71 – A Festa de Ano Novo

Conforme prometido anteriormente, agora conto a super festa de Ano Novo. Foi dividida em duas etapas, a primeira aqui em casa, onde jantamos e brindamos com os amigos. A segunda, depois da meia-noite, quando fomos a um clube para celebrar dançando até cansar. 

Na primeira etapa em casa, estávamos em 14 adultos e 2 crianças. Como de costume, a boa e velha torre de babel: brasileiros, alemão, ítalo-argentinos e mexicanas. Algumas vezes era uma confusão de idiomas, mas gente boa se entende em qualquer língua. 

Porque não começar contando sobre as comidinhas? Fora os aperitivos, fiz saladas (verde, de batatas e de cogumelos), arroz branco, farofa com bacon e manteiga, um lombo de porco, uma carne de boi assada e…tcham, tcham, tcham, tcham… um tender! Aqui em Madri não existe tender de jeito nenhum, mas minha amiga brasileira que mora na Alemanha trouxe um de lá! Foi um sucesso! Ai, que vontade que estava de comer tender! A outra amiga brasileira que mora em Madri fez as lentilhas, adorei porque tinha me esquecido e, no dia mundial da superstição, sempre é bom dar uma forcinha para sorte. 

As sobremesas, não fiz nenhuma, nossos amigos trouxeram um pudim de leite brasileiríssimo, um pudim light (que, preconceituosamente, só provei no dia seguinte e estava ótimo!), uma torta de sorvete, um panetone italiano coberto de chocolate, bombons e a também brasileiríssima combinação de goiabada com queijo. 

O amigo que trouxe os pudins, de quebra nos trouxe de presente uma carne seca, paio, cachaça e café brasileiro. Olha que máximo! Desconfio que minha fama de gulosa está se espalhando rapidamente pelo mundo! 

Dei uma mancada corrigida pelos nossos amigos. Achei que havia quatro garrafas de cava na geladeira e tinham duas. Como a geladeira estava abarrotada de comida, só percebi isso uns 15 minutos antes das pessoas começarem a chegar e gelei! Como faríamos o brinde? Quer dizer, dava para dividir, mas ia ficar pouco e é chato, né? Pois até nisso a noite conspirou a nosso favor. Três dos nossos amigos trouxeram garrafas de champagne e ainda por cima da mesma marca, Moet Chandon! Parece até que tinham combinado! Se sorte já é bem vinda, imagina sorte acompanhada de classe! 

A maioria das pessoas tomou vinho. Eu, fui direto para o single malt, porque sabia que a noite seria longa e estava animadíssima! Claro que na hora do brinde, fui para o champagne, como não? 

Aliás, gente, mas que brinde estressante! Ocorreu que havia tradições e superstições diferentes dos países dos convidados e daqui, e eu queria cumprir todas! Na Alemanha, a gente precisa brindar olhando nos olhos de cada pessoa, caso contrário, são sete anos de vida sexual ruim. Na Espanha, a gente come doze uvas durante as doze badaladas finais do ano. No Brasil, gosto de entrar o ano com o pé direito, portanto levanto o esquerdo. E o brinde de champagne acho que é universal. Isso quer dizer que, quase rompendo à meia-noite, com o rádio ligado para noticiar as badaladas e todos os amigos reunidos, estava eu como uma alucinada saci-pererê pulando de um pé só, quase entalando para comer doze uvas no último minuto e tendo que brindar com todos os convidados olhando nos olhos! Caramba, é muita informação ao mesmo tempo! Sobrevivi ao brinde sem me engasgar com as uvas, sem me estabacar no chão e garantindo os próximos sete anos de boa vida conjugal! Ufa! 

Depois disso, fomos para janela ver o movimento. No prédio da frente, havia outra festa que parecia bem animada. Ficamos nos falando e brindando pela janela. Até que na rua vimos umas quatro pessoas correndo e morrendo de rir com umas malas pelo quarteirão. É uma outra superstição, acho que sul americana, para quem quer viajar durante o ano. Alguns minutos depois, elas voltaram correndo novamente e entraram no mesmo prédio da festa da frente, não sei se estavam juntos, mas nós e a festa da frente ficamos na maior bagunça da janela rindo de tudo.  

Por mim, a noite de reveillon já tinha valido por aí, se soubesse que as pessoas estariam com o astral tão alto e me divertiria tanto em casa mesmo, acho que nem teria proposto continuar a festa pela rua. Mas nossos ingressos estavam comprados, então partimos para a segunda etapa. 

Não fomos todos para o mesmo local, nesse momento nos dividimos. Alguns foram para casa, alguns foram para o Lolita Lounge, um foi trabalhar e eu, Luiz e nosso casal de hóspedes fomos para a Kapital 

A Kapital é uma boite de sete andares, com ambientes diferentes em cada andar. Nos foi recomendada por madrileños como um dos melhores pontos para ir no reveillon. O lugar realmente estava animado e super cheio. É verdade que no início, quando tivemos que enfrentar uma fila enorme para guardar os casacos e pegar as bebidas, cheguei a desanimar um pouco e achar que havíamos entrado em uma tremenda roubada. Entretanto, logo depois começamos a dançar e relaxei. 

Adoro dançar! É um momento quando me desligo de quase tudo e aproveito. Aparentemente, havia gente que se desligava muito mais que eu. Foi impossível não notar e não me divertir observando outras pessoas dançarem. O lugar tem a forma de um teatro, talvez até fosse um antigo teatro, ou seja, há um palco onde costumam haver performances durante a noite. Quando não há ninguém se apresentando, os próprios frequentadores do lugar sobem no palco e dão seus espetáculos particulares ou em grupo. Francamente, são muito melhores e mais engraçados que os profissionais! Como tem gente cara-de-pau! Lógico que também tem os alcoolizados, mas faz parte da festa. O bom é que não vi nenhuma briga. 

Por algum motivo que ainda não descobri, mas vou investigar, muita gente se veste como se fosse a um baile de formatura. Os homens usam terno, colete e gravata e as mulheres usam vestidos de festa. Os vestidos, para o meu gosto, são muito cafonas. Algumas usam até luva! Isso misturado às fantasias de fim de ano é uma salada completa! Sim, porque aqui eles se fantasiam um pouco nessas festas, usam perucas, chapéus, máscaras etc.

Além do que, a festa era completamente informal, como um carnaval, e as pessoas estavam se acabando de dançar de paletó e gravata! Era um pouco contraditório, mas não deixava de ser divertido.  

Pouco depois das 5 da manhã, me compadeci do Luiz e dos nossos amigos e perguntei se eles já queriam ir, assim evitaríamos outra fila para pegar os casacos. Demos muita sorte ao sair, pois achamos um taxi quase na porta e voltamos para casa. Chegando no apartamento, fui tomar meu primeiro banho do ano. Lavei meu cabelo que cheirava a cinzeiro e, pelo sim e pelo não, improvisei as sete ondas puladas na banheira mesmo.  

Aliás, esqueci de contar essa parte da noite que também foi muito boa. Um pouco antes dos meus convidados chegarem, fui para internet falar com minha família, novamente utilizando a webcam e vendo como estava a festa por lá. Claro que na casa dos meus pais havia uma grande festa! Eles moram bem de frente para a praia no Rio de Janeiro e no reveillon é como assistir aos fogos de camarote. Falei com meus pais, primos e quem passasse pela frente da câmera. Normalmente, no último dia do ano faço uma retrospectiva mental do que passou e priorizo, por alto, alguns objetivos. Esse ano não fiz isso. Nenhum motivo específico, acho que estava ocupada ou pensando em outras coisas. Mas fui puxada à realidade com uma pergunta feita pela minha mãe. Conversando com eles, pedi um representante brasileiro para pular as sete ondas para mim na praia. Minha prima, gentilmente, se ofereceu e perguntou o que ela deveria pedir. Minha mãe me repetiu a pergunta, o que você quer pedir? Me pegou de surpresa, não conseguia pensar em nenhum desejo único e forte. Sabe de uma coisa? Não precisa pedir nada, só agradecer. Do resto, a vida sozinha se encarrega, só precisamos aceitar o convite. 

72 – The day after

No primeiro dia do ano, surpreendentemente, não acordei tão tarde nem tinha um pingo de ressaca. Estava um pouco cansada, mas feliz com a noite anterior. Ainda não me sentia em 2006, mas fui aos poucos me habituando com a idéia de que o ano havia passado. 

Quando acordei, Luiz já tinha lavado a louça e ainda ganhei um cafezinho na cama. Ai, ai, desse jeito me apaixono! 

