Vou logo avisando que lá vem textão! Daqueles com direito a humor, suspense, raiva, mistério, amizade… tudo de direito!
Simplesmente, porque a pessoa aqui precisou vender um imóvel em outro país em plena quarentena. Mas vamos por partes, afinal toda saga merece ser contada em detalhes.
Nasci em 1969… Ok, menos detalhes! Vamos começar do ano passado.
Em 2019, nós compramos um apartamento pequeno em Madri, como investimento. Alugamos rápido, apenas duas semanas anunciado e, em princípio, tudo ótimo! Como já gerencio imóveis à distância, achei que não seria tão complicado administrar um apartamento em Madri desde Londres. Até bom ter alguma desculpa para ir pelas bandas espanholas de vez em quando. Um par de meses depois, começamos a ter problemas com o inquilino. Essa parte da história, vou abreviar porque é bem chata. O apartamento é mínimo, por contrato era para uma pessoa sozinha, ele colocou outra pessoa no apartamento para morar com ele sem nos informar, nos atrasava o pagamento com mil desculpas, logo parou de pagar, colocamos advogado, uma preocupação do cão porque é um bairro onde há algumas invasões… enfim, um perrengue total!
Com o primeiro comunicado legal que o inquilino deveria pagar ou sair, as negociações ficaram um pouco mais tensas, mas começamos a ver que ele deixaria o imóvel, provavelmente até maio, data que estava programado o julgamento final. De toda maneira, jogamos como policial bom e policial mau e Luiz manteve o contato civilizado com ele. Eu vinha de vez em quando bater um pouco.
No dia 02 de março, Luiz conseguiu convencê-lo a sair, devolvendo metade da fiança. Sim, uma merda você ainda devolver dinheiro a uma pessoa que está te devendo, mas a gente achou que valia para encerrar a preocupação. Nem sei como ele topou, acho até porque como moramos em Londres, ele deve ter pensado que não conseguiríamos negociar pessoalmente pegar as chaves e dar o dinheiro.
Acontece, que quem tem amigos tem tudo! E pedimos a um amigo nosso o IMENSO favor de ir até lá, pagar a ele, mas obviamente, só entregar o dinheiro com o inquilino uruca do lado de fora do imóvel e trocando a fechadura na mesma hora.
Foi muito tenso, mas deu certo!
No dia seguinte, Bianquita pegou o primeiro voo e estava em Madri para recuperar o apartamento, ver se tinha algum problema, passar a conta de luz para meu nome, limpar o imóvel e entregar as novas chaves para uma imobiliária tentar vendê-lo. E assim foi.
Dia 07 de março, voltei para Londres, naquele clima esquisito de COVID-19 começando… aeroportos meio vazios… sem encontrar álcool gel para comprar… tá faltando papel higiênico… mas o que está acontecendo?
Luiz resolveu que deveríamos começar uma quarentena voluntária, mesmo só eu tendo ido a Madri. Enfim, essa parte da história foi contada por aqui há alguns posts.
O que não contamos é que conseguimos tirar um inquilino complicadíssimo apenas uma semana antes de fechar as fronteiras e começar o confinamento espanhol. Uma semaninha depois e não teríamos conseguido tirá-lo de lá nem a fórceps! Inclusive, legalmente não poderíamos!
Ah, então nós ficamos tranquilos, né? Só que não. Porque, como comentei, é um bairro sujeito a algumas invasões e nessa situação, fica difícil controlar o que está acontecendo. E nós com o apartamento vazio não era exatamente tranquilizador. Vai que o ex-inquilino resolve voltar e invadir o imóvel?
Daí, já com o burburinho de que ia fechar tudo em Madri, o corretor ainda conseguiu mostrar o apartamento para vários potenciais compradores e não é que um deles se interessou de verdade? Ou seja, pelo meio de março, com tudo fechado, nós conseguimos vender o apartamento e receber um sinal simbólico. Contrato assinado à distância. Maravilha!
Veja bem, estou falando do meio de março. Nesse momento, a gente não tinha ideia da proporção que as coisas tomariam. Achávamos que íamos esperar umas semaninhas, talvez um mês e logo iríamos a Madri para assinar a escritura e receber o pagamento.
