95 – Tá bom, tá bem, eu me rendo… Feliz Natal!

Não estou mal humorada, pelo contrário, mas vou ser muito franca, acho Natal um saco! Sério, é uma exploração emocional que me torra a paciência!

 

Um momento para reunir a família é legal, mas na prática a gente não consegue manter esses momentos por toda a vida. As pessoas adoecem, morrem, mudam, formam novas famílias e assim caminha a humanidade. Resultado, um dia que em teoria deveria ser feliz, se transforma em um jogo de culpas e lamentações. Caraca, nada mais católico que isso!

 

Talvez esteja implicante esse ano, vamos combinar, foi foda para todo mundo! Quem chegou no final dele só um pouco machucado, é melhor ficar bem quietinho e não reclamar.

 

Enfim, tem alguns lados do Natal que gosto. Curto as decorações natalinas, ajudam a nos preparar o espírito para um período que se acaba. É uma época que temos uma excelente desculpa para procurarmos os amigos e agradar quem gostamos, é bacana quando não é por obrigação.

 

O que não gosto é dessa pressão distorcida e subjetiva que fica no ar, se você não está com sua família precisa ser triste. Se você não tem uma casa onde passar é um excluído, não merece. Se você perdeu alguém querido, precisará lembrar dele ou dela nesse dia e sofrer até doer.

 

Eu não quero um dia de tristezas fixo no calendário.

 

Tenho sorte, não sou cobrada pela minha família de estar presente a qualquer custo no Natal. Depois, acho que há maneiras de estar próxima sem estar tão perto. Mesmo assim, tem horas que gostaria de estar perto sim e me contradigo em tudo que disse acima. Não me sinto culpada, mas fico um pouco triste. Depois passa.

 

Não passaremos sozinhos, nossa porta não tem grandes trancas. Amigos queridos jantarão conosco e disso eu gosto. Passei o dia preparando comidinhas, adoro mesas fartas, onde os aromas invadem seu nariz. Fiz tender com mel, whisky e frutas; uma ave assada que chama “pularda”, parece um chester em tamanho, o gosto vou descobrir amanhã; rocambole de carne recheado com jamón ibérico, queijo cremoso e patê de foie; casquinha de siri, receita teste que depois eu conto. A farofa farei amanhã, para ficar bem fresquinha, é daquela farinha baiana fininha e amarela, deliciosa. As sobremesas, trarão os convidados, sou fraca em doces.

 

Cozinhar me relaxa, me tira do mundano. E após cozinhar tanto, pensando bem, Natal nem é mais tão chato assim. Deu vontade de falar com os amigos, de dar um monte de abraços, fiquei piegas. Esse ano vai passar, não houve só coisas ruins, foi duro, mas com resoluções importantes também. Amanhã, será tranquilo, apenas um dia para comer bem e rir um pouco. E o Ano Novo que me aguarde!

 

Então, vá lá, povo pelo mundo afora, Feliz Natal para vocês!

 

94 – Indolor, mas insípido

Hoje fomos à comisaria de policia para a entrevista sobre nossa nacionalidade espanhola. Esperamos três meses cravados, tempo exato que nos estimaram quando entregamos todos os documentos. Adianto que foi tudo bem, não doeu, mas não nos deram nenhuma resposta definitiva, é simplesmente mais um passo.

 

Temos outros amigos na mesma situação, em etapas diferentes, por isso nos comparamos para nos preparar ou entender melhor o que fazer. Mas nem sempre seguimos exatamente o mesmo procedimento. Por exemplo, pela informação que tínhamos, deveríamos receber alguma correspondência pelo meio do ano que vem, marcando a tal entrevista e pedindo alguns documentos outra vez. Entre nós, essa papelada é um pé no saco, porque todo documento brasileiro que te pedem tem que ser carimbado, traduzido, legalizado etc.

 

De maneira que foi uma verdadeira surpresa receber a ligação ontem e já conseguir marcar a entrevista para hoje. Melhor, não nos pediram nada de burocrático, não entregamos cópia nenhuma. Nos requisitaram apresentar os originais do NIE (identidade de estrangeiros), passaporte, comprovante de salário e contrato de trabalho. Os dois últimos, como não tenho, deveria apresentar os do meu marido. Conseguimos, inclusive, ser atendidos juntos, porque os processos são individuais. Así de sencillo.

 

Eu, gata escaldada, fui com cópia e original de tudo que podiam resolver pedir. Mas não pediram. Foi bastante rápido e seco. O agente da polícia dava entrada em uma série de informações no computador e anotava mais um monte de números em um pedaço de papel em branco. Ficava imaginando que fim teria aquele papel de rascunho com nosso destino. Às vezes, não te dá outra alternativa do que confiar no caos. Creio que não demoramos mais que uns 15 minutos durante a entrevista.

 

Na saída, Luiz perguntou se havia algum próximo passo e ele respondeu que agora deveríamos aguardar a resolução, ou seja, se somos aceitos ou negados como cidadãos espanhóis. Disse também que essa resposta demorava muito. Adoro essas informações precisas: demora muito!

 

Saímos com aquele gosto de nem sim, nem não, muito menos pelo contrário. A gente aprende a conviver não com resultados, mas com etapas cumpridas, onde esperamos que tudo esteja correto. Quando saímos de alguma dessas etapas e não faltou nenhum documento, é considerado que fomos bem. Isso não é garantia de sucesso, mas é positivo porque você está habilitado a passar para próxima fase. É o melhor que se pode esperar.

 

Sei que deveria estar comemorando, mas é difícil. Depois da euforia em conseguir subir um degrau mais, bate aquele bajón de não ter absolutamente nada de concreto em mãos. Não é uma queixa, apenas uma constatação e um aviso a quem resolver trilhar caminhos parecidos.

 

A situação me fez lembrar uma história de quando pousei nos EUA, no final de um furacão, ainda tinha medo de avião nessa época. Um pouso duríssimo, com turbulências fortes e um ruído ameaçador. Do lado de fora, nuvens cinzas e densas. Você não tem noção de que altura está, pois não há visibilidade, se pousa por instrumentos. Sou daquelas malucas que não tomava sonífero para viajar, porque afinal de contas, se algum problema ocorresse, queria estar lúcida e aumentar a probabilidade de sobreviver. Caso o avião caísse, sair nadando oceano afora, por exemplo. Muito razoável. Pois bem, quase no final desse pouso, quando estava beirando o limite do pânico, me dei conta que não tinha absolutamente nada a fazer. Nenhum controle. Imediatamente, me baixou uma tranquilidade e uma frieza surreal, e o pensamento que seguramente alguém tinha que saber o que estava fazendo, o piloto não podia ser doido assim de entrar naquela situação sem experiência. E isso talvez tenha sido o mais perto que estive de ter fé.

 

É mais ou menos como me sinto agora, não tenho nada mais que possa fazer. O único que me resta é acreditar que vai dar certo e que alguém vai conseguir pousar no meio desse furacão. Espero ainda ser capaz de saltar do avião inspirando naturalidade, penteada, e seguir viagem.

 

93 – De um dia para o outro

A vida é assim, de um dia para o outro tudo pode ser diferente. Às vezes, dá um pouco de medo na hora de levantar e imaginar o que nos espera, mas acho bem pior não ter porque levantar.

 

Certezas absolutas trazem uma falsa segurança, é que a gente se esquece que elas seriam para o bem ou para o mal. Nem toda certeza é boa, a probabilidade deixa a porta entreaberta, uma esperança.

 

A frustração me deixa bastante aborrecida, acho que é assim com todo mundo, ou deveria ser, porque tem gente que chega a se acostumar a não conseguir as coisas. Não me acostumo, mas tenho tentado aprender a sofrer menos por isso. Algumas vezes, é como se uma nuvem de calmaria me baixasse no meio da tempestade e consigo pensar, tudo bem, já passei coisa pior, é só um momento. Faço um exercício de otimismo e os problemas voltam a ter o tamanho correto, eu sei que eles não sumirão sozinhos, mas é mais fácil tratá-los depois de dissecados. E ainda acredito no bem recompesado, só me esqueço um pouco disso quando estou com raiva. Uma hora a raiva passa e sempre descubro que a generosidade traz muito mais.

 

Esperamos que essas lições de vida apareçam de maneira grandiosa, mas na prática elas se mostram em situações simples e rotineiras, é só prestar atenção.

 

Enfim, recebi a notícia que a proprietária queria falar conosco quando tinha amigos em casa. Não vou negar, não foi agradável e lógico que me preocupou. Mudar de casa agora, em uma época do ano complicada, uma situação econômica pouco estável, com todos os nossos documentos atrelados a esse endereço. Putz! Com tantas mudanças nas costas, tenho uma lista automática do que é necessário fazer, que começa a pipocar na cabeça no mesmo instante.

 

Um dos amigos, tentando ajudar, começou a nos explicar legalmente nossos direitos a não deixar o apartamento e tal. No mesmo minuto, respondemos Luiz e eu que isso não ia acontecer, se ela quisesse o apartamento de volta, devolveríamos, no máximo, tentaríamos negociar uma maneira em que ninguém perdesse tanto. Luiz disse que não queria se aproveitar da infelicidade de ninguém, no que concordo plenamente, não precisamos disso. Honestamente, faço questão do que é meu, mas se não é, perco até o gosto. Resolvemos escutar a história primeiro, sem a intenção de buscar mais problemas do que os existentes.

 

Minha maior preocupação era em relação à documentação, em princípio parece que não, mas permanecer um tempo no mesmo endereço acaba se tornando fundamental. Quase tudo te chega por correio e com datas que você não pode perder. Estamos no meio do processo de cidadania, meu visto de residência ainda não está pronto, enfim, complicaria bastante nossa vida. Trocar o endereço é outra burocracia e, no meio do processo, pode atrasar tudo. Isso sem falar na questão psicológica de ter uma casa, uma identidade, mas não vou entrar nessa seara nesse momento. Portanto, mesmo parecendo coisas totalmente distintas, sempre caminham juntas na minha lógica.

 

Não adiantava dar muito mais voltas que essas, não sabíamos o tamanho da encrenca, nem ia demorar a descobrir. Então, o jeito era encarar. Só combinei com Luiz de, caso precisássemos sair mesmo, não fechar a data na hora, porque precisaria checar algumas possibilidades antes. Ainda assim, fiz meu dever de casa e comecei a checar imóveis pela internet.

 

Felizmente, o suspense não durou tanto, ela chegou e começamos a conversar. Uma história de dar calafrios, o que essa cidadã passou esses últimos meses não desejo para ninguém. O marido, que agora é o ex, aprontou o que se chamaria em castellano castizo de un putada, macho. Juro, fiquei realmente abalada e triste, porque ninguém merece. O que ele fez não vou entrar em detalhes, porque essa história não é minha, mas foi cachorrada e das grossas e a essa altura, já estava achando que deixar o apartamento era fichinha. Como é que a gente poderia ajudar?

 

Bom, descobrimos que na verdade ela nem queria que saíssemos do imóvel, seria mais interessante que alugasse algo menor e mais barato para ela e o filho e continuar a nos ter como inquilinos até que toda a situação se resolvesse. Assim terminamos a noite, não como oponentes, mas aliados.

 

Não sairemos agora do apartamento e de comum acordo. Quanto tempo mais? Sei lá, jacaré é tudo igual… Digo e repito que certa estava minha avó, nasci nua, estou vestida, já vou no lucro.

 

Quando ela se foi, senti o alívio em continuar aqui, mas era impossível ficar feliz. Fiquei pensando como as pessoas podem surpreender tanto. Não era um casal que acabou de se conhecer, estavam juntos por onze anos e com um filho. Entendo uma relação terminar, a mágoa, a raiva, entendo um monte de coisas, mas não posso aceitar a crueldade, muito menos a premeditada, porque isso é de gente covarde.

 

Sem combinar, Luiz e eu pensávamos o mesmo em cômodos distintos. Conseguia me imaginar com muita raiva, com ódio mesmo, talvez fazendo coisas hoje impensáveis em um momento passional, mas não me via nem perto de canalhice ou covardia parecidas. Arrisco a por minha mão no fogo e também duvido que Luiz fosse capaz de algo assim. Como algumas pessoas enlouquecem dessa maneira?

 

Resolvi fazer um bom jantar, tomar um vinho. O leão do dia havia sido resolvido. Não posso dizer que gostei da chacoalhada, mas é importante de vez em quando prestarmos atenção em o que somos, o que temos e a diferença entre as duas coisas.

 

Acordei sem grandes pressas, meu gato pedindo carinho e Luiz telefonando quase simultaneamente, eles combinam. Não deu quinze minutos e o telefone tocou outra vez, achei que era Luiz, que esquecia de falar alguma coisa. Atendi em português, com aquela voz de preguiça.

 

Do outro lado, uma voz espanhola, era da comisaria de policia, sobre o nosso processo de cidadania. Dei um pulo e me transformei em concentração absoluta. Só esperava receber alguma notícia pelo meio do ano que vem e não havia chegado nenhuma correspondência. Ele me pergunta quando posso fazer a entrevista e eu, por mim, amanhã. Então, amanhã às 12:00hs.

 

Estou em cólicas, uma mistura de preocupação e euforia. O caminho ainda é longo e sei que precisarei de mais paciência, mas a possibilidade de dar um novo passo é estimulante. Em menos de 24 horas, uma reviravolta completa, só pra me dizer, acorda, Dona Chica, você ainda tem tempo, em breve talvez possa sair da areia movediça.

 

92 – Anozinho que não acaba

Ontem a proprietária do nosso apartamento ligou, quer conversar. Realmente, espero que seja para nos desejar feliz Natal, mas duvido. Hoje ela passa aqui no fim da tarde, assim que não será um mistério tão agoniante.

 

Gosto daqui, estamos a menos de um ano no apartamento e mesmo para ciganos como nós, é pouco tempo. Gastamos com a mudança, compramos uma ou outra coisa que sabíamos ser a fundo perdido, apenas esperávamos que pudéssemos amortizar um pouco mais. Mas se tiver que ser, também não vou fazer disso um bicho de sete cabeças, será só outro lugar, que ainda não é o meu.

 

Pedi uma carta de autorización de regreso, necessária para deixar o país caso queira viajar. Ficou marcado para 13 de janeiro e até lá, sou mais ou menos prisioneira sob condicional, meu direito de ir e vir fica restrito à sorte e ao humor da imigração. Continuo tendo que fazer de conta que isso não é nada demais, que não deveria me irritar com essas besteiras. Pimenta nos olhos dos outros…

 

Lá vou eu para aquela fila no frio, depois esperar horas para ser atendida, escutar pela quinta vez que o meu pedido de visto de trabalho foi negado. Daí pergunto, por que, algum problema? Tem alguma relação com a carta? E eles respondem, não é que está escrito aqui. Como se eu não soubesse e eles realmente precisassem me lembrar.

 

Ainda quero a cidadania, ir embora antes disso é como ser roubada, preciso que o tempo me recompense de maneiras um pouco mais concretas do que pela experiência.

 

Vamos aguardar a próxima paulada.

 

91 – Um show muito engraçado

Tenho um gosto razoavelmente eclético para música. Talvez mais do que gosto pessoal, seria melhor definido como uma alta tolerância a diversos estilos musicais.

 

A diferença básica é a seguinte, é lógico que tenho minhas preferências e para elas sou bastante exigente. Aquelas canções que escuto tanto que o CD deve ficar mais fundo em alguns lugares, como se pudesse sugar seu conteúdo. Sou daquelas que prestam atenção nas letras, aumento o batimento cardíaco com uma boa percussão e me arrepio inteira com metais e violinos.

 

Entretanto, alguns estilos que não posso dizer que gosto, não me incomodam. Não compraria um CD, não escutaria de propósito, mas se está ali e posso me divertir com isso, eu tento. Já estou mais do que careca de ter passado pela fase de me preocupar com o que pensarão de mim se souberem que gosto disso ou daquilo. E é uma sensação libertadora.

 

Acho que é um pouco como ter conversas com amigos. Um papo sempre intelectual é tão chato quanto um sempre estúpido. Tem dias que quero ir fundo em algum tema. E outros, só quero morrer de rir.

 

Sair do meu país de origem, me deixou mais eclética ainda. Por um lado, dá vontade de conhecer outros estilos e embarcar em outras culturas através de sua música. E nos ritmos brasileiros, fiquei capaz de cantar empolgada coisas que nem sonharia antes, só para ficar mais perto da minha língua. Acabei descobrindo que era bom, e que fazia parte da minha essência, gostando ou não. Através da arte, aprendi a respeitar coisas que não gosto e isso me abriu portas, ampliou minha perspectiva.

 

Quando tem algum show de bandas brasileiras em Madri, independente do que toquem, tento ir. Quer dizer, quase tudo, nunca consegui tolerar música sertaneja por exemplo. Não por uma questão de qualidade musical, mas porque não tenho absolutamente nenhuma referência country, sou urbanérrima! Mesmo assim, talvez vá algum dia, não sei, mas não importa agora.

 

Pois é, daí veio o Falamansa para Madri, soube na semana passada. Um casal de amigos ia, já imaginava que a brasileirada estaria em peso, a gente sempre encontra as mesmas caras. Luiz ia viajar a trabalho, fiquei meio na dúvida, mas quer saber, também vou ficar em casa sem fazer nada? Então eu vou.

 

Vou ser sincera, não tenho absolutamente nada contra o Falamansa, acho até eles bonitinhos, entretanto,  apenas conhecia uma música. Pior, conhecia três músicas, mas achava que era uma só. Aquele frio na cidade, inverno total, e ainda por cima tinha que ir sozinha para um show. Vamos combinar, tinha tudo para ser um mico, né?

 

Acontece que estava de bom humor. Fez sol durante o dia.

 

Troquei novecentos e trinta e dois e-mails pela tarde toda com os amigos. Ninguém estava com a menor vontade de trabalhar, acho que foi o dia mais improdutivo nas empresas espanholas. Mas tudo bem, já comecei a me divertir aí e descobri que encontrar conhecidos é que não seria nenhum problema. Depois, o clã dos imparáveis estava quase completo e preciso me esforçar para não perder minha posição.

 

Eu, caxias para burro, acho melhor a gente chegar cedo para pegar um bom lugar! Putz, acho que fomos os terceiros a entrar, dava até pena da casa vazia. Na entrada, perguntaram se éramos clientes VIP, bom, VIP não somos, mas somos muito legais, ajuda?

 

Não sei o que deu na gente, mas estávamos todos atacados nesse dia, com as línguas mais do que ferinas. Daquele jeito que se você engole muita saliva, morre envenenado. Eu sei que vou para o inferno, mas agora estou tranquila que não estarei por lá sozinha! E verdade seja dita, o povo estava pedindo para ser sacaneado. Nós só atendemos.

 

Um rapazinho enrolado com a bandeira do Brasil, com uma peruca black power colorida, dançando freneticamente. Até aí, tudo bem, esse até parecia simpático, o garoto estava feliz, deixa ele.

 

De repente, a gente nota um brilho na sala. Um cidadão, que parecia espanhol, estava com uma camisa comprida de botão, cor de rosa, com listras bordadas… em paetê! É difícil descrever, mas garanto que nunca na minha vida vi nada tão cafona. Pior, estava com a namorada, ou seja, quem escolheu esse mimo foi ela, né?

 

Do nosso lado, um senhor careca, gordinho, com pinta de espanhol dono de taberna tradicional, acompanhado de uma jovem fogosa mulata, que dançava sozinha na sua frente. A gente esperando o momento de chamar a ambulância com oxigênio para o coroa.

