91 – A mudança de olhar

Há alguns anos atrás vi um filme francês que gostei muito, acho que se chamava “Uma Relação Pornográfica”, apesar de não haver absolutamente nada de pornográfico. Não pretendo contá-lo inteiro, mas apenas uma frase que me chamou atenção, o homem dizia em relação a sua parceira: “primeiro não vi nenhum defeito, depois vi seus defeitos e depois, novamente não os vi mais…” 

Nesse caso, estava sendo descrita uma relação amorosa, onde ele se apaixonou. Acho que o amor funciona assim, primeiro a gente está tão empolgado que não vê os problemas, depois, pouco a pouco, a gente vai aprofundando o conhecimento e também vendo as características negativas. E chega um momento, onde esses defeitos não importam mais, pois se tornam pequenos dentro de todo o contexto da relação. 

Mas nem é de relacionamento amoroso que gostaria de falar, é sobre olhar mesmo. Acredito que o funcionamento do nosso olhar é o mesmo para as coisas que nos cercam. 

Foi assim que meu olhar se comportou aqui em Madri. Primeiro não vi defeitos, gostei de tudo, até as desvantagens me pareciam divertidas. Depois vi os defeitos, alguns me incomodavam, outros nem tanto. Agora, sinto que estou muito próxima a não me surpreender mais. A dúvida nesse momento é se isso é amor ou acomodação pela cidade.  

Algumas pessoas, mais sábias que eu, conseguem viver em um mesmo lugar por toda sua vida e, no entanto, também conseguem ver as mesmas coisas de maneira diferente e se desenvolver com elas. Outras, são acomodadas mesmo, o que não deixa de ser uma opção. No meu caso, preciso da mudança. É meu estímulo para aprender. Mudar me dá um novo ângulo, um olhar fresco. Não preciso mudar de país a cada semana, não é a isso que me refiro. Mas necessito algum tipo de mudança, mesmo sabendo que há um preço por ela. Sempre há.  

Entretanto, qual o preço para se conhecer profundamente a alma humana? E que no fundo significa conhecer a nós mesmos,  a mim mesma. Qual o preço de chegarmos ao nosso limite? Qual o preço de se deixar um legado e como deixá-lo sem a experiência? E por que raios isso me importa tanto? 

Outro dia li um trecho interessante de um livro do Calvino, que dizia o seguinte: “…conseguir explicar a si mesmo que aquilo que ele procurava estava diante de si, e, mesmo que se tratasse do passado, era um passado que mudava à medida que ele prosseguia a sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, não o passado recente ao qual cada dia que passa acrescenta um dia, mas um passado mais remoto. Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos…deve prosseguir até uma outra cidade em que outro passado aguarda por ele, ou algo que talvez fosse um possível futuro e que agora é o presente de outra pessoa. Os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos… Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá”.* 

Acho que mudo para saber quem sou. O que gera um paradígma, pois ao mudar, sou outra pessoa novamente.  

Não me prendo aos sapatos, nem aos móveis, nem às casas, nem às cidades… Há muitos nomes para isso, alguns chamam de desapego, outros de irresponsabilidade ou loucura e sabe-se lá de mais o que; chamo de liberdade. Quando não tenho nada, posso tudo. E me doeu abrir meu coração e minhas mãos no início, mas só assim entendi que as pessoas e as coisas não são minhas, apenas passam pela minha vida e me dão a oportunidade de conhecê-las. Quando posso aprender com elas, agradeço, pois meu apredizado é meu patrimônio. Com o tempo estou aprendendo também a compartilhá-lo e quem sabe esse será meu legado ou minha pretensão. De qualquer maneira, já sei que nada ou quase nada que não se possa compartilhar serve. 

Sinto que tenho pouco tempo para admirar Madri com os olhos de novidade. Por um lado, não posso negar que isso me entristeça, mas, por outro, não quer dizer que não possa admirá-la, nem que será pior, simplesmente não será mais da mesma maneira. Talvez essa seja minha próxima mudança e meu próximo aprendizado.  

* do livro “As cidades invisíveis” de Italo Calvino

92 – A Festa Brasileira

Desde que saímos do Brasil, Luiz e eu adotamos uma política de não buscar exclusivamente amigos brasileiros. Isso não quer dizer que a gente não goste de encontrá-los, pelo contrário, mas conhecemos gente nos Estados Unidos, por exemplo, que nem falava inglês. Simplesmente, optou por se isolar da cultura local e fingir que continuava no Brasil. Como uma negação. Dessa postura não gosto, respeito, mas não quero. Acho muito mais interessante se integrar, ou pelo menos se esforçar para conhecer a cultura do lugar que a gente vive, não perco nada, só adiciono. Sempre parto do princípio que se procurarmos as qualidades encontraremos e se procurarmos os problemas, também encontraremos. Então, se um problema cair na minha cabeça, não posso fazer nada a não ser resolvê-lo, mas eu que não procuro! 

Aqui em Madri, como em Atlanta, temos amigos brasileiros, espanhóis e de outras nacionalidades y así me gusta! Acho divertido uma festa onde se fala várias línguas, corretamente ou não, isso não importa, o importante é que a gente se comunique e que exista afinidade. 

Agora, também é verdade que os estrangeiros aqui sentem vontade de conhecer melhor o Brasil. Aliás, o Brasil anda na maior moda! Por isso, as últimas festas que temos feito, temperamos com uma certa brasilidade. As caipirinhas fazem muito mais sucesso que os vinhos e as músicas são extremamente bem recebidas. E para os amigos brasileiros, é sempre bom se sentir um pouco em casa. 

Nessa última sexta-feira, soubemos de uma festa brasileira na Sala Caracol. Quando escutamos falar de uma festa brasileira por aqui, infelizmente, há uma dose de suspeita, pois, não é sempre, mas muitas vezes é codinome para festa com prostitutas. No início, isso me envergonhava um pouco, não gosto dessa imagem da brasileira. Nada contra as meninas que fazem seu trabalho não muito fácil, mas acho muito desagradável essa generalização. E o pior de tudo é saber que a imagem do Brasil fica afetada, mas na minha opinião, a culpa mesmo é de quem paga e normalmente são estrangeiros. Acho que esses estrangeiros é que deveriam se envergonhar. 

De uma maneira ou de outra, percebo que a imagem do Brasil melhorou bastante no cenário internacional nos últimos anos, principalmente em uma Europa, que apesar de tradicional, também é muito curiosa. 

Mas voltando à festa da Sala Caracol, no ano passado Luiz e eu fomos a uma festa por ali para sentirmos o ambiente. Achamos animado e não vimos nada que depusesse contra nosso país. Portanto, nessa última festa, que era um pré-carnaval, fiz a maior propaganda e combinamos de ir com amigos de diferentes nacionalidades.  

Fizemos uma festinha de aquecimento aqui em casa, onde rolaram caipirinhas, cachacinhas e comidinhas. A gente faz caipirinha de frutas diferentes, o que para os estrangeiros é algo exótico.  

Daqui seguimos para a festa brazuca, onde rolava um show da banda Maracatu FM. Aliás, um show excelente! Aos meus ouvidos, soou como um Mangue Beat de primeira! Talvez outras fusões de ritmos também, mas estava mais interessada em dançar que entender. Esse show acabou por volta de 1:30 da manhã, o que é cedo para Madri, mas que dependendo da localização é o que a prefeitura autoriza.  

Nosso grupo se dividiu porque algumas amigas brasileiras acharam que se tratava de música baiana e não se interessaram, foram para outra boite. Gosto de música baiana também, mas não tinha nada a ver e nós ficamos até o fim do show. Quando acabou, Luiz, eu e uma amiga koreana fomos catar aonde o povo tinha se metido. Descobrimos que a tal da boite era a Posada de Las Ánimas, bem perto da nossa casa. Ou seja, partimos para a terceira fase da noite! 

As noites em Madri são assim, longas! É muito comum irmos a mais de um lugar ao longo da madrugada. Dependendo da hora, cada lugar tem seu ponto forte. Haja energia! 

Óbvio que chegamos em casa quase de manhã e meus planos de visitar uma feira de arte no dia seguinte foram para as cucuias! Tudo bem, tinha o sábado para descansar e fui no domingo. 

Bom, quer dizer, descansar de dia, né? Porque na noite de sábado em Madri, quem quer ficar em casa? Eu achando que ficaria na minha caminha quentinha, me recuperando da ressaca de sexta-feira, liga um casal de amigos brasileiros muito legais. Daí, fazer o que? Nos integrar a cultura local, tomar um bom rioja, comer umas tapas e papear com amigos. Pensando bem, o mundo não é tão grande nem tão diferente assim. 

93 – ARCO 2006

Hoje fui na ARCO, uma feira internacional de arte contemporânea, realizada em Madri e que esse ano completa 25 anos de vida. Essa de 2006 foi composta por 280 galerias (191 estrangeiras e 89 espanholas), entre 33 países e contou com mais de 3 mil artistas. Ou seja, foi uma mostra mundial importante da arte de vanguarda. A propósito, incluiu galerias e artistas brasileiros.  