Saímos para dar uma volta com o casal de hóspedes que estava em casa. Fomos andar no teleférico que fica no “Paseo del Pintor Rosales”, bem próximo a estação de Argüelles. O trajeto é relativamente rápido, cerca de 10 minutos, e você pode ter uma ótima vista panorâmica da cidade. Saltamos em “Casa de Campo”, onde há uma espécie de mirante e uma cafeteria que estava fechada. Depois voltamos no próprio teleférico. Foi interessante, pois já conheço bem a cidade e pude reconhecer os principais pontos e monumentos. Além do que, o dia estava lindo e não tão frio. 

Quando voltamos para casa, bateu aquela fome! Daí, fomos ao melhor dos dias seguintes de festas: o enterro dos ossos! Isso para mim é um mistério, por que a comida rotineira no dia seguinte tem gosto de velha e a comida de festa tem gosto melhor? Bom, agora meus convidados vão saber meu segredo, mas escondi um pedaço do tender para comer no dia seguinte. Tá bom, tá bom, sei que é feio, mas juro que foi um pedaço bem pequeno e, afinal de contas, quem parte e reparte e não leva a melhor parte… 

Depois disso, morgamos em casa, veio aquela preguiça boa. Minha amiga queria aprender a pintar com aguada e dei umas dicas para ela, ficamos fazendo nossa arte despretenciosa.  

Nessa noite, nossos hóspedes prepararam o jantar, um curry de sabor exótico. A receita é, basicamente, fritar a pasta de curry com frango, adicionar leite de côco, beringela picada, ervilhas e molho de peixe. Come-se com o arroz basmati, feito só na água e sal. Como ainda nos restava um pouco de farofa da noite anterior e o prato é mais picante do que estou acostumada, Luiz e eu partimos para culinária fusion e comemos o curry junto com a farofinha. Para o desespero do amigo alemão que achou que estávamos estragando a comida. I don’t care! Tenho certeza que os tailandeses só não utilizam a farinha de mandioca porque não a conhecem, pois a combinação é bárbara! De qualquer forma, estava uma delícia e aprendi mais uma receita. 

Conversamos até o sono nos carregar para cama. A primeira segunda-feira do ano já estava ansiosa batendo na porta e querendo entrar. Pela manhã, bem cedo e ainda escuro, nossos amigos voltaram para Alemanha. 

A casa ficou um pouco vazia, mas com um bom astral. Acho que começamos bem esse ano. 

Css.

73 – Hora da Contabilidade

Muito bem, deveria ter feito isso no fim de 2005, mas esqueci. Como estamos no comecinho de 2006, acho que ainda dá tempo de fazer a contabilidade do ano passado.Por uma questão de ordem e registro, vamos contabilizar se o ano valeu ou não a pena. O que foi adicionado à vida em 2005? 

Hóspedes que recebemos: 13

Amigos visitantes, brasileiros ou estrangeiros, que encontramos em Madri, mas não se hospedaram conosco: 11

Amigos que vieram em festas aqui em casa: 29 pessoas, algumas mais de uma vez

Outros amigos que conheci, mas ainda não vieram aqui em casa: 15

Antigos amigos, perdidos pelo tempo, que reencontrei através internet: 61

Alunos e professores do curso de espanhol: 26 pessoas (incluindo 3 amigas já contabilizadas nas festas)

Amigos de Atlanta: Aproximadamente 30 (esses entre 2004 e 2005)

Cidades em que estive: 16, em 5 países

Apartamentos em que morei: 4 (1 em Atlanta e 3 em Madri)

Exposições: 2 (poucas, mas considerando a confusão que foi o ano, não foi tão mal) 

Somando tudo, noves fora, zero. Fechado! Conta redondinha e isso sim é um patrimônio! Caramba, acho que farei esse balanço sempre, ajuda a ver que, mesmo com os problemas e confusões, o ano foi muito bom! Entre mortos e feridos, salvaram-se todos. 

74 – O Banquete

Adoro rituais e adoro comida! Imagine juntar esses dois prazeres. Agora adicione amigos queridos e vinhos perfeitos. O resultado é correr para o abraço! 

Nem sempre tenho a oportunidade de fazer um jantar com todas as suas etapas, um banquete. Mas isso é bom, porque quando faço tem um ar de acontecimento. Normalmente, inicia com um vinho enfurecido comprado pelo Luiz, o que faz minha imaginação lembrar de mil sabores e tento selecionar qual seria o adequado para aquele vinho. Chego a ficar nervosa, ansiosa, mas é gostoso. Daí, precisamos esperar a ocasião certa, pois não se pode desperdiçar um momento assim impunemente. 

Há pouco tempo, tivemos essa oportunidade. Fiz o jantar para Luiz e um casal de amigos. 

O amouse-bouche foi um fois gras fresco, acompanhado de uma geléia de morango e goiaba. Servido com um Tokaji Oremus. O Tokaji é um vinho húngaro de sobremesa, mas fica delicioso com o fois gras e, nesse caso, vale à pena quebrar o protocolo e serví-lo no início. Também combinaria muito bem com um Sauternes. 

A entrada foi um salmão defumado com molho de mel, limão, shoyo e um toque leve de gengibre, acompanhado de ovos duros recheados com caviar. Esses ovos são feitos da seguinte forma, cozinhá-los de maneira que a clara fique firme, mas a gema não fique totalmente cozida. Cortar os ovos ao comprido, retirar a gema, esmagá-la com um garfo e adicionar manteiga, creme de leite e um pouco de sal. Rechear as claras novamente com esse creme e colocar uma noz de caviar sobre o recheio de gema. Tomamos com uma cava Segura Viudas gelada como deve ser, também poderia ser uma champagne. É que, como começamos com um vinho de sobremesa, convém reiniciar o caminho com um branco ou um espumante. 

O prato principal foi um pato crocante com molho de vinho, ameixas e ervas, acompanhado de dois tipos de cogumelos cozidos na manteiga e com um toque ligeiro de Porto. O vinho foi o campeão da noite, um bordeaux grand cru classé Château de Fieuzal 93, tratado com o ritual completo e no ponto perfeito para ser tomado. Todo o cardápio foi montado ao redor dele. 

De sobremesa, queijos e retomamos ao Tokaji, agora com outro sabor. Pessoalmente, gosto muito desse vinho com roquefort e camembert. 

Jantares assim me fazem sentir uma pessoa privilegiada por conhecer e desfrutar sabores. Por isso, quando tenho a oportunidade, adoro compartilhar esses momentos, cozinhar para as pessoas e oferecer a comida. Quanto mais as pessoas saiam da mesa se sentindo especiais como reis e rainhas, maior é minha satisfação. É minha linguagem favorita, uma maneira de me comunicar sem deixar margem para erros de interpretação. A comida é essencial, necessária para vida. Quando tenho a responsabilidade de oferecer um pouco dessa vida, que seja cheia de prazer! 

75 – O presunto tender e a lei de Murphy

Preciso parar de falar em comida, até porque tenho que iniciar uma dieta urgente! Essa é a única parte chata das festas de fim de ano: a dieta do início do ano! ¡Joder, tío que fuerte! 

Bom, então só vou contar uma última historinha que ilustra a velha lei de Murphy. Passei semanas catando o diabo do tender para as festas e não achava em canto nenhum. Por sorte, como já contei, uma amiga trouxe da Alemanha e não ficamos tão aguados. 

Pois muito bem, poucos dias após o Ano Novo, fomos com um casal de amigos ao Ikea. O Ikea é uma cadeia sueca de lojas que vendem tudo para casa, um tipo de Tok&Stok. Devido a sua nacionalidade, próximo à saída, eles possuem uma lojinha que vende vários produtos gastronômicos suecos. Na suécia, eles também comem o tender nas festas de fim de ano. Já deu para adivinhar o resto, né? Tinha um freezer inteiro de tenderes! 

Pelo sim e pelo não, comprei logo dois e congelei. Não sei se eles só vendem no fim do ano. Mas agora, ao menos sei onde encontrar o raio do tender: em uma loja de móveis, claro! Super lógico! 

76 – A Lei Antitabagista

No início de 2006, entrou em vigor uma lei super-hiper-polêmica que regula a comercialização e o consumo de fumo no país. 

O cigarro mata cerca de 50 mil pessoas na Espanha por ano. Mas claro, como todo viciado, é difícil enxergar o mal que faz a si mesmo e aos demais. Portanto, isso vem causando uma série de debates acalorados que, para quem já está muito mais avançado nessa discussão, chega a ser cômico. 

Na rua escuto absurdos, como pessoas dizendo que casais vão se separar porque se um dos dois não for fumante não terão mais lugares para ir juntos; que isso é coisa para o governo arrecadar mais impostos (como se a venda de cigarro não tivesse nenhum imposto); que todo comércio vai falir; que é só o início para o gorverno tirar a liberdade das pessoas etc. 