 

E não é que começou a chegar gente? Animou. Tudo bem, a verdade é que a essa altura nem estava mais ligando, estava com meus companheiros de inferno e uma boa dose de whisky. Mas realmente a casa encheu.

 

Apareceu um DJ e começou com um repertório funkeiro que estávamos totalmente desatualizados. Em especial, uma musiquinha do sabonete que um pouquinho menos canalha, ficaria enrubrecida. Também é verdade que não conseguia entender metade da letra, o que nesse caso, foi uma benção!

 

Três mocinhas se empolgaram, salto agulha, mini-vestidos de oncinha e aquela coreografia para lá de suspeita. Tudo bem, pode dizer que é despeito, talvez se fosse homem, me empolgasse, mas não sou e como já disse, estávamos todos atacados nesse dia. Portanto, como se houvesse uma parede de chumbo entre nós, ficávamos na cara dura imitando a coreografia de um jeito, digamos, bem menos sexy.

 

Nossa atenção foi desviada para um rapazinho, justo na nossa frente, que começou a se exibir para duas meninas. Tentava dançar de um jeito que nós imaginamos que ele pensava estar provocativo, porque dava aquela arrebitadinha no bumbum para rebolar. Com toda aquela ginga, beleza e graça de um gringo. Pensei em avisá-lo que o único lugar em que ele faria sucesso com aquela dancinha seria na cadeia.

 

Entrou uma banda para abrir o show. Nós nos esforçamos para dar uma força para a galera, é sempre difícil começar. Mas, sério, houve um momento que quase sentimos saudades do DJ pornográfico.

 

Até que, finalmente, entrou o Falamansa, e para quem pensa que vou meter o pau no show, se engana, foi bom. Alto astral, tocam direitinho. Se estivesse com Luiz, me divertiria mais, porque forró e xote é bom de dançar em par. Mas não tinha do que reclamar.

 

As pérolas da noite não terminaram por aí. Por mais que nosso senso crítico estivesse bastante apurado, na prática estávamos na maior boa onda e talvez por isso, ninguém se importou em se aborrecer conosco. É muito provável que também estivessem rindo da nossa cara, o que, juro, também não me importava.

 

Uma menina começou a invadir nosso espaço vital, filmando o show. Quando estava praticamente entre uma amiga e eu, comecei de farra dizendo que ia entrar na frente do vídeo, ou algo do gênero. Assim como deveríamos estar invisíveis, quem sabe também estivéssemos inaudíveis! Claro que ela escutou e era brasileira, mas sorriu e respondeu que aí é que ficaria mais engraçado! Pronto! Já achei ela simpática, só não estava vendo para onde ia, no final, até ajudei a filmar.

 

É que espanhol é um saco com esse negócio de espaço, ficam sempre colados em você igual a passarinho. Chato pacas! Brasileiro quando faz isso é porque não percebeu.

 

Bom, uma hora o show acabou e quase fomos atropeladas por um mocinho que rolou escada abaixo, como um dublê, nem sei como ele conseguiu não se machucar. Levantou, sem graça, bem rápido, talvez na esperança de ninguém ter visto. E minha amiga que se livrou do atropelamento por centésimos de segundo, dizendo: boliche, boliche! Coitado!

 

Na saída, uma cidadã sentada no chão, una borrachera de dar gosto! Sério, acho que nunca vi uma mulher tão bêbada, deprimente! Fez xixi nas calças e tudo. O namorado em desespero tentando tirar ela dali. E eu passando rapidinho com medo que ela me vomitasse, credo!

 

Saio do local e escuto uma voz ao vento: co-xi-nha…. co-xi-nha… co-xi-nha… Como assim? Será uma ilusão auditiva? Coxinha? Na madrugada madrileña? Como é que iria resistir?

 

Sim, era uma coxinha feita por nem-tenho-idéia-quem, sabe-se lá a procedência dos ingredientes, comprada no meio da rua. E eu, a fresca com TOC, não pensei duas vezes! Me atraquei com o salgadinho frio, enquanto aquele namorado desesperado tentava, sem sucesso, empurrar a mocinha da incontinência urinária em um taxi.

 

Nisso, passa outro taxi ao lado e não quis correr o risco de me acotovelar em busca de condução para casa. Despedi rápido dos amigos e mergulhei no carro, com a coxinha e tudo! Entrei mastigando e pedindo desculpas ao taxista, mas é que estava morta de fome! Ele, bastante educado, nem sabe que se livrou da bêbada mijada.

 

Cheguei em casa, o telefone tocou logo em seguida, minha amiga checando se cheguei bem. Sim, sã, salva e feliz.

 

A coxinha não me fez nenhum mal e, no dia seguinte, também descobri que por pouco havia me livrado de passar em meio a um protesto violento no centro da cidade, coisa rara de acontecer, mas aconteceu.

 

É que estava naqueles dias em que você é imune ao mal, quando nada de ruim pode te passar, e essa crença é o melhor amuleto que alguém pode carregar. Tem dias que carrego.

 

…êê pra surdo ouvir, pra cego ver que esse xote faz milagre acontecer…

 

90 – Idiomas coloridos

Queria saber ler música.

 

Quando era era criança, não sei, talvez com uns seis anos, bem pirralha, comecei a aprender piano. Por alguma bobagem infantil qualquer, não quis mais ir às aulas. Não é que não quisesse aprender piano, impliquei com o lugar ou com a professora e, com essa idade, não tive exatamente uma grande maturidade para lidar com o tema.

 

De qualquer maneira, a melhor lembrança que tenho dessa época era a de começar a aprender a ler música. Para facilitar e tornar o aprendizado mais interessante, as notas tinham cores e as partituras viravam linhas coloridas com claves desenhadas. Eu me lembro da sensação de olhar para o papel e ver a música.

 

Eu perdi essa habilidade, não sei mais, não lembro. Modéstia à parte, sinto que tenho um bom ouvido, porém bem pouco educado.

 

Muitos anos depois, vi um maestro reger uma orquestra de jazz em Praga, e estava muito próxima a ele. A partitura tinha cara de uma equação matemática gigantesca, me parecia uma língua impossível e indecifrável. Ao mesmo tempo, ver a concentração dele acompanhando cada nota e definindo quem entrava e quando, não deixava a menor sombra de dúvida que ele sabia perfeitamente o que estava fazendo. Vou ser sincera, morri de inveja! Passei o tempo todo atenta ao papel, aos seus gestos e as respostas sonoras. Em alguns momentos, quase sentia como seria a sensação de entender, por puro instinto, mas a verdade é que era um idioma tão claro para mim quanto o tcheco.

 

Na aula passada do coral, a professora nos levou uma música com a partitura. Muito simples, uma musiquinha de Natal. No primeiro momento, não me preocupei por não saber ler as notas, não era tão importante, ela simplesmente nos levou para dar uma idéia do que era. Mesmo assim, prestei atenção porque acho interessante.

 

Pois enquanto rolava a explicação, não é que bati o olho na frase que canto e vi! Uau! Parecia aqueles jogos de ilusão de ótica, que no primeiro momento é uma imagem confusa, você fica olhando e de repente a imagem salta para você. Foi assim, de repente a música saltou, e lembrei da sensação de vê-la.

 

É muito parecido quando você começa a aprender um idioma novo. Quanto mais você sabe, mais percebe suas limitações e seu sotaque, mas as primeiras palavras são sempre as melhores, porque são a chave para abrir uma porta. Eu me lembro quando comecei a aprender inglês, e como acreditava que com três ou quatro frases eu realmente falava alguma coisa. Era quase nada, mas o suficiente para achar que podia me comunicar, e por acreditar, falava.

 

Hoje, bem ou mal, falo outros idiomas, ainda tenho bastante curiosidade e a sensação de que não é o suficiente. Vira e mexe, me bate essa ambição de saber também línguas mais coloridas, pelo outro lado da cabeça, com imagens, sons, cheiros e sabores. E sempre me empolgo com isso!

 

89 – Expressões espanholas que nunca sei utilizar

Tenho uma amiga espanhola que é uma figuraça! Advogada, baixinha e invocada, parece que está constantemente ligada em uma tomada de 220 w. Sabe essas pessoas que você imagina que já acordam falando, gesticulando, rindo, reclamando… tudo junto! Pois me divirto com ela e com sua energia.

 

Mas há uma característica especial que me chama a atenção que é sua capacidade de tirar da manga e utilizar umas expressões curiosíssimas. Às vezes, fico na dúvida se são expressões comuns ou ela inventa na hora, porque sempre soam originais.

 

Ontem ela veio jantar aqui em casa, nos trouxe uma “torta boba”, típica de Alicante,  onde ela nasceu. É um bolo branco, simples e delicioso, que amo comer no café da manhã. Sabendo disso, vira e mexe ela traz para a gente.

 

Claro que não demorou dez minutos, começa ela a disparar aquelas frases ótimas que ficamos Luiz e eu, como é que é? E Luiz: habla en cristiano, ¡por favor!

 

Até que não me aguentei, peraí, vou buscar papel, caneta e anotar. Porque faço a maior força para decorar na hora, mas as risadas e o vinho me fazem esquecer muito rápido. E mesmo as expressões que consigo memorizar, nunca encontro uma brecha para soltar, assim naturalmente, em uma frase.

 

Aí que ela se empolgou e me deu uma lista!

 

Bom, se achava difícil decorar, traduzir se fez mais complicado ainda. Porque fora do contexto não é a mesma coisa. O legal é ela falando toda decidida e gesticulando espanholamente. A entonação é tudo! Mesmo assim, aceitei o desafio e descrevo abaixo o Corolário de Cris.

 

  • Si te gusta bien, y si no, te pones un lazo: se gostou, bem, se não gostou, põe um laço; ou seja, gostou bem, não gostou, problema seu.
  • Te voy a enseñar lo que vale un peine: vou te mostrar o que vale um… pente? Pois é, não tenho a menor idéia quanto vale um pente, mas isso falado em castelhano rapidinho é como, vou te mostrar o que é bom para tosse.
  • Donde no hay, no se puede pedir: onde não há, não se pode pedir. É usado de maneira a menosprezar, por exemplo, um imbecil.
  • Ser más corto que las mangas de un chaleco: mais curto que as mangas de um jaleco. Parecido com a expressão acima, utilizada para descrever um indivíduo de pouco alcance, um idiota. Dá para perceber que ela estava aborrecida com alguém, né?
  • Donde la espalda pierde su casto nombre: essa é ótima! Onde as costas perdem seu nome casto, vulgo, culo. A tomar por donde la espalda pierde su casto nombre!
  • Más pesao que una vaca en brazos:  pesao é abreviatura de pesado, tradução, mais pesado que uma vaca carregada nos braços. É que pesado aqui é muito utilizado para descrever alguém maçante, chato, difícil. Un pesao!
  • Pasar por los cojones: esse tem que ser dito com o rosto meio de ladinho, me lo paso por los cojones! As variações são, me importa un huevo, me importa un pimiento, me cago en diez. Não dou a mínima! Tô cagando e andando!
  • Corto de piel: pele curta. Essa requer uma explicação mais descritiva. É assim, quem tem a pele curta, quando fecha os olhos, digamos que outro olho se abre. Tradução: peidão.
  • No quieres té? Pues toma dos tazas: não quer chá? Pois toma duas taças. Não pediu? Então, agora não reclama!
  • Estar más perdido que Tarzan en un geranio: mais perdido do que Tarzan em um gerânio. Hein? Putz, me perdi também!
  • A dios rogando y con el mazo dando: essa tem uma certa conotação sexual. Na hora do “mazo dando” fica mais legal dando umas batidinhas na mesa.
  • Aqui te pillo, aqui te mato: outra com conotação sexual, no esquema vamos direto ao assunto. Esse para ser perfeito tem que dar uma olhadinha para baixo na hora do “aqui” e um sorrisinho imaginando a cena. Pode ser substituído por “menos li-lí-li y más la-lá-la”.

 

Pues, chati, ¡ya esta! Si te gusta, bien, y si no, te pones un lazo… ¿vale?

 

88 – Notícias bizarras

Em meio a tanta notícia de desgraças espalhadas pelo mundo, cansei e acabei me fixando em algumas bizarras. Pelo menos, ficam razoavelmente estranhas em um espanhol mal traduzido ou em uma mente distorcida como a minha.

 

A primeira delas foi de um assalto a banco, realizada por ladrões com máscaras. Onde está o esquisito? É que máscaras aqui se diz caretas, e a notícia ficou algo como: atraco a un banco con caretas y pelucas.

 

Não conseguia levar o resto da notícia a sério, porque não parava de imaginar um cidadão de perucas berrando que era um assalto e logo colocando a língua para fora, torcendo o nariz, fazendo uma careta daquelas! Imagina isso no Rio de Janeiro? O caixa se acabando de rir e chamando o gerente, olha, tem um traveco maluco aqui se contorcendo e dizendo que é um assalto…

 

Mãos ao alto! Isso é um assalto!
Mãos ao alto! Isso é um assalto! Passa a grana!

 

Mas não acabou aí, fica pior. A próxima notícia terrível era sobre um assassino condenado. A história era realmente triste, o cidadão que cumpria pena, saiu com uma permissão temporária da cadeia e nesse período, matou quem era sua atual namorada. Não satisfeito, foi atrás da ex-mulher para matá-la também. Por uma sorte, essa senhora não estava em casa e, por isso, se livrou da morte.

 

Até aí, prestava atenção solidária. Mas de repente, aparece a tal ex-mulher para dar uma entrevista consternada e com toda razão. Quando leio o nome da pobre, era nada menos que Herminia Buceta. Juro! Pronto! Aí já me avacalhou. Não conseguia deixar de pensar no assassino que perseguia sem piedade a Doña Buceta! Coitada, deixa ela em paz!

 

Eu sei, é verdade, eu e meu senso de humor merecemos ir para o inferno!

 

87 – Cinco minutos de fama

Vou contar um segredo secreto. Só é secreto porque não é só meu e não gosto de contar segredo dos outros. Mas como agora fui autorizada, lá vai pelo menos uma parte do acontecimento.

 

Uma das nossas amigas cantora está gravando um CD. Essa gravação é aqui em Madri e visa o público hispano-americano. Onde é que entramos nessa história? É que alguns integrantes do coral, que fazemos parte, foi chamado para participar em uma faixa.

 

E… tcham tcham tcham tcham… nós agora cantamos oficialmente em um CD de verdade!

 

Bom, eu estou achando o máximo! É uma experiência que nunca imaginei ter e é gostoso viver por alguns momentos uma vida diferente. Assim como para outros participantes da palhinha, a oportunidade de gravar em um estúdio profissional era única. Quem sabe apareçam outras, na vida a gente nunca sabe, mas já estamos mais do que no lucro.

 

Foi assim, na sexta-feira, só para variar um pouquinho, fomos os primeiros participantes a chegar no estúdio. Nossa amiga cantora já estava por lá gravando. Luiz entrou no local da gravação e ficou assistindo. Eu achei melhor esperar na sala mesmo, para não atrapalhar.

 

De repente, olhei em volta e notei que me sentia bem no local. Comecei a rir sozinha quando percebi que era por causa dos quadros e gravuras nas paredes. Eram vários e incrivelmente bons! Parecia uma galeria de bom gosto. Alguém distraído poderia não notar, mas qualquer olhar um pouco treinado, sabia que havia referências importantes, tudo muito pensado. Podia não ter nada a ver com o fato de estarmos ali para cantar, mas já gostei.

 

Os amigos começaram a chegar e foi batendo um friozinho na espinha, para a gente, era tudo muito novo.

 

Claro que levei a máquina fotográfica, como é que não iria registrar o momento. Depois, quando o CD for lançado, faço a propaganda aqui, tudo direitinho. Por agora, conto só a experiência.

 

A música que participamos é uma espécie de desafio entre meninos e meninas, e assim o grupo foi dividido, primeiro gravaram as seis mulheres e em seguida os seis homens.

 

Tudo como manda o figurino, entramos em um estúdio com tratamento sonoro e colocamos nossos fones de ouvido. Do lado de fora do vidro, nossa maestra e o dono do lugar nos enviando as coordenadas. E a gente dentro, com aquela cara de colegiais, tentando entender o que fazer e errar o mínimo possível. Uma vontade de rir infantil!

 

Repetimos algumas vezes, porque certamente eles precisarão fazer um trabalho de corte e colagem para garantir o melhor resultado. Mas achei que foi mais rápido do que esperava. Curti para burro! Estou super curiosa para ver o resultado final.

 

Assim que terminamos nossa parte, entraram os meninos. Corri para fotografar o Luiz e o grupo. Quando eles começaram a gravar, fui verificar as fotos que o Luiz tinha tirado das meninas e tal. Não havia nenhuma! Não acreditei! Ele estava batendo fotos com outra máquina e não tinha uma fotozinha minha de nada. Caraca, como é que ia tirar onda depois? Que raiva!

 

Daí fiquei com a câmera pronta para esperar quando eles terminassem e alguma alma caridosa me tirasse uma foto dentro do estúdio. Aconteceu que na hora que eles terminaram e fomos liberados para entrar, estava tão ocupada com a câmera que nem levantei a cabeça. Entrei de cara na porta de vidro e deixei minhas digitais da testa prensadas para que não houvesse dúvidas. Um micão! Mas tudo bem, esse conto em detalhes no Sefodeaí.com. O importante é que rolaram as fotos, inclusive a da saliência na minha testa! E, no fundo, mesmo sendo a protagonista desse evento totalmente dispensável, bem que achei engraçado.

 

Tudo bem também, porque depois trocamos as fotos entre nós do grupo e no fim das contas, todos aparecíamos, e assim está garantido o registro para lembrarmos dos nossos cinco minutos de fama.

 

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De lá, como se diz por aqui, salimos de marcha pelo centro da cidade para comemorar. Isso é normal por essas bandas, a gente não fica em um lugar só. Entramos em um bar, bebemos e picoteamos um pouco, mudamos de lugar e repetimos o ritual, e por aí vai. Não chegamos a rodar muito, até porque fazia un frío que pela, mas gostei especialmente de um restaurante e bar chamado En Busca del Tiempo, na Calle Barcelona. Algumas garrafas de vinho depois, já estava morta de calor, leve com menos três camadas de roupa e juro, sem nenhuma condescêndencia, feliz. Eu sei, o vinho sempre nos deixa mais emotivos, pode ser, mas estar com gente legal em um lugar com esse nome tão sugestivo, só podia ser bom. O garçon, que brindou conosco na última rodada, nos acompanhou até a porta como se fôssemos clientes de sempre, talvez possamos nos tornar.

 

Na volta para casa, obviamente agora bem agasalhada, não me importou nem a chuva rala nem o frio. Quem diria que a essa altura teria a chance de participar de uma gravação e ainda por cima em Madri! A vida dá voltas curiosas e ainda há muito por fazer.

 

86 – Frio, preguiça, árvores meio mortas, mas faz sol

Falta vontade para escrever. Acontecimentos picados, histórias que ainda vou juntando as pontas, algumas vou ruminando na cabeça até que faça algum sentido.

 

O outono tem um início lindo, talvez seja a época mais bonita, mas essa beleza dura pouco e logo as árvores ficam peladas, com pinta de meio mortas. O chão fica coberto por um tapete amarelo, que honestamente gosto, mas sei o trabalho que dá. Parece quando chega a neve e a gente acha tudo com cara de cartão postal, mas no dia-a-dia o lado prático nem sempre é tão agradável assim. Bom que Madri quase não neva.