As semaninhas se transformaram em quase três meses e a água foi subindo. Não tínhamos mais certeza se o negócio seria fechado, todo mundo com medo do que vai acontecer economicamente, quem vai ter emprego, e se não vendesse agora sabe-se lá quando alguém resolveria comprar o apartamento. A gente com o apartamento preso e sem receber. E aí?
Pequeno detalhe, no próximo mês, faria um ano que compramos esse imóvel e a faixa de tributação muda! Além do que, estavam por aprovar uma série de medidas no edifício que aumentaria nossos custos e, se a gente votasse a favor dessas medidas, teríamos que arcar com a despesa, mesmo tendo vendido o imóvel. Assim, surreal! Ou seja, a gente tinha porque tinha que fechar o negócio até o final de maio. E ponto.
Conseguimos comprar as passagens e marcamos a escritura para o dia 27 de maio. Vamos de máscara! Vamos plastificados! Foda-se, vamos! O corretor conseguiu agendar tudo, beleza!
Dia seguinte, dá no noticiário espanhol que todo mundo que entrasse no país precisaria fazer quarentena de 14 dias. Como assim? A gente não pode ficar 14 dias em Madri. Cancela a passagem!
Então, Luiz buscou o consulado para tentar fazer uma procuração para um amigo nosso assinar a escritura. O próprio consulado indicou um notário espanhol que trabalha aqui em Londres. Tudo absolutamente legal, o cidadão faz isso há 20 anos, o procedimento é reconhecido pelo colégio de notários da Espanha, custou uma baba, o corretor manteve a escritura para dia 27 de março, foi um perrengue conseguir enviar tudo com antecedência e… vejam vocês… o notário da Espanha não quis aceitar a procuração.
Hein?
É, ele não QUIS.
E isso dele não querer pode? Não, não pode. Nós poderíamos entrar com uma demanda judicial, que levaria sabe-se lá quanto tempo para ser resolvida. Ele insistia que a procuração só seria válida com o carimbo do consulado e não o do ministério das relações exteriores, como constava. Balela, até porque o consulado estava fechado e foram eles próprios quem indicaram a solução para a gente!
Ah, mas o comprador poderia mudar de cartório? Claro que sim. Mas ele também não quis. Disse que era amigo pessoal desse notário desde criancinha e só confiava nele.
Em espanhol castizo: hay que joderse, no?
Meu palpite? Os dois combinaram. Acho até que o comprador queria fazer negócio, mas considerando que tudo em Madri estava fechado e ele não conseguiria alugar nem fazer nada, muito melhor que seguisse em meu nome. Claro, eu pagando todas as despesas e me responsabilizando por tudo e, ainda por cima, guardando o apartamento para ele, né?
Francamente, no meio a uma situação como estamos vivendo, com todo mundo tentando fazer o melhor, e um cidadão nos faz arriscar a vida, encarar dois aeroportos e dois voos, correr o risco de não conseguir voltar, gastar uma fortuna num período difícil… por capricho? Do fundo do meu coração, já perdoei, mas acho um tremendo de um mau karma. Não quero esse povo perto de mim nem em pensamento. Pronto, xô da minha cabeça!
Acontece queridos que o que eu acho ou deixo de achar vale 2 centavos. Como é que a gente fazia para resolver?
Luiz queria entrar novamente com o pedido de procuração via consulado. E aí, Bianquinha deu um ataque de piti!
Eles estão enrolando a gente! Até o consulado resolver essa bosta a gente já poderia viajar, é claro! É só mais despesa e mais tempo! Não aguento mais, vamos para Madri!
Mas e os 14 dias de quarentena?
Dane-se! O que eles vão fazer? Colocar um guarda do meu lado? Como eles vão controlar? Entrar, nós entramos, porque somos espanhóis. O problema é como vamos sair…
Ganesha, tá contigo! Abre nossos caminhos aê!
Bom, o voo anterior que havíamos marcado no dia 27 foi cancelado. Só dava para ir no domingo 24, os últimos dois lugares do voo, e voltar na segunda-feira 25. É assim ou não é! Pagamos um rim nas passagens, mas a essa altura…
Ligamos para o corretor na sexta-feira: es lo que hay! Te vira e marca para segunda-feira! Ele se virou! Aliás, um corretor de imóveis fora de série! Só tenho a agradecer! Daqueles que foi na parceria com a gente, fazendo de tudo para achar soluções.