Para mim, que sou artista plástica, absolutamente enlouquecida por arte contemporânea, foi um festival de estímulos. Muita informação e gente boa. 

Sendo muito sincera, andava um pouco decepcionada com a arte na espanha. Não a arte clássica, que é muito rica, mas a arte contemporânea me pareceu muito conservadora e com uma tendência tão grande à pintura que me incomodou. Provavelmente, em Barcelona isso se altere um pouco, mas em Madri, esperava mais. 

Na minha réles opinião, a arte contemporânea brasileira está anos luz na frente! Pelo menos em São Paulo, não necessariamente com artistas paulistas, mas é inegável que havia uma concentração de arte de excelente qualidade ali. 

Entretanto, essa feira me reacendeu as esperanças. É verdade que incluía muitos outros países, mas também gostei bastante do que dizia respeito à Espanha. Boa notícia! 

E porque não dizer que fiquei muito orgulhosa da representação dos meus conterrâneos. O Brasil estava muito bem representado por suas galerias, além de artistas brasileiros que também faziam parte do acervo de galerias de outras nacionalidades. 

Caramba! Vai ser difícil dormir! Nem fome durante o dia eu tive. Muitas imagens e pensamentos gritando na minha cabeça! Mas é tão bom… 

94 – Agridoce, ao meu avô

Meu avô está com 88 anos. A idade vem demonstrando sinais evidentes, mas ainda é um homem muito lúcido. Depois que minha avó faleceu, trocou seu apartamento por uma caderneta de poupança e seu carro por uma mala zero quilômetros. Passou a se revezar entre a casa do meu pai e da minha tia. Fica mais tempo na casa da minha tia. Hoje minha mãe me contou que estava um pouco anêmico e desanimado. Depois disso, foi impossível não pensar nele o dia todo. 

Meu avô é um dos homens mais inteligentes que conheci, inteligência que herdou meu pai. A diferença é que meu avô teve pouca instrução formal e, mesmo assim, era capaz de discutir profundamente da troca de um pneu ao funcionamento de um submarino nuclear. Nunca encontrei um assunto do qual ele não soubesse conversar. 

Entretanto, às vezes me parecia que era duas pessoas. Uma com a família, que incluía minha avó, seus filhos e nós, os netos; outra com todos os demais. Um homem acre e bravo com as pessoas em geral, mas um avô fabuloso! Nunca teve muitos nem grandes amigos. Sempre foi de um temperamento muito difícil para se relacionar e nunca se esforçou para modificar isso. Não conheço a fundo seu passado, mas posso imaginar que sua vida jovem foi dura e amarga e, talvez sua inteligência, o fez perder a fé nas pessoas. A sensação que tinha é que ele não confiava em quase ninguém e fazia questão de demonstrar que também não gostava de quase ninguém. 

Acontece que sou neta e sempre fiz parte do seleto grupo a quem ele confiou e mostrou seu melhor lado. O homem que para os demais era emburrado e sério, era o mesmo homem que me buscava no aeroporto me fazendo cócegas e dizendo “pode morder, pode beijar, pode apertar”… 

Nas férias na sua casa não achava tão ruim acordar de manhã, pois sabia que na mesa do cáfe encontraria me esperando cabaninhas de índio esculpidas na ponta do pão francês e brincadeiras que faziam minha imaginação navegar solta. Depois me levava na pracinha para andar de pônei, brincar no parque e tomar “chicabon”. E mais tarde, quando queria dar sua cochilada, me enfiava junto na cama e pedia que me contasse a história da cegonha mentirosa por tantas vezes que só um avô poderia contar. É claro que quem dormia ao fim da história era ele.  

Também era ele quem nos levava ao Tivoli Parque da Lagoa e para andar no trenzinho de Cabo Frio, centenas de vezes! No parque, era quem tinha coragem e paciência de ir conosco na montanha-russa e no twist, brinquedos que adorava, mas não tinha idade para ir só.  

Meu avô construía brinquedos e jogos muito melhores do que os vendidos nas lojas. Acho que eram melhores porque víamos como eram feitos e participávamos da execução. Tinha ferramentas para tudo e sabia consertar tudo. Também nos levava para pescar com ele na única idade em que pescar me parecia uma aventura. Ele tinha uma forma diferente de se comunicar conosco e a gente se entendia sem muitas palavras. E para quem conhece meu trabalho e é um pouco observador, hoje também conhece um dos meus mistérios. 

O tempo passou e quase casei aos 19 anos, desisti na última hora. Foi a decisão mais difícil que tive que tomar até aquele dia e sofri muito. Minha família me apoiou e sei que foi quando resgatamos nosso passado, mas hoje estou falando do meu avô. E meu avô foi a única pessoa que nunca me perguntou o porquê, não me perguntou absolutamente nada, não me disse o que achava antes nem depois. Quando me recebeu, pegou minha mala e foi até o carro com a mão no meu ombro, me abrançando. Tive cinco anos outra vez, deixei para trás quilos de culpa e poucas vezes me lembro de ter sido tratada com tanto respeito. No silêncio da nossa língua de avô e neta talvez ele, que havia me contado tantas vezes a história da cegonha mentirosa, entendesse melhor que naquele momento eu não podia mentir. Acho que a única coisa que me disse foi que minha avó havia caprichado no almoço, preparado bife acebolado com uma mandioca frita crocante. Havia três dias que eu não conseguia comer, nada sólido passava pela minha garganta, mas naquele dia almocei. 

Agora gostaria de animá-lo e estou longe para sentar muda do seu lado e colocar a mão no seu ombro. Ligar e falar coisas melosas não é nossa língua nem nosso estilo. Não sei se conseguirei receber sua visita novamente, é um pouco complicado agora mais velho. Quem deve fazer o caminho sou eu. 

Fico um pouco curiosa para saber se com a idade ele recuperou sua fé nas pessoas ou se a perdeu de vez e, também por uma questão de respeito, nunca vou perguntar. Mas posso dizer que por seu exemplo quem ganhou fé nas pessoas fui eu. Aprender a reconhecer o lado bom e sincero do outro é muita coisa. 

95 – A Tal da Higiene

Sou completamente neurótica por limpeza! Não quero dizer que só sou limpinha, estou falando de neurose mesmo. Fico no limite dos obsessivos compulsivos, apesar de estar bem melhor agora do que quando era mais jovem. Em função dessa obsessão,  preciso lavar minhas mãos mais vezes que uma pessoa normal, lavar toda a comida que entra na geladeira, desinfetar o chão com água sanitária, contar as coisas na rua até darem múltiplos de dez, apertar meus dedos ou beliscar a palma da minha mão… coisas assim, rotinas que trazem segurança. Mas não é tão ruim, porque como também tenho deficiência de atenção, podemos dizer que tenho loucuras complementares. Bom, não chego a um grau que me provoque problemas ou me dificulte a vida, na verdade, a consciência dessas tendências me ajudou a tirar proveito delas. E convenhamos, nem fui eu quem disse, mas concordo que “de perto ninguém é normal”. Porém vamos falar de uma loucura por vez e hoje vou contar da minha obsessão por limpeza e como Madri me tem feito melhorar. 

Voltando um pouco no tempo, minha mãe conta uma história que meu irmão quando era pequeno vivia adoecendo e, por conta disso, cada vez mais ela o protegia, o que não adiantava. Até que um dia o pediatra informou que faltava a ele a famosa vitamina “S”,  de sujeira! Faltava a ele anticorpos. A partir disso, ela passou a expô-lo mais. Claro que no início ele adoecia, mas foi recuperando sua resistência aos poucos. 

Hoje em dia, cada vez que preciso me expor a uma situação, digamos menos higiênica, fico concentrada dizendo a mim mesma, é vitamina S, é vitamina S… 

Minha primeira melhora significativa devo aos meus gatos e a arte. Nos dois casos, me fazia impossível lavar as mãos a todo momento, além de associar essa “sujeira” a coisas que gostava. 

Agora, mudar para a Europa, desconfio que me curou! 

Vamos começar pelo pão. Que raios de relação de amor e ódio é essa que o europeu tem com o pão? Acho que as mães batem nos seus filhos pequenos com pedaços de pão e depois os oferecem como refeição! Sei lá, algo como Pavlov. Foi a única explicação razoável que encontrei! O europeu precisa fazer o pão sofrer antes de comer, ele precisa arrastá-lo no chão, caminhar com ele embaixo do sovaco, deixar pegar poeira, manusear bastante, e só aí, o pão merece o direito de ser comido! Aqui ele ainda é vendido em sacolinhas, que deixam a metade do pão do lado de fora, mas pior mesmo é na França, onde vem com um pedacinho papel em volta que só cabem três dedos para segurá-lo.  

