablao”. 

O canto flamenco, ou cante jondo, é dividido em estilos chamados de palos. Acho que são bem uns trinta palos, mas não sei como diferenciar a todos. Alguns exemplos: Tonás, Seguiriyas, Petenera e Tangos.  

As canções tonás estão entre as mais antigas. Possivelmente, derivam de canções populares do século XVII e da palavra “tonada”, “tono”, “melodía”. É uma criação genuinamente cigana e permaneceu muito tempo oculta entre suas famílias. Apenas ao final do século XVIII, quando o rei Carlos III proíbe a perseguição aos ciganos, as canções começam a ser mais conhecidas. As letras falam de sua vida errante e seus problemas frente às injustiças. Como quase todos os cantos originais, não tem acompanhamento musical nem baile. É uma maneira de deixar a voz ainda mais dramática, acompanhando a história que se explica. 

As seguiriyas são, possivelmente, uma derivação das tonás. Especialmente, um tipo delas chamadas plañideras, que derivam da palavra plañir (chorar). É um canto difícil, reservado a poucas famílias ciganas. Cada “cantaor” lhe dá uma interpretação pessoal e sempre soa como um lamento. 

O estilo petenera é pouco divulgado, por uma razão muito simples. Os ciganos são muito superticiosos e dizem que dá má sorte cantar essas canções em público. Assim que basicamente são cantadas em círculos menores entre as famílias. 

Os tangos estão entre os mais populares. Não é nada parecido ao tango argentino. São canções mais fáceis de entender e mais alegres. 

Bom, há diversos outros estilos, mas acredito que já tenha passado o espírito da coisa.  

Em relação a origem do nome “flamenco”,  há uma explicação curiosa, ainda que não seja historicamente comprovada. O ano de 1492 é bem conhecido por aqui, foi quando os mulçumanos foram expulsos do território espanhol. Essa expulsão se deu do norte para o sul e muitos refugiados se esconderam com os ciganos de Andaluzia. Boa parte desses fugitivos era de lavradores. Lavrador fugido em árabe antigo se diz “felag mengu”. Tudo bem, eu também não sei falar árabe antigo, mas leia em voz alta – felag mengu – e notará a semelhança com “flamenco”. 

Finalmente, acredito que mais importante que entender o flamenco é sentí-lo. Das primeiras vezes que se escuta, um ouvido mais distraído percebe apenas gemidos e lamentos. Mas se esquecer um pouco o preconceito e se deixar levar pela batida, aos poucos, o canto começa a soar como um mantra que te envolve. Há tantas matizes na voz como possibilidades de sentimentos. O ritmo ainda me parece um pouco irregular, mas assim como o coração, nada tão profundo e vivo pode ter uma batida óbvia. Nada tão visceral pode ser fácil. Quando me entrego nesse transe do violão dedilhado, aprendo um sofrimento que não tive e que alguém generosamente digeriu para mim. 

58 – Las Croquetas

Preciso fazer uma confissão que pode me custar muito caro no futuro: adoro croquete! Aliás, adoro salgadinhos em geral, coxinhas, empadinhas, risólis, bolinhos de bacalhau, bolinhas de queijo… huuummm… minha boca encheu de água! 

Infelizmente, depois do Caco Antibes, todas essas deliciosas mini-tentações foram classificadas de “coisa de pobre” e sumiram das festas brasileiras. Fazer o que? Gosto das comidas exóticas e também das sofisticadas, apenas acredito que um prazer não exclui o outro. E tem dias que morro por uma coxinha cheia de catupiry legítimo derretido. 

Muito bem, ainda resta salvação para o mundo! Aqui em Madri, um dos aperitivos mais populares são as fabulosas croquetas! É a redenção do croquete! São encontradas tanto em bares mais despojados, como em restaurantes elegantes. Lógico que na segunda opção sempre há algum diferencial, mas que é croqueta… é croqueta! 

Entretanto, há uma pegadinha para brasileiros. Quando a gente prova a primeira croqueta, esperamos um recheio mais sólido. Pois, nesse caso, a massa já é o recheio. Só que essa massa é salpicada com algum tipo de acompanhamento. A clássica vem com pedacinhos de jamón, mas é comum também encontrar as de pollo (frango). Os restaurantes mais descolados inovam mesclando outros recheios, como camarões ou queijo brie. Mas nunca em pedaços generosos, costuma ser triturado com a massa. 

Deve ser frita na hora e no azeite estalando de quente. Hombre, o sabor é de maravillas! 

Caso queira aprender a fazê-las, a receita segue abaixo. E se algum despeitado se atrever a torcer o nariz dizendo que é “coisa de pobre”, nada como responder que é um velho hábito adquirido na Europa.  

Ingredientes:

         1 colher de sopa de azeite

         2 colheres de sopa de farinha de trigo

         ¼ de litro de leite (pode ser um pouco mais)

         1 ovo

         100g de farinha de rosca

         noz moscada

         100g de jamón em pedacinhos minúsculos (ou o recheio que você preferir)

         sal 

Modo de fazer: 

Levar a panela ao fogo com o azeite. Deixar o azeite esquentar, mas não ferver, não deixe levantar fumaça. Tire a panela um pouco do fogo e adicione lentamente a farinha, movendo com uma colher-de-pau até que forme uma massa. 

Retorne a panela ao fogo médio, adicione lentamente o leite, mexendo sem parar até que a massa esteja cozida e consistente. Colocar uma pitada de noz moscada, sal a gosto e os pedacinhos de jamón. Continue mexendo a massa até que se espesse. 

Coloque essa massa, já espessa, em um recipiente e deixe-a esfriar. Depois de fria, modele os bolinhos no formato de croquete. 

Bata o ovo em outro recipiente. Molhe o croquete (epa! Isso ficou meio sexual!) nesse ovo e depois passe na farinha de rosca. Como se fosse um bife à milanesa. 

Estão prontas para fritar. Devem ser fritas no azeite bem quente que as cubra. Quando estiverem douradas, estão prontas para serem servidas. 

Coma sem arrependimento e ria dos pobres de espírito! 

59 – Crônica de minuto

E não é que logo após escrever o capítulo anterior e falar de salgadinhos, um amigo ligou e nos convidou para conhecer uma churrascaria brasileira em Majadahonda chamada Mistura Fina. Fica fora de Madri, uma meia hora de carro. Uma delícia! Mas o mais curioso é inacreditável. Adivinha qual era o couvert? Coxinha de galinha quentinha! Putz! Dá para imaginar com que vontade comi a dita cuja?