Certo, então, porque era uma situação muito simples, um outro detalhe, onde é que a gente ia dormir no dia 24?
O lugar onde costumo ficar, fechado! Buscamos alguns outros… fechados também! Luiz achou um bastante caro. E o problema não era apenas ser caro, me dava medo de no hotel poderem controlar o raio da quarentena e sermos forçados a ficar 14 dias! Imagina?
Sim, temos trocentos amigos em Madri, mas cadê a coragem de pedir para dormir na casa deles depois de passar por dois aeroportos e um avião? Porque, por mais que estivéssemos nos cuidando há 3 meses, a nossa exposição seria complicada.
Fui pensando nas pessoas e eliminando quem tinha filhos, quem tinha gente idosa em casa… lembrei de uma amiga solteira e escrevi para ela, completamente sem graça. Em seguida, me arrependi da mensagem e apaguei. Não vou deixá-la nessa saia justa, né? Só que ela viu, me perguntou como estavam as coisas e contei o que houve. Ela respondeu algo como, eu me acabo de medo, mas na rua vocês não ficam. Peraí que vou falar com o fulano (que é muito amigo dela, mas eu só conhecia de vista). Ele tem um apartamento que aluga para AirBnB e está vazio por motivos óbvios. Vou pedir para você ficar lá. Maravilha! Fechou, eu alugo o apartamento dele por uma noite. Ela achava que ele nem ia querer que eu pagasse. Tudo bem! Eu acharei alguma forma de retribuir a gentileza! O importante é que estava resolvido onde ficar e foi um alívio gigantesco!
Abrindo um parênteses, é fato público e notório que falo com deus e o mundo, trato completos desconhecidos como amigos de infância! Às vezes, Luiz se preocupa e fica no meu ouvido: cuidado, porque nem todo mundo é seu amigo… Pois é, por que contei essa história? Por que eventualmente me pergunto se não deveria ser menos espontânea e mais seletiva, é possível que realmente pudesse me preservar mais. Acontece que lembrei de uma coisa e comentei com Luiz, você lembra uma vez que estávamos no LiberArte e fiquei conversando com uma pessoa. Daí ele saiu, acho que para fumar e você me falou meio mal-humorado, quem é esse cara? Respondi, é amigo da nossa amiga, muito gente boa, estava me dando umas dicas de como alugar apartamento aqui em Madri. Luiz respondeu sua célebre frase, nem todo mundo é seu amigo…
Então, como a vida dá muitas voltas, esse “estranho” que eu estava conversando feliz da vida é o amigo da nossa amiga que nos cedou o apartamento para dormir. Assim que, ainda que nem todo mundo seja meu amigo… muitas vezes, eles são!
Tem gente mesquinha, tem gente aproveitadora, tem de tudo! Mas também há muita gente boa e disposta a ajudar! Assim que prefiro correr o risco de me ferrar algumas vezes e seguir sendo gentil, acreditar nas melhores intenções.
Mas seguimos o barco. Por mais que acreditasse que tudo ia dar certo. Vai que prendem a gente por 14 dias na Espanha? Nós temos 2 gatos em casa. De um dia para o outro não é grave, mas duas semanas!
Liguei para meu vizinho, também meio sem graça. Olha a gente não apresentou nenhum sintoma em 3 meses, estamos seguindo todas as recomendações, mas tem essa situação. Você pode cuidar dos gatos se acontecer alguma coisa? Ele também foi super gentil e me deixou tranquila que os felinos não ficariam desassistidos!
Luiz, o que podíamos fazer, está feito! Vamos na raça mesmo e nos virar para dar certo! Levamos na bagagem a escritura do apartamento de Madri, para garantir que tínhamos casa lá e conseguir entrar; assim como o contrato de aluguel do apartamento aqui de Londres, para conseguir voltar. E seja o que tiver que ser!
Ele preparou o arsenal de máscaras, luvas e álcool gel. Combinamos o que falaríamos caso a gente fosse parado na imigração, juntos ou separados. Agendei carro para nos levar. Enfim, estratégia toda montada!