Logo que mudei para cá, não conseguia comer pão. Era impossível não imaginar a tragetória do pobre antes de chegar a minha boca. Hoje, quando estou em restaurantes e não resisto ao cheiro do pão quente invadindo meu nariz, penso: bom, se está quente, os micróbios morreram queimados! Vitamina S… vitamina S… 

Além disso, pensando bem, se depois eu tomar vinho, o álcool desinfeta o estômago, certo? 

E andar de metrô? Aquele negócio de pegar nas barras de apoio que todo mundo põe a mão? Putz, no começo sofria! Luiz me deu a idéia de andar com lencinhos higiênicos na bolsa. Não posso dizer que não fiquei absolutamente tentada, mas já era paranóica o suficiente e resolvi lidar com a questão de maneira madura. Ou seja, maduramente aprendi a me equilibrar sem tocar em nada! 

Mas só percebi mesmo que estava praticamente curada da última vez que fui comprar frios para lanchar. Primeiro porque o jamón que comprei estava pendurado sem nenhuma proteção de embalagem, segundo porque aquela historinha de cortar os frios com luvinhas aqui não existe! É na munheca mesmo. Era o indivíduo pegando com seus dedinhos cada uma das fatias do meu presunto e eu respirando fundo e pensando, vitamina S… vitamina S… conta os presuntos pendurados até darem múltiplos de dez… 

Bom, não disse que estava assim totalmente curada, mas quer saber, em outros tempos, teria jogado tudo fora quando chegasse em casa. E acredite se quiser, comi e achei foi bom! A propósito, comi com pão. Vai ver os anticorpos também nos ajudem a diminuir o senso crítico e essa tal da higiene! 

96 – Menos um carnaval

Sempre fui louca por carnaval! Adoro as festas, a animação, as fantasias… tudo! Sei que muitas vezes também saem brigas e confusões, mas a verdade é que essa parte pior nunca chegou em mim. 

Gosto da sua preparação, dos ensaios de blocos, da ilusão do pecado permitido, do clima que traz aos lugares que o celebram, das escolas de samba e da Portela que infelizmente não é mais a mesma.  

Achava que celebraria todos os anos até ficar velhinha. Claro que sem o mesmo preparo físico teria que sambar como turista americana, levantando os dois indicadores para cima. 

Luiz não gosta de carnaval, o que gera uma total insatisfação uma vez ao ano. No início, tínhamos um trato de comemorar um e descansar outro, mas isso nunca foi cumprido. De doze anos de casada, só tive um carnaval decente, mesmo assim, porque comprei as passagens “no susto” e fomos para Salvador. 

Nos outros carnavais, sempre sofri acompanhando pela televisão a animação das pessoas nas festas por todo Brasil. Até que, desde o ano passado, desisti de saber o que acontece pelo mundo, não leio as reportagens na internet e foi um alívio não ter um canal de TV brasileiro. 

Mesmo assim, descobri que na Espanha também se comemorava o carnaval, coisa que me animou um pouco e me fez pensar que, quem sabe, esse ano quebraria meu jejum. 

Viajamos na semana anterior e fiz um esforço para chegar em Madri antes do sábado de carnaval, tudo bem que fosse um dia só, mas já valeria alguma coisa.  

Começamos bem. Fizemos uma festa de aquecimento em casa para nos prepararmos para a noite que começou cedo. Até aí, por mim ia tudo as maravilhas, com amigos legais e tomando minha cachacinha envelhecida em barril de carvalho. De casa fomos para uma festa de carnaval brasileira, que não estava muito cheia nem tão animada, mas que por mim estava ótima!  Infelizmente, nem todos pensavam assim. Meu carnaval que já havia se reduzido a um dia, se resumiu a uma hora, porque dali fomos para outro lugar.  

Por mim, também sem problemas, não me importava onde estivesse e sim que era sábado de carnaval. Podia dançar música brasileira, espanhola, grega, do cafundó do judas… dane-se, queria meu dia de direito. 

Pois com mais uma hora na outra boite, nada de ninguém se animar a ir para pista e Luiz com sua boa vontade peculiar de carnaval começou a dançar comigo bocejando. Francamente, isso me irritou! 

Decidi voltar para casa e amargar mais um ano. Vai passar. Voltamos a pé na chuva e nos graus negativos. Me recusei a pegar taxi, não queria ser educada com ninguém. Nem me incomodou a água, não vi a neve, nem senti o frio, só lembrava que mais um carnaval decia pelo ralo.  Assim como minha Portela, também não sou mais a mesma.

97 – O Reino Encantado de Andorra

Tiramos férias e fomos passar uma semana em Andorra, um micro país, de 468 Km2, encravado entre Espanha e França. A principal atividade é o turismo e possui excelentes estações de esqui, motivo pelo qual viajamos para lá. 

Para dizer a verdade, assumindo minha ignorância, não me lembrava de haver ouvido nada sobre Andorra antes, mas o nome me soou como um mundo de contos de fadas, algo do tipo: o reino encantado de Andorra, onde a bruxa malvada mantinha a princesa encarcerada em uma torre de pedras. 

Pois fui eu, a princesa guerreira sin ganas de esquiar, Luiz, meu príncipe encantado caçador de dragões de gelo, e Jack, nosso fiel e feroz leão escudeiro. Seguimos em nossa carruagem alugada, puxada por 120 cavalos, em 6 horas de viagem desde Madri. 

É claro que logo no primeiro dia minha elegância magistral foi para o saco e, com aquela quantidade de roupa isolante em camadas, me transformei rapidamente em uma plebéia desengonçada. 

Isso sem falar das botas de esqui. Francamente, aquilo é um instrumento de torturas criado pelo pior dos demônios da neve! E a gente usa de propósito, nenhum Highlander me pôs uma espada no pescoço me obrigando! Eu devo ser masoquista… Aquela porcaria faz a gente andar de um jeito esquisito. A primeira vista, todas aquelas pessoas, caminhando rígidas e em cadência,  me parecem soldados de armaduras gordas e impermeáveis, marchando para a guerra do frio.  

Mas as coisas mudam quando nos encaixamos nos esquis. A postura melhora, nos distraímos da dor e a adrenalina esquenta o corpo. Aí fica todo mundo com a maior pinta de marrento!  Todos se achando e eu inclusive. 

Engraçado como sou uma pessoa quando vou e outra quando volto da pista. Esquiar para mim é difícil começando na preparação para sair de casa. Detesto aquele monte de roupa! Sinto-me totalmente claustrofóbica e os sapatos de neve me machucam. Vou andando no maior mau humor até a estação para a subida do bondinho. Saio carregando o equipamento com aquele jeito de mulher fresca que não sabe carregar nem uma sacola, que dirá um par de esquis, botas etc. Na boa, pareço uma auxiliar de astronauta e das incompetentes! 

Daí vou subindo naquele maldito bondinho que balança e é alto para cacete! Cassilda, tenho vertigem! Quando chego no alto da montanha estou completamente mareada. Mas é só o começo, porque logo em seguida preciso colocar as malfadadas botas, que só estão no ponto quando você as aperta tanto que para piscar os olhos precisa alternar com o movimento da respiração. Decide, ou pisca ou respira!  Ninguém merece! E quando estou no topo da montanha, totalmente equipada, minha cabeça diz “desce” e minhas pernas dizem “nem fodendo marquinho”.  

Ainda por cima, Luiz esquia muito melhor que eu, acho uma sacanagem! Ele podia pelo menos fingir que é um pouco difícil por uma questão de cavalherismo! Pior, só mesmo aquelas criancinhas de bochechas vermelhas que nem sabem caminhar direito, mas passam por você zunindo de tão rápido! É muita humilhação! Isso acorda meu lado escuro da força e tenho vontade de por meu pé na frente para elas tropeçarem. Talvez por isso que elas sejam tão velozes. 

Mas uma hora minha vertigem começa a se acalmar, vou me aclimatando. Em um ato de fé, decido encarar a bruxa malvada de Andorra. Descubro que não é tão poderosa, apesar de ser prudente lhe ter respeito. E a verdade é que quando consigo relaxar, aproveitar as curvas e tomar um pouco de velocidade, finalmente, me liberto da torre de pedras e também sou capaz de encarar os dragões de gelo.  

Na volta para o hotel, a mudança é óbvia. Não sinto mais a vertigem no bondinho e desfruto a paisagem. Ando com mais confiança e com pinta de atleta radical, quem vê até pensa! Os esquis já vão apoiados nos ombros e depois de produzir litros de endorfina nem sinto o peso da mochila. Dessa vez me atrevi a usar aqueles óculos espelhados de mosca espacial, afinal de contas, atitude é importante! 

Chegando ao quarto, tudo que quero é um banho de banheira, o maior luxo do mundo. Aliás, se um dia alguém fizer um ranking dos maiores luxos do mundo, empatarão no primeiro lugar café da manhã na cama e banho de banheira. O resto é só exibição! Com isso, volto a me sentir princesa. 

Bom, pelo menos até levantar da banheira e descobrir que todos meus músculos continuam doendo e tenho ematomas nos pés e canelas. Mas afinal de contas, uma princesa guerreira deve assumir que suas cicatrizes são troféus, certo? 