 

É também a época que começo a me precaver contra a deprê de inverno. Esse ano decidi que não vou deixá-la me pegar, estou macaca velha e me esforço em antecipar minhas receitas caseiras. Mudar a alimentação, apimentar a comida, sair para caminhar com ânimo ou desânimo, esportes de inverno, ajuste de calefação.

 

A calefação é uma coisa interessante e contraditória. A medida que o tempo vai esfriando, as pessoas tendem a aumentar a temperatura dos aquecedores. Aprendi que devemos fazer exatamente o contrário. É importante acostumar o corpo às temperaturas mais baixas, e se a calefação está sempre a tope, cada vez que colocamos o nariz na rua é um choque térmico tremendo, e quando voltamos é um calor súbito que me deixa tonta, acho que baixa um pouco minha pressão, sei lá. Resultado, um monte de gente doente! Tenho conseguido driblar os vírus, o que é sinal de boa resistência.

 

Mas o pior é sempre a falta de luz. De um mês para o outro, perdemos pelo menos 4 horas de luz ao dia, e isso porque a Espanha é privilegiada. Fico melancólica e às vezes não sei se é a luz ou se sou eu.

 

Semana passada chegou a carta do meu visto de residência, para tirar as digitais. Abri o envelope toda feliz, afinal de contas, a tal carta costuma chegar entre fins de outubro, tiro as digitais por novembro e em dezembro meu documento está regularizado. Mas não foi assim dessa vez, está tudo atrasado e marcaram a bosta das digitais para março do ano que vem! Ou seja, um ano de espera! Ninguém merece! Isso quer dizer que não tenho como fugir da maldita carta de regresso, mas ainda bem que não a tirei antes ou não poderia ir regularmente ao Rio para o aniversário do meu pai.

 

É claro que fiquei aborrecida, essa coisa de documentação é o que mais me chateia em morar fora do Brasil. Inevitável não pensar no nosso pedido de cidadania que corre em paralelo. A gente precisa tentar, mas no fundo me bate aquela pontinha do será que valerá tanto trabalho e tanto tempo? Será que estou perdendo tempo? Tempo, tempo, tempo, de repente passei a me preocupar com ele, que cada dia se acelera.

 

Para completar, recessão européia e crise mundial. Tranquilizador.

 

Eu no chove não molha do engravido ou não engravido. Isso não depende só de mim, mas não consigo mais ter toda aquela certeza que tive um dia. Houve um momento esse ano que achei que podia tudo, tudo me parecia simples perto do que já havia vivido. Sentia que era capaz de tocar qualquer barco.

 

Em outubro levei uma rasteira, quando levantei, ao invés de querer celebrar as vitórias e a sorte que sempre temos para sair dos problemas, senti cansaço. Sou muito mais frágil do que queria ser. E o dia inteiro martela na minha cabeça a pergunta, tem certeza? Passei a vida ouvindo todos os motivos para um sim e insisti que não. Agora resolvo tentar e o mundo parece me avisar que é uma má idéia. Não é o melhor momento, eu sei, acontece que só tenho esse momento, se ainda tiver. O maldito e bendito tempo.

 

No meio de um mar de dúvidas, leio uma resposta da minha mãe a uma mensagem mais antiga dizendo que tudo passa. Eu sei, tudo vai passar, pode doer mais ou menos, mas passa. E quem cura também é o tempo.

 

Sinto falta de um emprego e é a primeira vez que sinto isso. Antes, a arte me preenchia, mas se tornou algo abstrato demais, um grito no vácuo. Escrever ainda me salva, mas é pouco. Talvez seja pela chegada da crise, que antagonicamente me anima, me lembro quando trabalhava oficialmente, era sempre nas crises que ganhava mais dinheiro e me alavancava.

 

Segunda-feira abriu um sol maravilhoso! Muita gente não percebeu porque chegou junto com um frio do cão, mas ele estava lá, radiante e me empurrou para rua. Engraçado, que a rua onde moro parecia mais larga, percebi logo que era o efeito das árvores sem folhas, por um lado é meio triste, mas por outro, você vê mais o céu, amplia seu horizonte.

 

Faxinei a casa, abri bem as cortinas, algumas que vivem fechadas. Sabe de uma coisa, falta uma árvore de Natal.

 

Saí para achar alguma árvore, mas não queria investir muito nisso, às vezes somos nós mesmos que bolamos alguma alternativa, fica mais divertido. Acabei encontrando uma pechincha por 7 euros! Uma pobre árvore raquítica que passava despercebida, mas só porque não estava bem montada. Pensei que se não desse jeito na dita cuja, podia aproveitar a armação e fazer outra. Sabe que deu jeito? Daí aproveitei e fui tirando da cartola luzes e outros detalhes, essa é a vantagem de ter atelier em casa. Pronto, me empolguei, ainda não está tudo pronto, mas acho que vai ficar legal.

 

E quer saber, por que não uma festa de Ano Novo?

 

Natal é mais família. Se não tenho a minha oficial próxima, fico com a família dos amigos e tudo bem. A tecnologia está aí para isso, temos telefone, internet, webcam e o escambau! Está tudo bem.

 

Não quero lembrar de 2008 pelo que houve de triste, porque não foi só isso. Tem uma estratégia interessante, muito utilizada pela igreja católica, que é a de substituir símbolos. Eles sabiamente entendem que símbolos não morrem, se você tentar abafar, cria mártires ou reforça o mesmo pensamento, portanto, coloca-se outra coisa no lugar e pumba! Por exemplo, Jesus Cristo nunca nasceu em 25 de dezembro. A data foi escolhida para substituir o festival pagão, do solistício de inverno, que hoje ninguém mais lembra o que é, pois afinal de contas, 25 de dezembro virou Natal! Mas enfim, não venho agora discutir religião, simplesmente acho uma estratégia brilhante, então, por que não aproveitá-la?

 

O que tento fazer é não alimentar traumas. Se alguma coisa ruim aconteceu, na medida do possível, procuro substituir a experiência em um lugar ou situação parecidos, assim, minha última lembrança é boa, ou pelo menos melhor. A última lembrança é sempre mais forte. Isso às vezes implica em revisitar fantasmas, mas outras é mais fácil. Por exemplo, na terça-feira precisei ir ao Hospital San Camillo, onde descobrimos que meu pai teve o AVC e a coisa se complicou. Uma amiga, muito gripada, pediu ajuda para levá-la à emergência. Em um primeiro momento, admito que o impulso era dizer, mas não vou mesmo! Depois pensei, hã hã, melhor matar esse fantasma de uma vez. Entrar ali foi bem nauseante e nada agradável, mas fui e passou. Está resolvido, não preciso mais passar pela frente desse hospital e pensar que nunca mais entro ali, já entrei. De lá fomos jantar fora.

 

Parecido a isso, pensei no Reveillon, que para mim sempre foi sinônimo de festa, de renovação. Acho o melhor dia do ano! E não há um motivo razoável para que não continue sendo. Não tenho como apagar as coisas ruins que aconteceram e algumas me incomodarão por um tempo, paciência. Mas não acho justo fazer disso o símbolo de 2008. Reveillon é festa, então vamos a uma que se preze!

 

E é isso aí, em dezembro se abre nova temporada de hóspedes e de festas. Já era hora.

 

85 – Vinhos outra vez

Pois é, ando meio monotemática, mas o que posso fazer? A culpa é do Luiz que comprou uma série de vinhos enfurecidos! Euzinha, resignada, me proponho a experimentar. Portanto, aviso logo no início e fica quem continuar interessado no assunto.

 

O curioso é que ele e eu entramos oficialmente de dieta na segunda-feira… e saímos dela na terça! Uma determinação espartana! Ele insiste em me convencer que sua consciência está pesada e que isso é um bom começo. Infelizmente, não é só minha consciência que está mais pesada, mas tudo bem.

 

Agora, a culpa também não é nossa. Na terça, minha amiga imparável, que continua guardando meu lugar para quando eu resolver voltar à bagunça, disse que queria comer arroz, feijão, carne moída e farofa. Putz! Como um ser humano que cozinha e tem os ingredientes em casa, pode escutar isso e não visualizar a cena? É claro que rolou o jantar no mesmo dia. Ué, e vinho combina com feijão? Who cares? A gente ia esperar os maridos sem beber nada?

 

 

PF da dieta do Luiz
PF da dieta do Luiz

 

Bom, ontem veio um amigo brazuca, que conhecemos desde os tempos de São Paulo e está morando com a esposa, nossa amiga também, na Suíça. O que quer dizer que sobra para o pobre normalmente tomar vinho… suiço. Ui!

 

Não nos vemos na frequência em que gostaríamos, mas sempre que isso acontece, em diferentes lugares pelo mundo, nos divertimos bastante. Além do mais, sabemos que ele adora vinho e, mais ainda, tínhamos acabado de voltar de La Rioja. Vamos combinar que parece mensagem divina, né?

 

 

 

 

Só que daí, sabe como é, para acompanhar à altura, teve que rolar um jamón iberico de bellota, unos huevos rotos con alcachofas, berenjenas e como golpe de misericórdia, uma paella de carne seca e linguiça. Tudo light!

 

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Mas vamos aos vinhos. Começamos como Dios manda, um branco, o Baigorri 2003, fermentado em barrica. Esse já conhecíamos, experimentamos na cata realizada na própria bodega. Eu, que não sou fã de brancos, acho esse especialmente interessante pelo sabor que deixa a barrica, foge totalmente da média. É elaborado com a uva da variedade Viura.

 

... foto em fundo metálico sucks!
... foto em fundo metálico sucks!

Com a boca melhor preparada, partimos para la droga dura, um Torre Muga 2005. Estava super curiosa para provar esse vinho, o 2004 foi considerado por uma classificação XPTO americana como o melhor vinho do mundo. Será que gostei?

 

É composto pelas uvas Tempranillo (75%), Mazuelo (15%) e Graciano (10%) e elaborado pelo método mais tradicional possível. O vinho permanece em carvalho por 24 meses, dos quais 18 são em barricas novas de carvalho francês, e o restante em depósitos de carvalho de 16.000 litros. É clarificado com clara de ovos frescos (sim, a quantidade de ovos envolvidos no processo é cavalar, e as gemas são descartadas).

 

 

 

 

 

 

Eu já me empolguei desde a hora de abrí-lo e colocar no decantador. A cor é um bordô poderoso que adianta a intensidade do cidadão. É um vinho complexo que nem vou perder tempo para descrever os aromas e sabores, tem ficha técnica dele na internet, só vou dizer o seguinte, é bom pacas! Ou como definiria meu digníssimo marido, é bom praca, superlativo masculino.

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Tudo muito bom, tudo muito bem, mas ele foi evaporando ao longo das várias entradinhas e, quando chegou a paella, estava no final. E aí, a dúvida cruel, continuamos em time que está ganhando ou arriscamos outro?

 

A lógica diria para continuar com ele, mas sou mulher e estou pouco me lixando para a lógica, portanto, abrimos outro. O Baigorri de Garaje 2003, o xodó da bodega, seu vinho de autor. É elaborado com uva Tempranillo de cepas antigas, aproximadamente 70 anos. A produção é pequena, os grãos são selecionados manualmente e a fermentação se dá em barricas de carvalho francês. 

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Redondinho, redondinho. E olha que não era uma tarefa fácil seguir o Torre Muga. Poderia ficar aqui comparando o que é melhor em qual, mas outra vez, who cares? Para que optar quando se pode ter os dois? Um prazer não elimina o outro.

 

Sobremesa? Claro que não, afinal de contas, estamos de regime. Um cálice de Porto, vá lá.

 

Para compensar o chute no balde e diminuir o peso, digamos, da nossa consciência, fomos caminhando com nosso amigo até seu hotel. Bom que o frio também deu uma consumida no teor alcoólico.

 

Ainda bem que hoje tem coral com percussão, além de não jantar, posso descer o braço no tam tam, que nunca sei como escreve, tudo bem porque também não sei tocar, mas vou aprender.

 

84 – Entre churros e castanhas

O engraçado é que não ligo nem para um, nem para outro, mas adoro seus aromas e estou aprendendo que eles começam a nos preparar para o Natal.

 

É assim, vivo em um país de estações definidas e isso significa que não só suas roupas mudam ao longo do ano, a alimentação também, tudo muda.

 

Por exemplo, no verão, até o café é servido com gelo. As sopas ficam frias, os gazpachos e salmorejos fazem um sucesso tremendo. No outono e inverno, desaparecem dos cardápios e são substituídos pelas quentíssimas sopas castellana ou de cocido.

 

Os churros são vendidos todo o ano, espanhóis adoram tomar chocolate com churros, seja no café da manhã ou no fim da madrugada. Entretanto, quando chega outubro, no mais tardar novembro, algumas barraquinhas temporárias, como trailers, começam a pipocar pelas praças da cidade. Tudo bem, eu sei que churros cheira a gordura, mas também o aroma do chocolate invade a redondeza.

 

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Assim como o aroma das castanhas, que começam a ser tostadas na rua. Às vezes também assam milhos, mas é o cheiro de las castañas que impera.

 

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Bom, eu até gosto de churros, mas no estilo brasileiro, sequinho, quentinho e repleto de doce de leite, o que não é o caso aqui. É possível comprar churros frescos e quentinhos, até bem feitos, mas não são recheados. Se comem molhando no chocolate quente, bem grosso. Visualmente, me parecem bastante apetitosos, mas nunca me acostumei ao sabor, além de ser uma bomba calórica.

 

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As castanhas, já gosto. Mas não consigo abstrair e comer os frutos que sei nunca terem sido lavados, tudo bem, a brasa resolve boa parte dessa questão higiênica, mas em seguida, são servidos em papéis de origem e armazenamento questionáveis. Sim, sou meio fresca e nessas horas o TOC ataca, e olha que melhorei muito!

 

De qualquer maneira, o que me parece interessante é chegarem, praticamente em paralelo, esses cheiros, os músicos tocando pelas ruas e as decorações de natal. É um completo quadro vivo de aromas, sons e luzes.

 

E é bom caminhar na rua assim.

 

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83 – Quem mata a cobra…

Muito bem, sem nenhuma conotação grosseira por favor, acho que quem mata cobra, tem que mostrar o pau!

 

Quanto a alguns vinhos, o texto passado ficou meio Sílvio Santos, naquele esquema, o filme é bom, eu não vi, mas minha mulher viu, o Lombarde viu… e por aí vai. Pois bem, citei alguns que me pareciam muito bons, mas não havia tido tempo nem condições etílicas de comprovar. Felizmente, essa é uma condição temporária que vamos mudando com prazer.

 

Esse fim de semana, experimentamos dois vinhos, o Prado Enea, Gran Reserva, na faixa dos 30 euros, e o Beronia, Reserva, na faixa dos 12. Digo os preços por uma questão de justiça, o nível de exigência também precisa ser proporcional. Além do mais, foram comprados diretamente na fonte, ótimo para nós, sem variações de câmbio ou impostos de importação. O que faz uma diferença brutal. Mesmo na Espanha, só de sair da Rioja, encontramos o mesmo Prado Enea por 40 euros. Não creio que fique mais caro do que isso, porque os vinhos não variam tanto assim de preço aqui, mesmo nos restaurantes.

 

Aliás, falando em preços de vinhos, preciso dizer, não há milagre! Acho o seguinte, não quer gastar, entendo. Não pode gastar, entendo mais ainda. Juro! Mas não me diga que o preço é puro marketing, nem tente encontrar aquela vinícola quase secreta, escondida no meio do nada, que tem um vinho fabuloso, baratíssimo, e quase ninguém conhece. Você foi um dos eleitos! Por favor, me poupe! Existe sim vinícolas de baixa produção e de excelente qualidade, mas os vinhos não são baratinhos e muito menos secretos. Sorry! E não, aquele vinho de 3 euros não é ótimo! Posso tomá-lo e sorrir, se for visita, posso nem ter dor de cabeça, mas por favor, não insista para que concorde com isso. Ficamos combinados?

 

Então, vamos ao que interessa, começando pelo Prado Enea 2000. Adianto logo, um show! As uvas são Tempranillo, Ganacha, Graciano y Mazuelo.

 

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Para quem prefere uma análise mais técnica, sua nota de cata, a qual concordo em gênero, número e grau, diz o seguinte, visualmente, cor rubí de alta intensidade; aroma de especiarias, couro e tabaco (sexismos à parte, realmente me pareceu um vinho bastante masculino); e na boca, harmônico, potente, persistente e elegante. Envelhece 12 meses em depósitos de carvalho de 16.000 litros, 36 meses em barricas de carvalho, e 36 meses em garrafa. Sua graduação é de 13,5o e a temperatura de serviço 18o C.

 

Como opinião pessoal, é um vinho intenso, encorpado, mas ao mesmo tempo, é elegante e guarda uma certa suavidade, ainda que seja um Gran Reserva. É um perfeito cavalheiro!

 

Outra coisa que acho interessante nos bons vinhos, muita gente se inicia esperando um sabor gostoso, mas digo sempre que gostoso é chocolate, vinho é outra categoria, é um prazer adulto, maduro. Não é Leonardo DiCapprio, é George Clooney. Ou em uma versão para os homens, nunca será a Sandy, muito menos a Mulher Melância, sem despeito, gosto é gosto. Mas acho que um vinho está mais para a chiquerrésima da Juliette Binoche, na idade que tem hoje.

 

Quanto ao Beronia, também gostei muito. Não se pode comparar literalmente ao Prado Enea, porque primeiro, um é Reserva e o outro Gran Reserva, e estão em patamares de safra e de preços diferentes.

 

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Assim mesmo, considerando sua faixa de preço, não faz nada feio, muito pelo contrário. As uvas são Tempranillo, Graciano e Mazuelo. Corresponde a vinhos selecionados, com envelhecimento mínimo de 3 anos, entre barrica de carvalho e garrafa, dos quais, pelo menos 1 ano permanece em barrica.

 

As Bodegas Beronia, como a imensa maioria das bodegas da região, utilizam para a criação barricas de carvalho francês e/ou americano. A diferença básica é que o carvalho francês aporta mais o sabor de especiarias, o americano, um sabor de baunilha. Algumas bodegas andam fazendo experiências com o carvalho de Navarra, mas nada definitivo.

 

Nesse vinho, especificamente, percebi mais o sabor de baunilha e algumas matizes de frutas vermelhas. Mas também há algo de couro, e me pareceu igualmente um vinho masculino. Na minha opinião, deveríamos esperar que fosse um pouco mais maduro para consumí-lo, mas pode ser um ponto de vista um tanto distorcido, porque o tomamos logo na sequência de um Gran Reserva. Assim mesmo, o aroma me surpreendeu e foi um ponto bastante forte a seu favor. 

 

E é isso, por hoje é só. Vamos nessa vidinha sacrificada, mas que alguém tem passar, né? A listinha que nos aguarda é quase uma sacanagem, que aos poucos irei contando.

 

82 – Fugindo, bem devagarzinho, para La Rioja

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Na quinta-feira, 06 de novembro, acordamos sossegados e fomos fazer as malas. Jack meio desconfiado, quando pegamos sua vasilha de comida e alguns de seus objetos de rotina, sentiu que o negócio era com ele também, se escondeu debaixo da mesa da sala. Ele detesta sair de casa, mas depois acaba relaxando, principalmente quando nota que não vamos à veterinária. Conferi as mensagens, aparentemente, tudo calmo, então vamos. Pegamos a estrada por volta da hora do almoço, em direção a La Rioja, uma cidadezinha chamada Casalarreina, cerca de três horas de Madri.