Não sou a favor da proibição do fumo, por menos que goste dele, mas acredito na sua utilização de maneira civilizada e respeitando o nariz alheio. Nada como o bom senso de ambas as partes. 

A lei não é tão rígida como fazem acreditar os fumantes, na verdade é até bem branda. Proíbe o fumo em locais de trabalho, quando não for ao ar livre. Em relação a bares e restaurantes, nos menores que 92 m2, o estabelecimento pode eleger se permitirá ou não o fumo, e a maioria quase absoluta optou por permitir. Nos locais maiores que 92 m2, pode haver uma área de fumantes, desde que seja separada e não ocupe mais que 30% do espaço total. Nas escolas e faculdades está proibido fumar nas salas de aula. Nos aeroportos há espaços separados para os fumantes. Convenhamos, muito razoável! 

Ainda é cedo para saber o quanto trará de resultado, o quanto as pessoas realmente respeitarão a lei, mas ao menos é um começo e meus pulmões agradecem. 

77 – Manual de sobrevivência nos bares madrileños para não parecer um turista mané

Vamos, lá! Já contei sobre vários bares madrileños, mas acho que não custa nada dar uma aulinha prática de como se comportar neles, certo? Quer dizer, estou segura que todos sabem se comportar em um bar, mas há diferenças culturais, às vezes muito sutis, nos bares pelo mundo afora. E vamos falar a verdade, ninguém gosta de parecer turista! Muito menos turista mané! Estrangeiro, tudo bem, mas guiri perdido, nunca! 

Começando pelo convite, se alguém te chamar para salir de copas, não tem nada a ver com jogos! É sair para beber mesmo. Outra coisinha, sair para beber não é sair para encher a cara, é só para tomar um vinho ou uma cerveja, socialmente. Quer dizer, você pode encher a cara, se quiser, mas vai pagar mico, porque de maneira geral, o espanhol sabe beber. Não estou dizendo que não hajam borrachos, o que aqui significa bêbados, mas não é tão comum. 

Quando chegar ao balcão do bar, não espere que o barman se abra em sorrisos, afinal de contas, ele está trabalhando enquanto você se diverte. Isso não quer dizer que ele não possa ser educado ou gentil, mas provavelmente dependerá de como você se comporte com ele ou ela.  

Fundamental: seja objetivo! Os bares e restaurantes aqui tem sempre muito pouca gente atendendo, quando não é um único garçon ou garçonete. Portanto, se você enrolar muito, eles vão te ignorar. Não é má vontade ou implicância, se você for espanhol e não for objetivo, eles também farão exatamente a mesma coisa. Afinal de contas, se você foi a um bar, que tantas decisões complicadas você pode ter que tomar? Viu? Esse é o pensamento espanhol!  

Falando nisso, é uma boa coisa para ser lembrada. Não espere que a gentileza espanhola seja como a brasileira. Não é à toa que o brasileiro tem fama de amável e simpático por todo o mundo. As diferenças culturais devem ser entendidas e respeitadas. O espanhol médio não é tão sorridente nem tão aberto. Não é nada pessoal contra você, eles são assim. Não se aborreça sem motivo, eles nem vão entender porque você se aborreceu se eles não fizeram nada! 

Bom, voltando a nossa lição, a primeira decisão que você já deve ter clara é se quer ir para a barra (balcão), ou para as mesas. Normalmente, você deve esperar que um garçon ou maitre defina sua mesa. Ou seja, se você quer ir para a barra, não precisa pedir a ninguém, simplesmente se encaixe em um espaço livre, mas se quer ir para mesa, peça a alguém responsável. Um “hola, buenas noches” é sempre bem vindo, mas não estique a conversa muito mais que isso. Lembre-se da primeira lição: objetividade! Mesa para dos, ¡por favor! 

Caso você vá para mesa, a garçonete, ou como se diz aqui camarera, pode te perguntar se é para comer ou tapear. Fique tranqüilo, ela não acha que você quer enganar ninguém. Tapear vem das tapas, os aperitivos em espanhol.  

Há uma infinidade de tapas, mas os mais tradicionais são: 

  • Tortilla – um tipo de omelete de batata (para quem acompanha o blog, até já expliquei como fazer no capítulo XXI)
  • Jamón – será que ainda preciso explicar? É o presunto cru espanhol, melhor que seja ibérico de bellota.
  • Croquetas – croquetes, normalmente de jamón ou pollo (frango). Convém lembrar que podem te perguntar, em alguns casos, se você quer unidade ou ración. Não se preocupe, ninguém acha que você é cachorro, raciones são poções.
  • Huevos rotos – a tradução literal seria ovos mexidos ou quebrados, mas na prática, além dos ovos, também acompanha batatas fritas no azeite e, às vezes, pedacinhos de jamón curado.
  • Chorizos – lingüiças um pouco picantes, temperadas com pimentões vermelhos. Elas são avermelhadas, aliás, quase todo embutido (lingüiça)  aqui é avermelhado pelos pimientos (pimentões)
  • Chistorras – linguicinhas parecidas com os chorizos, mas menores
  • Callos – bucho de boi, ou tripas. Acho gostoso, mas tem que ser iniciado
  • Patatas bravas – batatas apimentadas, mas não é terrivelmente picante. Novamente, a picância, nesse caso, vem dos pimentões.
  • Patatas ou Gambas ali-oli – batatas ou camarões ao alho e óleo. Acontece que o alho e óleo aqui se parece a uma maionese com sabor de alho. A propósito, gambas são os nossos camarões menores.
  • Gambas al ajillo – são camarõezinhos feitos em um potinho de barro com azeite quente e alho. O camarão meio que frita, meio que se cozinha ao vapor. É uma delícia!
  • Chipirones a la plancha – digamos que se pareça a atual situação política brasileira: lulinha na chapa.
  • Boquerones – são peixinhos marinados em azeite.
  • Sopa de ajo ou sopa castellana –Não tem o gosto tão forte do alho, pode tomar tranqüilo. Além disso, costuma ser servida com um ovo pochet.
  • Caldo – como o nome indica, é um caldo, um brodo. Normalmente é de cozido ou de jamón. Os restaurantes que servem cozido no almoço, servem o caldo do cozido no jantar. O caldo de jamón é feito com o osso da perna do porco, quando o jamón acaba, ou seja, eles aproveitam tudo, até os ossos!
  • Paella – alguns restaurantes ou bares, servem um pratinho de paella como aperitivo.
  • Empanadas – é um tipo de pastelão de forno. Podem ser como as empanadas sul americanas também, mas normalmente são servidas em fatias e não unidades. Uma muito apreciada é a empanada de bonito (um peixe).
  • Azeitunas – é comum serem oferecidas como cortesia e, para quem gosta de azeitonas, as espanholas são fabulosas.

 Acredito que, com a lista acima, você possa se defender muito bem. Outra coisa muito comum, são as torradas. Na verdade, costumam ser chamadas de tostas ou pinchos. As tostas costumam ser uns torradões e os pinchos são um pouco menores. O que vem por cima, depende da criatividade do bar. Há os bocadillos, que normalmente são sanduichinhos para tira-gosto. 

Uma curiosidade muito interessante, no passado, um rei (que nunca sei qual foi) achou que as pessoas estavam se embebedando demais e pôs em vigor uma lei obrigando a que toda bebida alcoólica vendida  fosse, necessariamente, acompanhada de algo que comer. Obviamente, essa lei não existe mais, entretanto, a tradição ficou. Sempre que você pede alguma bebida alcoólica, a casa te oferece um pequeno aperitivo, como batatas chips, azeitonas, pedaço de tortilla, boquerones etc. 

Um detalhe que expliquei uma vez, é comum os madrilenos jogarem seus lixinhos no chão do bar. O chão do balcão, e às vezes das mesas, fica sempre cercado de guardanapos usados, palitos, cascas de semente de girassol, entre otras cositas. Sei lá, você pode fazer isso sem ser mal visto, na verdade, até te dará um ar local, mas ainda acho meio esquisito. Deixo claro que estou falando de lugares informais, nos restaurantes mais elegantes isso não acontece. Agora vamos às bebidas! Você pode pedir uma cerveza, eles te entenderão, mas de cara já saberão que é turista. Peça uma caña ou cañita e você já começou bem! Pode ser que ele te pergunte se você a quer “clara”, nesse caso, não significa a cerveja clara e sim uma combinação esdrúxula de cerveja com refrigerante! Arg! Negue até a morte! 