98 – As tribos madrileñas

Desde que o mundo é mundo o homem se classifica. Essas classes sociais mudam de nomes, entretanto os conceitos se perpetuam e se alternam de lados, demonstrando uma necessidade de categorização que me perturba, mas parece inevitável. 

Madri não poderia ser diferente, aqui também temos as divisões. Sei que é quase uma heresia uma brasileira falar das diferenças sociais na Europa, o Brasil é um rei em discrepâncias nesse sentido, sei olhar para meu umbigo, mas não uso uma bitola e, infelizmente, noto que isso também existe aqui. Talvez em um nível mais horizontal, não só em função de dinheiro, e não tão vertiginosamente vertical como o nosso, mas está presente.  

Existe a burguesia, a população mais abastada, chamada coloquialmente de pijos. Os pijos usam roupas de marca e falam com muita freqüência o termo “o sea” (ou seja). Pelo menos, esse é o estereótipo do burguês, sua caricatura, que muitas vezes me parece uma bela dor-de-cotovelo de quem não chegou lá. Sabe essa deformação católica da impossibilidade do rico entrar no reino dos céus? Algo assim. Óbvio que também há os superficiais, mas de modo geral, não conheço ninguém que tenha dinheiro que não trabalhe muito por ele. Sei que existe, mas não convivo nem aqui nem no Brasil.  

Tem os alternativos, que aqui não possuem uma nomenclatura específica, mas se dizem majos (descolados, gente legal). Também usam marcas da mesma forma, mas outros tipos de marca, lógico, as marcas majas. Passam horas se produzindo para parecerem informais e gastam uma enorme energia em desenvolver um estilo próprio para parecerem que não se preocupam com estilos. Existe uma obrigação de serem, ou ao menos parecerem, mais inteligentes, como se um tipo de óculos aumentasse o número de neurônios. É verdade que na noite, onde todos os gatos são pardos, eles são ou se parecem realmente majos. 

Há os imigrantes, com subdivisões de categorias: os com dinheiro e os ferrados. Os com dinheiro, podem ser de qualquer cor e falar com sotaque, pois normalmente são bem tratados. Na pior das hipóteses, são confundidos com turistas. Podem inclusive ser majos ou pijos. Não digo que seja uma vida fácil, porque nunca é, mas definitivamente é muito melhor que o segundo grupo. Os ferrados costumam ser ilegais no país, ou foram em algum momento. Esses últimos possuem outra divisão: os negros, os do leste europeu, os sul americanos (os sudakas, essa terminação em “aka” é pejorativa aqui), os orientais (os chinos, não importa se são chineses, japoneses, vietnamitas… tem olho puxado é chino)  e os que se misturam à população por seu tipo físico. A última categoria tem um pouco de sorte, o resto, como denominei duramente, se ferram, comem muita grama até possuírem uma qualidade de vida razoável, quando conseguem.    

Ainda na categoria imigrante, há os marroquinos e os ciganos. Acho que são os que mais tem problemas, seguidos pelos negros africanos. Os ciganos, não sei se podemos considerar exatamente como imigrantes, mas assim são vistos. A verdade é que a cultura é muito diferente e há um choque horroroso para se acomodarem. Adicionando-se a isso o estado de pobreza, é muito comum se dedicarem a atividades ilegais, o que aumenta o preconceito, pois de uma maneira maluca acaba justificando a má fama. É um círculo vicioso.  

Os sudakas, mesmo não sendo tão bem tratados, de certa forma, não são mal vistos. É considerada uma imigração positiva, pois exerce as funções que o espanhol não quer fazer. Os brasileiros, apesar de serem sul americanos, são vistos meio que em separado das outras nacionalidades, talvez pelo idioma. As mulheres brasileiras, assim como as do leste europeu, levam fama de prostitutas, mas no resto não vejo ainda um preconceito grande. As músicas são muito bem recebidas, as pessoas são consideradas animadas e amáveis e amam os jogadores de futebol.  

Bom, também há os pobres espanhóis, que acabam se ferrando tanto quanto os imigrantes. Não é incomum observar depois de certa hora da noite, pessoas com boa aparência revirando as latas de lixo que ficam nas calçadas. Normalmente, são provenientes de algum pueblo (cidades pequenas do interior, povoados, vilarejos) e estão na capital tentando melhorar a vida.  

Há os turistas, que aqui, por seu volume, acredito possuírem também um status de classe social. São espanhóis ou estrangeiros e normalmente se concentram pelo centro da cidade. Quase nenhum turista gosta de assumir que é turista, pois isso costuma ser sinônimo de trouxa em qualquer lugar do mundo. O centro da cidade também é freqüentado por madrileños, mas que detestam admitir, pois afinal de contas, não são turistas e, mesmo que os lugares sejam bons, isso não soaria muito majo 

Ainda há os mayores (pessoas mais velhas). As mulheres sempre vestem saias, normalmente negras e na canela e os homens vestem terno. São muito conservadores e tem o costume de passear de braços dados pela rua, sempre nos mesmos lugares.  

Que tenha percebido até agora, esses são os principais grupos de gente que observo nas ruas madrileñas. Não tenho nenhuma base científica, é pura observação pessoal. Além do mais, dentro de cada tribo, sempre há gente boa ou não. Dou sorte em conhecer pessoas e costumo conhecer as legais. 

Assim como no Brasil, gosto de navegar por diferentes tribos, apesar de não me sentir parte de nenhuma delas e não é que não queira, é que não sei mesmo. Não gosto da idéia de rótulos, até a palavra já se desgastou. Mas entendo e acho importante observar as diferenças. Diferenças sempre vão existir e o poder costuma estar exatamente nelas. Acho importante reconhecê-las, mas mais importante ainda respeitá-las. 

Ainda dentro dessa temática de diferenças entre tribos, tive uma experiência bizarra quando mudei de vida profissional. Mantive meus amigos executivos e ganhei novos amigos artistas, boêmios, enfim, alternativos. Na minha opção pela mudança, me preparei para não ser compreendida por meus amigos “homens e mulheres de negócio”, mas a verdade é que isso nunca aconteceu. Todos estavam abertos e foram grandes incentivadores, talvez por serem meus amigos. Alguns podiam nem entender bem, mas aceitaram com curiosidade e boa vontade. Chamo isso de respeito. Por outro lado, sinto uma certa dificuldade em que meus amigos “alternativos” naveguem com facilidade em outros mundos. Claro que não estou falando de todos nem que sejam assim todo tempo, felizmente, mas sinto muitas vezes um preconceito maior e uma atitude defensiva em entenderem e desfrutarem outras formas de vida. Sinto constantemente um ar de deboche que não entendo bem se é sinal de visão ou de despeito, talvez um pouco dos dois. Acho triste imaginar cabeças que teoricamente tem por missão estar a frente dos tempos, tantas vezes estejam tão fechadas em seu próprio microcosmo. Minha esperança é o fato de ser comum precisarmos negar algo para entendê-lo com profundidade. Espero um dia chegar a certeza de que não somos tão diferentes e originais quanto pensávamos e conseguir aprender a simplificar a vida. 

Sinceramente, não sei o que sou. Acho que sou um pouco pija porque posso e aproveito os prazeres da vida, gosto de ser feliz, de ver gente bonita, de comer bem, de degustar vinhos e de vestir as roupas que me valorizam. Sou um pouco alternativa, porque de todos esses prazeres sei diferenciar os que gosto dos que preciso. Depois de mudar tanto, serei sempre imigrante, dentro ou fora do meu país e hoje posso também dizer que sou um pouco madrileña, porque aprendi a respeitar as diferenças dessa cidade e, assim mesmo, continuar apaixonada por ela. E cada dia fico mayor, não quero usar as saias negras longas, mas quero passear pela rua de braços dados. Claro que também possuo os defeitos, mas isso eu é que não vou apontar, muito menos classificar. 

…Oh, sim, eu estou tão cansado, mas não pra dizer, que não acredito mais em você… eu não preciso de muito dinheiro, graças a Deus, e não me importa, e não me importa não, oh, minha honey baby…

99 – O dia da forra

Após um carnaval aburrido e um bico de dois palmos e meio por uns três dias, no fim de semana seguinte veio a forra. A verdade é que nem foi tão mal assim, acho que é mais a questão psicológica de saber que era carnaval. Em qualquer outro fim de semana teria ficado super feliz, pois chegaram amigos do Brasil, tivemos gente em casa, encontramos amigos aqui… Enfim, mas quando imaginava que do outro lado do mundo pipocavam trios elétricos, só gastando toda minha energia para me satisfazer. E adianto, isso não é tarefa fácil!  

Acabou que tive uma semana super cheia, encontrei com duas amigas do tempo de colégio, uma veio com o marido de férias e a outra fica por um ano e estudaremos juntas. Foi divertido e chegou na sexta-feira eu já estava de bom humor outra vez. 