 

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Chegamos com um por do sol de encomenda, tudo avermelhado. No outono, os vinhedos também ficam uma mescla de diferentes tons de verde, vermelho e laranja. E no pano de fundo, já há um pouco de neve no pico das montanhas. Realmente, muito bonito! Havia caminhado muito próximo dali, na primavera passada, última vez que trilhei pelo Caminho de Santiago. Havia achado a região bem interessante, mas definitivamente, no outono é tudo!

 

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Chegamos à Hospedería Señorio de Casalarreina, parte do antigo Monasterio Dominico de Nuestra Señora de la Piedad, fundado em 1509. Um hotel de 15 quartos dentro de uma construção sólida, com as paredes formadas por um metro de pedra. O serviço é gentil e atencioso, a cidade é minúscula e tranquila. Exatamente o que queria, um pouco de paz.

 

Acomodamos o Jack, que se adaptou rápido, ele também gostou do lugar. Depois fomos dar uma volta e perguntar dicas de onde comer. Na recepção, nos informaram que os dois restaurantes mais famosos eram o La Cueva de Doña Isabel e La Vieja Bodega. Entretanto, havia outras cidadezinhas bem próximas, com boas opções gastronômicas. Tomamos nota, mas nosso plano era de circular pelos arredores durante o dia e jantar em Casalarreina. Assim, Luiz podia tomar seu vinho à vontade, sem se preocupar em conduzir de volta para o hotel.

 

Nessa noite, jantamos em La Cueva de Doña Isabel. Outra vez, serviço muito amável, aliás, devo dizer que em toda essa região, mesmo nas cidades vizinhas, as pessoas foram sempre muito educadas e gentis. O serviço é radicalmente melhor do que em Madri. As pessoas não só cumpriam suas obrigações, mas buscavam soluções e pode acreditar, isso de buscar soluções na Europa, mesmo em coisas simples, não é um lugar comum. De entrada, comi uma salada com queijo de cabra gratinado e na sequência, manitas de cerdo deshuesadas con hongos y risotto. Sim, a tradução é isso que você está pensando mesmo, e é divino! Aceitamos a susgestão do dono e tomamos um Tahon de Tobelos, Reserva. Da minha parte, nenhum arrependimento, pelo contrário, intenso e encorpado, como eu gosto. Até esse momento, estava comendo muito pouco e simplesmente não dei conta da sobremesa que prometia. Achei que, mais tarde, ia encalhar na cama! Por outro lado, eles tem uma seleção de grandes cafés do mundo, incluindo o brasileiro, que não pude resistir. Desde que mudamos para Espanha, nunca mais encontrei o Jamaica Blue Mountain, minha escolha para fechar o jantar e que tomei purinho.

 

No dia seguinte, pela manhã, a própria moça da recepção do hotel, havia nos reservado uma visita à bodega Muga. Fica em uma cidade chamada Haro, a dez minutos de onde estávamos hospedados. Boa parte das bodegas fica em Haro. Havíamos pedido para conhecer uma bodega tradicional e era exatamente assim. É muito bacana você ver de perto todo o processo produtivo e, em paralelo, ir entendendo os aromas envolvidos no vinho que vai degustar depois. Sim, porque a visita acaba com uma degustação, que em castellano se diz cata. Logo que cheguei à Espanha, achava que ir a uma cata de vinhos era participar da colheita, o que também me parecia interessante, ainda que não seja seu significado. Degustamos um branco de Rioja, algo pouco comum, a própria Muga está iniciando com os brancos. Nos ofereceram em seguida um crianza, nada mal. Engraçado, porque é comum você não tomar a taça inteira na degustação e jogar fora o resto do líquido. Mas imagina se euzinha, brazuca de guerra, ia jogar fora o resto do meu vinho! Nem morta! E se tentar tirar meu copo, eu mordo!

 

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A Muga também começou a fabricar o Cava, chamado Conde de Haro, o qual experimentei pouco depois e gostei. Fiquei curiosa para provar o Torre de Muga 2004, considerado um dos melhores vinhos do mundo, mas já não havia disponível. Compramos o 2005, que não deve estar mal. Também compramos o Prado Enea, Gran Reserva, que ainda não posso dar minha opinião porque não tomei, mas faremos isso em breve.

 

A visita a essa bodega custa 6 euros. Além do tour acompanhado, você participa da degustação de dois vinhos e te dão as taças como cortesia. Lógico que tudo acaba na loja dos produtos Muga, na verdade, todas as bodegas fazem isso. E vamos combinar que após a visita, quem quer sair de mãos vazias?

 

De Haro, seguimos para almoçar em Santo Domingo de La Calzada, acho que a uns vinte minutos dali. É tudo muito perto.

 

A primeira vez que estive em Santo Domingo, foi como peregrina. Cheguei com a mochila e as botas cheias de barro no antigo hospital de peregrinos, hoje um Parador chiquerrésimo. Na recepção, fui informada que pela minha condição, pagava a metade do preço e fui tratada com o respeito de quem ou já fez o Caminho ou conheceu muita gente que o fez. Me senti prestigiada e esse, até hoje, é meu Parador favorito. A cidade também é uma graça e fiquei com vontade de passar outro dia por ali, junto com Luiz. E aconteceu, lá estávamos e dessa vez, ia até cheirosa e arrumadinha. Se bem, que as botas eram as mesmas, antigas companheiras, só que agora limpas.

 

Tentamos almoçar nesse Parador, mas o restaurante não estava funcionando. Portanto, sugeri um outro restaurante que sabia ter boa comida. Tomei uma bela sopa Riojana quentíssima, como deve ser, e uma brocheta de solomillo ibérico. Vinho da casa, não importa, estávamos em La Rioja.

 

Plano para o resto do dia: voltar para o hotel e morgar, pensar o mínimo possível. Virar ameixa na banheira de hidromassagem. Esperar a hora do jantar e começar tudo outra vez.

 

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Reserva feita em La Vieja Bodega, assim como o Doña Isabel, um restaurante desproporcionalmente grande para a cidade, mas charmoso e incoerentemente aconchegante. A propósito, estava cheio. Ainda que esses lugares pareçam grandes, eles enchem, é sempre necessário reservar.

 

Putz grila! Não tem regime que resista! Receita de felicidade: de entrada, um bogavante com alcachofras de ajoelhar. Na sequência, presa ibérica, afinal, estávamos em um asador. Luiz comeu um ovo pochet, em baixa temperatura, com trufas, cogumelos e sopa de batata; faço algo parecido em casa, parece muito simples, mas é enlouquecedor de bom! Não lembro mais o que ele comeu de prato principal, devia estar muito ocupada! Claro, vinho! Dessa vez um crianza, sugestão do restaurante. E já que o balde estava mais do que chutado, vá lá, torta quente de maçã com sorvete de baunilha, de sobremesa.

 

Agora, era só rolar alegremente para o hotel.

 

Nessa noite, não resisti a uma conexãozinha de internet. Estava um pouco agoniada para saber se estava tudo bem. Não procurei muito, dei aquela pincelada geral e mandei um recado para minha mãe. No news, good news. Entre paredes de um metro de largura, em um monasterio de quinhentos anos, estava mais que bem protegida.

 

No sábado, fomos visitar outra bodega, a Baigorri, que fica em Samaniego. Dessa vez, queríamos o oposto da primeira, que fosse uma bem moderna. Em princípio, fui por curiosidade, mas achava que não ia gostar. Admito um preconceito com métodos mais modernos para a fabricação de vinhos, uma implicância com os Estados Unidos, provavelmente. Mas a verdade é que, na prática, achei o máximo! E por que não utilizar a tecnologia a seu favor? Sei que cada vez mais, me dava vontade de trabalhar com vinhos. No dia a dia, talvez perca seu charme, mas fazer parte desse tipo de produção me pareceu absolutamente sedutor.

 

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Enfim, no final da visita, novamente a cata. Experimentamos um vinho branco que honestamente me surpreendeu. Por ser fermentado em barrica, possuía uma acidez e um sabor de madeira bastante interessantes. Depois tomamos um tinto, de maceración carbónica. Olha, era um vinho redondinho, não tenho uma imperfeição para me queixar, mas talvez até por isso, me tenha parecido com pouca personalidade. A degustação foi seguida de jamón, embutidos, conservas e patês. Na minha opinião, um toque de gentileza que ao mesmo tempo, nos dava a possibilidade de experimentar a variação de sabores com o vinho. A Baigorri tem também um restaurante, com enormes janelas voltadas para as vinhas. Infelizmente, era cedo para almoçarmos, mas acho que deve valer uma visita.

 

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Levamos o vinho branco, o reserva e o Baigorri de Garage, considerado seu vinho de autor, elaborado com vinhas mais antigas, de aproximadamente setenta anos. Lo siento, mas ainda não experimentei.

 

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De Samaniego, seguimos para almoçar em Logroño. Toda essa estrada é muito bonita, você vai paralelo às vinhas e à cordilheira cantábrica. Logroño é uma cidade que me pareceu interessante, como uma mini León. A entrada é mais moderna e parece comum, mas assim que você entra no centro antigo, muda completamente. Há várias opções de bares e restaurantes.

 

Comemos em um lugar chamado Entrevinos, que por fora não chama tanta atenção. Dentro, possui uma decoração arrojada e moderna, contrastante com o entorno. O cardápio, para Espanha, é bem ousado, o que de cara me conquistou.

 

Além do mais, vale contar uma curiosidade, ali, como em boa parte dos restaurantes da região, não se vende vinho em taça, só a garrafa ou meia garrafa. É como se nem houvesse a possibilidade de alguém querer menos do que isso, o que é até bem razoável. Entretanto, há o caso do Luiz, que não bebe e dirige. Muito bem, por que estou contando isso? Porque queria acompanhar meu almoço com vinho, mas não tinha mais condição de beber uma garrafa sozinha e Luiz não ia beber. Logroño fica a uns 40 minutos de estrada até Casalarreina. Perguntei se podia tomar o vinho por taça, no que o dono do restaurante, educado, me disse que só serviam a garrafa. Respondi meio decepcionada, que pena, porque meu marido vai dirigir e uma garrafa é muito para mim, tomo só água. Ele respondeu, imagina, se é só uma taça, sempre tenho alguma garrafa aberta dentro, te sirvo da minha. Então tá, né?

 

Bom, comi uma salada de canonigos com molho de yogurt e langostinos. E de prato principal, um risotto de mascarpone, perdiz e cogumelos. De sobremesa, tiramisú desconstruído. E não adianta me gozar, o tiramisú não caiu no chão. É que por aqui, tudo que eles colocam em copos e alteram um pouco a composição, eles chamam de desconstruído. A desconstrução é chic! Agora, entre nós, foi um dos melhores tiramisús que já comi na vida. Sério, um escândalo!

 

Na volta para Casalarreina, passamos por Haro, na tentativa de visitar ou pelo menos comprar alguns vinhos das bodegas La Rioja Alta. Acontece que estava tudo fechado. Não sei que horas fecham no sábado, mas tudo indica que mais cedo.

 

Então, novamente aquele plano horrível de morgar até a hora do jantar. Que vida dura!

 

Pensamos em jantar em Haro, para variar o restaurante. Mas a preguiça foi maior e depois queria que Luiz bebesse tranquilo. Voltamos a La Vieja Bodega, na verdade, havia ainda alguns pratos que gostaríamos de conhecer.

 

Tomamos um cava na temperatura perfeita, o tal Conde de Haro, da Muga. Comi uma salada de centollos, uma espécie de super carangueijo, e langostinos. Depois umas vieiras com espaguetti de calamares. Não é massa, é o próprio calamar cortado fininho como espaguetti. Luiz comeu um chuletón que era praticamente meio boi, mas devia estar ótimo, pois ficaram só os ossos. E porque não, aquela deliciosa tortinha de maçã quentinha para terminar de chutar o pau da barraca.

 

Óbvio que engordei! Quando voltei do Brasil, havia perdido quatro quilos, o que é muito para mim. Nessa viagem, ganhei dois. Ou seja, menos dois de tristeza, mais dois de alegria, noves fora, zero! Tá valendo!

 

Domingo, acordamos, tomamos o café tarde e armamos o circo para voltar para casa. Enquanto arrumávamos as malas, Jack ia inutilmente se alternando de esconderijo. Ele é muito engraçado. No caminho, ainda no carro, meus pais telefonaram, estavam saindo para ir ao clube. Meu pai estava com a voz boa e minha mãe animada.

 

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A viagem de volta foi tranquila, voltei de baterias carregadas. E malas carregadas também, Luiz comprou vinho para burro! Mas vamos deixar claro que isso é um comentário e não uma reclamação.

 

Mas ainda era domingo e ainda era meu aniversário. Fiquei quase tentada a chamar alguns amigos para uma passada em casa, mas desanimei logo, principalmente pela segunda-feira que se aproximava. Achei que era melhor não mexer em time que estava ganhando. Temos muito tempo para outras festas. Essa era nossa. Então, porque não fechar com chave de ouro, ainda tinha uma carta na manga.

 

Luiz (e eu por tabela) ganhou de um casal de amigos franceses uma garrafa de bordeaux, 1986. Um vinho de 22 aninhos, conservada na adega dos pais dessa amiga. Nos informaram que um bom momento para abrí-la seria pelo final desse ano, por novembro ou dezembro. Pois olha só que conta mais perfeita!

 

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Tratei de prepará-la como manda o ritual. Virei de pé, deixei baixar a borra, abri para respirar, decantei e agora era esperar um pouquinho mais para o golpe de misericórdia.

 

Mas como íamos tomar um vinho assim impunemente? Não tinha planos de cozinhar voltando de viagem, mas não vou cometer uma falta de respeito dessas com o vinho, isso não se faz!

 

Fui ver o que dava para improvisar e saiu um revuelto de alcachofras com trufas e gemas mal passadas. De principal, um pato assado, marinado (infelizmente muito pouco tempo) com vinho, hervas, mostarda, mel, noz moscada e pimenta do reino.

 

Começamos pelo vinho, que até sozinho já era bem acompanhado. O que posso dizer? Vamos combinar, primeiro, alguém se deu ao trabalho de descer na adega e selecionar um bordeaux 86. Trouxeram com o maior cuidado no carro, evitando o movimento. Depois o dito cujo descansou imóvel, protegido de variações de luz e temperatura. Mesmo assim, já havia saído da adega e tinha um tempo determinado para estar em condições de consumo. E estava! Cassilda, estava em perfeitas condições de consumo, 22 anos depois. Isso é o máximo, me emociona.

 

Pela internet, os recadinhos e e-mails de parabéns começaram a chegar. Muito bom ter amigos e demais ter os amigos e amigas que tenho. Queridos, esse ano não rolou festinha, quem sabe no reveillon a gente não tira o atraso?

 

Depois, todo mundo diz que após o inferno astral, tudo melhora. Assim espero, tudo indica. Só posso dizer que no final das contas, não foi um super aniversário? Para mim sim. 

 

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81 – Saravá!

Após um período nebuloso que mal via meu umbigo, resolvi dar uma olhada em volta e a coisa estava meio preta. Faz tempo que não vejo tanta gente com problemas e tudo pauleira, muitos relacionados à saúde. De uma hora para outra, o mundo entrou em crise, literalmente.

 

Parece que a culpa é do rato! Sim, fui informada que ano de rato traz dificuldades e blá, blá, blá…Muito bem, achamos um culpado, inseticida nele!

 

Meu improvisado retiro espiritual foi necessário, mas também não dá para ficar trancada no quarto enquanto a vida de todo mundo está pegando fogo. Como é que é? Não vou ficar aqui vendo esse bonde passar. Pode parar que também vou nele! Sei lá quando virá o próximo e quem garante que estará melhor?

 

Reunião de Lulus urgente! Ativar a irmandade das perucas coloridas! Se a bruxa está solta e toda mulher é um pouco bruxa, então vamos bater um papinho de igual para igual. Eu já nem ligo mais de passar por louca, o que tínhamos a perder?

 

E os maridos? Dessa vez eles estavam liberados a participar, eles merecem. Vamos combinar que não era dia de ninguém voltar sozinha para casa. Mas só depois do ritual e de terminarmos de ficar histéricas à vontade.

 

Trezendos e vinte e sete e-mails depois, circo montado com runas e tudo que tínhamos direito.

 

A receita da bruxaria: um monte de velas pela sala, precisávamos de fogo. Na mesa de centro, uma fogueira contemporânea. Na verdade, uma churrasqueira coreana ajeitada com sal grosso, sete velas vermelhas, sete pimentas colhidas no dia, sete chocolates de pimenta e três incensos de defumador. Cercada por sete velas brancas e água limpa.

 

Começamos a escrever em papéis tudo de mal que queríamos que fosse embora, como doenças, medos, enfim, cada uma fez sua lista para queimar. Chamamos o Luiz, que estava pelo quarto, enquanto esperava pelos outros maridos. Perguntamos se ele queria aproveitar e dar uma queimadinha também. Ele pegou um papel inteiro aberto e jogou por cima das velas, aquela cagada que caiu incenso, o fogo cresceu, enfim, isso é que dá deixar homem participar da bruxaria. Mas tudo bem, enquanto fui para outro lado, para terminar minha lista e evitar que chamuscasse minhas sobrancelhas, ele deu um jeito da casa não incendiar. Até que foi engraçado.

 

Ajeitamos os incensos novamente para dentro da fogueira e uma a uma fomos queimando nossos problemas. Faltava trilha sonora, lembrei do Caetano Veloso cantando aquela oração para São Jorge de Ogum. Pois vale tudo! Nos concentramos e brindamos três das Lulus. A quarta Lulu chegou um pouco atrasada, antes deu uma paradinha na emergência de um hospital por uma crise de ansiedade, mas ainda chegou em tempo de queimar seus problemas. E pelas outras duas, queimamos em seus lugares. Nem sempre a presença física é o mais importante.

 

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Psicológico ou não, nos sentíamos melhores. No mínimo, aquilo tudo era muito divertido e fogo é sempre hipnótico, bonito. Um ritual não vale por mudar uma realidade ou fazer com que os problemas desapareçam, o que muda somos nós mesmos. O poder de transformar funciona para a gente e não para o que está em volta. Nos transformamos porque queríamos que isso acontecesse e porque era para o bem.

 

Pouco conversamos sobre nossos problemas, a gente já sabia que eles estavam ali e que não havia muito mais o que dizer. Os maridos chegaram e ficamos conversando sobre um monte de outras coisas e, honestamente, morrendo de rir.

 

Acordei bem, nem era tão tarde, me peguei cantando na cozinha enquanto fazia o café. Não estou 100%, mas isso não me parece tão horrível, só um pouco esquisito às vezes.

 

Meu aniversário é dia 9 de novembro, domingo. Eu sempre faço festão, o planeta sabe que amo aniversários. Esse ano, me parecia perfeito, porque poderia comemorar na noite de sábado para domingo. Claro que foi antes de toda essa confusão e fazer isso agora seria forçar um pouco a barra. Não estou pronta para uma festa, vou ficar, mas agora não. Ao mesmo tempo, a idéia de passar em branco em casa me parecia meio depressiva e esse capítulo para mim já deu.