O vinho, se você quiser em taça, peça una copa de vino tinto/blanco. Podem te perguntar qual e, nesse caso, como você pediu em copo, não quer dizer a marca, mas a região. Ou seja, normalmente, se for tinto é rioja ou ribera, e se for branco, aconselho um rueda. O vinho da casa costuma ser muito razoável, pode pedir sem susto, mas também sem grandes compromissos. Caso seja mais exigente, peça a carta de vinhos. Eles não costumam ser muito exploradores, nem cobram uma margem de lucro muito alta por garrafa. Não é impossível, mas dificilmente alguém pede a carta de vinhos se estiver na barra, isso é mais comum na mesa. 

O espumante espanhol é a cava, aliás, el cava, porque aqui é uma palavra masculina. Além da garrafa ou ½ garrafa, pode ser pedida em copa ou benjamin. A segunda opção é uma garrafinha pequena que serve uma taça.  

A caipirinha vem alcançando uma popularidade inesperada, pelo menos para mim. Ainda não é encontrada em todos os bares, mas os que a fazem, anunciam isso em pequenos cartazes como uma vantagem adicional!  

Bom, eles também fazem uma série de drinks que me recuso a explicar porque acho uma bosta! É uma mistureba de refrigerantes e energéticos que estou fora! Se quiser, pode tentar, mas não me comprometa! 

Uma última explicação, caso você esteja na mesa e não na barra, há um tipo de ritual de atendimento que não deve ser quebrado. Primeiro, como já antecipei, porque vão te ignorar. Segundo, a gente não combinou que não era para parecer turista mané? Então, preste atenção que explicarei com toda a beleza e graça, de uma maneira muito espanhola.  

Espere a garçonete vir até você, ela vai te dar os cardápios e perguntar o que você quer beber. A não ser que você queira um vinho específico e precise olhar a carta, seu único pretexto razoável,  peça a porra da bebida nesse momento, ok? Como você não sabe o que quer beber? É caña, vino ou água, cacete! Vai ser o que? Suco de cupuaçu com granola? 

Muito bem, nesse momento ela anotará suas bebidas e deixará o cardápio para você decidir o que quer comer. Não adianta pedir a comida junto com a bebida, você estará atrapalhando o ritual. Peça a merda da bebida e leia a porcaria do cardápio. 

Daí ela chegará com suas bebidas e aí sim você poderá pedir o que quer comer. É permitido fazer algumas perguntas, tudo bem, mas você não já leu a lista que acabei de te passar? Então, que tanto você tem que perguntar? Pede logo a comida e não enche o saco! 

A partir desse momento, como você seguiu todos os passos corretamente, a garçonete já passará a tratá-lo como um ser quase humano. Afinal de contas, você não estará atravancando o serviço dela. Só nesse momento, você pode fazer alguma brincadeirinha.  

Convém lembrar que o senso de humor espanhol também é diferente do brasileiro. Assim como o humor inglês é sutil e o americano bobão, o humor espanhol é meio negro. Eles conhecem seus próprios defeitos e pouco se importam com isso, melhor é fazer piadas irônicas. Aqui não se dá gargalhadas generosas, se dá risadas de canto de boca e olhares expressivos. 

Voltando ao nosso ritual, quando terminar de comer, ela perguntará se você aceita postre (sobremesa) ou café. Não adianta pedir o café e a conta, esquece. Toma a bosta do café e só depois pode pedir a conta. Não vai estragar logo no finalzinho, né? 

Ela vai te perguntar como você quer o café. O nosso café expresso se pede café solo, caso queira com um pouco de leite, peça cortado. Pode ser pedido café con leche, mas nesse caso, provavelmente, virá em um copinho, com um pouco mais de leite. E se você pedir espreso (em espanhol se escreve assim), eles entenderão que é o café curto no estilo italiano. 

E só aí você poderá pedir a conta. É possível que te ofereçam um chupito por cortesia. Não se preocupe, nem se empolgue muito, é só um copinho de licor digestivo. Esse chupito costuma ser oferecido na mesa, mas não na barra. 

Chegada a conta, agora sim é sua vez! Não há uma gorjeta obrigatória na Espanha, na maioria das vezes, você deixa umas moedas arredondando a conta. Muita gente não deixa nada. Isso explica e muito a boa vontade do atendimento recebido. Agora, se é um lugar onde você quer voltar, você foi tratado com educação e gentileza, por que não colaborar? 

Apesar das piadinhas, uma coisa digo, não importa a cultura, cada um elege como quer se comportar. Procuro não destoar do contexto nem fazer papel de boba, mas independente de como seja atendida, sempre sou educada. Até porque, sempre me restará a opção de ser educadamente firme e também de não voltar. Nada pior que perder a classe, mesmo que seja no balcão do boteco. Eles são mal humorados? Talvez às vezes, talvez um pouco, mas talvez seja só uma maneira de falar ou um dia ruim… Importa que saímos muito e, nos lugares que gosto, trato os garçons por seus nomes e com respeito, espero minha vez, deixo gorjeta e jogo lixo no lixo. E um segredinho entre nós, normalmente sou muito bem tratada. 

78 – A perigosíssima mulher-búfala

Iniciada a temporada de inverno, sai de sua toca uma das criaturas mutantes mais perigosas do planeta frio. É a mulher-búfala! 

Sempre vestida com um horrendo e enorme casaco de pele marron-já-foi-sua-época, ela ganha ferozmente as ruas madrileñas. É especializada nas rebajas, promoções com significativos descontos. 

As representantes dessa raça, olhadas de longe, parecem inofensivas senhoras baixinhas, mas só de perto percebemos o perigo que essas massas corporais são capazes de representar. Normalmente são peitudas e, adicionando-se pelo menos quinze centímetros de casaco, não possuem nenhuma sensibilidade ao encostar em você. 

Isso me faz pensar, por que os policiais utilizam coletes à prova de bala? Deveriam usar esse casaco de pele marron. Além de ser mais eficaz contra a munição, o meliante que olhar para um policial assim vestido cairá indefeso no chão com um ataque de riso súbito! 

Enfim, essa couraça protetora utilizada pela mulher-búfala, faz com que ela seja o ser mais inconveniente a ser colocado atrás de você em um fila. E acredite, tudo aqui tem fila! Trata-se de uma estratégia malévola para que você ceda seu lugar para ela. É dificílimo aguentar a esse trator de neve na sua retaguarda, mas resista! Lembre-se da outra fila incomensurável que você já encarou no provador antes de estar ali, na fila de pagar a conta. Mais do que isso, lembre-se que se ela pagar antes de você, rapidamente se transformará em uma mulher-búfala-rolha, cheia de sacolas de compras, entalada na porta de saída da loja. Provavelmente, ela seguirá com esse bloqueio na sua frente pelas calçadas até que ela consiga te irritar e te distrair tanto que você certamente pisará em um cocô de cachorro. 

E se você achou ruim quando ela estava atrás de você, cuidado! Fica pior quando ela vem na sua direção. De nenhuma maneira a olhe nos olhos! Isso é muito perigoso, pois elas sempre usam uma sombra verde ou azul, cuja cafonice extrema pode provocar danos em sua retina, além de seqüelas emocionais que podem durar por vários pesadelos. 

Finalmente, o pior de tudo: elas possuem amigas! Não tive essa experiência traumática, mas Luiz uma vez encarou sozinho uma manada inteira de búfalas casacudas na saída do El Corte Inglés! Coitado! Chegou em casa pálido e com o olhar perdido. Sobreviveu, embora nunca mais tenha sido o mesmo… 

Infelizmente, devo dizer que contra elas não há estratégia de ataque, você não tem chance! A única maneira de reagir é defendendo-se. Quando perceber que uma mulher- búfala se aproximará de você, fuja, mas fuja rápido! 

79 – Meu super gato saudável!

Impossível conhecer e não se apaixonar por meu felino etílico, Jack Daniels. Um gato gordo, preguiçoso e feliz! Não é apenas pela sua companhia, mas por sua amizade. 

Não comentei muito a respeito, mas meu gordo chegou em Madri doente. As razões, quem poderia ter certeza? Acredito que se deprimiu com a perda da Buchanan, minha outra gata sua irmã, e aos poucos foi perdendo a alegria e a saúde. 

Quando chegou aqui, recuperou muito de sua vitalidade e voltou a ser um gato ronronante, o que nos foi de grande alívio, mas sua saúde não era a mesma. Sua resistência chegou a baixar tanto que a veterinária acreditou que ele poderia ter leucemia. Hipótese que, felizmente, foi descartada logo em seguida. Parte da opção de não usar sapatos em casa veio daí, queríamos protegê-lo de possíveis viroses da rua. 

Dos meus dois gatos, sempre achei que Jack morreria de velho e no meu colo, Buchanan escolheria sua hora. A gata escolheu e soubemos ler seus sinais. Sofri, mas estava preparada para isso. Só esperava que a parte boa da profecia amadora também estivesse correta e Jack envelhecesse forte.  