O curioso é que como agora minha vida é literalmente um livro aberto, todo mundo sabia que tinha ficado emburrada no fim de semana passado. Isso é engraçado porque as pessoas se procuram nas coisas que escrevo e ainda não sei lidar com isso. Para mim são dois mundos diferentes, mas um dia me acostumo. 

E como ia dizendo, na sexta-feira, no pique madrileño, nos liga uma amiga chamando para sair, o irmão dela estava visitando. Fomos nós quatro para o Lateral, um bar modernoso, com tapas super criativas e um bom preço. Para variar, também fica perto de casa. Ali encontramos mais dois amigos e batemos papo até dar a hora de poder ir para uma boite. É que antes de uma da manhã estão todas vazias. 

Fomos para a Posada de las Ánimas, onde já praticamente batemos cartãozinho na porta. Mas para falar a verdade, nesse dia impliquei com o DJ. Sei lá, para mim ele não estava acertando a mão. Os dois amigos que nos encontraram no Lateral foram para outra boite e nós quatro insistimos um pouco mais para ver se melhorava. 

Por volta das duas da manhã, resolvemos tentar a próxima parada. Fomos para uma boite chamada El Junco, indicada por um casal de amigos brasileiros que nos encontraria lá mais tarde, com outros amigos. Entrei meio desconfiada, mas em pouco tempo já estava amarradona! Muito bom lugar, super despojado, informal e boa música. 

Adoro essa coisa de Madri da noite ir acontecendo. Você não vai para um bar e ponto, esse é só o começo. Ali você encontra uns amigos, depois vai para outro lugar e encontra outros, às vezes os lugares são modernos, às vezes super tradicionais… e quando nos demos conta eram quase seis da manhã. Casa cheia e todo mundo dançando! 

Tudo muito bom, tudo muito bem, mas realmente bateu uma fome desesperadora! Daí nos deparamos com o seguinte problema, não há em Madri uma lanchonete que venda hamburguer às 6 da matina. O máximo que você consegue são churros com chocolate quente. Acontece que não queria churros, queria um super hamburguer gigante, com muito queijo e bacon! Aquele do Bloomings de São Paulo que a gente sempre comia depois de qualquer festa. Fazia parte do ritual. 

Cheios de esperança e uma fome do cão, partimos nós e um casal de amigos em busca do hamburguer perdido! Por sorte, como já passavam das seis, o metrô havia aberto e tivemos condução para voltar para casa. No caminho, Luiz lembrou de uma possível padaria 24 horas que me soou muito estranho, mas o desejo carnívoro não me deixava pensar direito. Saltamos perto de casa e caminhamos nos arrastando mais umas cinco quadras atrás da tal padaria, que obviamente estava fechada. 

E para achar um taxi para voltar? Porque andar ninguém aguentava mais. Sentamos em um ponto de ônibus para ver o que passava primeiro com rodas para nos levar, quando avistamos um mercadinho com as luzes acesas.  

Nos dirigimos ao mercado salivando por haver algo quente para comer. Claro que não havia. Porém, a nossa salvação estava na geladeira. Eles vendiam sanduíches plastificados e havia cheeseburguer! Não tinha grandes expectativas quanto ao sabor do dito cujo, mas pelo menos tinha cara de hamburguer e já era alguma coisa. 

Em casa, após tomar um banho rápido e incinerar a roupa que fedia a cigarro, fui para cozinha esquentar nossos hamburgueres. Nunca comi um hamburguer tão ruim com tanta vontade. O jeito foi encher de mostarda para ter gosto de alguma coisa. Mas a verdade é que quebrou o maior galho! 

No dia seguinte, ou melhor, no mesmo dia, assim que acordamos fomos direto tomar nosso café da manhã… no Burguer King, é claro! Comi um cheesebacon duplo e Luiz comeu dois! 

No comecinho da noite, fomos com o mesmo casal de amigos do hamburguer no La Daniela fazer um programinha light. Todos morrendo de sono. Voltamos para casa cedo e dessa vez sem a menor reclamação da minha parte. Estava acabada, mas feliz da vida. 

100 – A número 100!

Caramba, e chegou a crônica número 100!  

Se ainda não falei, deu para perceber que adoro símbolos e rituais. Minha vida é dividida em ciclos, mais longos ou mais curtos, que preciso terminar e começar outro novo. 

Para alguns amigos já contei como iniciou essa história de escrever crônicas, mas agora com essa vida “pública”, conto para todos. Comecei escrevendo para mim mesma como um registro do que acontecia em Madri, que na realidade era pano de fundo para uma maneira de olhar as coisas. Era quase como um diário. Daí Luiz ficou curioso e pediu para ler. Deixei meio sem graça, apesar de não haver nenhum segredo. Ele gostou tanto que me incentivou a publicar um blog. Quase morri de vergonha, pois sempre foi muito difícil me expor, mas topei até porque era difícil. Na minha cabeça, como preciso de um limite, pensava, vou tentar chegar na número 100. E aqui estamos, nem acredito! 

Achava que quando chegasse esse momento teria cumprido minha missão, mas a verdade é que estou totalmente viciada e não sei mais não escrever. O grau de constrangimento que sentia no início é proporcional à delícia de possuir um canal de expressão. Poder compartilhar experiências é tudo de bom. 

Porém, preciso fechar um ciclo e iniciar outro, é a minha natureza. E por um acaso feliz, hoje inicio outro ciclo na minha vida. 

Hoje foi o primeiro dia do meu master em arte contemporânea, equivale a uma pós-graduação no Brasil. Cerca de quinze anos após a Academia, volto para faculdade. Outra área, outro país e a mesma ansiedade. É como entrar na montanha-russa, naquela sensação de segundos antes de iniciar o trajeto. Estou lá porque quero, mas sempre nesse momento me pergunto se deveria estar ali. 

Pois sim, deveria. 

Estamos onde deveríamos e nos cabe a responsabilidade de fazer isso valer a pena. 

Hoje muitas idéias contraditórias passaram pela minha cabeça. Por um lado, estava aliviada de finalmente me sentir começando algo, tendo um plano de gente normal. Por outro, me sentia presa, é difícil para mim pensar no prazo de um ano. Aprendi a sobreviver no caos e é nesse caos que me diferencio. Tive a alegria de perceber a oportunidade de concretizar projetos e ao mesmo tempo o medo de precisar confrontar minha própria incompetência. Por que ainda é tão difícil crescer?

Termino com meu mandra de cabeceira, que me resgata dos momentos de angústia, não necessariamente maus. É meu grito de guerra, meu amuleto para recomeçar. 

“Se eu me demorar demais olhando Paysage aux oiseaux jaunes, de Klee, nunca mais poderei voltar atrás. Coragem e covardia são um jogo que se joga a cada instante. Assusta a visão talvez irremediável e que talvez seja a da liberdade. O hábito de olhar através das grades da prisão, o conforto de segurar com as duas mãos as barras, enquanto olho. A prisão é a segurança, as barras o apoio para as mãos. Então reconheço que a liberdade é só para muito poucos. De novo coragem e covardia se jogaram: minha coragem, inteiramente possível, me amedronta. Pois sei que minha coragem é possível. Começo então a pensar que entre os loucos há os que não são loucos. É que a possibilidade, que é verdadeiramente realizada, não é para ser entendida. E à medida que a pessoa quiser explicar, ela estará perdendo a coragem, ela já estará pedindo; Paysage aux oiseaux jaunes não pede. Pelo menos calculo o que seria a liberdade. E é isso que torna intolerável a segurança das grades; o conforto dessa prisão me bate na cara. Tudo que eu tenho aguentado – só para não ser livre…”  (livro “Para não esquecer” de Clarice Lispector)

101 – Espabila Favila que te come el oso!

Há uma expressão em espanhol que acho sensacional: espabila Favila que te come el oso! Explicando por partes, “espabilar” é algo como prestar atenção, ficar atento; “Favila” é um nome próprio; e “que te come el oso” é que te come o urso. Ou seja, fica esperto Favila senão o urso te come! Na versão tupiniquim, “dá mole que jacaré abraça”! 

O mais engraçado dessa expressão é sua origem. Por volta do ano 600, houve um rei godo, o tal do Favila,  assassinado em seu próprio castelo. A versão oficial é que um urso havia comido o rei (dentro do castelo!). Percebe-se que a cara-de-pau política não é nada atual. 

Como às vezes a expressão fica um pouco grande, também se escuta a versão resumida “espabila Favila…”; ou com uma voz mais grave e um olhar de canto o “espabilate”, que soa como “espabilatêêê”. E com sotaque do sul, sai algo como “rpabilatê”. 

Fico doida para falar isso para alguém, mas ainda não consegui encaixar em nenhuma frase com segurança. O jeito é quando encontro uma pessoa-rolha imaginar que estou falando para ela “espabilatêêê” e sonhar que ela vai dizer “perdón” e sair da minha frente. Bom, nunca acontece, mas pelo menos não fico de mau humor atrás das rolhas. 