 

Chamei Luiz para viajar no fim de semana, acho que a gente precisa de um tempo sossegados. Ele se virou, conseguiu dois dias de férias e vamos passar de quinta à domingo em la Rioja. Será que está mal intencionado? Pois espero que sim. Jack vai junto, é óbvio, ele é parte da nossa família e essa viagem é nossa. Por mim, vou no esquema conto de fadas, fazendo de conta que o mundo é perfeito e que todas as pessoas são felizes. Na volta a gente vê o que dá. Talvez conte por aqui, ou não, quem sabe.

 

…se alguém perguntar por mim, diz que fui por aí, levando um violão debaixo do braço. Em qualquer esquina, eu paro, em qualquer botequim, eu entro. E se houver motivo é mais um samba que eu faço. Se quiserem saber se eu volto, diga que sim, mas só depois que a saudade se afastar de mim. Eu tenho um violão para me acompanhar, tenho muitos amigos, eu sou popular. Eu tenho a madrugada como companheira. A saudade me dói, no meu peito me rói. Eu estou na cidade, eu estou na favela, eu estou por aí…

 

 

80 – As voltas, para casa e para Madri

Chegar na casa dos meus pais foi bom, claro que muito melhor que o hospital. Ainda assim, estávamos preocupados, meu medo é que meu pai relaxasse e começasse a abusar. Essa teimosia dele tem um lado bom, que é o de não se deprimir nem se entregar, mas também tem um lado enlouquecedor de quem está em volta. Às vezes, preferia que ele tivesse um pouco de medo, um mínimo de respeito aos próprios limites. A gente precisa saber envelhecer e essa é uma lição que estou tentando aprender mais cedo.

 

Ele saiu do hospital com uma medicação provisória, mas precisava ser visto por seu cardiologista na próxima quarta-feira, exatamente uma semana depois, para revisar essa medicação e iniciar seu tratamento, em conjunto com o neurologista. Nós estávamos plenamente conscientes que o caminho era longo e o fato dele estar em casa era uma boa notícia, mas ele ainda corria e corre riscos. Era necessário se adaptar à nova condição, o que ainda não significava relaxar.

 

Durante o dia, minha mãe se lembrou que eu havia levado meus exames para o Rio e ligou para o mastologista, amigo deles. Foi a esposa dele, sua amiga, quem se encarregou de achar uma brecha e pediu que eu passasse na casa deles no dia seguinte, às 8:00hs, antes dele sair para o trabalho. Todos moram muito perto. Admito que havia esquecido um pouco disso, meu plano era tentar marcar uma consulta com ele durante a semana, mas quer saber, assim era bem melhor, já resolvia de uma vez.

 

Chegou a noite e não parecia que seria nada calma, meu pai continuava inquieto como no hospital e pior, porque agora tentava fazer mais coisas. Insistia em ir à janela abrí-la, o que nos deixava em pânico, porque o parapeito era na verdade um paracoxas, muito baixo, e considerando que seu equilíbrio era precário, o risco dele cair lá embaixo não era pequeno. Só para complicar um pouquinho, porque tínhamos poucos problemas.

 

Sim, ele levantou algumas vezes durante a noite, entre elas, o catamos abrindo a janela outra vez, quase caindo e depois indo para cozinha às 3:00hs da matina, querendo porque querendo fazer o café. Estávamos as três levantadas, minha tia, minha mãe e eu. Aquela história de revezar não estava adiantando muito, ele ocupava as três. Irritada, estava voltando para o quarto de saco cheio, quando minha mãe me chamou de volta, ele estava caindo. Levamos ele de volta para a cama, que reclamava e brigava sem parar.

 

Quando amanheceu, por volta das 6:30 hs, sentamos para tomar café. Começamos a pensar na possibilidade de contratar algum acompanhante para ele, porque assim, quem não ia aguentar era minha mãe. O problema é que isso modificava toda a dinâmica da casa e ainda não sabíamos o tempo que essa situação levaria para se resolver.

 

Pensava calada na minha casa, na minha cama com edredon branco, no Luiz dormindo, no meu gato ronronando no meu nariz. Tudo parecia absolutamente inacessível, distante.

 

Nisso levantou meu pai também e sentou conosco. Começamos a conversar com ele muito aborrecidas contando sobre a noite infernal. Ele tinha o aspecto triste e nos perguntou se a gente achava que ele fazia isso de sacanagem. Quando perguntamos se ele não lembrava do que tinha feito, ele disse que não, e eu acreditei. Ele parecia realmente não se lembrar. Ficamos meio confusas, mas dessa vez não me aborreceu, talvez houvesse outra maneira de lidar com tudo aquilo, mas agora sentia que ele não estava fazendo de propósito. Não era apenas uma questão de teimosia, faltava uma certa lucidez.

 

Deu a hora de encontrar o mastologista e lá fui eu com meus exames. Ele analisou, não me assustou, mas diferente da médica espanhola que me sugeriu sentar e observar meus cistos crescerem, achou que deveria tirá-los. Era relativamente simples, através de uma punção. Não que uma punção nos seios me parecesse agradável, mas àquela altura, estava meio anestesiada e isso me parecia bastante simples. O melhor é que resolveria de uma vez. De qualquer maneira, ele achou que meus exames não tinham boa qualidade e me pediu uma ecografia colorida de não sei o que. Ele mesmo ligou para clínica e me encaixou às 11:00hs do mesmo dia, um favor sem tamanho.

 

Não vou mentir que não estava nem ligando, é óbvio que a palavra biópsia me caía mal, simplesmente acho que não tinha mais espaço na cabeça para me preocupar. Chega uma hora que você precisa acreditar que vai dar certo. Posso não ter nada e resolver isso de uma vez, e se tiver, foda-se, tenho que tratar, então melhor saber logo também.

 

Fiz o tal exame, minha tia foi comigo. Não eram só dois, um pequeno e um maior como me disseram em Madri. Eram cinco cistos, os dois, praticamente do mesmo tamanho e outros três que não haviam sido encontrados antes. Fantástico, agora tenho um cacho de uvas!

 

Tratei de pelo menos fazer uma cara melhorzinha e chegar em casa como quem acredita que fazer a punção era praticamente tirar uma espinha. Talvez fosse. Resolvi nem me perguntar o que faltava agora, vai que aparece mais!

 

Na sexta-feira, fui buscar com minha mãe alguns exames pendentes do meu pai no hospital, os últimos resultados sairiam na quarta-feira seguinte, dia em que marcamos que o cardiologista fosse em casa. Na volta, pegamos uma taxista meio estressada, meio engraçada. Não dei muito papo, mas minha mãe sim.

 

Quando saltamos, ela olhou para minha cara e disse, estava só esperando para ver o que você ia dizer. E eu, mas dizer o que? E ela, mas você não vai dizer nada? Não vai fazer nem uma piadinha irônica? Nem acredito!

 

Era verdade e era estranho. Não tinha vontade de sorrir, nem de conversar, nem de acordar, de nada. E para completar, tinha perdido a habilidade de manter o bom humor.

 

Caraca! Aquilo me acendeu uma luz vermelha do tamanho de um bonde. Eu sei que a situação era complicada, pode parecer razoável que não quisesse brincar um pouco. Mas quem me conhece sabe que uma das últimas coisas que perco nos momentos de crise é o humor. Negro, irônico ou sarcástico, não importa, nos piores momentos, sempre dou um jeito de rir dos outros e de mim mesma. A não ser quando estou com muita raiva, mas não era o caso ou será que era?

 

Não dava para mudar de uma hora para outra, mas tratei de me policiar. Só o que faltava era eu resolver assumir o papel de vítima. Arg!

 

Voltei com os exames no mastologista e ele definitivamente me recomendou tirá-los. Disse também que, pelos exames, tudo ia a meu favor e não parecia ser nada maligno. Conseguiu me encaixar para fazer tudo logo na segunda-feira de manhã. Mais um favor sem preço. A sensação de alívio por conseguir resolver era tão grande, que honestamente abafava o nervoso de fazer as punções. E sim, fiz tudo. Meio chatinho, mas também bem rápido, minha mãe foi comigo, aproveitando que minha tia ainda estava em casa. Não tenho os resultados ainda, mas tenho bom pressentimento e cinco cistos a menos.

 

Enquanto isso, na sala de justiça… meu pai foi melhorando. As melhoras eram lentas, mas todo dia notávamos algo positivo. Quanto mais ia melhorando, também me parecia mais colaborativo, às vezes quase ajuizado.

 

A propósito, quanto à janela, seguimos a sugestão da minha prima e colocamos uma mesa na frente. Ele não tinha força para empurrá-la, na verdade, custava a entender que ela estava fora de lugar. Além do mais, na hipótese de resolver tirá-la dali, a gente tinha tempo de escutar o barulho e fazer alguma coisa.

 

Fui apelidada de sargento Bianca, não sei porque. Talvez porque estava só um pouquinho mais rígida na alimentação. É que a casa dos meus pais é uma casa de gordos, eles sabem fazer comidas gordas. Que não sejamos todos obesos é um verdadeiro milagre de metabolismos surreais.

 

Meu pai precisava fazer dieta urgente, evitar gorduras, açucares, sal, potássio e proteínas. Na saída do hospital, a nutricionista havia nos dado uma lista de alimentos recomendados e proibidos, que segui praticamente à risca. Juro, nem segui 100% porque conheço as feras, minha mãe inclusive, e se apertar muito a corda ela rompe. Em uma semana e meia, meu pai havia perdido 10 kgs. Não foi só por essa dieta, é verdade que nos primeiros dias ele não estava comendo quase nada, mas sim que ajudou bastante a manter a curva descendente.

 

Ok, eu estava mesmo um sargentão!

 

Chegou um momento que achei que era hora de voltar para casa. Não tinha muito mais o que agregar do que a companhia. As decisões foram tomadas, agora tudo depende muito mais de como meu pai se comporte. No início, minha mãe estava um pouco atordoada, mais do que razoável, mas se é que não chegou, certamente chegaria o momento em que gostaria de assumir as rédeas da própria casa. Eu também tinha a minha para cuidar.

 

Acabou optando por contratar uma empregada, ao invés de uma acompanhante. Melhor assim, teria mais tempo para dedicar ao meu pai e a ela mesma. Ela não pode esquecer que tem sua vida.

 

Minha volta foi marcada para domingo, 26 de outubro. Em 20 dias nossa vida havia dado piruetas, ainda estava buscando o chão. Para mim, era como se tivesse passado muito mais tempo que isso, provavelmente pela intensidade de toda a situação.

 

Em casa, tentava ser um pouco mais paciente com os telefonemas. Eu ia embora, e no dia-a-dia é com seus amigos que meus pais contam. É sempre com os amigos que contamos. Assim mesmo, me custava ouvir o telefone tocar o dia inteiro e repetir e repetir e repetir a mesma história. A televisão, sempre altíssima, ressoava na minha cabeça. Sabia que também estava chegando ao meu limite, talvez porque finalmente havia uma data para voltar.

 

No caminho para o aeroporto, minha mãe me acompanhou no taxi. Não sabia muito o que dizer, tudo me dava vontade de chorar, então melhor ficar quieta. Fui olhando a cidade e pensando que parecia não estar ali, não encontrei ninguém, não fui praticamente a lugar nenhum, nem tive vontade.

 

Embarquei para Madri meio triste. Por um lado, queria muito voltar para casa e seguir a vida como deve ser, mas por outro, era muito difícil cortar o cordão. A gente fica naquela dúvida se está fazendo o certo, fica meio fora de lugar.

 

Achei que fosse chorar a viagem inteira, mas não me caiu uma lágrima. Às vezes, me batia uma sensação parecida à claustrofobia, até hoje tenho sentido um pouco disso, mas respiro fundo, me concentro e passa.

 

Um último suspense me aguardava na chegada, precisava passar na imigração sem a maldita carta de regresso ao país. Não foi um mar de rosas, senti a pressão e não foi pouca, precisei explicar a história, mais uma vez, mas entrei.

 

Luiz foi me buscar no aeroporto. Outra vez tive a sensação que ia despencar de chorar, e outra vez não chorei.

 

Percebi que não estava voltando, não tinha mais para onde voltar, acabou. Começava outra etapa, tenho certeza que sou outra e não tive tempo de me despedir. Talvez seja melhor assim, como meus pais, também preciso aprender a envelhecer, todos nós precisamos um dia.

 

Passei de segunda à quinta-feira de pijamas, sem atender o telefone.

 

Na quinta, cutucada pelo Luiz e pelas amigas, resolvi aparecer no coral. Não estava com a melhor cara do planeta, mas era a que tinha. O mundo não parou, tudo de bom e ruim continuou acontecendo e é assim que tem que ser.

 

79 – No hospital, por quase uma semana

Na sexta-feira, dia 10 de outubro, dormimos como duas pedras até mais ou menos umas 8:00hs, quando nos ligaram da UTI. Ainda que a visita só fosse permitida às 13:00hs, meu pai tinha tocado tamanho barata vôa para ir embora que tiveram que gentilmente lhe oferecer um sossega leão. Nos chamavam na tentativa de acalmá-lo quando acordasse.

 

Não foi nenhuma surpresa, juro que estava esperando por isso. Mas pelo menos, havia dormido algumas horas e já podia raciocinar outra vez.

 

Tomei um café enquanto pensava no que fazer. Cheguei a conclusão que da mesma maneira que ele não tinha condições de tomar essa decisão sozinho, nós também não tínhamos o direito de fazê-lo. Ainda que estivesse meio embaralhado, ele estava consciente e precisava ser ouvido. Até aquele momento, não havíamos dito claramente o que ele tinha, não porque quisesse esconder, sou contra esse negócio de esconder as coisas, mas simplesmente porque ninguém sabia direito o que era e não valia a pena enlouquecê-lo com hipóteses.

 

Acontece que agora a gente sabia e fui decidida a contar tim-tim-por-tim-tim. Queria deixar bem claro que arrisquei meu pescoço assinando a alta dele na Espanha e o colocando em um avião que atravessou o oceano, ou seja, tudo que podia ser arriscado, a gente arriscou. Minha mãe, por mais atordoada que estivesse, afinal de contas é importante lembrar que ela também já é uma senhora, estava apoiando essa decisão. Agora o risco e a responsabilidade eram dele. E se ele quisesse sair, que assim fosse, mas era ele quem assinaria e bancaria. Admito, estava aborrecida, na verdade, estava muito puta.

 

Quando chegamos no hospital, ele tinha dormido, graças ao tranquilizante. Conversamos com a médica responsável que me deu novas informações. Um dos exames realizados era para descartar a possibilidade de um tumor que poderia ter estourado. Não foi isso, mas a simples possibilidade me deixou alerta outra vez. E ela me deixou evidente a necessidade que ele permanecesse internado. Ainda estava sob risco alto. Poderia ficar em um quarto particular, era o primeiro da fila e enquanto isso não acontecesse, iam transferí-lo para uma parte mais reservada da UTI. Com isso, ela também me deu novos argumentos para conversar com ele. De qualquer maneira, ele estava dormindo, melhor voltarmos mais tarde. O seu neurologista também estava a caminho. Descemos para esperar na cafeteria.

 

Consegui falar com seu neurologista, que me explicou a tal suspeita do tumor, que felizmente foi descartada. Era o que já sabíamos na noite anterior mesmo, um AVC izquêmico, com uma pequena hemorragia, provocado provavelmente por uma arritmia cardíaca. Que a propósito, não, não era antiga. Informação que para nossa sorte, não tínhamos anteriormente, ou ele teria sido enxarcado de anticoagulante e ferrado tudo de vez.

 

Bom, subimos para ver se ele havia acordado. O turno médico havia mudado e para outra sorte, era um conhecido dele, da minha idade mais ou menos, mas que o conhecia do bairro. No Leme, todo mundo se conhece. Ele me contou que havia conversado com meu pai e explicado a gravidade do caso. Ótimo, já adiantou meu trabalho, ele tinha razão, meu pai precisava saber o que estava acontecendo e que tinha que colaborar.

 

Mesmo assim, quando fomos falar com ele, estava meio ansioso e dizendo que para fazer aqueles exames ele podia ir para casa. Estava prontinho para começar um novo barraco. Nisso, pela primeira vez, minha mãe se descontrolou um pouco e começou a chorar. Quer saber, foi bom, porque isso fez com que ele segurasse a onda e se contivesse. Talvez tenha se dado conta que a coisa era realmente séria. Expliquei novamente o que ele tinha, que estava estabilizado e seu problema era reversível, mas que era grave e se não controlasse ele corria um risco alto. Disse que já havia tirado ele de três hospitais na marra e o colocado em um voo de 10 horas para o Brasil, não podia arriscar mais absolutamente nada. Gastamos todos os coringas! Ele estava agora sendo atendido no país dele, na língua dele, dentro do plano de saúde (coisa que ele me perguntava o tempo todo), ou seja, que tudo que podia ser feito, estávamos fazendo. Minha mãe disse que não deixamos ele ali sozinho, é que não havia quarto, mas estávamos ali tomando conta e que ele era o primeiro da fila para um quarto particular. Ele pareceu entender e aceitou um pouco melhor. Dali para frente, entendi que precisaríamos repetir essa história a cada vez que ele acordasse, ele esquecia.

 

 

Essa também era uma dificuldade, saber quando ele estava realmente lúcido. Porque ele parecia consciente o tempo inteiro, mas às vezes falava alguma coisa ou tomava alguma atitude que nos deixava na dúvida se essa consciência era tão absoluta. Não era, ou melhor, era em boa parte do tempo, mas às vezes não. Deu para entender? Não, né? A gente também não entendia bem.

 

Como se diz por aqui, por si acaso, a gente repetia a história e confirmava se ele entendeu mesmo ou se lembrava. Isso quer dizer que repeti umas 300 vezes o que ele tinha e que precisei responder a pergunta, “mas o que quero saber é quando vou sair daqui?” outras 950.

 

Fora que nossa conversa parecia coisa de maluco, porque ele ainda trocava as palavras e não lembrava de outras, mas sabe-se lá como, talvez pela repetição, a maioria das coisas eu entendia. Então, ficava algo mais ou menos assim:

 

_ Precisa fechar o continente!

_ Não, pai, você não pode deixar o hospital agora.

_ Mas esse hospital aqui está todo…

_ Sim, seu plano de saúde cobre tudo

 

Enfim, ele foi transferido primeiro para um tipo de quarto dentro da UTI, era um canto mais reservado, mas não tinha cadeira nem nada para acompanhantes, afinal de contas, na UTI não pode ter acompanhante, estavam fazendo vista grossa conosco porque era uma forma de não precisar sedá-lo outra vez. Nisso ele dormiu e nos informaram que o quarto particular vagaria às 16:00hs. Pensamos, não adianta ficarmos aqui em pé vendo ele dormir, vamos para casa buscar pijama, mala, essas coisas para ir para o quarto.

 

Foi o tempo de chegar em casa correndo e voltar e ele já estava subindo. Pensei, ótimo, agora as coisas ficam mais simples. Fui arrumando minhas coisas no armário, com a intenção de ficar direto por ali. Pelo menos, naquele momento, essa era a intenção. Não tinha idéia da pauleira que ainda íamos encarar.

 

Não vou fazer suspense, ele não piorou de estado de saúde, pelo contrário, ia melhorando a cada dia. Entretanto, nos primeiros dias era pura rebeldia e nos deu um trabalho insano! Além de teimoso, ele é grande para cacete!