Iniciamos uma bateria de exames e um tratamento que se prolongou por alguns meses. Escolhemos medicina natural, homeopatia, e o cuidamos como um gato normal, como se nada estivesse acontecendo. Após nove meses, olha que parto, Jack recebeu alta hoje! Está novamente saudável e continua sendo um gato feliz! 

E eu também. 

80 – Ciao, bela!

Luiz precisou trabalhar por alguns dias em Roma, e dessa vez deu para eu aproveitar e ir também. Até o Jack foi junto!  

Jack tem uma babá! Quando viajamos por um fim de semana, ele fica em casa. Chamamos uma mocinha que vem duas vezes por dia e troca sua comida, a água e limpa a areia. Ela até tem a chave do nosso apartamento. Mas como dessa vez era por 5 dias, muito tempo para ele ficar só, resolvemos levá-lo conosco. 

Muitos hotéis na europa aceitam animais de pequeno porte. Boa parte das companhias aéreas também. Aliás, não me lembro se já contei, mas meu gato tem passaporte europeu com foto e tudo! Juro! Ficou pronto bem antes dos meus documentos! E lá foi meu felino conosco para Itália. 

A origem da minha família é italiana, apesar de nunca termos nos preocupado muito com isso. Quem nasce no Brasil é brasileiro e pronto! De toda maneira, ainda adolescente, aprendi a falar a língua. Quando cheguei na Espanha, fazia uma confusão enorme com os idiomas e tinha um leve sotaque ridiculamente italiano quando tentava falar espanhol. Fiz tanta força para mudar isso, que precisei bloquear o italiano para progredir no castellano. Agora, chegando em Roma, era a prova de fogo! Saberia falar? Entenderia? 

Pois meu italiano estava uma bela porcaria! Saía sempre um espanhol macarrônico! Tudo bem, depois resolvo isso. De certa maneira, foi um bom sinal, quer dizer que o espanhol entrou na veia. 

Eu adoro os italianos! Eles podem até te passar para trás, e como turista isso frequentemente acontece, mas sempre com toda gentileza e um enorme sorriso no rosto. Você não se sente uma trouxa qualquer, se sente uma trouxa especial e encantadora. Convenhamos, isso faz toda a diferença! Acho os italianos deliciosamente mal educados, no ponto exato, o suficiente para não serem chatos e monótonos, mas não tanto ao ponto de serem irritantes ou grosseiros. Enfim, muito bom ver gente que sorri à toa outra vez. 

Luiz alugou uma motorino (lambreta) e partimos a passear em duas rodas. É a forma mais fácil e rápida de se locomover pela cidade. O trânsito é razoavelmente caótico e quase não há onde estacionar. O metrô não é tão bem comunicado e ônibus nem arrisquei. Também não é complicado caminhar, o centro da cidade é relativamente simples de entender e tenho um bom senso de direção. Taxi, para distâncias curtas em locais centrais é tranquilo, mas para distâncias maiores, eles podem te enrolar e cobrar tarifas mais altas. 

Há alguns anos atrás, fomos a Roma e encontramos um casal de amigos que morava em Londres. Alugamos juntos as tais lambretas e foi muito divertido. Uma história engraçada aconteceu com esse casal, bem no meio da madrugada, um frio do cão e nós nas motorinos. Daí para o casal do nosso lado e começam a cantar a música do Steppenwolf: …born to be wild! Fui capaz de me sentir a própria selvagem na motocicleta que não andava a mais que 60 km por hora! A diferença é que naquela época debochávamos da falsa aventura. Anos mais tarde e dessa vez usando capacete, para mim era uma aventura de verdade! Estou ficando velha… 

No primeiro dia, senti um pouco de preocupação por andar na moto, mas não perdi a pose e encarei o desafio. No segundo dia, não tinha mais um pingo de medo, havia me acostumado com a motorino ainda mais potente que a primeira que alugamos, e me senti muito orgulhosa em ser capaz de ousar, nem que fosse um pouquinho. Meu orgulho não durou muito, assim que ganhei total confiança perdi a dignidade, minhas pernas e, desculpe, minha bunda doíam tanto que já estava de saco cheio! Luiz, por favor, vamos devolver o brinquedo e andar ou pegar um taxi? 

Uma coisa foi muito legal, por conhecer bem a cidade e não ter mais a pressão do turismo, pudemos aproveitar de maneira mais relaxada. É que da última vez que fomos, ainda morava no Brasil, daí você encara trocentas horas de avião, em férias super difíceis de conciliar e tem sempre um pouco da neura de precisar aproveitar cada minuto. Não acho errado, faz parte e acho que também vale à pena, mas a situação agora era outra e adorei! Não fui visitar museus, não fui à Capela Sistina e esbarrava por puro acaso nas piazzas e fontes mais famosas. Luiz queria passear de motorino e eu queria bater perna em Trastevere. Tomar um brunch o mais devagar e preguiçosamente possível! Voltar para o hotel e tomar um banho de espuma bem demorado. Sair à noite para jantar uma super pasta, tomar um vinho nacional e comer tiramisú.  

Infelizmente, devo admitir que em alguns momentos a culpa me bateu. Algumas vezes, quando estou muito feliz, me bate na consciência a dúvida se mereço. Considerando que tudo na vida tem um preço, e eu sei que tem, fico um pouco preocupada se estou colhendo um esforço ou se a conta ainda vai chegar. Sei que é um pouco neurótico, mas é a verdade. Ainda é muito difícil conviver com o contraste de sentar calmamente em uma piazza, tomando um belo vinho e ver, ao lado dos monumentos, os mendigos e os vendedores ambulantes tentando sobreviver. Entendo que a solução não depende de mim, mas sei que posso fazer meu papel e sei que posso fazer mais. Nesse sentido, talvez tenha sido bom, pois voltei com muita vontade de trabalhar. 

A volta para casa foi um pouco atribulada. Começou com Luiz esquecendo seu computador no hotel e tivemos que voltar do meio do caminho para o aeroporto e buscá-lo. Chegamos no check in em cima da hora, na verdade, até um pouco atrasados. Saímos em disparada para não perder o vôo. Na hora de passar pela fiscalização, os funcionários se apaixonaram pelo Jack e o policial cismou que tinha que me mostrar a foto do gato dele também. Imagina a gente em uma pressa louca e o policial procurando a foto do gatinho dele no telefone celular para nos mostrar todo orgulhoso! Em outra situação, teria batido o maior papo, mas ali estava agoniada. Quando chegamos no balcão de embarque, quase toda fila já havia entrado, fomos os penúltimos. Ufa! 

A partir daí foi mais tranquilo. O vôo estava vazio e nos deram uma cadeira bem atrás, assim ficamos sossegados com o gato, sabendo que ninguém ouviria seus miados de reclamação, se isso ocorresse. O comissário de bordo, também apaixonado por gatos, deixou a gente abrir a bolsa de transporte porque queria brincar um pouco com o Jack antes do avião decolar. No resto da viagem, meu felino metido teve até uma poltrona só para ele, sua bolsinha foi presa ao cinto de segurança. Ele se comportou super bem, um rapazinho, e quando chegamos, novamente a tripulação queria vê-lo enquanto os passageiros não saíam. 

Como nada na vida é perfeito, uma das nossas malas não chegou. Claro que foi a minha, com as roupitas novas que comprei. Lógico que comprei roupas e uma bota linda que estica minha perna uns 20 cm! Não sou uma pessoa naturalmente consumista, mas convenhamos, estava na Itália e ganhamos em euro! Quer comparar moda italiana com espanhola, sinto muito! Todo mundo já sabe que adoro Madri, mas as roupas aqui não tem a mesma elegância. E voltando à mala, hoje pela manhã nos ligaram dizendo que localizaram a dita cuja e a trarão no fim do dia. Agora é torcer para chegar tudo certo. 

O importante é que chegamos todos bem e Jack, que infelizmente detesta viajar, já cheirou, se esparramou e se esfregou pela casa toda. Queria ter essa sua habilidade de chegar no elevador e reconhecer o cheiro da minha casa, como se sempre houvesse sido ali e sempre houvesse sido minha. 

81 – A deprê de inverno

Mesmo antes de mudar para cá, havia ouvido falar muitas vezes da depressão que pode causar o inverno. Não é que não acreditasse nisso, mas nunca acreditei que pudesse acontecer comigo. Nem é meu primeiro inverno fora do Brasil. Mas a verdade é que aconteceu e estou aprendendo a lidar com essa situação. 

Felizmente, para mim não é tão grave, nada que precise medicação ou me derrube seriamente. Mas existe, está ocorrendo e não posso negar. Por sorte, pude perceber e entender rapidamente o que era. Com algumas pessoas isso pode ser mais sério e não é vergonha nenhuma, precisa ser tratado. 