A primeira vez que escutei isso foi com um casal de amigos espanhóis muito legais. É que fizemos uma festinha aqui em casa e eles não puderam vir. Daí se ofereceram para, no fim de semana seguinte, nos levar a qualquer lugar que quiséssemos conhecer em um raio de 200km de Madri. Fomos até Almagro, parando um pouco pelo caminho. Lá em Almagro, alguém ficou de bobeira na frente dele com o carro e ele soltou o tal do “espabila Favila que te come el oso”. E eu, o que? Estava acostumada ao “me cago en la leche”, mas essa era novidade para mim! 

Ele me explicou a historinha que achei genial e, desde então, tento falar também, mas nunca tenho uma chance. Então, só para matar a vontade, vai escrevendo mesmo:  

¡Espabila Fabila que te come el oso!

102 – Começar de novo…

Eu e minha boca grande! A gente precisa ter muito cuidado com o que deseja! Porque acontece! 

Não estava falando tanto sobre começar um ciclo novo, de novos olhares e tal? Pois é, então não seja por isso, lá vamos nós começar outra vez! 

Alugamos esse nosso apartamento por um ano, acho que contei isso lá atrás. A verdade é que naquele momento um ano nos parecia uma vida, mas passou num piscar de olhos.  

Havia a possibilidade da dona do apartamento precisar morar fora de Madri e, automaticamente, renovaríamos o contrato, bom para ela e para nós. Claro que isso não aconteceu, o quer dizer que lá vamos nós, os caracóis alucinados, com a casa nas costas de novo! 

Enfim, recebemos a notícia com um certo desânimo. Dá cansaço só de imaginar a trabalheira. Olho para meu gato com aquela cara de Garfield e o imagino dizer “joder!”.Mas como diz o ditado, o que não tem remédio…  

Uma coisa está mais fácil, minha noção de espaço mudou e consegui me acostumar a lugares menores. Os apartamentos mais centrais na Europa são sempre muito pequenos e no início dava cabeçadas pela casa. Agora acho até grande. Engraçado que temos poucos armários e minhas coisas que pareciam poucas quando saímos do Brasil, ou melhor, o mínimo que poderia trazer, aqui me parecem um exagero. Chego ao absurdo de gostar quando quebra um copo porque rapidamente associo a mais espaço no armário ou menos coisa para carregar! 

Iniciamos a busca, que não é nada fácil, mas temos um certo know-how e estamos tentando nos animar. Quem sabe ainda vamos para um lugar melhor, não? Um ano depois, estamos nós novamente caminhando pelas ruas e procurando placas de “alquiller” pelas portarias dos edifícios. 

Hoje, voltando para casa, percebi o quanto a rua onde moramos se tornou familiar. Sei a ordem das lojas e os cheiros quando passo na frente delas; conheço boa parte dos cachorros que passeiam pelas calçadas; reconheço os dois pedintes cativos da rua, uma senhora que se veste sempre de preto e um senhor com uma deficiência em um dos pés que desaparece no inverno; sei em que parte o asfalto está quebrado e preciso me cuidar para não torcer o pé; passo sempre rindo na frente da loja onde compramos o sofá-cama, aquele que viemos carregando na cabeça até o apartamento; sei como a rua fica arborizada e também quando as folhas caem; sei qual o caixa eletrônico onde não pago taxa de administração; sei onde é melhor pegar taxi e para que lado devo ir; sei onde comprar flores e onde encontro o “champú en seco” mais barato; sei um monte de coisas. Talvez seja a hora de saber outro lugar. 

103 – Um show quase bom e a língua sem palavras que queria dominar

Fomos ao show de um conhecidíssimo bailarino flamenco, que queria ver há algum tempo. Não quero dizer o nome dele, pois apesar de sua apresentação ter sido impecável, o som estava péssimo e houve uma série de problemas que prejudicaram o espetáculo como um todo. Uma pena! Fora o fato que seu ego subiu um pouco a cabeça e, como se diz aqui, estava um tanto creído. 

Mas vamos lá, de tudo se tira algo de interessante e tirei duas coisas. A primeira foi seu domínio do corpo, a total consciência de cada músculo e de cada movimento, como se fosse uma máquina azeitada, uma engrenagem complexa onde tudo funciona. Impressionante! A segunda, foi em relação a qualidade dos músicos, a capacidade de um instrumento retorcer meu estômago. No fundo, essas duas coisas me falam de uma só, da possibilidade de expressão sem palavras. 

Tinha muita vontade de dominar uma linguagem que não necessitasse palavras. De certa forma, faço isso com a arte, mas queria mais, ainda acho meu alcance muito pequeno. Acredito que com o corpo, como no caso da dança, e com a música, essa comunicação é mais direta e universal.  

Quando vejo alguém que possui esse talento da expressão corporal, tenho vontade de chorar de tão forte que me bate. E não é incomum que eu veja cores ao escutar um instrumento que me emocione.  

Queria muito ter esse poder.

Não é à toa que nosso amigo dançarino flamenco estava tão creído, ele conhece o poder que tem. Tudo bem que a arrogância canibaliza esse dom, mas que se dane, quando ele dança é poderoso e se acabou! Não há discussão.

104 – Como é duro ser intelectual!

Quando era pequena, boa parte dos meus amiguinhos tinham medo de escuro, de lagartixas, de monstros e de fantasmas. Eu tinha medo de ser burra.  

Uma vez, quando me recusava a cortar o cabelo, minha mãe e minha avó vieram com uma história de que o cabelo grande pesava na cabeça e deixava a gente mais burra. Convenhamos, que sacanagem, né? Lembro de escutar aquela conversa com muita desconfiança que estavam me enganando, mas o pânico de ficar burra era maior e acabei fazendo papel de besta, pois cortei a porcaria do cabelo. Essa é minha primeira memória concreta de medo. 

Fui criada em Brasília, uma perfeita fábrica de intelectuais. Não estou falando mal da cidade, que gosto muito, mas como qualquer lugar, tem seus pontos positivos e negativos. Acho até que de maneira geral as pessoas são muito injustas com Brasília, mas hoje precisarei ser crítica também. É um lugar frequentemente chamado de “Ilha da Fantasia”,  que me soava um pouco absurdo quando morava lá, mas ficou muito claro quando vi de fora, com uma certa distância. A verdade é que Brasília, talvez por sua distância física e a forma como foi concebida, recebe o mundo através de filtros. É um “Castelo de Versailles” contemporâneo, situado uma montanha antes do “Castelo de Kafka”. Você até chega nele, mas não sem se macular e se emaranhar num sistema burocrático.   

Além do mais, todo aquele planejamento, realmente facilita sua vida, é corfortável e você tem mais tempo. Com mais tempo você pode, por exemplo, pensar mais, ler mais, estudar outros idiomas… Posso afirmar que boa parte das pessoas mais cultas que conheci foi em Brasília. Adicionalmente, a possibilidade de viver em um mundo razoavelmente idealizado, dá um prato cheio para ser um teórico, um intelectual de verdade. 

Passei minha adolescência buscando os livros e os filmes corretos, e me sentindo muito inteligente com isso. Nos meus sonhos mais secretos, queria ser uma intelectual. 

Quando fui morar no Rio de Janeiro, com quase dezoito anos, tomei um banho frio de realidade. Meu mundo teórico foi para o saco! E achei que ser intelectual era um porre! Eu era, e sou, a burguesa que reneguei tanto. Como também não falava alemão, resolvi que essa história de filosofar não era para mim. Parti para vida, para o trabalho e para os prazeres. 

Sem demagogia, tinha e tenho consciência da minha responsabilidade social e, na medida do possível, tento fazer ao menos o meu papel. Mas também tive que confrontar minha hipocrisia em achar muito cômodo ser a favor de um movimento de pessoas sem terra quando se tratava de uma fazenda no cu do judas, mas era assustadora a imagem dele batendo na minha porta. E uma hora bateu. Acusar policiais de massacres injustos me faz sentir redimida, mas a verdade é que se a arma estivesse na minha mão, será que não atiraria também? Conheci pobres indolentes e ricos trabalhadores, não digo que seja a regra, mas não houve como não redimensionar meus valores. Era fácil julgar um mundo do qual eu não fazia parte. Mas ao mesmo tempo, como poderíamos simplesmente nos conformar com o que existe? 

Há muitos anos deixei uma parte dessas questões de lado e resolvi viver e pronto. Agora, por coincidência ou porque não há alternativa, isso me bate na cara novamente. A volta à vida acadêmica me fez confrontar velhos demônios.  

Tenho uma professora que, a primeira vista, me parece uma mulher fabulosa, uma intelectual no melhor sentido da palavra. Daquelas que você escuta falando e pensa, queria ser assim quando crescesse. Para isso, só me falta ler uns 25 mil livros, 3 milhões de artigos, entendê-los, compará-los e buscar suas relações com fatos reais ao longo da história. Puta merda, como é difícil ser intelectual! Acho que não tenho competência nem paciência para todo esse trabalho! Mas como tapar os ouvidos e resistir a chance de tentar? E por que resisto tanto?