 

Passamos o dia todo no hospital. Ele estava sonolento, mas ao mesmo tempo muito agitado. Parece incoerente, mas era exatamente assim. Ele não aguentava passar mais de meia hora com os olhos abertos que cochilava. Mas esse cochilo não durava quase nada e ele acordava outra vez, reclamando muito e pedindo o tempo inteiro para urinar e perguntando quando ia embora. Estava fazendo uma coleta de 24hs, onde toda a urina é recolhida e armazenada. Outra coisa que você aprende em hospital, a perder qualquer tipo de pudor.

 

No fim da tarde, fui bem rápido em casa para tomar um banho e ligar para Luiz. Para complicar, o carregador do meu celular não estava funcionando e nossa comunicação era precária. De qualquer maneira, era muito difícil arrumar algum tempo para  falar  com qualquer pessoa. O telefone na casa dos meus pais não parava de tocar um segundo, um inferno! Deixava na secretária eletrônica. Voltei logo para o hospital.

 

Nesse primeiro dia, de sexta para sábado, fui eu que dormi no hospital. Dormir é só uma maneira de falar, porque, juro, era impossível pregar o olho mais do que 10 minutos, se muito. Mexia tanto que o soro apitava o tempo inteiro, e lá vinha a enfermeira acertar. Claro que quando ela chegava, meu pai estava apagado, parecia que fazia de propósito. Até que eu mesma aprendi a fazer aquela maquininha infernal do soro sossegar.

 

Enfim, da mesma maneira que ele esteve durante o dia, estava à noite, completamente inquieto. Na verdade, até bem pior, porque tentou arrancar tudo e ir embora por três vezes. Atenção e tensão absoluta o tempo inteirinho.

 

Na primeira vez, fui tolerante, na segunda um pouco mais firme, mas na terceira, quem quiser que atire a primeira pedra, perdi mesmo a paciência e fui bem dura.

 

Pai, são quatro horas da manhã! Aonde você pensa que vai? Olha pela janela, está escuro! Você está se enganando ou me enlouquecendo? Você não consegue chegar sozinho nem no elevador! Não consigo… Não consegue! Vai cair no meio do caminho! Sua cabeça está funcionando, mas seu corpo não. O que mais você quer? Tudo que podia ser feito a gente fez! Sua condição hoje é reversível, se forçar a barra para voltar para casa, vai ficar torto o resto da vida! É isso que você quer? Jogar fora tudo que já passamos? Colocar tudo a perder? Você não vai embora, eu não vou te tirar daqui e acabou. Bianca, eu não aguento mais! Pois, o máximo que posso fazer é perguntar se podem te dar alguma coisa para dormir.

 

Porque também tem essa, eu é que não ia ficar dopando meu pai. Se ele quisesse um remédio para dormir, ele que me pedisse.

 

É… então, talvez seja melhor me darem alguma coisa para dormir… Ok, isso posso fazer, espera um pouco que vou pedir às enfermeiras.

 

Não havia nada prescrito e elas chamaram o plantonista, fui para o quarto esperar. Quando o plantonista chegou, claro que meu pai dormia a sono solto. Pensei, quem vai passar por maluca sou eu. Não passei por doida, porque constava no seu expediente que ele havia dado um certo trabalho na UTI e tomado um tranquilizante. Por outro lado, ele me explicou que não era bom que um paciente se recuperando de problemas neurológicos tomasse esse tipo de medicação, ou seja, se realmente estivesse muito agitado, eles faziam, mas se pudesse evitar era melhor.

 

Então, tá, fazemos assim, deixa prescrito no prontuário dele o que é possível tomar. Vou tentar administrar a situação sem remédio, até porque já é quase dia, se ele agitar outra vez, a gente já tem tudo engrenado. O plantonista concordou. Meu pai não precisou tomar essa medicação. Das seguintes vezes em que acordou, parecia não se lembrar dessa conversa.

 

Às 6:45hs da matina, chegou seu primeiro visitante, um amigo do Leme. Sim, o Leme inteirinho já sabia da história. O que eu não sabia era que esse amigo é bipolar e estava em plena crise, por isso chegou quase que de madrugada ao hospital. Não estranhei porque meu pai e seus amigos sempre acordam muito cedo, um par deles fica do lado de fora do clube esperando abrir para jogar tênis.

 

Pois é, mas voltando ao amigo bipolar, como meu pai cochilava, conversei da porta, explicando que ele estava dormindo, mas se ele quisesse voltar na parte da tarde, ele poderia receber visitas sim. Pedi que ele desse notícias ao pessoal, porque assim nos poupava o tempo de atender os telefones. Ele falou comigo normalmente, até bem educado e se foi. Depois soube que ele deu notícias para as pessoas, como havia pedido. Só fui descobrir seus problemas quando contei da visita para minha mãe, que  arregalou os olhos, mas ele esteve aqui?

 

Tudo bem, pelo que entendi, era louco manso e gostava muito do meu pai. A essa altura do campeonato, quem era mesmo louco e quem era normal?

 

Quando minha mãe chegou, nos revezamos e fui para casa na tentativa de dormir um pouco. No elevador, entrou um homem gordinho e foi para o fundo, ficou olhando na minha direção. Não me importou, juro que não pensei nenhuma besteira, só imaginei que deveria estar ou descabelada, com a blusa ao contrário, alguma coisa assim, mas também não queria pensar o que era. No que ele me diz espantado: caramba, que trança gorda! Levantei o olhar e ele estava com os olhos fixos na minha… trança?! Então tá, né? O que vou dizer? Pois é, muito cabelo… E tratei de evaporar quando o elevador abriu!

 

No caminho de casa, cheguei a rir sozinha. O carioca é assim mesmo, não tem freio entre o que pensa e o que sai pela boca. Carioca pensa alto.

 

Não dormi bosta nenhuma, ainda estava agitada e o telefone não parava de tocar nem um segundo. Por um lado é legal saber que meus pais têm tantos amigos, mas é complicado nessas horas você dispor de um tempo precioso para descansar. Repetir e repetir a mesma história é muito desgastante, faz a gente reviver a dor o tempo inteiro, além de boa parte das pessoas nem entender direito o que você está contando, você explica tudo que te perguntam e no final vem aquela frase, mas então agora está tudo bem, né? E você pensa, é zebra, tudo ótimo! Mas responde, melhorando pouco a pouco, precisa ter paciência. E os palpites? Ele não está enxergando direito… Ah, não, e de óculos? Imbecil, o problema é neurológico, não miopia! Menina, sei que você deve estar angustiada, mas conheço um monte de histórias parecidas que vou te contar… E eu em pânico pensando, por favor, que não seja agora!

 

Enfim, sim, eu estava num mal humor de cão! Queria morder um! Mea culpa, mea culpa…

 

Combinei com o pessoal de casa que deixaria as ligações na secretária eletrônica, mas se fosse algum deles era só se identificar e pedir que eu atendesse.

 

Pela hora do almoço, estava pronta para voltar ao hospital, quando ligou minha prima e o marido me oferecendo uma carona. Beleza, assim pelo menos dou um oi para eles e facilita minha vida. Quando chegaram, queriam por que queriam me levar para almoçar. Mas nem pensar! Sabia o trabalho que é ficar de acompanhante sozinha e minha mãe estava lá. Todo mundo fica achando que você precisa espairecer, mas eu já estava bem espairecida, no meu tempo livre o que eu queria era dormir! Por outro lado, também queria conversar um pouco com eles, a gente fica muito tempo sem se encontrar. Fazemos assim, agora vou para o hospital mesmo, mas se não for dormir por lá, saio para jantar com vocês. De qualquer maneira, mais tarde teria que parar um pouco para comer alguma coisa.

 

Na recepção do hospital, me perguntaram se vim render a acompanhante. Curioso isso, pela primeira vez me fixei no verbo utilizado: render. O acompanhante tem o status de sequestrado! Aliás, a TV sempre ligada no quarto não parava de falar do sequestro da Eloá.

 

Nesse dia, e nos outros também, meu pai recebeu um monte de visitantes! Muitos amigos queridos. Entre eles, meus sogros, horrorizados com a quantidade de gente no quarto. Realmente, nesse sábado foi um exagero, mas não havia nenhuma contra indicação e a verdade é que meu pai, mesmo sonolento, bem que gostava. Além disso, ficava mais acordado e pensamos que podia lhe garantir uma melhor noite de sono.

 

Nisso, quem chega? O amigo bipolar! Dessa vez, estava com a corda toda, emendando um assunto no outro, com um ipod no ouvido, dançando como em uma escola de samba. Não vou negar, estava engraçado. Houve um momento que ficou conversando com meu pai, que felizmente já falava muito melhor e entendia perfeitamente que o amigo estava em crise, dava atenção para ele direitinho. Bom, mas eu sei lá, seguro morreu de velho, e achei melhor ficar no meio da conversa. Impossível que meu humor negro não se manifestasse, só pensava que estava mediando o assunto entre o AVC e o bipolar, eu mereço! Já imaginou essa conversa alguns dias atrás, quando meu pai trocava as palavras? Se bem que preciso ser justa, na prática, meu pai não fez nenhuma confusão, se saiu muito bem e tomei como uma boa notícia.

 

Comecei a notar que meu pai não trocava mais as palavras, achei que essa parte se recuperou muito mais rápido do que imaginei. Não sabia se ele já não as confundia mais ou se, consciente do problema, buscava outros caminhos ao falar. De uma forma ou de outra, vi com bons olhos.

 

Também iniciou a fisioterapia. Era capaz de levantar da cama para uma poltrona ao lado e vice-versa. Passava o dia e a noite inteiros fazendo isso. Andar mais, por exemplo, até o banheiro ou o corredor, era até capaz também, mas precisava de ajuda porque seu equilíbrio estava bem precário. Isso nos assustava um pouco, porque ele é muito grande e se cair, é muito difícil de levantar, além de provavelmente se machucar bastante.

 

Como seu problema foi do lado esquerdo do cérebro, seu lado direito estava meio comprometido, os braços e pernas tinham pouca firmeza. E uma coisa meio estranha, os lados direitos dos olhos não enxergavam. Ele vê só com as metades esquerdas, o que quer dizer que quando olha para frente, tem a sensação que vê tudo normalmente, mas é confuso ler e não tem a visão periférica do lado direito. Isso também acaba afetando um pouco o equilíbrio.

 

Tudo isso pode melhorar com o tempo, mas além da famosa paciência para se recuperar, é necessário exercitar corpo e cabeça. Algumas coisas que não podem voltar a ser como antes, o cérebro é capaz de encontrar e aprender novos caminhos, o que apesar da situação difícil, acho fascinante.

 

Ainda não havia decidido se dormiria ou não no hospital, estava virada, mas minha mãe havia passado o dia todo ali também. Ela disse que estava bem e que poderia ficar. Fiquei me sentindo meio mal por isso, mas outra noite sem dormir e era capaz de não dar conta, comer alguma mosca. Achava que meu irmão deveria se oferecer, afinal era sábado, mas não queria entrar nessa seara, se alguém deveria pedir, era ela, não eu.

 

Depois pensei que meu pai podia dormir melhor aquela noite. Recebeu visitas o dia todo e já havia pedido ao plantonista para deixar prescrito alguma medicação calmante, caso fosse necessário. Tudo bem, revezamos.

 

Confirmei o jantar com minha prima e o marido, pensava em algo bem rápido, só para bater um papinho. Meu irmão resolveu ir junto, com a namorada e a filha, que por sinal, gosto muito. Acabamos indo a um japonês, idéia dita como minha, o que não foi bem assim, estava apenas conversando com a menina sobre isso, sei que ela gostava de japonês.

 

Na prática, não consegui praticamente conversar com ninguém, minha cabeça doía e estava enjoando de sono. Cada taxi que passava na porta, me imaginava indo para casa. Tudo ia me irritando, caraca não quero jogar, não quero conversar, não quero mais um maravilhoso barco de peixe quando achei que estava tudo encerrado, eu quero dormir! Dor-mir!

 

Nem acreditei quando pude finalmente tomar um banho e me deitar.

 

Acordei logo depois, no meio de um pesadêlo evidente. Minha mãe precisava de ajuda e não conseguia levantar, não conseguia me mexer, não conseguia chegar lá… Enfim, dormindo isso me parecia uma coisa apavorante, como costumam ser os pesadêlos mesmo absurdos. Acordei assustada pensando se era um sinal que havia acontecido algo com meu pai. Não sei porque, mas nessas horas, tudo que acontece você acha que é algum sinal! Bom, se fosse alguma coisa com ele, ela me ligaria do hospital. Ela devia era estar exausta mesmo.

 

Levantei para quebrar aquele ciclo e fui andando pelo corredor, meio na dúvida se estava acordada ou ainda sonhando. Vi uma luz atrás da porta e fui checar, não havia ninguém. Achei que meu irmão tinha esquecido aceso e fui beber água, a cozinha também estava acesa. Fui andando devagar meio sonâmbula pelo corredor em direção à cozinha e quando estava quase lá, um homem cruza na minha frente. Era o meu irmão, óbvio! Mas levei um susto da porra!

 

Foi bom que esqueci o pesadêlo e voltei a desmaiar até o dia amanhecer.

 

Dia seguinte, a mesma rotina. Chego na recepção e digo logo, vim render a acompanhante! Pronto, assumo de uma vez a condição de refém.

 

E assim os dias foram passando. No hospital, revezava as noites com minha mãe e durante o dia, costumávamos ficar as duas. Em casa, era difícil conseguir dormir mesmo.

 

Uma amiga que veio da Espanha conseguiu me trazer um novo carregador de celular e meu irmão deixou um laptop no quarto. De maneira que a comunicação ficou um pouco melhor, mas ainda bem difícil. O que acontecia é que no quarto a dedicação era tempo integral, juro, 24 horas no ar. Tudo era de uma hora para outra, imediato. Porque meu pai não pedia as coisas, ele tentava fazer sozinho. Isso a primeira vista parece melhor, mas não é. Porque ele ainda não conseguia fazer só e não se conformava. Se ele pedisse, pelo menos a gente tinha tempo de relaxar um pouco e se ligar na hora de ajudar. Como ele simplesmente saía fazendo, a gente precisava estar ligada o tempo todo e pegá-lo no meio do caminho antes de acontecer algo que não devia.

 

Meu irmão ia ao hospital depois do trabalho, razoável, mas ali se comportava como uma visita a mais, com a cara enterrada no laptop. No início, até chegarmos no Rio, demonstrou bastante iniciativa, coisa que me surpreendeu positivamente, pensei que finalmente havia amadurecido. Mas depois que meu pai internou, parecia que havia se resolvido tudo e relaxou. É claro que ele também deveria estar preocupado, todos nós estávamos, mas além disso, nós estávamos exaustas! Esperávamos que quando ele chegasse, pelo menos assumisse um pouco o trabalho. Todo mundo estava ocupado o dia inteiro. Entendia ele não poder estar ali durante o dia, mas garanto que cansa menos estar em um escritório que em um hospital. Essas coisas são óbvias, não precisaria que a gente ficasse pedindo. Mesmo assim, minha mãe precisava pedir algumas vezes e eu também. Isso começou a gerar um clima de irritação constante.

 

Até que a bomba estourou. Em uma dessas vezes, está meu pai, sem enxergar direito, mexendo no controle da televisão, todo atrapalhado e aumentando o volume sem parar. Chamei meu irmão, inclusive porque não sei mexer naquela porcaria de controle remoto. Onde ele estava? Com a cara metida no laptop. Se irritou porque eu disse que precisava ser na hora. Teve um ataque de piti, um verdadeiro chilique, puto da vida, enquanto meu pai continuava a aumentar o controle da televisão. Realmente, ele devia ter muita razão, né? Além de não ajudar, a gente ainda tinha que aturar chilique. Ficou minha mãe, minha tia (que havia chegado) e eu olhando para aquela cena ridícula.

 

Meu irmão é de um egoísmo colossal. Sempre passamos a mão na sua cabeça, eu inclusive. Minha paciência se esgotou fazia alguns anos, quando na época minha mãe se internou devido a uma crise de apendicite bem grave. Morava em São Paulo, saí de lá e fiquei com ela uma semana no hospital. Não é uma reclamação, nem me custou tanto assim, minha mãe colabora bastante. Meu irmão ficou tão abalado, que nesse período comprou um carro! Sim, minha mãe internada, logo depois de uma cirurgia séria e ele comprou um carro! Ainda teve a pachorra de chegar à noite no hospital e dizer que tinha uma notícia que a deixaria muito contente, ou seja, o cara-de-pau ainda quis convencê-la que comprou o carro naquele momento para ELA ficar feliz.

 

Mas agora deveria ser diferente, né? Ele deveria estar olhando alguma coisa muito séria no laptop. Disse para minha mãe que era sobre a minha passagem de volta. Mentira. Eu vi a tela do computador, eram uma imagem de poltronas da classe executiva da American Airlines. É possível que estivesse planejando suas férias nos Estados Unidos.

 

Em outra situação, talvez ele tivesse a oportunidade de conhecer a fúria escorpiana. Respeitei minha mãe e meu pai, fui embora. Com minha tia, em casa, me desabafei um pouco, depois resolvi tratá-lo como merece, ignorei. Ele não me incomodou mais. Ninguém se decepciona quando não tem mais nenhuma expectativa. Se ele está ou não colaborando, já não é mais meu problema, isso é assunto dele com minha mãe.

 

Era terça-feira, meus nervos estavam a flor da pele. Emagreci, o que como uma perfeita mulher, nem achei tão ruim. Não era da maneira que esperava, mas definitivamente, felicidade engorda. Havia conseguido falar com alguns amigos por e-mail, mas não tinha vontade de encontrar ninguém. Era bom ter notícias, saber que tinha amigos e que torciam pelo meu pai e por mim, mas ao mesmo tempo, me dava um desânimo completo, não queria ouvir minha voz. Palavras sempre podem ferir. Luiz insistindo que estava agoniado com poucas informações e que não conseguia falar comigo. Eu sabia, mas não conseguia escutar nem meus pensamentos, que dirá ouvir alguém. Lembrei que ainda não havia tido tempo nem de chorar direito e que isso tudo dentro não podia me fazer bem.

 

E por que ia chorar ali sozinha? Por que ser tão arrogante que ninguém podia me ver mal? Eu já deveria ter aprendido a pedir ajuda e a carregar apenas o suficiente nas costas. Fui para sala chorar do lado da minha tia e foi bom.

 

A gente tinha planejado tanta coisa boa. Churrascos, paellas, passeios, viagens. Queria que meus pais conhecessem nossos amigos, os lugares que gosto, as músicas que canto, o apartamento novo. Eu sabia que não seria tudo perfeito, mas achava que seriam momentos felizes. As pessoas que ficam aqui em casa, normalmente, saem felizes e nos deixam também. De repente, a vida vem e dá uma chacoalhada, vira tudo de cabeça para baixo. A gente fica com aquele gosto de merda na boca sem entender, por que? Acredito sinceramente que meu pai vá se recuperar, mas ainda assim, qual é a probabilidade deles virem me visitar outra vez? Por que fui ter a idéia de jerico de insistir que eles viessem? Por que ele não se cuidou melhor? Não estou procurando culpados, é que às vezes é inevitável pensar que em algum momento poderíamos ter tomado outro caminho. Mas o fato é que não tomamos e só nos resta lidar com isso.