Não sou uma pessoa das mais simpáticas ou super comunicativas, essas características sempre foram do meu irmão e da minha mãe. Por outro lado, normalmente não sou mal humorada e sou bem animada. Há três coisas que tiram meu humor: fome, muito sono e fazer algo que não quero sem necessidade. Razoável! Agora descobri que também há um quarto motivo, o inverno. 

Não é que me deixe aborrecida, mas me tira o ânimo de fazer as coisas. E não é necessariamente o frio, pois dentro de casa é aquecido e tenho roupas muito adequadas que me protegem na rua. 

Notei que cada vez que tenho que sair é difícil, é um esforço que faço, a vontade é de me entocar em casa. Isso para mim é algo muito estranho, pois sou daquelas que quando você me pergunta “vamos a tal lugar?”, já estou pronta em pé na porta. Juro! Também estou com pouca vontade de sorrir e me irrito com mais facilidade. Não sei explicar bem, mas é como um tipo de tristeza que você não entende o motivo. 

É diferente de tirar férias no inverno ou ir para uma estação de esquis, porque isso de alguma maneira te tira da rotina. É a rotina de inverno que me cansa. É acordar com o dia meio escuro, ter que pensar em cada peça de roupa, vestida em que ordem e qual casaco colocar,  precisar checar o tempo antes de sair de casa, conviver com as mudanças bruscas de temperatura cada vez que entra e sai de algum recinto, me emplastar de hidratante, nunca esquecer o protetor labial, lembrar de ligar o humidificador, não poder abrir as janelas para o ar circular… O inverno não te sugere uma rotina, ele te impõe uma. E isso porque Madri, ou mal ou bem, não é radicalmente fria e costuma ser ensolarada. Imagino nas cidades cinzentas ou de muita neve, onde se você não tomar as providências adequadas, pode até morrer. Simples assim. 

Acho que, em parte, o brasileiro é mais alegre por causa da luz e da temperatura do país. A gente não se dá conta porque está sempre ali, mas quando não está mais, faz falta. 

Enfim, os motivos exatos não tenho certeza, mas tenho tentado reagir. Não porque tenha me atrapalhado tanto, mas porque gosto de ser feliz. O que tento fazer é, primeiro, com ou sem vontade, não recusar convites. Mesmo desanimada, eu saio, porque quando estou na rua melhoro sensivelmente e consigo me divertir.  

A outra coisa é a alimentação. Seria ótimo se gostasse de pimenta, pois o chile, por exemplo, aumenta seu nível de endorfina e melhora o humor. Infelizmente, não gosto, então estou experimentando outros ingredientes. O gengibre, o alecrim e a noz-moscada me ajudam e a vitamina C também. O raio do chocolate é bárbaro, mas deixa a pele um lixo, além de engordar. O vinho é um bom aliado, mas a não ser que seja um jantar especial, não mais que uma ou duas taças ou o efeito é contrário. 

Muito bem, uma produçãozinha pessoal ajuda, vai. E, por que não? “Al mal tiempo, buena cara”. Afinal, as outras pessoas também estão passando pelo inverno e ninguém merece ficar olhando meu rosto desanimado, certo? 

Aos poucos, encontro minha própria fórmula de expulsar a uruca, ainda que me interesse bastante a experiência alheia nesse sentido. Todos os anos o inverno chegará e talvez um dia nem ache ruim. Quem sabe, ainda espere por ele. 

82 – Os cheiros de Madri

Gente! Madri tem cheiros! Parece estranho só ser capaz de notar isso quase um ano depois que moro aqui, mas juro que é a mais pura verdade. Antes disso, só notava cheiro de cigarro. Tenho até medo de elogiar muito, mas menos de um mês após a lei de restrição ao fumo ser implantada, o cheiro da cidade mudou! 

Começou por chegarmos em casa, vindos de um restaurante, e não precisarmos arrancar a roupa correndo, com  vontade de queimá-la, e entrar embaixo do chuveiro. Sem nenhum exagero, às vezes até as roupas de baixo tinham cheiro de fumo, nem me pergunte como! 

Para o cabelo, comprei um tal de “champú seco”,  Flor de Azalea, que apesar desse nome brega, salvou minha vida em diversas noites. Parece um laquê que tira o cheiro de cigarro e a oleosidade do cabelo, como se fosse um talco, mas não estraga a escova. Tá bom, meninos, sei que para vocês essa informação parece irrelevante, mas garanto que para as meninas que chegam em casa da balada, no meio da madrugada, com o cabelo cheirando a cinzeiro, essa é uma informação importantíssima! Podemos dormir em paz e lavar a cabeça com calma no dia seguinte. 

Notei que o ar havia mudado quando estávamos em um shopping. Quase nunca vou a shoppings aqui, normalmente prefiro a rua, mas nesse dia fomos. De repente, comecei a notar aromas de diferentes perfumes, cheiro de insenso em algumas lojas, alguns cheiros de comida pela praça de alimentação, cheiro de suor, cheiro de neném… E pensei sozinha, que engraçado, os shoppings cheiram tão diferente das ruas. Até que passei na frente de uma das portas de saída, onde havia uma área reservada para fumantes. Reconheci o cheiro instantaneamente, e só aí notei que não é que não houvessem aromas antes, mas o cheiro do cigarro abafava quase todos. Isso é incrível!  

É difícil acreditar que as pessoas, inclusive eu, pudessem aceitar a anulação parcial de um dos seus sentidos em favor de um vício! Até esse momento, sempre acreditei que o cigarro era apenas inconveniente e fazia mal a minha saúde, mesmo que não desfrutasse dele. O que, convenhamos, já é bem ruim. Mas ainda não havia percebido que ele me tirava uma das dimensões da vida, me roubava a percepção dos cheiros. 

Agora ando como um cão farejador! Putz! Realmente, às vezes acho que pareço maluca, mas é que com essa revelação me pareceu que poderia estar vendo um filme sem a trilha sonora. Quero Madri inteira, com o bom e o ruim, e com todos os seus cheiros! 

83 – Show de Dança Flamenca y otras cosillas más

Nesse fim de semana, uma amiga espanhola nos convidou para assistir um show de dança. Mesmo sem muita informação do que se tratava, topamos. Sempre vou ao teatro com muito boa vontade, procuro não ter expectativas muito altas e adoro me surpreender.  

Pois, foi uma boa surpresa desde o início. Começando pelo teatro, pequeno e alternativo, que me pareceu aconchegante. Gosto dos grandes teatros e espetáculos também, mas nesse dia, preferia algo mais intimista. O lugar chama Sala Triangulo e fica próximo ao Reina Sofia, meu museu favorito aqui.  

O show que fomos assitir se chamava “Latidos”. A propósito, latidos são as batidas do coração. Aqui na espanha nosso coração late!  Na verdade, era uma mistura de dança, música e teatro. O carro-chefe, digamos assim, era o flamenco. Entretanto eles mesclaram com uma série de ritmos, como: clássico, samba, blues (que ficou ótimo), salsa e alguns outros. 

O contexto era uma grande viagem, passando por aeroportos, estações de trem e metrô. As esquetes eram histórias que fazem parte do dia-a-dia de pessoas comuns, e claro, dentro da realidade espanhola. 

O espetáculo tinha poucos recursos em termos de produção, isso era bastante óbvio. Mas esses poucos recursos foram muito bem utilizados, de maneira criativa e com talento. E sabe que ficou bom?  

Mas houve uma outra coisa que foi importante. Normalmente, um dos motivos de você gostar de uma música, um filme, uma peça, enfim, uma atração qualquer, é o fato de se identificar com o que é exposto. Entendi perfeitamente todo o espetáculo e não estou falando só do idioma, me identifiquei mesmo, reconheci as pessoas que vejo na rua e eventualmente até a mim. Foi muito bom sentir que estou aprendendo. Esgotou minha paranóia da perda de identidade. No fim das contas, acho que prefiro mesmo é “ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo…” ¿vale?  

84 – Calle de Manuela Malasaña

Próximo a estação de metrô Bilbao, há uma ruazinha muito simpática chamada Calle de Manuela Malasaña. Sei lá, para quem conhece São Paulo, acho que seria a Rua Normandia daqui.  

É um local que conheço há pouco tempo, mas já fiquei fã. Tem de tudo, bares, restaurantes, uma graça! Tem até um restaurante natureba, o que em Madri soa como uma heresia, mas lá fica interessante. 

Há também um restaurante, chamado Nina, que entrou rapidamente no meu ranking dos melhores da cidade. É que, apesar de gostar da comida espanhola, tem uma hora que te enche um pouco o saco e você tem a impressão de estar sempre comendo a mesma coisa. O Nina tem seu sotaque espanhol, mas com um toque de cozinha mediterrânea e oriental, o que é um refresco para meu paladar. 