Nosso voo saía às 19h20 de Londres, pousando às 22h30 em Madri. Saímos de casa com antecedência bem razoável, às 15h30. Porque não sabíamos como seriam os controles e esse era o único voo do dia. Não havia margem de erro!
Pontualmente, às 15h30 o carro chegou, um motorista muito simpático, ex-lutador de boxe. Um pouco atrapalhado com a máscara, acho que como todos nós. E sim, estávamos de máscaras, aquela super fodástica que não lembro o nome.
Dessa maneira começou nossa viagem.
No caminho, muitas sensações diferentes, que ainda estou absorvendo. Meus sentidos à flor da pela, minha atenção plena. Uma mistura de alegria, medo, esperança, nostalgia, aborrecimento, frustração, coragem, otimismo, raiva, emoção… tudo junto ao mesmo tempo. Definitivamente, nada me parecia normal, ainda que a maioria das pessoas agisse com estranha naturalidade, inclusive eu mesma! Talvez seja esse o tal novo normal.
Depois de quase três meses em casa, com algumas caminhadas pelo bairro e uma única saída em transporte público por absoluta necessidade, sair de carro e atravessar a cidade foi bizarro. Foi ruim e foi bom demais.
A quarentena em Londres está sendo mais branda que boa parte da Europa. A máscara não é obrigatória em lugares abertos, apenas dentro do transporte público e locais fechados.
Domingo fez um dia de primavera absolutamente lindo! A temperatura agradabilíssima! Dias assim em Londres são um luxo! A rua estava cheia de gente andando de bicicleta, praticando esportes e caminhando pelas calçadas. E nós passando de carro, protegidos por nossas máscaras. Foi tudo tão estranho…
Um lado meu condenava os transeuntes incautos, sem máscaras e sem medo. Outro lado meu morria de inveja. E outro lado ainda estava extremamente feliz de ver as pessoas corajosas e bem. Apostando na vida. Ou não deveriam pensar assim? Será que tem um preço?
Janelas abertas, vento no rosto, me sentindo um cachorro feliz passeando de carro. Outras vezes, completamente abafada pela máscara negra. Preocupada com o que ainda encararíamos, tentando nos visualizar no dia seguinte, aliviados, com tudo resolvido, e em casa.
Curiosamente, tanto tempo na expectativa para sair e agora que estava fora, tudo que queria era conseguir voltar para casa bem e em segurança com Luiz. Logo eu, que me sinto tão valente!
Tudo muito bom, tudo muito bem, perdida em meus pensamentos… praticamente chegando ao aeroporto, que é longe pacas da nossa casa, Luiz quica no banco, caramba, esqueci minha carteira! Precisamos voltar!
…
Oi? Como assim?
Exatamente, meu caríssimo marido esqueceu seus documentos em casa! Sem eles, não assinaríamos a malfadada escritura.
TAQUEOPARIULÁLONGEDOCARAMBA! Isso não pode estar acontecendo!
Mas estava. Tivemos que voltar o caminho inteiro e ir novamente para o aeroporto. Pelas nossas contas, daria tempo, mas seria literalmente em cima da hora e não podia acontecer mais absolutamente nada de errado!
Então, você xingou, reclamou, brigou? Não, não abri minha boca! Por que iria piorar uma situação como essa? Quem faz isso por querer? Ainda bem que não fui eu ou estaria cortando meus pulsos! Quer saber, vou mentalizar meus mantras! Ai, meus deuses, lá vou eu torrar o saco do Ganesha para abrir os caminhos! Lembrar meus exercícios de meditação… fazer os mudras de Yoga que aprendi… respirar quadrado… o que estivesse ao meu alcance! Sei lá o que funciona ou não funciona, só queria tirar os pensamentos ruins da minha cabeça para não surtar. E funcionou.
Do caminho, Luiz ligou para nosso vizinho e pediu para ele checar se a carteira estava em casa. Após um suspense danado, estava embaixo de um caderno! Sério? O vizinho deixou em um lugar fácil, bem na entrada de casa.