 

Por que é tão difícil para as pessoas entenderem que tudo o que fazem traz uma consequência na vida dos outros? É difícil para mim também. Não podemos seguir nossas próprias vidas se nos basearmos o tempo inteiro em agradar o próximo, é claro que existe um limite. Mas não ter a consciência que também existe uma responsabilidade, não tem outro nome além de egoísmo. Um pouco de egoísmo garante nossa sanidade, nossa personalidade, mas o excesso nos transforma em monstrinhos insuportáveis engulidores da vida alheia. Porque o “outro” também merece sua própria dose de egoísmo.

 

E por contraditório que pareça, lembrar da minha dose de egoísmo também me ajudou a recuperar a lucidez. Não preciso ser mártir de nada, isso é muito chato. Não tenho tendência a ser Polianna, não acho que tudo de ruim tem um lado bom. Acho que há coisas ruins e boas e já está.

 

O que aconteceu foi uma merda! Não interessa mais se merecemos ou não, se fizemos certo ou errado, já foi. Fiquei puta, triste, irritada e com medo, foda-se! Move on, próximo passo!

 

O que aconteceu de bom? Uma porrada de coisas! Meu pai está vivo, consciente, em seu país, tem condições de se tratar e melhora a cada dia. Minha mãe tirou forças nem sei da onde e toca o barco heroicamente. Luiz está fazendo das tripas coração para tocar a casa, o trabalho e não me trazer mais problemas. A família e os amigos pipocam oferecendo ajuda no que puder. Cassilda, dá quase vergonha de reclamar.

 

Na quarta-feira, acordei mais disposta e fui para o hospital trocar com minha mãe. Minha tia ficou em casa, estávamos tentando fazer algum esquema de revezamento triplo para cansar menos. Quando cheguei lá, descobri que havia a possibilidade do meu pai receber alta no mesmo dia. Diante disso, minha mãe nem quis ir para casa, resolveu esperar um pouco.

 

Pelo meu pai, só de dizerem que era possível ele ir, ele estava na porta prontinho da Silva. Mas as coisas não eram assim tão rápidas. Sossega aí um pouco, que você precisa pelo menos almoçar aqui, não há nada em casa. É mais ou menos o tempo de liberarmos a parte burocrática e de medicação. Bom, então, enquanto isso, vou em casa buscar o carro, porque de taxi isso vai ficar meio complicado.

 

E assim foi, voltei de carro e com minha tia para o hospital. Pouco depois, chegou a comida do meu pai, coisa que ele mal tocou. Sendo assim, comi eu o resto e esse foi meu almoço. Sabe-se lá quando teria tempo outra vez.

 

Considerando que nunca dirijo, até que nem estava barbeira, parecia que nunca havia parado antes. Chegamos em casa muito bem obrigada. Veio porteiro, jornaleiro, uma festa! Estávamos um pouco enrolados, meio preocupados, mas otimistas que em casa seria melhor.

 

Um passo de cada vez, e havíamos dado muitos!

 

 

78 – Rio/Madrid/Rio pelo caminho mais longo

Hoje tomei coragem para escrever, vou começar a contar toda história dessas últimas duas ou três semanas, já perdi a conta. Na verdade, para mim passou um século e não consigo me livrar de um cansaço crônico, uma vontade de me enfiar em uma caverna e uma insistente vitimização e desânimo que não fazem parte da minha natureza. Isso tudo vai passar, eu sei, mas ainda estou reunindo as cinzas. Novembro vem aí para me ajudar a renascer e até lá espero ter aprendido a ser tão mais velha.

 

Na segunda-feira, 06 de outubro, fui deitar tarde, bastante ansiosa. Dormi mal para burro, estava preocupada com a chegada dos meus pais. Pensava no conforto da viagem e se seria tudo tranquilo na imigração. Eles estavam meio tensos que alguém criasse problemas na entrada da Espanha, apesar de estarem totalmente corretos. Achei que minha agonia era por causa disso.

 

Na terça, pedi para o Luiz me acompanhar ao aeroporto. Caso houvesse algum problema, com ele seria mais fácil explicar. Além do mais, o transporte para casa seria muito mais simples, considerando que não dirijo aqui. Foi sorte.

 

No portão do desembarque, vi meus pais chegando e sosseguei. Ufa! Passaram sem problemas, agora é aproveitar. Durou pouco, pouquíssimo, porque minha mãe não me sorriu de volta, meu pai parecia completamente atordoado e um casal mais jovem os acompanhava e levava toda sua bagagem.

 

Ali mesmo descobrimos que meu pai passou mal durante o voo, umas quatro horas antes da aterrizagem. Por outra vez, a sorte colaborou, havia um cardiologista presente, que o atendeu e acompanhou na saída, era o marido desse casal que estava com eles.

 

Meu pai, mesmo confuso, dizia que estava ótimo, só precisava ir para casa descansar e tomar banho. Minha mãe nervosa, com razão. O cardiologista e a esposa olharam para mim e disseram, ele não está bem, precisa ir a um hospital agora. Entendi que o assunto era sério. Perguntei se ele me recomendava algum lugar e descobri que já havia feito isso.

 

No caminho para o carro, fui levando meu pai, que recusou uma cadeira de rodas. Depois soube que já havia recusado na saída do avião também. Estava estranho, puxava ele para direita, falava que era para direita e ele pendia o corpo para esquerda. Parecia meio dopado, mas ainda assim, meio rebelde. Enfim, protestando ou não, nos dirigimos ao hospital Fundación Jiménez Díaz, recomendado pelo cardiologista do avião que também nos deu uma carta descrevendo os sintomas que ele apresentava e que medicação tomou. No avião, só havia disponível o AAS.

 

No carro, fui tentando manter a conversa normal, para ver se minha mãe relaxava um pouco e não ficava aquele clima tão tenso. Mas era inútil, estava tudo bastante esquisito. No meio do caminho, meu pai passou mal outra vez e Luiz precisou parar em um posto de gasolina. Bem ao lado, havia um par de agentes de segurança do trânsito, que imediatamente chamaram uma ambulância.

 

A ambulância não demorou mais que dez minutos e fez o primeiro atendimento ali mesmo, onde constataram uma arritmia cardíaca. Não sabiam se era recente ou antiga, afinal de contas, meu pai já era um paciente cardíaco, teve um enfarte e tirou a carótida esquerda. Não entendia muito bem que diferença fazia isso da arritmia ser recente ou não, só bem depois vim entender que essa dúvida pode ter lhe salvo a vida. De qualquer maneira, a ambulância seguiu para o hospital.

 

Nós seguimos de carro. Luiz foi procurar estacionamento, saltei com minha mãe para encontrar meu pai. Ele não fala castelhano. Entramos em um lugar, aparentemente proibido, onde meu pai estava deitado em um tipo de maca com umas dez pessoas em volta. Isso assustou bastante a minha mãe. Achei um pouco estranho também, mas procurei pensar que podia ser em função do seu tamanho. Ele é um homem de 1,90 m e 128 kg, que mesmo passando mal, não estava com a menor vontade de ser internado. Claro que nos expulsaram logo e ele foi levado para outro lugar onde não podíamos vê-lo. Nos mandaram para uma sala de espera aguardar notícias.

 

Algum tempo depois, veio uma médica nos informar que ele tinha uma arritmia cardíaca, e outra vez perguntando se sabíamos se era nova ou antiga. Disse que não sabíamos, mas podia ser mais antiga, considerando seu histórico médico. Expliquei que ele não falava espanhol e que precisava estar mais próxima, no mínimo para que ele soubesse o que estava acontecendo. Ela confirmou que ele estava bastante nervoso, querendo ir embora e que precisava fazer uma série de exames antes. A médica acabou deixando que fosse falar com ele, na tentativa de acalmá-lo, mas me avisou que certamente em algum momento alguém iria me pedir para sair.

 

Entrei e consegui conversar com ele, coisa que o fez se acalmar. Ao longo do dia, inventei uma meia dúzia de desculpas para entrar outras vezes e ficava me fazendo de boba até que alguém me expulsasse. As enfermeiras faziam um pouco de vista grossa, porque no fim das contas, acabava o acalmando e assim elas tinham menos trabalho.

 

Comecei a notar que havia uma coisa estranha na sua fala. Ele estava bastante lúcido, até brincando, mas trocava as palavras. O mais esquisito é que tinha total consciência que fazia essa troca, algumas palavras ele simplesmente não conseguia dizer. Era mais ou menos assim, por exemplo, ele queria falar mesa e saía sapato, ou seja, as palavras existiam mas era como se alguém tivesse embaralhado na cabeça dele.

 

Como ele não falava espanhol, nenhuma das médicas ou enfermeiras perceberam. Não é desculpa, porque informei mais de uma vez que isso estava acontecendo e me respondiam que podia ser pelo cansaço ou nervoso. Bom, se uma médica estava me dizendo isso e fazendo todos os exames necessários… quem sou euzinha, né?

 

Cheguei a fazer o teste do sorriso, para saber se ele havia tido um derrame, nem sei se é verdade, mas li isso em algum lugar. Ele sorriu forçado e me respondeu: cara de babaca ainda sei fazer, ó! Começamos a rir de verdade, se ainda está fazendo piada, não pode estar tão mal.

 

Passamos todo o dia de plantão. Fui com minha mãe até a cafeteria, mais para fazer uma hora do que por fome. Acabei conversando com ela que estava pensando em engravidar. Havia planejado contar de outra maneira, em outro momento, mas diante das circunstâncias, quem sabe isso animasse um pouco o ambiente. Queria contar pessoalmente, sabia que ela poderia ter lido algo pelo blog, mas quando ela me disse que vinha a Madri, não custava esperar um pouco. Acho que ela se animou, o que dava para se animar nessa situação.

 

Pelas nove da noite, creio, ele recebeu alta do hospital. A princípio, ficamos felizes, mas ao vê-lo exatamente do mesmo jeito que entrou, ficamos todos meio ressabiados. De qualquer maneira, sabia que ele estava exausto e precisava ir para casa descansar um pouco. Quem sabe no dia seguinte, acordava melhor.

 

A noite foi infernal. Ele, que havia reclamado de fome todo o dia e estava praticamente em jejum, quase não comeu e mesmo assim, passou mal direto. Estava completamente atordoado, confundia as portas que precisava entrar, parecia não enxergar direito e continuava a trocar as palavras. A urina estava verde, o que atribuímos a um remédio que ele se auto medicou antes de viajar. É fogo.

 

Amanheceu e ele estava com uma cara um pouco melhor, mesmo assim, nada que nos tranquilizasse. Enquanto ele finalmente deu um cochilo, Luiz procurou onde ele deveria ir de acordo com seu seguro saúde, feito no Brasil. Recomendaram um clínico geral do Hospital San Camilo.

 

Minha mãe falava que queria voltar para o Rio. Tentei acalmá-la e dizer que precisávamos dar um passo de cada vez. Mostrei a casa, coisa que ninguém teve tempo antes de ver e sugeri que ela descansasse também um pouco.

 

Até que me bateu os cinco minutos e fui para internet encafifada, procurar pelo google seus sintomas. Estava desconfiada de um AVC e o que consegui me informar coincidia demais com a situação. Lendo os exames que ele havia feito, constatei que só se preocuparam com sua condição cardíaca, ninguém fez nenhuma checagem neurológica. E tudo que lia me dizia que o atendimento deveria ser urgente. Cassilda, comecei a ficar nervosa.

 

Nisso meu pai acordou e fomos direto para o segundo hospital, o San Camilo. Claro que ele não queria ir, mas daquele jeito não podia ficar.

 

Incrivelmente, na sala de espera, ele teve uma melhora radical. Minha mãe contou que eu estava pensando em engravidar e ele gostou também da notícia. Não trocava mais as palavras e estava de bom humor. Vimos com otimismo, mas ao mesmo tempo, sabia que podia ser a vontade dele ir embora dali operando milagres.

 

Não demoraram a atendê-lo, até porque na recepção informei da suspeita de haver ocorrido um acidente cerebral.

 

Entrei junto com ele e admito que já fui direcionando a conversa com o clínico. Olha, ele passou mal no avião, foi direto para o Jimenez Díaz, onde se preocuparam apenas com sua condição cardiológica. Acontece que ele está com esse e esse sintomas, isso pode ser neurológico e ninguém está percebendo porque ele não fala espanhol. Se vocês forem testá-lo, eu preciso estar do lado para traduzir, ele não pode ser deixado sozinho.

 

O médico pareceu me levar a sério, mas não assustamos meu pai, além dele não entender o que estávamos conversando. A idéia era fazer uma tomografia computadorizada da cabeça e algumas outras análises. Expliquei que ele precisava fazer alguns exames e dessa vez me deixaram acompanhá-lo. Novamente ele parecia confuso, talvez porque visse que ia começar tudo outra vez. Mostrei a medicação que ele toma normalmente, informando que no dia anterior me disseram que não lhe desse os remédios. Ali, ao contrário, me disseram que ele precisava dos remédios sim, mas não todos. Perguntei qual deles e no mesmo instante os dei. Caramba, mas por que cada hora me dizem uma coisa diferente?

 

Ficamos aguardando a tomografia. Alguns momentos depois, uma atendente veio nos informar que ainda não havia sido realizada porque estavam aguardando a aprovação do plano de saúde. O que? A gente contando os minutos e vamos ficar aqui esperando uma aprovação? Luiz disse que se responsabilizava e a tomografia foi encaminhada.

 

Luiz me perguntou se não queria comer alguma coisa. Não queria, estava quase em jejum e desde o dia anterior. Não tinha um pingo de apetite, era uma coisa meio maluca como se ele não pudesse comer, também não comeria. De repente, me ocorreu que isso não era inteligente, me passou pela cabeça que aquela história poderia estar apenas começando e que precisava de energia. Mãe, vamos sim até uma cafeteria empurrar alguma comida. Fomos juntas, nos revezando com Luiz depois.

 

Comemos um misto quente, sem um pingo de vontade e começamos a pensar nas possibilidades. Sabíamos que algo havia acontecido, mas não sabíamos a extensão. Minha mãe me dizia que se ele precisasse fazer qualquer tratamento, que ela queria levá-lo de volta para o Brasil. Falava que em Madri, eles não teriam dinheiro para tratá-lo adequadamente e no Rio, o plano de saúde cobriria tudo de melhor, além deles estarem em casa. Risco por risco, se houvesse alguma chance, ela queria voltar. Ouvi respeitando sua intuição e tentando ouvir a minha.

 

Voltamos ao hospital e o médico me chamou com o resultado. Fui na esperança de ouvir que era algo relativamente simples, ainda que o coração me sinalizasse o contrário. Era o contrário. Segundo esse médico, que me mostrava sua tomografia, ele havia tido um enfarto cerebral no ocipital esquerdo e havia um tipo de coágulo do lado direito que eles não tinham muita certeza do que era, mas que poderia estourar a qualquer momento. A condição cardíaca ainda inspirava cuidados, mas podia ser controlada. A sugestão era transferí-lo a um hospital com especialidade em neurologia, eles estavam sem neurologista.

 

Todas essas palavras juntas ao mesmos tempo eram difíceis de serem digeridas. A única mensagem que conseguia mandar para mim mesma era: aprende rápido e toma uma decisão. Como é?

 

Muito bem doutor, entendi que é grave e que há riscos. Gostaria de entender qual o risco de colocá-lo em um avião e levá-lo hoje ao Brasil? Sem ofensas, ali seu plano de saúde garante o melhor hospital, com seus médicos que já conhecem seu histórico, do lado da família, onde falam seu idioma etc. Ele me respondeu que levá-lo nessa condição era complicado e imprevisível, mas que provavelmente, não fariam nada para reverter o quadro neurológico nesse momento, de qualquer forma, seria necessário aguardar. E se fosse seu pai? Ele respondeu em off, eu levava de volta.

 

Próximo passo, chamar minha mãe, dar essa notícia maluca e pedir ao Luiz para me ajudar a providenciar as passagens o mais rápido possível.

 

Como minha mãe poderia receber essa notícia? Ficou tremendo, se descontrolou, mas negou receber um calmante, porque precisava de sua lucidez. Tentei acalmá-la, na medida do possível e expliquei que tentaríamos levá-lo para o Brasil.

 

Incrivelmente, ela segurou sua onda e não demonstrou seu nervoso na frente dele. Ficou fazendo companhia, enquanto saí para ver com Luiz o que fazer. Nisso, meu irmão do Brasil também estava ligando tentando ajudar com as passagens.

 

O que acontece é que era início de tarde e o voo direto da Ibéria, saí por volta do meio dia. Ou seja, só no dia seguinte pela manhã. O médico, para quebrar nosso galho, se propôs a ficar com meu pai na emergência e liberá-lo só na hora de pegar o avião. Ele poderia ir de ambulância até o aeroporto, mas precisaria saltar do lado de fora, porque se a companhia aérea desconfiasse, não o deixaria embarcar daquela maneira.

 

Nisso, Luiz foi para casa, precisava de um computador para agilizar as reservas. Ia se falando com meu irmão, que também providenciava o médico neurologista e o hospital no Brasil.

 

Quando achávamos que a situação estava resolvida, mudou o plantão dos médicos e a médica que entrou discordava do anterior. Mais tarde, entendi que a filha da puta estava era tirando o dela da reta. Esse hospital era coberto pelo seguro saúde dos meus pais e ela me convenceu a ir para outro hospital, alegando que tinham os melhores neurologistas. Só se esqueceu de dizer que o outro hospital não era coberto pelo plano.

 

Como ela fez isso? Me assustando um pouco mais, praticamente me dizendo que o tal do coágulo poderia estourar a qualquer momento, que ele poderia precisar de uma intervenção urgente, que viajar daquela maneira era irresponsável e que nesses casos, o paciente tem algumas “horas” para reverter o quadro. Teve o cuidado de fazer isso me chamando sozinha e me cercando com mais dois enfermeiros e o médico do plantão anterior, com cara de puto. Honestamente, da maneira que a coisa foi colocada, parecia que ele entraria direto para cirurgia. Esse risco, não poderia bancar. Então tá, vamos para o próximo hospital, o Gregorio Marañon, onde haviam nos informado que realmente tinha os melhores neurologistas.

 

A palavra “horas” ressoava na minha cabeça e me perguntava como comeram essa bola no primeiro hospital.

 

Minha mãe estava conversando com meu pai, avisei a ela, de uma maneira mais suave que deveríamos seguir para o Gregorio Marañon e fui para porta ligar para Luiz.

 

Pela primeira vez caí no choro, com uma vontade enorme de sair correndo. Por que tinha que resolver aquilo? Afasta de mim esse cálice! Pedi para Luiz voltar para o hospital, não tinha certeza do que fazer, não dormia há dois dias, não sabia se estava tomando as decisões corretas. Ao mesmo tempo, não tinha jeito, fugir não resolvia nada. Eu sempre mantenho a cabeça fria nesses momentos, só precisava respirar um pouco e voltar. Ele não demorou a chegar e me acalmei, as idéias foram clareando novamente.

 

Sozinha, fiz um pacto maluco que nem sei se tinha o direito. Por algum motivo, ao mesmo tempo, convivíamos com as possibilidades de chegar uma nova vida e perder a outra. Pensei que não sabia se seria capaz de engravidar e que se o correto fosse que duas vidas prosseguissem, que assim fosse. Mas se tivesse que optar por uma delas, que ficasse a do meu pai.

 

Por volta das 18:00hs meu pai seguiu de ambulância e nós de carro para o Hospital Gregorio Marañon. No carro, fomos conversando novamente sobre os passos a serem tomados. Acreditávamos que ele poderia ter que fazer alguma intervenção pequena, que às vezes, nessas questões neurológicas, onde há um sangramento, simplesmente se faz um corte para não pressionar cérebro, sei lá. Podia ser uma cirurgia de alto risco, mas rápida e simples.