Pois estávamos nós, no tal do Nina, com a sorte de termos pego uma mesa na janela. Detalhe, só conseguimos reservar nosso jantar para às 23:30, lá está sempre lotado. Não é que na rua passa minha amiga francesa com o marido e nos reconhecemos pelo vidro? Qual a probabilidade de isso acontecer? Claro que ficamos fazendo mil piadinhas sobre essa cidade do interior minúscula, onde você encontra todo mundo! Engraçado como uma coincidência assim, tão pequena, me fez sentir parte do lugar. 

Bom, mas como deve ter dado para perceber, aquela historinha do regime de início de ano foi para o brejo! O jeito é malhar caminhando muito pela cidade, se a boca não consigo fechar, pelo menos, preciso queimar as deliciosas calorias madrileñas. 

85 – Pues… nada

Todo idioma, ou pelo menos todos que conheço, possuem algumas expressões coloquiais, sem grandes significados, utilizadas apenas para ganhar tempo para pensar ou iniciar uma frase. 

Por exemplo, no Rio tem o “olha só”. Os cariocas começam suas frases assim: … olha só, você vai fazer isso mesmo… e por aí vai. Os paulistas costumam perguntar, olha só o que? Você não está me mostrando nada! Mas há a revanche carioca, pois os paulistas iniciam suas frases com o famoso “então”. Então o que, se você não estava falando nada! 

O americano começa com o “well” ou “so”, mas em inglês todo mundo acha bonitinho. 

Pois os madrileños também tem sua expressão que não significa porcaria nenhuma, é o famoso “pues nada”, cuja tradução literal acredito ser dispensável. Na prática, funciona como um “nada demais”. 

Acho engraçado quando você atende um telefone e fala, diga ou dígame, e a pessoa do outro lado responde, pues nada. A pergunta seria: se não é nada, por que raios você está me ligando? E ainda há a variação “pues… entonces… nada”. Caramba, isso é que é falta de assunto, hein? 

Mais divertido ainda é depois da pessoa dizer que não era nada, começar a falar sem parar naquela velocidade espanhola! Aparentemente, o nada aqui rende uma longa conversa! 

Olha só, e por que estou contando isso? Então, pues nada 

86 – Uma coisa muito feia

Vi uma coisa muito feia, um homem batendo em uma mulher em plena rua. Sabia que acontecia, já ouvi muitas histórias, mas nunca tinha visto assim, pessoalmente. Como é feio! 

Ano passado, não me lembro exatamente em que mês, estava vendo o noticiário e mostrava um protesto enfurecido das espanholas. O motivo era o assassinato de uma mulher por seu marido. A reportagem falava do número “alarmante” de mulheres que morreram por maus tratos de seus parceiros na Espanha, em 2005. Logo em seguida, disseram que era a quadragésima-alguma-coisa mulher morta nesse mesmo ano e que providências sérias precisavam ser tomadas. Quando ouvi o número, a primeira coisa que me veio à cabeça foi que não me pareceu tanto assim.  Acho que no Brasil morrem muito mais. Ao mesmo tempo, esse pensamento me pareceu absurdo! Se uma só mulher tiver morrido, assassinada por seu marido, isso já é alarmante! Não estamos falando de 40 mulheres que morreram durante um assalto ou acidente. Falamos de casais, de pessoas que vivem juntas, dividem sua cama e que não tem, necessariamente, antecedentes criminais. Falamos de uma total falta de respeito. 

Às vezes, acho que no Brasil, e em outros lugares também, a gente perdeu a capacidade de se indignar. “Foram-se os anéis, ficaram os dedos” deixou de ser uma metáfora para se transformar em expressão literal. É o “estupra, mas não mata” virando piada que não acho a menor graça.  Lembro-me de escutar  nas rádios o “só um tapinha não dói” e sentir saudades da voz negra da Marron, que quando se referia à pancada de amor que não doía, falava de um surdo ou um pandeiro. E se seu surdo ou seu pandeiro eram referências à vida, pelo menos eram cantados de forma poética.  

Nossa falta de indignação nos acostumou aos meninos nos semáfaros,  aos mendigos queimados e aos animais vagando sem casa. Espero nunca me acostumar a ver um homem bater em uma mulher, ou mesmo um homem bater em outro, porque isso é muito feio. 

O que vi aconteceu no campus da Complutense, quando ia assistir um filme sobre guerrilheiros anti-franquistas, Silencio Roto. Estava sozinha caminhando do metrô para o prédio de filosofia, onde encontraria minhas amigas. A calçada tinha um certo movimento, nem tanto quanto no outono, mas não estava vazia. Vinha olhando as pessoas que estavam na minha frente, quando meu olhar parou em três homens e uma mulher, juntos. Nem sei explicar o porquê, mas sabia que eles não pertenciam ao lugar, não combinavam ali e meu radar me avisou logo para ficar bem atenta. Reduzi o passo, fiquei observando e analisei se existiria uma rota de fuga, se precisasse. 

Daí, dois dos três homens aceleraram o passo e o casal ficou um pouco para trás. Pareciam discutir, mas era uma coisa muito estranha. De repente, ele deu um tremendo safanão na mulher, que se protegeu, mas não fugiu. Algumas pessoas passavam do lado e ficaram meio confusas, mas não pararam. Ele continuou a andar na sua frente e, para minha surpresa, ela o chamou novamente gritando. Ele voltou, bateu nela outra vez com um murro,  gesticulou apontando para umas árvores como se a estivesse ameaçando e saiu andando na frente. Ela o chamou novamente berrando para ele voltar. Nesse momento, eu estava mais próxima e pude notar que a mulher estava molhada, como se tivesse urinado nas calças. Não sei se de medo, de dor ou de torpe e nunca vou saber, mas também era muito feio. 

Francamente, não sabia o que deveria fazer, como poderia ajudar. O que me deixava mais confusa e acho que às outras pessoas também, é que quando o homem ia embora, ela o chamava outra vez. E ele batia outra vez! Chamar a polícia, não adiantava, além de não haver tempo, a polícia não entra no campus da Universidade (motivos políticos, é lei). 

Da última vez que o vi voltar para socá-la, nosso olhar se cruzou e ele baixou o braço. Não houve da minha parte nenhuma coragem, tive medo e talvez tenha sido até imprudente, mas minha indignação perplexa foi tanta que não me deixou parar de encará-lo. Não sei se por vergonha, se por pensar que poderia reconhecê-lo, se porque havia mais gente na calçada ou por se cansar, mas dessa vez ele não bateu e foi embora. Passou do meu lado. Ela continuou gritando para ele. Ele se reuniu novamente com seus outros dois amigos, com rosto muito aborrecido, com cara cínica de vítima. E não o vi mais, espero nunca mais vê-lo, mas sei que lembrarei do seu olhar e quero que ele se lembre do meu. 

Muitas vezes, me sinto bonita simplesmente porque Luiz me olha como se eu fosse. Acho que se esse homem um dia se lembrar do jeito que olhei para ele, vai pensar: como sou feio. 

87 – A velhinha motoqueira

E mais uma cena insólita madrileña… Almodóvar, cadê você? 

Agora nem preciso sair na rua para me divertir. Pois estava eu, dando uma olhadinha da janela e logo em frente do meu edifício vi uma situação que me chamou atenção. Havia três velhinhas e uma mulher de seus 40 anos, juntas. Uma das velhinhas estava em uma cadeira de rodas e deveria ter uns 127 anos! As outras duas senhoras pareciam mais jovens, no máximo, uns 85. 

O que fazia dessa cena insólita? Imagine a mulher de seus 40 anos, tentando empurrar a cadeira de rodas com uma só mão, a outra mão ela tinha que segurar o cigarro, porque claro que ela precisava fumar exatamente nesse momento, né? As outras duas velhinhas tentavam carregar um monte de malas e bolsas, que não pareciam pesadas, mas tinham muito volume para elas. Quando pegavam uma mala de um lado, caía uma bolsa do outro. 

Ensaiei descer para ajudar, mas antes disso percebi que na reta das mulheres havia uma lambreta vazia. Olhando de cima no meu apartamento, no ângulo que via, dava a sensação exata que as três loucas iriam colocar a pobre velhinha de 127 anos em cima da moto! Juro! Dava nervoso só de imaginar! Antes que eu tivesse um enfarte, percebi que essa localização lambreta-velhinha era só uma coincidência. Que alívio! 