Chegamos no edifício, saímos os dois correndo, com o plano de um ficar segurando o elevador! Naquele esquema, qualquer segundo conta! O elevador chega no nosso andar e… enguiça! A porta não abre! Nossos celulares no carro, e nem adiantava berrar porque está todo mundo dentro de casa.
Luiz tentando abrir a porta na marra, eu apertando botões de emergência. De repente, a porta tornou a fechar, subiu mais um andar e… abriu!
Voamos para fora do elevador, conseguimos pegar a carteira e descemos os cinco andares de escada correndo!
O motorista fez o que dava para fazer, nervoso tentando ajudar, um perrengue só!
Fechei meus olhos, respirei fundo, fui meditando e mentalizando o mantra, om gam ganapataye namah… Ganesha é o removedor dos obstáculos e aquele que abre os caminhos para nossa evolução. Normalmente, se canta para ele antes de qualquer ritual, cerimônia ou trabalho, para que sejamos bem sucedidos.
Tomei uma decisão: eu vou assinar esse documento amanhã e pronto! Ou sim, ou sim! Vou nadando, mas vou! Pensei inclusive no plano B, alugar um carro no aeroporto e tentar atravessar o Eurotunnel!
Mas não foi necessário, chegamos em um horário que acreditávamos ser possível embarcar. No limite, mas paciência, o aeroporto estaria vazio, certo? E havíamos feito o check in em casa.
A partir daí, entramos em um filme de ficção científica. O aeroporto de Heathrow completamente vazio! Corremos para passar nos controles de segurança. Havia uma única loja aberta, que vende coisas de farmácia, água e sanduíches. Como chegaríamos super tarde em Madri e não haveria nada aberto, Luiz foi comprar alguma coisa para comer e eu fui verificar no painel o nosso portão.
O placar eletrônico meio apagado, exceto por uns quatro ou cinco voos marcado. Nenhum deles para Madri. Gelei! Caraca, essa porcaria foi cancelada!
Mas não foi, eu é que não tinha enxergado bem, em outro espaço acima, estava o portão, é que já iria começar o embarque.
Chegamos no portão de embarque cerca de 32 segundos antes de anunciarem a abertura das portas. Acredite se quiser, fomos os primeiros a entrar. Porque foi o tempo de chegar correndo na frente para ler se estávamos no lugar certo e abriram o embarque!
Apesar do sufoco, quero acreditar que talvez tenha sido para nosso bem. Uma das minhas preocupações era ficar ali no grupo, exposta esperando por horas no aeroporto. E isso não foi necessário.
Verdade que o elevador em casa enguiçar foi sacanagem, né? Mas ok, sou uma nova criatura que agradece (quase) tudo agora! A gratidão traz boas vibrações!
Respira aí, que ainda não acabou, falei que era uma saga…
No avião, absolutamente to-dos de máscara! Nos enviaram uma mensagem anteriormente por email avisando que quem não estivesse de máscara não embarcaria. O que concordo em gênero, número e grau.
É claro que teve um único engraçadinho que tentou burlar a regra e ainda se fez de machão. Quase perdeu o voo, tomou uma chamada do lado de fora e usou uma máscara cedida por outra passageira. Fala sério! Não teve apoio de ninguém.
Levei uns lencinhos para desinfetar meu banco, os lugares para o braço, cinto, bandeja… enfim, saí limpando sem a menor cerimônia! Fiz igualzinho à indiana que pegou o voo comigo vindo de Madri havia quase três meses. Naquele momento, achei tão engraçado. Paguei com a língua e repeti o gesto! Devo dizer que ineditamente os aviões estão terminando seus voos mais limpos do que antes da viagem!
Decolamos no horário! Pensei, ufa, mais uma etapa importante vencida! Valeu, Ganesha!
A comissária anunciou que iria passar um formulário a ser preenchido para ser entregue às autoridades de segurança sanitárias espanholas em solo, em função da tal quarentena de 14 dias.
Caraca! Lá vem! Luiz preencheu tudo e ficamos naquela expectativa de como seria.
Participo de uma vigília de mantras diariamente, dessa vez, o foco nem é para mim, é para quem esteja necessitando. Bom, até pode ser para mim, de vez em quando, mas normalmente no meu caso é mais uma doação de energia que o contrário. Não tinha como me conectar por internet, como fazemos de costume, mas paciência, me conectei sozinha mesmo e mentalizei os mantras usuais. Dessa vez, incluindo todas as pessoas que estavam nos ajudando a passar por esse desafio. Foi o tempo de terminar e abrir os olhos, o avião anunciou a aterrissagem.