A verdade é que agora sinto muita falta do meu mundo filtrado, teórico e inteligente. Estar nele não fazia o mundo melhor, mas o fazia melhor para mim. Sinto uma saudade enorme do meu otimismo, de acreditar que faria diferença e que havia algo muito importante e um lugar muito especial me esperando. É egoísmo e não me importa, até porque é impossível, não será realizado. Invertendo meu passado, agora tenho muito medo de virar intelectual, talvez o bom mesmo seja ser burra. 

105 – O primeiro aniversário de casamento em Madri

Hoje é 18 de março de 2006, e fazemos aniversário de doze anos de casados. E sim, claro que tem festinha! Sempre comemoramos essa data, mas nos dois últimos anos foi meio complicado. Em um deles estávamos de mudança para Atlanta, dentro do avião acima do oceano, e no outro, em países diferentes, providenciando a mudança seguinte aqui para Madri. 

Acredido que as pessoas devam se casar pelos motivos certos. Nós casamos porque eu ia trocar de carro. Juro! Muito simples, juntei dinheiro para vender meu carro e comprar um melhor. Daí, sabia que Luiz também tinha uma reserva, mas nenhum plano para ela. Pensei, quer saber, por que ao invés de comprar outro carro, não juntamos esse dinheiro e compramos um apartamento pequeno para a gente? Luiz adorou a idéia e passamos a buscar imóveis. 

A verdade é que, mesmo juntando nossas economias, só dava para comprar uma kitinete porcaria, que atualmente se chama de maneira mais elegante: studio. Chegamos a conclusão que não nos adaptaríamos a nada tão pequeno e Luiz me perguntou se achava que meus pais poderiam nos ajudar. E eu, você acha que meu pai, conservador, iria ajudar a comprar um apartamento para a gente morar junto? Se ainda fosse para casar… E ele, muito prático, então por que a gente não casa? 

… e assim, já se vão doze anos! Posso contar essa história agora, pois o tempo nos deu credibilidade e tornou tudo muito divertido. Mas, honestamente, nunca fui capaz de entender quem pediu a mão de quem em casamento. 

O fato é que, desde muito cedo em nosso namoro, tínhamos essa sensação que ficaríamos juntos. Não era uma coisa conversada em palavras, era simplesmente uma consequência natural. Assim que, quando decidimos casar, achamos que era só ir até um cartório e formalizar. 

Foi a vez da minha mãe saltar dois metros de altura: como assim casar no cartório? E a festa?  

Sou a única filha mulher, tenho apenas um irmão mais novo. Casar sem uma comemoração era para eles a morte lenta e dolorosa, mas não entendia isso naquele momento. 

Lembro quando o Luiz perguntou a minha mãe por que ela não usava o dinheiro da festa para colocar armários no apartamento novo. E ela respondeu: você acha que vou colocar o dinheiro da MINHA festa em armários? Ele veio me contar rindo, sua mãe disse que a festa é dela, eu é que não falo mais nada! 

Bom, para apaziguar os ânimos, topamos fazer uma festinha íntima, só para a família, chamando a juíza para nos casar na casa dos pais do Luiz, em Teresópolis. Muito bem, quando se começou a fazer as contas de quem era “só a família”, chegaram a um número próximo aos cinqüenta. Minha mãe achou que era um número meio grande para fazer em Teresópolis e pensou em alugar um local. E aí, já que iria alugar um local, quem aluga para cinqüenta, aluga para cem… 

Foi quando comecei a entender e perceber a agonia que era para meus pais, principalmente para minha mãe, o fato de nós não ligarmos para uma festa de casamento. Então, nesse momento, perguntei a ela se era tão importante assim que a gente fizesse uma festa maior. E ela me respondeu que sim. Daí eu disse que tudo bem, só tinha um problema, nessa época eu morava na ponte aérea, trabalhando em São Paulo e voltando para o Rio nos fins de semana. Não tinha a menor condição de organizar ou me preocupar com uma festa de casamento. Prometi a ela que eu e Luiz apareceríamos no dia, mas que ela precisaria decidir e contratar tudo! Pois acho que era exatamente o que ela queria ouvir. 

No fim das contas, foram convidadas trezentas pessoas. Nos informaram que era normal uma falta de aproximadamente 20% dos convidados, o que não aconteceu. Foram a festa trezentos e trinta convidados, ou seja, não só não faltaram os 20%, como vieram 10% a mais! 

Mas quer saber de uma coisa? A-do-rei! Se não tivesse feito a festa, não teria me arrependido, pois não conheceria a delícia que foi. A verdade é que se tornou um dos dias mais felizes da minha vida e essa memória me emociona até hoje. Aprendi a importância dos rituais de passagem e como uma felicidade se potencializa quando dividida com pessoas queridas. 

A partir daí, sempre que possível, comemoramos o dia com uma festa.  

Esse ano, por não gostar do número 12, resolvi contratacar a urucubaca com muita energia e pensamento positivo. O tema da festa é branco, inspirado no Ano Novo. Serviremos bebidas brancas, com destaque para a Cava, espumante espanhol. A maior parte das comidinhas incluem a cor branca e um toque afrodisíaco. O legal é que dessa vez Luiz me ajudou a fazer a comida da festa, o que acabou dando mais significado ainda. 

E assim celebramos doze anos, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. O futuro, quem pode saber? Sei do que passou e já foi com dinheiro e sem dinheiro, com emprego e sem emprego, com casa e sem casa, sabe-se lá em que país, com amigos reais e virtuais, com um felino a tiracolo, discutindo nos caminhos, mas sempre chegando juntos aos lugares. Em todos esses dias, felizes ou não, dividimos a mesma cama. E o frio ou o calor da noite se encarregou em colocar a vida sob a real perspectiva e os problemas do seu devido tamanho.  

Não tenho paciência para ver novelas e reclamo dos previsíveis filmes americanos, mas a verdade é que gosto de seus finais piegas e onde tudo dá certo. Gosto das novelas que terminam mostrando um casamento que será feliz para sempre, e ainda me arrepio no fácil final clássico de filme americano, quando o mocinho estende a mão e convida a protagonista para dançar. E que assim seja!

The end. 

106 – Afinal, e como foi a festa?

Ótima festa de aniversário de casamento! Tudo bem que minha opinião é suspeita, mas me diverti muitíssimo e espero que nossos convidados também. Estávamos em dezoito pessoas e, como sempre, nossos animados amigos levantam o astral de qualquer reunião. 

Dessa vez, não tivemos convidados espanhóis, pois aqui foi um fim de semana que imenda em feriado, e quase todos viajaram para as fallas, em Valência. Por isso, até ficamos na dúvida em fazer a tal festa com o medo que não houvesse ninguém na cidade. Mas no fim tudo deu certo. 

Para os gulosos e curiosos em relação à comida, servimos uma série de canapés que Luiz e eu inventamos. Fizemos de camembert cremoso, ovo de codorna e caviar; emmental cremoso com geléia de frutas vermelhas e nozes; anchovas com cenoura; e queijo, ovo de codorna e anchovas. Além disso, fiz uns enroladinhos de salmão defumado com queijo camembert, amarradinhos com cebolinha; damascos recheados de creme de yogurt e amendoin; tâmaras recheadas com camembert cremoso e nozes; blinis de peixes defumados; salpicão de frango; e salada de cogumelos ao armagnac. Um casal de amigos trouxe umas empanadas de carne e de milho. Tudo iluminado com velas e regado a muita cava e vinho branco. 

Eu já gosto de uma produção! Gasto um certo tempo planejando tudo e pensando nos detalhes. Assim, meu trabalho é todo antes, durante a festa me divirto como uma visita. E a verdade é que nem o trabalho que tenho antes me incomoda. Curto ficar imaginando quem gosta do que, como deixar a casa mais bonita e funcional, do que as pessoas vão precisar, que música combina com o clima etc. Dessa maneira, posso aproveitar a presença das pessoas e não ficar como uma louca de um lado para o outro apagando incêndios. E aproveitei! 

Acho que incomodamos um pouco os vizinhos com o som, mas considerando que vamos mudar daqui mesmo, paciência! Além do mais era sábado e até agora ninguém reclamou. Deu até para dançarmos um pouco, ao som da Madonna e da Fernanda Abreu.

Enfim, acho que entramos com o pé direito na nossa adolescência matrimonial. E como tudo passou tão rápido! Mas, segundo a sabedoria popular, passa rápido quando a gente se diverte…   

107 – Renovar a porcaria da identidade

Pelo título da crônica, acho que dá para perceber a irritação que isso me provoca! 