Nesse meu vai-e-vem na janela, será que desço para ajudar ou vejo o que está acontecendo, percebi um homem chegando para dar uma mãozinha. Quando olhei melhor, era um senhor dos seus 90 anos! A mulher de 40 não sabia se equilibrava o cigarro ou empurrava a cadeira de rodas. E eu: ai, meu Deus, desço para ajudar ou chamo uma ambulância? 

Pois nem precisei ficar na dúvida muito tempo, o velhinho era super ágil! Em segundos ele pegou todas as malas, atravessou a rua e se despediu das senhoras. E cá entre nós, notei um certo ar muito galante. Fiquei pensando, para qual das velhinhas ele estaria se exibindo? Será que ele estava paquerando? E onde raios ele conseguiu toda aquela vitalidade? A velha sou eu que fiquei como uma boba na janela e não fiz nada! 

88 – O primeiro dia de neve em Madri, 2006

No penúltimo dia de janeiro, pouco depois das 8:30, fui acordada por um insistente interfone. Quase não fui atender, porque não esperava por ninguém e tinha quase certeza que era engano. Mas era  possível ser o correio, pois tenho família e amigos gentis que sempre me mandam alguma coisa. Fui com aquela mala leche ver do que ser tratava e, no fim das contas, era mesmo o correio para meu apartamento. 

Era o passaporte do Luiz com seu novo visto americano. Tive que pagar 8,15 euros para recebê-lo e é claro que não tinha trocado. Paciência, fazer o que, morri em 20 euros e a promessa que ele passaria de volta assim que tivesse troco. 

Contei essa história porque ninguém que me conhece poderia acreditar que estaria acordada a essa hora sem algum motivo. Durmo no final da madrugada e acordo no fim da manhã. Vivo em outro fuso. Mas sabe de uma coisa, nesse dia meu sono foi interrompido providencialmente! 

Como Luiz estava super ansioso para receber seu passaporte de volta, liguei para ele meio sonâmbula para avisá-lo, sonhando em voltar para minha caminha quentinha. Ele me perguntou se havia olhado pela janela. Imagina, se mal olhei o carteiro! Daí ele me disse que havia nevado. 

Fui para a janela da sala conferir. A rua já estava normal, mas em cima dos carros ainda havia neve branquinha. Talvez minhas receitas malucas estejam funcionando para melhorar meu humor, talvez fosse porque era o primeiro dia de neve, talvez fosse porque não era eu quem limparia os pára-brisas congelados, e quem sabe, por tudo isso junto, mas fiquei muito feliz! E olha que foi antes das 9 da manhã! 

Um pouco relutante, vesti meu casacão por cima do pijama e tomei coragem de abrir a janela e fotografar a rua. Registrei, ao mesmo tempo, dois momentos históricos: meu primeiro dia de neve em Madri e vagas para estacionar na frente do prédio. Nem sei qual dos dois eventos me surpreendeu mais! Fotografei para não me chamarem de mentirosa, não pela neve, mas pelas vagas! 

Lembro do primeiro dia que vi neve na vida. Tinha por volta dos cinco ou seis anos, em Nova York. Pode acreditar, é uma lembrança curta, mas muito nítida, acredito que porque, para mim, era uma coisa muito diferente. Lembro da emoção de sair e ver a rua branquinha. Acho que fiz o que dá vontade em todo mundo, afundei o pé na neve para deixar marcas de pegadas. Depois não resiti e me joguei no chão sem o menor pudor! Ainda bem que conheci neve criança, hoje me daria vergonha e frio, apesar de ainda ter vontade de me jogar. E a última coisa que me lembro é de ver uma senhora desconhecida passando e rindo para mim. Acompanhei seu olhar por um tempo e minha lembrança se acaba aí. Anos depois entendi esse olhar, era inveja boa, de quem também queria se jogar no chão e se esbaldar com a neve. 

Enfim, acho que o frio da janela e as lembranças me tiraram o sono e comecei esse dia cedo. E, a propósito, o carteiro voltou mais tarde com o troco dos 20 euros e não faltava um centavo!  

89 – Os embalos de sábado à noite

Em pleno sábado, frio de menos 2 graus, Luiz e eu largados em casa vendo filme e comendo pipoca. Até que Luiz se animou e me chamou para sair. Normalmente, esse é o meu papel, mas ando meio marcha lenta e ele assumiu o comando. Ainda bem! 

Enquanto me arrumava, ele ligou para uma amiga nossa que mora aqui perto e chamou ela e outro amigo. Acabou que só foi ela. Fomos para um bar quase na esquina, o Finos y Finas, tomar um vinhozinho e beliscar algumas comidinhas no balcão. Daí, nossa amiga que nos encontrou lá falou de um lugar bem próximo que ela havia conhecido e achou as músicas legais. 

Músicas legais? Como assim? Esse tipo de argumento em Madri deve ser conferido imediatamente! E ainda por cima era perto! Eu que na rua me animo e já havia engatado a terceira, pulei logo para quinta marcha e acelerei: então, vamos! 

O lugar se chama Posada de Las Animas e, no que depender de mim, serei cliente! A decoração é meio teatral, assim, dramática. Talvez um barroco modernista, com anjos pendurados, enormes candelabros e longas cortinas vermelhas. Muitos espelhos e iluminação bem planejada, como deve ser. As prateleiras dos bares são montagens com antigas cadeiras de cinema, adornadas por milhares de garrafas de bebidas e vídeos em tela de cristal líquido. A bebida é cara, mas não se paga entrada nem tinha fila. E, muito importante, a frequência média se posicionava acima dos 30 anos. 

A música era realmente boa. Entramos direto para a pista e dançamos até cansar! Nesse momento, me arrependi de estar tão bem agasalhada. Putz! Que calor! Também, como iria advinhar que de moribunda no sofá acabaria pulando numa pista de dança? 

Enfim, indo embora a pé em um frio de 6 graus negativos, vivi a seguinte contradição. Meu corpo ainda suava de calor por ter dançado e minhas orelhas queriam descolar da cabeça de tanto frio! Bom, o nariz nem sei onde estava, porque no meu rosto não sentia. 

Pues nada… pero, bueno, que estava muy bien, así que a lo mejor volveré ¡guay, tío! 

90 – A Picanha

Sou carnívora! Os vegetarianos que me perdoem, mas uma bela carne é fundamental. Nasci com caninos, fazer o que?  

É verdade que preciso comprar as carnes em supermercados, cortadinhas e limpinhas. Assim, posso esquecer que é um animal. Preciso acreditar que um bife nasce em algum tipo de árvore exótica. 

A comida de Madri é muito boa, mas a carne deixa um pouco a desejar, como na maior parte da Europa. Além disso, os cortes são diferentes e ainda tenho um pouco de dificuldade em identificá-los. 

Em Atlanta, encontrávamos churrascarias brasileiras muito boas. Mas em Madri é mais difícil. Existem, mas não são fantásticas. A melhor que já fui até o momento é a Mistura Fina, em Majadahonda, meio longe para irmos sem carro. E a melhor carne e a do Picanha, mas não é exatamente uma churrascaria. 

Enfim, de qualquer forma, ainda tinha aquela vontade danada de fazer uma super picanha em casa, mas como explicar isso no açougue? Até que navegando pelo orkut, em uma comunidade de brasileiros em Madri que frequento, descobrimos que aqui também se faz esse corte e se chama tapilla ou tapa de cuadril. Não é um corte espanhol, mas os argentinos e brasileiros comem, portanto, alguns lugares o faziam. 

Bom, o próximo passo era ir até o açougue e testar a informação. Fui junto com o Luiz, porque não queria pagar o mico sozinha do açougueiro me olhar com cara de ET sem ter a menor idéia do que era a tal da tapilla. Pois o rapaz não só conhecia o corte, como havia namorado uma brasileira. 

Ele tinha um pedaço cortado, mas estava totalmente limpo, sem gordura. É que a carne aqui é muito cara e as pessoas não querem pagar o preço do kilo para levar gordura. Expliquei para ele que entendia sua boa vontade, mas precisava da gordura para temperar o churrasco, além disso, gostaria de uma peça um pouco maior. Ele me cortou um outro pedaço e me olhava com cara de espanto me perguntando se realmente eu queria levar com toda aquela gordura, que nem era tanta. Disse que sim, que não a comia, mas que nosso churrasco é temperado pela gordura da própria carne e sal grosso. Ele não se conformou e pediu para tirar só um pouquinho, daí pesou a carne mais limpa, me deu um desconto no peso e embalou a carne junto com o pedaço de gordura tirado. ¡Joder! 

Mas a verdade é que ele foi tão gentil e simpático, que achei mais fácil sorrir, agradecer e sair com a carne embrulhada com um pedaço inútil de gordura solta por cima. 

E o resultado? Huuuuummmmm… um belo churrascão caseiro!