Descarrego

Dia 12 de maio de muitos anos atrás, era um domingo, dia das mães. No sábado, estávamos todos em casa, incluindo minha avó por parte de mãe, conversando sobre o almoço do dia seguinte e surgiu o assunto que era uma pena que não estivessem as duas avós, para esse momento. Ninguém falou, mas as duas estavam doentes e é lógico que era impossível não pensar que talvez pudesse ser o último dia das mães com ambas.

Pois me candidatei, posso buscá-la, se ela quiser. Morávamos no Rio, e ela estava em sua casa, em Cabo Frio. Na época da estrada antiga, umas duas horas e meia de carro, que não sei por que raios parecia uma distância enorme para todos.

E assim foi, no domingo pela manhã acordei bem cedo e fiz um bate-volta com minha avó por parte de pai e minha tia, que estava junto em Cabo Frio. Minha avó fez todo o trajeto de olhos fechados e com uma expressão dolorida, mas sem se queixar. Viemos as três mulheres praticamente em silêncio até o Rio e chegamos para o almoço de dia das mães.

Na mesa, como não podia deixar de ser, o clima mudou, ninguém parecia triste, aborrecido ou doente. Foi um almoço de família absolutamente normal, ou pelo menos, é assim que me lembro dele.

Não me lembro o que foi dado de presente para minha avó por parte de mãe, mas para minha avó por parte de pai foi dado um relógio de pulso. Lembro de ter passado na minha cabeça que precisava de um relógio também e por que dar um relógio para alguém que já não se importava mais com que horas era? Depois me pareceu um pensamento absurdo, me senti até um pouco culpada, essas bobagens que a gente pensa sem querer muito.

Lembro dela sentada no sofá com as pernas esticadas, virou-se para mim e me chamou para agradecer o presente. A maneira que ela me olhou me paralizou, fiquei imóvel por alguns segundos olhando para ela, com as pessoas praticamente me empurrando, vai lá, ela quer te dar um abraço para agradecer. Mas nós duas sabíamos que não era isso, foi nossa despedida. Durante essa madrugada ela faleceu.

Oficialmente, dia 13 de maio. Mas na minha cabeça, sempre me vem o 12 primeiro, pois foi quando nos despedimos. Então, na noite de 12 para 13 acendo uma vela, faço minha oração de ateísta, afinal ela não era e eu tenho sua voz na minha memória rezando a Ave Maria, e vou dormir enquanto a vela se gasta naturalmente e se apaga pela madrugada.

Minha outra avó, por parte de mãe, faleceu no mesmo ano. E é difícil falar de uma sem falar da outra, deve ser parecido ao sentimento de mãe, que não quer que um filho se sinta enciumado ou menos considerado. Mas a verdade é que na minha memória, elas sempre aparecem juntas.

Em uma noite, não me lembro que dia de outubro, minha mãe e eu começamos a conversar porque estávamos meio agoniadas em relação a minha avó, esses pressentimentos estranhos. Minha mãe nunca suportou dirigir e não queria ir sozinha. Outra vez, me candidatei, mas eu dirijo! Claro que vou!

No mesmo dia em que chegamos, durante a madrugada, ela passou mal e fomos levá-la ao hospital, de onde já não deixaram que ela saísse. No dia seguinte, à tarde, ela também me olhou do jeito que eu conhecia e havia visto naquele mesmo ano. Da nossa maneira, também nos despedimos. Mais tarde ela entrou em coma. Dessa vez, não pude trazê-la no carro, mas fui atrás da ambulância até o Rio, onde ela faleceu não muito depois de chegar, no dia 9 de outubro.

Fiquei com essa impressão de ter ido buscar as duas para morrerem em paz no Rio. O que de uma maneira estranha, me fez muito bem. É lógico que senti muito, mas fui uma privilegiada em poder me despedir das duas de maneira digna, como elas mereceram. Elas se foram com a consciência que não estavam sozinhas ou desatendidas.

Por isso, não conto como histórias tristes, mas como parte da vida. Não quero esquecer, porque me ajuda com a saudade.