Parece que foi ontem, mas já faz um ano que estamos aqui e isso quer dizer que é hora de renovar meu NIE, a carteira de identidade espanhola. Funciona da seguinte maneira, a primeira permissão de residência é válida por um ano, a segunda por mais dois anos, a terceira por mais dois anos também e, completando esses cinco anos, você já pode ter a carteira definitiva. Quer dizer, pelo menos em teoria, porque sempre descobrimos alguma novidade no caminho, mas em princípio é assim. Em cada uma dessas etapas, você passa por todo um processo super burocrático para ter seu visto de residência novamente aprovado e renovar seu NIE. 

Passamos por um processo similar duas vezes nos EUA e agora estamos na segunda vez aqui na Espanha. Isso quer dizer que, em um prazo de dois anos, tive que provar que eu sou eu mesma quatro vezes! Pois que desculpem meu francês, mas é foda! E nessas horas só mesmo um bom palavrão para desabafar. 

E como nada chega sozinho, veio junto com nossa próxima mudança de casa e com o início da pós-graduação em arte contemporânea. Muito bem, com a mudança, por mais que esteja acostumada e tenha atalhos muito convenientes, a verdade é que sempre me tira um pouco o chão e me força a uma certa reconstrução. O curso, além de estar me consumindo tempo e esforço, tem me feito questionar todos os dias se sou mesmo uma artista, se estou no caminho certo. Tudo isso aliado à troca de “identidade” e a necessidade de me provar o tempo todo é um prato cheio para loucura!  

Não enlouqueci ainda, ou pelo menos não totalmente, mas ando com os nervos a flor da pele. E já caí umas duas vezes no choro por pura exaustão, nem consigo me lembrar exatamente o motivo. Daqueles choros que é por nada e por tudo ao mesmo tempo. Mas a verdade é que achei bom, porque a calma e a segurança que tenho levado os problemas ultimamente não é normal, mais parecia calmaria antes da tempestade. Melhor que saia em pequenos desabafos antes que pule no pescoço de alguém! 

Por outro lado, também há algumas possibilidades positivas. Nessa minha primeira permissão de residência, não podia trabalhar no país, meu visto era atrelado totalmente ao do Luiz. Nos EUA era a mesma coisa, até pior porque não havia a chance de mudar essa situação. Aparentemente, porque certeza já não tenho de nada, essa nova permissão de residência para os próximos dois anos me dará o direito a trabalhar. E isso faz toda diferença do mundo. É uma linhazinha escrita no meu NIE permitindo uma atividade remunerada, nem sei se terei emprego, mas isso ajudaria muito a me sentir uma cidadã e não um apêndice.

Enfim, dias melhores virão! Não estou pessimista, só cansada mesmo. De qualquer forma, pelo menos chegou a primavera e já vejo os brotinhos verdes nas árvores que ainda parecem meio mortas. Pensando melhor, agora parecem meio vivas, e isso também faz muita diferença. 

108 – A super poderosa primavera

Dia 21 de março, oficialmente, iniciou a primavera. É verdade que o inverno está fazendo a maior força para permanecer um pouco mais, para a alegria do Luiz que adora o frio. 

Na semana retrasada até deu para sair uns dois dias de camiseta e foi uma delícia sentir o vento fresco na pele e um calorzinho gostoso, que nem fazia suar. Mas logo depois entrou uma frente fria novamente que ainda se prolonga e que torço para acabar logo.  

Tem também uma chuvinha fina meio chata, mas fundamental, pois ano passado foi muito seco e aprendi a valorizar mais a água. Infelizmente, meu cabelo não concorda com esse ponto de vista e sou obrigada a andar de casaco de capuz, já que não tenho paciência para carregar guarda-chuva. Bem feito para mim, que sempre digo que se uma pessoa tem mais de doze anos fica ridícula com casaco de capuz, mas convenhamos, na chuva é realmente muito prático. 

O que importa é que a primavera está aí, é inegável! Pode até esfriar um pouco, mas a luz é outra, o astral é outro. O dias estão, pouco a pouco, se esticando e já anoitece mais tarde. Adoro esses dias compridos que espantam fantasmas! 

Encontramos nosso novo apartamento e, se tudo der certo, mudaremos no dia 06 de abril. Olha as coincidências outra vez! Além de ser o dia do aniversário do meu irmão, o que me facilita para lembrar da data, foi exatamente o dia que chegamos em Madri. Mudaremos no dia que completaremos um ano de vida aqui. A propósito, será meu trigésimo primeiro endereço. 

E o que o novo apartamento tem com a primavera? Ele tem uma varanda bem pequenininha, mas que posso encher de flores e plantas. E mal posso esperar para fazê-lo. Além de duas janelas com floreiras, sendo uma na cozinha, na qual quero plantar ervas para usar na comida. Isso sem falar no Jack que deve estar louco por uma brisa fresca e um solzinho ao ar livre.

Acho que vou gostar de lá, depois eu conto. 

109 – A burocracia espanhola

Aos que pensam que só no Brasil há essa “burrocracia” absurda, vou logo avisando, eles tiveram professores! Entre eles, seguramente os espanhóis! 

A última que nos aprontaram é impagável! Em função da renovação da nossa documentação e por meu visto ser atrelado ao do Luiz, precisamos comprovar que somos casados. Até aí, tudo normal. Na primeira vez que entramos com o processo, entre os milhões de documentos exigidos, apresentamos a certidão de casamento, devidamente homologada pelo ministério das relações exteriores e o consulado espanhol no Brasil. Muito bem, agora além desse documento, precisamos apresentar uma declaração juramentada que afirme algo como “sim, sim, continuamos casados!”. A certidão de casamento não basta! 

E claro que isso não chega assim tão explicado, não é mesmo? Primeiro nos pediram para solicitar esse documento no consulado brasileiro aqui em Madri. Depois de perder uma manhã na fila do consulado, eles me informaram que não dão esse certificado. Daí consultamos a advogada e perguntamos se não poderíamos fazer uma declaração no notario (cartório) e anexá-la à certidão de casamento. Ela confirmou e lá fomos nós catar o tal do notario que fez a declaração, mas levou três dias! Um dia fomos até lá solicitá-la, no outro dia voltamos para assinar os papéis e obviamente havia um erro de ortografia, e portanto nada nos foi entregue por causa de uma porcaria de um “n” a menos.  Finalmente pudemos retirar o documento no terceiro dia.  

E isso é só um dos documentos a serem apresentados. Acho que já deu para cansar só de ouvir e nem vou contar dos outros!

Mas essa da gente ter que apresentar uma certidão anexada a um certificado que confirme a mesma informação da certidão é o cúmulo, vai? Arrego! 

110 – Música boa outra vez, nem acredito!

Encontramos outro lugar para bater cartão na noite madrileña. Foi indicado por um casal de amigos brasileiros que gostamos muito.  

É verdade que o nome nos foi dado como “el jungo”, “el jungle” ou algo assim, em frente à estação Alonso Martinez. Foi divertido ouvir o Luiz pronunciar esses nomes com vários sotaques diferentes para o motorista de taxi que o escutava como quem escutava grego. No fim chegamos e o nome é “El Junco”, pronunciado el runco. 

É um bar com música ao vivo, normalmente jazz ou algo do gênero. Após o show, entra o DJ com repertório variado, que inclui músicas brasileiras, algumas que nunca ouvi antes, mas me soam familiares. O lugar tem um jeitão underground com o público meio alternativo, apesar de se encontrar quase todas as tribos. Como todos os bons lugares de madri é esfumaçadérrimo, mas isso não tem como fugir. O jeito é tomar um whiskão, soltar a franga e relaxar. 

E o principal: a música é realmente ótima! Sei que parece exagero, mas encontrar boa música na noite aqui não é tarefa simples. Eu já abstraí, como já contei antes, danço e canto as tais músicas basura amarradona, porém não resta dúvida que o ouvido continua agradecendo algo de qualidade. 

O DJ nem sempre é o mesmo, mas todos são bons, apesar de serem meio estranhos. Da última vez, juro que o cidadão tinha a maior cara de açougueiro! Passei a chamá-lo de “the butcher”. Nunca iria acreditar se o conhecesse durante o dia e ele me dissesse que era DJ, no máximo seria um padeiro portuga, com aquelas costeletas à moda antiga. 

O importante é que quando vamos ao El Junco estamos acompanhados de amigos legais e acho que isso também influencia muito. Tem vezes que chego super cansada, achando que não vou dar conta, daí bebo um pouquinho, converso um pouquinho e quando percebo estou alucinada dançando até de manhã. Foi de lá que saímos uma vez famintos e desesperados por um hamburguer. Isso é uma realidade em Madri, os lugares para dançar nunca servem absolutamente nada para comer, só bebida. 

Outra vantagem do lugar é que é razoavelmente perto de casa. Dá para caminhar na volta quando não achamos taxi ou o metrô ainda não voltou a funcionar. Acho até bom vir pelo caminho tomando um ar fresco. Quer dizer, eu e o casal de amigos que costuma voltar conosco, porque Luiz costuma reclamar que é longe.

No dia seguinte, sempre tenho um pouco de ressaca de cigarro alheio e tenho que por a roupa para lavar correndo. Mas quer saber, também sempre acho que valeu à pena.