Passamos pelo controle de passaportes. Beleza! Não era ali que entregaríamos o tal formulário. Eu me acabando de medo de carimbarem alguma data de chegada no passaporte, mas nada!
Fomos andando o mais rápido possível, porque fiquei imaginando o tamanho da fila, com distância de 2 metros entre si, para entregar aquela papelada toda. O voo foi lotado.
Muito bem, a fila ficou realmente gigante, mas estávamos bem na frente, então foi rápido. Primeiro vem alguém com aquela roupa de astronauta e mede sua temperatura com um aparelho que nem te toca. Daí você fala com outro agente que recebe seu formulário e te passa instruções que você precisa medir sua temperatura duas vezes ao dia e anotar. Caso sentir qualquer sintoma, procurar as autoridades imediatamente.
Perfeitamente, moço, deixa com a gente! Ele não falou em que país deveríamos fazer isso, certo?
Entramos! Pensei, maravilha, assinatura garantida! Passo importantíssimo! Gratidão!
Corre para pegar um taxi! Dali, catei o celular avisei ao nosso novo amigo do apartamento que estávamos a caminho. Ele mora no apartamento de baixo e o de cima ele aluga como AirBnB. Contei lá atrás no post, lembra? Então, precisávamos pegar a chave com ele. As mensagens, quem lia para mim era Luiz, porque a cerejinha do bolo é que esqueci de colocar as lentes de contato antes de viajar e nem estava enxergando nada direito! Já quase na rua dele, faltando uns 400 metros para chegar, nosso taxi fica detido, porque havia um carro da polícia parado na frente, bloqueando a rua. Alguns policiais dando uma dura tremenda em um indivíduo! Aquilo ia longe!
Quer saber, estamos próximos do apartamento, resolvemos saltar e fazer o resto do trajeto a pé… na su-bi-da! Sério, para coroar o final da viagem, né? Chegamos suados, com cara de meio mortos, mas chegamos!
Nosso novo amigo e dono do apartamento nos recebeu com um sorriso. Na verdade, se recusou a receber qualquer pagamento, nem para limpeza! Imagina, um prazer ajudar, vocês ficam aqui! Sério, nem tenho palavras! O apartamento uma graça, estava tudo lindo, ele ainda teve a gentileza de deixar comida para o café da manhã, vinho e cerveja! Naquele esquema, relaxa que vocês já tem muita preocupação para resolver. Juro, fiquei emocionada. Não é pelo valor, é pelo carinho e pelo aconchego em um momento de estresse total, e vindo de uma pessoa que mal nos conhecia! Veio como um fôlego, pensei, daqui para frente, tudo só pode dar certo!
No avião, tive uma ideia para retribuir a gentileza. Nosso restaurante favorito em Madri é o El Fogón de Trifón e o Trifón, dono do restaurante, se tornou nosso amigo pessoal. Nessa fase de confinamento, os restaurantes sofreram muito sem trabalhar. Há pouco tempo, ele resolveu fazer entrega a domicílio, coisa que seu restaurante não fazia antes. A gente queria muito prestigiá-lo e senti por ir a Madri nessa correria e não ser possível encaixar uma refeição na nossa agenda. Então, veio a ideia de oferecer um jantar entregue ao dono do apartamento que ficamos. Se a gente não consegue desfrutar, que alguém legal desfrute!
Bom, seria impossível ter uma ótima noite de sono, concordam? Dentro das possibilidades, foi boa sim, mas acordando bastante durante à noite, com medo de perder a hora. A escritura estava marcada para às 11h. Dalí iríamos para o banco, depositar o cheque, passar na companhia de luz para cancelar e seguir direto para o aeroporto. Nosso voo era às 17h e não queríamos chegar depois de 15h em Barajas.
Chegamos cedo ao cartório e eu exercitando toda a minha capacidade de perdoar e tentar não estar de má vontade com o comprador nem com o notário que nos fizeram enfrentar toda essa confusão absolutamente à toa! O importante era resolver.