 

Chegamos ao mesmo tempo no hospital e enquanto ele entrava, fui à recepção fazer sua ficha. Descobri ali que precisava assinar como sua responsável, não ficou muito claro se era o plano de saúde deles que cobriria tudo. Mas a essa altura, isso não me importou.

 

Entramos com ele em uma enfermaria onde havia umas dez outras camas de gente internada. Para nossa surpresa, todo mundo agia como se nada tivesse acontecido e iriam fazer exames de sangue, uma ecografia ou sei lá o que. Como assim? Catei uma enfermeira e disse, escuta, ele chegou aqui com a possibilidade de fazer uma cirurgia. A médica me informou que tinha horas para tomar alguma providência! É urgente!

 

Não preciso dizer que meu pai, sem conhecimento de tudo que estava acontecendo, estava completamente indócil querendo ir embora de qualquer jeito.

 

Nisso chega o neurologista e começa a analisar a tomografia. Faz uma cara de quem não entendeu e vai falar com outro neurologista, que faz o mesmo gesto negativo com a cabeça e vem falar comigo. Puta merda, o que vai ser agora?

 

Para minha surpresa, e finalmente agradável dessa vez, ele me pergunta por que o paciente chegou com recomendação de cirurgia? Não tem nada indicando necessidade de cirurgia aqui.

 

Agora quem ficou confusa fui eu. Contei rapidamente a saga e ele, me mostrando a tomografia, confirmou que havia tido o enfarto cerebral, o tal AVC, mas que isso não requeria cirurgia. O tal do coágulo que poderia estourar, ele me disse que não era nada e nem entendeu porque haviam transferido meu pai para lá. Perguntei então se não poderia levá-lo para casa, no Brasil, como estava previsto anteriormente. Ele me respondeu que neurologicamente, não haveria uma incompatibilidade com a viagem de avião, mas que por outro lado, sua condição cardiológica sim, inspirava cuidados e por isso seria complicado transportá-lo. Que ele precisaria de uns quatro dias, pelo menos, para deixá-lo viajar em condições seguras.

 

Aquilo me soava como boa notícia, mas ao mesmo tempo me questionava se nesse caso, não seria melhor manter nossa decisão inicial de voltar para o Brasil. E será que podia confiar dessa vez? Já nos disseram tanta coisa diferente? E como é que vou convencer meu pai a ficar nessa enfermaria quatro dias?

 

Nisso ele me encaminha ao setor administrativo, onde finalmente entendi que o seguro saúde dos meus pais não cobriria esse hospital, por ser público. Ou seja, para os cidadãos espanhóis ele é gratuito, mas para os estrangeiros é pago. Até aí, normal, mas por que o seguro não cobria?

 

Foi quando o próprio médico me perguntou, por que vocês tiraram ele do San Camilo? Mas não fomos nós que tiramos, foi a médica que recomendou, baseando-se na possível necessidade de cirurgia. Naquele momento, entendi que havia sido uma manobra cruel para se livrar de um problema burocrático.

 

Bom, fui junto com o médico explicar a situação para minha mãe, que por sua vez não queria aceitar mais ficar no hospital. Honestamente, também não estava com uma boa intuição, mas precisava intervir com calma com o médico ou a gente colocava tudo a perder. Nisso, meu pai estava armando um barraco tentando levantar da cama e arrancar o soro à força. Ou seja, um caos.

 

Quer saber, doutor, é o seguinte, vou tirar meu pai daqui hoje e vou para o Brasil. Eu assumo a responsabilidade e assino a alta voluntária. Ele não concordou muito com a história, mas viu que não havia jeito e legalmente não podia nos prender ali. Aceitou, disse que ia providenciar e me pediu duas horas.

 

Fomos acalmar meu pai, explicando que havia pedido sua alta e que sairíamos dali de qualquer jeito. Mas que era eu quem estava assumindo a responsabilidade e que ele precisava colaborar.

 

Para completar todo esse surrealismo, internam um mendigo meio louco e completamente drogado. Levaram o homem para uma sala ao lado, fechada, mas toda em vidro, de maneira que víamos tudo que acontecia. Foi necessário chamar umas oito pessoas para segurá-lo e as enfermeiras tiravam par ou ímpar para ver quem faria sua higienização. Toda essa loucura acabou tirando um pouco da atenção e, se por um lado, aliviou o clima com aquele espetáculo bizarro, por outro, me deu uma tremenda revolta de saber que meu pai, que trabalhou feito um louco, pagava seu plano de saúde e suas contas corretamente, estava agora dividindo uma enfermaria em um país estrangeiro com um mendigo drogado. Agora quem tiraria ele dali, de qualquer maneira, era eu.

 

Fui atrás do médico outra vez, as duas horas passaram. No fundo, ele tinha esperança que nos acalmássemos e resolvêssemos ficar. Fui bastante assertiva e disse que não havia essa possibilidade, sentia muito, mas era a nossa decisão. Perguntei, sei que não é sua recomendação, mas diante do fato que vou levá-lo de qualquer jeito, você me dá alguma indicação que assegure melhor a viagem? Ele me disse que desse o AAS antes do voo e uma outra injeção na barriga, acho que para evitar trombose. Mostrei seus medicamentos, ele me aconselhou o que deveria dar ou não e desejou sorte.

 

Assinei sua alta com um peso de 200 kg nas costas. Ele assinou também, mas sua assinatura não valia nada, era um rabisco. Minha mãe ficou preocupada, de qualquer maneira, não havia outra alternativa. Não era a culpa que me angustiava, era o medo de ter decidido mal.

 

Fomos para casa e conversei sério com meu pai. Hoje você não toma banho, não faz nenhum esforço. É para ficar deitado até a hora da gente embarcar. No aeroporto, não quero nem saber, é na cadeira de rodas. Nós vamos alegar problemas de locomoção e você precisa fazer uma cara boa ou não te deixam embarcar e estamos todos ferrados. Estou assumindo toda a responsabilidade e preciso que você colabore.

 

Ele colaborou. Resmungou um pouco pela cadeira de rodas, mas nem dei conversa. A verdade é que ele não aguentaria caminhar mesmo e acabou cedendo.

 

Em casa, demos o AAS, os outros remédios do dia, ele havia tomado no San Camilo. Não demorou muito, ele começou a passar mal outra vez e a urinar sangue. Ficamos sem saber o que fazer e se deveríamos levá-lo novamente ao hospital. Minha mãe lembrou de não-sei-quem-amiga-dela que tomou o AAS e começou a urinar sangue. Ficou resolvido que ela daria água direto para ele, para ver se clarearia. Se pela manhã estivesse melhor, embarcávamos, caso contrário, íamos para o hospital. Pela manhã, felizmente, a urina havia clareado. Foi a terceira noite sem dormir.

 

Claro que não deixaria que eles voltassem sozinhos para o Brasil. No meio dessa confusão, entre Luiz e meu irmão, eles transferiram as passagens dos meus pais e compraram uma para mim. A deles era na classe executiva e a minha era na econômica.

 

Fiz uma mala pequena, assim já podia ir com ela para o hospital no Brasil. Minhas malas sempre são pequenas, levo o suficiente. Lembrei de colocar os últimos exames que fiz em Madri, uma mamografia e uma ecografia. Estavam separados com antecedência, tinha planos que meus pais levassem para o Rio para mostrar a um grande mastologista amigo deles. Já estava separado mesmo, levava eu pessoalmente.

 

Não preciso dizer que a manhã foi tensa. Quando ele acordou, decidi dar seus remédios do coração normalmente, há dois dias ele não tomava direito, achei que era o mais razoável. Guardamos o AAS para resolver se daríamos ou não na hora do embarque. Vai que o sangramento começava outra vez. A tal da injeção na barriga, resolvi ignorar, não tinha um bom presentimento.

 

Ao chegar no aeroporto, fui direto pedir uma cadeira de rodas, sem escutar os resmungos do meu pai. Deveria ter reservado com antecedência, mas a equatoriana que me atendeu, logo notou que tinha alguma coisa estranha no nosso caso e foi mais do que solícita, além de discreta.

 

Na boca do check in, a atendente diz que não podemos embarcar. Todo mundo com cara de paisagem, mas por que? É que a passagem de vocês era para mais de cinco dias, vocês só ficaram três, tem uma multa. Ufa! Multa se resolve. A multinha foi de apenas 1.600 euros, mas a essa altura, ninguém queria discutir, vamos embora. Conseguimos faturar no check in e partimos para o terminal de embarque.

 

Parece simples, mas não é, é longe pacas! Felizmente, a cadeira de rodas nos abriu várias portas. Em princípio, só poderia ir um acompanhante com ele, mas a tal da equatoriana muito da safa foi abrindo os caminhos para a gente e explicando tudo.

 

Pequeno detalhe, meu documento espanhol está vencido. É normal, demora mesmo na renovação, entretanto, isso quer dizer que para eu deixar o país sem problemas, preciso de uma carta de saída. E quem é que teve tempo para fazer essa carta? Nesse momento, meus pais não sabiam disso, era mais uma encrenca para pensar, mas eu sabia e meu coração pipocou na hora que mostrei o passaporte e não tinha o papel de turista para entregar. Disse que era residente e felizmente, não me pediram o documento. Normalmente, eles cobram só na entrada, mas já me pediram na saída, quando fui a Praga. Na época, eu tinha.

 

Muito bem, passamos. Pegamos uma furgoneta para mudar de terminal. Normalmente, esse trajeto é feito por um trem, dentro do aeroporto. No carro, me senti como em um filme de perseguição policial, fugindo do país.

 

Nesse tempo de espera para embarcar, minha mãe disse que preferia que eu viajasse do lado dele e ela iria atrás sozinha. Pela primeira vez na minha vida, preferia ir na classe econômica que na executiva, mas concordei com ela e disse que ia com meu pai. Eu já esperava por isso. A fera não é muito disciplinada, mas comigo se comporta melhor do que com ela, normal.

 

Da porta do avião, mandei uma mensagem para o Luiz que íamos embarcar. Por que? Porque meu irmão estava providenciando uma ambulância para nos buscar no aeroporto de chegada e entrando em contato com o neurologista. Entretanto, a companhia aérea não podia saber disso antes de embarcarmos.

 

E claro, meu pai também não sabia disso.

 

A viagem foi calma e infernal ao mesmo tempo.

 

Foi calma porque ele dormiu quase o tempo todo, levantou umas quatro ou cinco vezes para ir ao banheiro, coisa que eu tinha que acompanhar para ele não cair. Uma das vezes, a aeromoça me perguntou se ele estava passando bem e eu apontei para a perna dele que doía. Tinha uma história na manga que havia dado um dramim porque ele enjoa muito no ar e agora ele estava meio zonzo. Enfim, não foi necessário mentir mais. Felizmente, ele nem quis comer, outra preocupação, porque ele estava enjoando muito e quando ele enjoa, parece que está enfartando. Não se alterou durante a viagem, só me dizia que estava louco para chegar em casa e tomar um banho. Coisa que escutava calada e pensando, mas ainda não será agora. Toda hora me perguntava de uma maneira confusa se seu plano de saúde cobria todas as despesas, se ele tinha pago tudo direito, se tinha dado uma gorjeta para a moça da cadeira de rodas, engraçado como mesmo completamente confuso, ele se preocupava se tinha dinheiro para cobrir as despesas e se estava tudo certo.

 

E foi infernal, porque a essa altura, a gente não tem muita certeza em que acreditar. E se ele realmente tivesse um coágulo? E se aquela bosta estourasse no ar? E se desse a tal da arritmia? Não tenho uma expressão melhor para descrever, fui com o rabito na mão até lá, se essa porra estourar, a responsabilidade é minha. Fui umas duas ou três vezes atrás para tranquilizar minha mãe e perguntar se ela queria sentar na frente um pouco. Mas ela preferiu ficar ali mesmo, acho que ela mal deve ter se mexido. Da última vez que fui, ela me perguntou como ia ser para colocá-lo em uma ambulância no Rio. Não tinha a menor idéia, mas respondi firme, uma coisa de cada vez.

 

Na falta de quem pedir, chamo minhas avós, que depois de toda essa confusão, devem estar com as asas desengonçadas! E vô, pode dar uma forcinha aí também!

 

Aterrizamos bem, um enorme passo, ainda que as coisas não estivessem resolvidas, mas a gente precisa comemorar cada etapa ou enlouquece. Buscava um momento para dizer a ele que iríamos ao hospital. Ainda era quinta-feira, na ida de Madri para o Rio, o voo é contra o fuso horário e o dia fica imenso. Chegamos por volta das 18:00hs.

 

Assim que pudemos conectar o celular, falei com meu irmão. Ele havia conversado com o neurologista, que recomendou não buscá-lo com ambulância, isso iria assustá-lo. Que ele fosse ao hospital ou para casa, o médico iria vê-lo onde estivesse. Essa informação me tranquilizou, queria dizer que era importante, mas meu pai tinha tempo para chegar com calma a um hospital. De toda maneira, o CopaDor, hospital para onde iríamos, estava lotado, muito difícil encontrar vaga e meu irmão havia conseguido uma em cima da hora. Melhor não perder o lugar.

 

Com essa informação na mão, ficou mais fácil. Enquanto, minha mãe foi com o rapaz que levava a cadeira de rodas buscar as malas, fiquei sozinha com ele e comecei a conversar. Olha pai, sua situação está estabilizada, mas a gente sabe que alguma coisa aconteceu, você concorda? Normal você não está. Ele concordou. Acho que a gente deveria ver um médico, ir a um hospital e verificar exatamente o que aconteceu. Aqui você está em casa, falam sua língua, você terá o melhor atendimento. Ele ia concordando, mas ao mesmo tempo falando que se fosse em casa descansar, acordaria melhor. Disse que meu irmão tinha conseguido falar com o neurologista dele, um médico que ele confia bastante, e que não tinha certeza do que eles haviam combinado, porque estávamos no avião, mas que a gente deveria seguir sua recomendação, se ele dissesse que deveríamos ir a um hospital, a gente deveria ir.

 

De maneira que ele saiu sem gostar muito da história, mas conformado em ver o médico. Do lado de fora, esperavam meu irmão com a namorada. No carro, contamos, o que era verdade, que o hospital estava lotado, mas que tinham conseguido um lugar para ele, que deu o maior trabalho e que o médico iria lá encontrá-lo. Enfim, fomos direto para o CopaDor.

 

Nem sei explicar o alívio que me deu ao entrar no hospital do Rio, uma sensação de tô salva, sei lá. Muita água ainda iria rolar, eu sabia, mas ali entendia as regras e não estávamos sozinhos, ou pelo menos, não me sentia assim.

 

Pouco depois, chegou seu neurologista, um senhor que não saberia dizer a idade, mas arriscaria mais de 80 anos, todos confiamos muito nele. Tem a sabedoria que só a experiência pode trazer e a tranquilidade de quem viu muita coisa para se impressionar levianamente. Olhou com calma a tomografia e foi me mostrando tudo. Realmente, houve uma izquemia no ocipital esquerdo, o tal AVC, que gerou um sangramento. Essa hemorragia é, provavelmente, porque ele tome anticoagulante para o coração. Do lado direito, o tal eventual coágulo que a médica-vaca me disse que poderia estourar no avião, ele bateu o olho e já disse logo, não minha filha, nem se preocupe com isso que é coisa antiga. Isso não é nada. E esse problema de trocar palavras? É assim mesmo, porque o lado esquerdo controla a fala, mas isso é reversível e o próprio organismo vai absorvendo essa hemorragia.

 

Três noites sem dormir nessa loucura, mais quase 24 horas acordada, incluindo um voo proveniente do inferno, quem parecia ter problemas neurológicos era eu. Não conseguia lembrar das palavras nem acabar as frases, me centrei no que importava: coágulo = antigo = nada, organismo absorve e RE-VER-SÍ-VEL.

 

O problema ainda era sério e inspirava cuidados, a tal da arritmia estava lá e não havíamos conseguido contatar o cardiologista para saber se também era coisa antiga. Sim, ele teve um AVC em pleno voo para Madri e passou por tudo isso depois, mas essa realidade entendíamos e podíamos lidar.

 

Por que fazia tanta diferença a arritmia ser antiga ou recente? Porque quando é recente, se tenta reverter o mais rápido possível, questão de horas. Após 48 horas, há possibilidade de se reverter, mas é mais complicado, o processo é mais agressivo e não há garantias. Daí, passa a se controlar por medicação mesmo. O problema é que para reverter, se necessita uma dose alta de anticoagulante. Nesse caso, era um problema porque ele teve uma hemorragia no cérebro e se tomasse anticoagulante, essa hemorragia aumentaria.

 

Foi quando entendi que lá atrás, quando no primeiro hospital nos perguntaram se a arritmia era coisa antiga, ao dizer que não tínhamos certeza, que poderia ser, pode ter salvo sua vida. Porque ali não viram que ele teve uma hemorragia e se tivesse tomando o anticoagulante, essa história provavelmente tivesse outro final.

 

Enfim, algum anticoagulante ele precisa, por causa do coração e é aí que entra o cobertor curto. O tratamento é conjunto com o cardiologista e o neurologista. Naquele momento, ele não podia deixar o hospital, precisava estabilizar melhor sua situação.

 

Ficamos aguardando ainda alguns exames e se vagava algum quarto particular. Um casal de amigos do meu pai apareceu também e ficamos conversando do lado de fora. Foi a amiga deles quem lembrou que, na operação da carótida, há alguns anos, o médico havia encontrado um coágulo, mas que achou melhor deixar como estava e não mexer. Era o tal do coágulo antigo!

 

Fui comprar uma água, quando me dei conta que tentava pagar com euros. Óbvio que nessa confusão, não lembrei de trocar dinheiro. Eu deveria estar realmente com uma cara de louca.

 

Enfim, acabando os exames mais urgentes, constatou-se que meu pai não poderia sair do hospital, mas poderia ficar em quarto particular com acompanhante. Entretanto, não havia vaga. A única vaga era na UTI e para lá ele foi, protestando bastante.

 

Por um lado, quis tirá-lo de lá e voltar no dia seguinte para um quarto particular. Por outro, não havia nenhuma garantia de conseguir o tal quarto, e estando no hospital era mais provável. Além do mais, quem eu queria enganar, não tinha mais a menor condição de cuidar de ninguém. Minha mãe e eu estávamos em um estado lamentável, seria nossa quarta noite sem dormir nessa roda vida. Reclamando ou não, na UTI ele estaria assistido e nós conseguiríamos descansar algumas horas.

 

E assim foi, chegamos em casa por volta das duas da matina.

 

 

…a saga continua…

 

Pausa para manutenção

Indo direto ao assunto, vim para o Brasil às pressas por uma questão de saúde do meu pai. Ele sofreu um AVC em pleno vôo em direção a Madri. Conseguimos voltar para o Rio de Janeiro e agora está tudo sob controle. A situação foi grave, mas felizmente reversível.

Acredito que até o final da próxima semana ele possa voltar para casa, quando estarei um pouco mais sossegada. Um dia, espero também contar por aqui como uma crônica que já aconteceu e acabou bem.

Sinto muito, mas não tenho tempo para conversar com praticamente ninguém. Quem quiser saber notícias, pergunte ao Luiz.

Agradeço a torcida e as boas energias das pessoas queridas.