Confesso que até me surpreendi comigo mesma, porque meu bom humor durante o processo não foi nenhum esforço. Eles não me incomodaram.
Todo mundo de máscara! O notário, de máscara e viseira de proteção. Na mesa havia separações em acrílico, parecia um local de visitas de presídio. Estranho, mas a essa altura, estou achando tudo normal!

E foi tudo certo! Documento assinado e cheque administrativo entregue em nossas mãos. Negócio fechado!
Comentamos que de lá iríamos ao banco, depois à companhia de luz e aeroporto. O corretor pediu que não desligássemos a luz ou seria muito mais complicado religar. Ele mesmo se comprometeu a fazer a transferência de titularidade para a gente. Perfeito! Menos um trabalho e ganhamos tempo!
Aliás, devo confessar que normalmente tenho má vontade com corretor. Acho sempre um valor de comissão exagerado, costumam me encher o saco e muitos deles chegam inclusive a atrapalhar o negócio. Pois paguei com minha língua outra vez! Nesse caso, o trabalho deles valeu cada centavo! Conseguiram um comprador em plena quarentena, no preço que me interessava, deram a maior assistência para gerenciar esse conflito para a assinatura da escritura, me orientaram com a documentação e, ainda por cima, eram legais! Portanto, faço aqui minha propaganda, a imobiliária foi a Tecnocasa.
Bom, fomos direto para o banco depositar o valor. Não sabíamos bem como estariam funcionando, mas foi tranquilo também. Só podíamos entrar de máscaras e luvas. Eles tinham luvas descartáveis para oferecer, mas nós levamos as nossas. Funcionários simpáticos. Nenhum problema!
Na verdade, toda interação que tivemos, com funcionários do banco, motoristas de taxi… qualquer pessoa, foi bacana. Acho que estavam todos carentes de se relacionar socialmente, todos queriam falar qualquer coisa. E sempre com muita gentileza. Lógico que a questão financeira pesa também, mas senti uma vontade genuína da parte deles em se comunicar.
Esqueci de contar outro detalhe, dia 25 de maio foi o primeiro dia da flexibilização da quarentena espanhola, quando parte do comércio pôde abrir, dentro dos protocolos de segurança. Os bares e restaurantes ganharam o direito a abrir suas terrazas, ou seja suas mesas externas, mantendo certa distância entre essas mesas. Ou seja, ainda por cima, tivemos a sorte de estar presentes em um momento tão especial na cidade!
Para quem não conhece Madri, é preciso entender que eles possuem uma cultura callejera muito grande. O povo gosta de passear na rua! Seja para encontrar amigos, para sentar nos bares ou simplesmente andar nas calçadas. É verdade que ninguém no mundo gosta de ficar preso, mas garanto que para um madrileño castizo, é a morte lenta e dolorosa.
Então, imagina um dia lindo e ensolarado de primavera quase verão, quando finalmente o comércio pode começar a abrir e as pessoas, que estavam presas há quase 3 meses, são liberadas para estar na rua! De máscaras, lógico, não importa, porque essa liberdade condicional passou a significar muita coisa!
Havia um clima de otimismo bonito, aquela sensação de haver uma luz no fim do túnel. De saber que o número de pessoas morrendo ou sofrendo diminui a cada dia. A consciência de que dias melhores virão e que, quem sabe, talvez o pior já tenha passado.
Saímos do banco aliviados. Sabíamos que não havia acabado, a volta seria outro desafio. Mas foda-se, na vida não há nada garantido e acho que depois de tudo que havíamos passado, merecíamos um momento de celebração.
E modéstia às favas, tenho essa habilidade de no olho do furacão pedir altas! No esquema: ô problema, espera aí um minutinho que já volto para te resolver! Agora estou ocupada sendo feliz um instantinho!
Checamos a hora, tínhamos algum tempo. Buscamos em volta alguma terraza aberta para comer alguma coisa e desfrutar da rua. Encontramos quase em frente ao banco, um bar de champagne, imagina isso? O que poderia ser mais perfeito para celebrar?
Preciso dizer o que foi que pedimos para tomar? A garçonete numa felicidade contagiante! Mesmo de máscara, podíamos notar seu sorriso largo! Nos disse que era a primeira garrafa de champagne que abriam no bar nos últimos três meses! Celebramos todos o som da rolha, inclusive as mesas ao lado. Da outra ponta, alguma desconhecida me fez um aceno de aprovação e retribuí!

Não sei exatamente quanto tempo ficamos e não acho que era importante, mas aquela sensação que o relógio parou. Ao fundo aquele som de burburinho gostoso, como só em Madri e que me faz sentir tão em casa. Eu nem sabia que tinha saudades nesse nível de detalhes.
Mas nossa saga ainda não havia acabado. Precisávamos voltar para casa. Pés no chão novamente, bora lá!
Pegamos um taxi para o aeroporto, dessa vez chegamos sem afobação. Novamente, entramos em um filme de ficção científica. Nunca vi, nem quero ver outra vez Barajas vazio e triste assim.
Rolou algum suspense, claro, mas não tivemos problemas. Na verdade, a volta foi bem mais fácil. Tem sempre aquele momento tenso de olharem seu passaporte, checarem no sistema e você ficar esperando alguém te perguntar, ué mas você não chegou ontem? Só que isso não aconteceu. Entramos direto, embarcamos e o voo dessa vez estava vazio.
No aeroporto em Londres, por coincidência, o mesmo motorista que havia nos levado foi nos buscar. Bom que assim descobriu que havíamos conseguido chegar a tempo.
Dessa vez, era uma segunda-feira e as ruas estavam bem desertas. Passar pelo centro da cidade e quase não ver ninguém, onde normalmente você nem consegue enxergar a calçada, foi totalmente surreal. Dá um aperto no coração.
Na praça de Trafalgar, um carro blindado dando proteção à distribuição de alimentos. Uma fila longa para recebê-los, com distanciamento entre as pessoas.
Vim lembrando de mim mesma passando por aquelas ruas lotadas em outras ocasiões e nem sei dizer bem o que sentia, não era exatamente saudade, talvez um tipo de nostalgia. Tudo tão igual e tão diferente.
Chegamos em casa, sãos e salvos! Meus gatos bem, sem ideia do tamanho do caminho que havíamos percorrido do lado de fora. Quantas coisas podem acontecer em 24h?
Tomei meu banho, fui dormir completamente exausta! Acordei no dia seguinte mais velha e mais consciente de tudo que passamos e teremos que passar. Não sei o que vai acontecer, ninguém sabe. Sei que não tem volta.
Mas sei o que vi e senti, para o bem e para o mal, e hoje vou escolher o bem. Hoje decido pela esperança em dias melhores e ensolarados, de vento na nuca, som de copos brindando, ruído de gente ao fundo rindo, de estranhos contando suas vidas e da possibilidade de perceber sorrisos atrás das máscaras.
É bom saber que a vida encontra seu curso e que, muitas vezes, verdadeiras sagas acabam bem. Deu tudo certo!
Fim.

Bianca, minha amiga, que loucura mas… que aventura!!!! Você falando de mantra e Ganesha é muito bom 😀 Ganesha na parada encaminha tudo!!! rsrsrs Pude até sentir as borbulhas do champagne e o prazer que vocês experimentaram nesse momento 🙂 Que maravilha que tudo se resolveu. Agora toca voltar em outra circunstância, e que seja breve 😀 Beijos pra vocês!
p.s. já resolvi a configuração por aqui….kkkk
Oi, Katia! Resolveu a configuração com Ganesha também? rsrsrsrsrs… E sim, tudo resolvido e na casita! Beijão
Uau Bi… como conversamos só se pode dizer que algo está resolvido quando se encerra. E que desfecho… Parece um filme de suspense.
Depois do elevador o leitor tem praticamente certeza que essa estória não vai ter um final feliz. Mas como perrengues sempre acompanham a tua vida parece que tudo aconteceu de certa forma dentro do esperado. Vocês sempre encaram as batalhas de frente e merecem ao fim vencer os desafios. Parece joguinho de computador… “você ganhou x vidas e pode passar para o próximo nível.”
Agora só faltam os 14 dias de quarentena medindo a temperatura 2 vezes por dia “em Londres” 😁💕💋🥂