As duas eram espíritas, de alguma maneira mais ou menos declarada. Bom, na verdade, eram espíritas também, sempre foi uma coisa meio misturada com outras religiões.

Uma das minhas avós chegou a ter um congá dentro de casa, meio escondido no quarto de empregada. Porque afinal de contas, ninguém no Brasil gosta de se assumir macumbeiro. Mas todo mundo conhece alguma coisa e no fim de ano vão pular 7 ondas vestidos de branco. Enfim, nem posso dizer que ela era realmente macumbeira, porque também frequentava assiduamente a igreja Batista, entre outras igrejas que ela ia conhecendo no caminho. Falou para ela que era de Deus e do bem, estava valendo!

Em uma época que meu irmão ficou bem doente, aparecia gente de todas as religiões que se pode imaginar para rezar para ele lá em casa. Nem sei de onde eles vinham, não cobravam, não exigiam nada, rezavam. O mais assíduo era um espírita kardecista e até hoje meu irmão tem um quadro do Doutor Bezerra de Menezes, que era um tipo de guia espiritual do tratamento dele. O fato é que ele foi curado, muito provavelmente pela medicina, mas como não vamos dizer que não ajudou o amor, as boas energias, as orações… Então, por que não distribuir o mérito com quem no mínimo quis ajudar?

Cresci nesse ambiente de fé democrática, digamos assim. Nunca fui obrigada a seguir ou acreditar em nada e nunca me ofendeu aceitar e conviver com crenças que não tinha. Acreditando ou não, cresci entre histórias de espíritos, batendo a cabeça no congá, colégio católico, santos, orixás, premonições, intuições, números, novenas, simpatias… tudo junto! E porque não era obrigada, aceitava sem precisar concordar ou julgar. Fantasmas e demônios não me assustam. Não sei se eles existem, mas se existirem, também serão parte da vida.

Não vamos confundir as coisas, sou ateísta, continuo sendo. Ou simplesmente, não preciso de uma explicação única e racional para tudo. Mas algo importantíssimo aprendi, rituais são fundamentais! Qualquer ritual, desde que seja feito com respeito. As energias positivas ou negativas que você empenha fazem toda a diferença do mundo.

E vindo dessa mistureba, pode acreditar, sou craque em rituais e símbolos!

Muito bem, assim que soubemos que nossos passaportes e DNIs espanhóis seriam entregues no dia 12 de maio, fiquei confiante. Se fosse 12 de outro mês, não ia gostar pelo número, mas de maio sim. Afinal, tinha uma bruxa me protegendo.

Precisava de um ritual, lógico! Uma festa-ritual, pronto! E que dia? No próprio 12 era quinta-feira, complicado. Na sexta-feira 13, parecia ideal, se fosse em outra sexta-feira 13, provavelmente, mas justo no dia da morte da minha avó, ainda que me parecesse homenagem, alguém poderia se ofender. Depois alguns amigos também não podiam na sexta, beleza, sinal que tem que ser no sábado, dia 14 de maio. Fechado!

Há muito tempo precisamos selecionar a dedo quem chamar, porque não cabe em casa. Mas dessa vez, por tudo que nos custou estar onde estamos, tudo que não queria era seguir o lema “não cabemos todos”! (Nas eleições passadas, essa frase foi bastante usada pelo Rajoy, do PP, contra os imigrantes na Espanha – ¡No cabemos todos!) Daí, pensei em fazer em turnos, começando às 16 horas e seguindo até o último convidado que aguentasse!

O tema foi “Festa do Descarrego”, vamos combinar, quem não precisa dar uma descarregada de vez em quando, né? Pedimos que, se possível, as pessoas viessem de branco para entrar na brincadeira.

E claro, independente de raça, cor ou religião, todo mundo entrou na brincadeira!

 

Uma amiga conseguiu me trazer um pé de arruda (uma saga para conseguí-lo!), e duas me trouxeram pés de espada-de-são-jorge, muito legal!

Na entrada, onde já ficou um dos arranjos de espada-de-são-jorge, os convidados eram recebidos com um passe de arruda, água e sal grosso. Quem quis, colocou um raminho de arruda atrás da orelha e aviso que um monte de gente quis.

Os convidados trouxeram as bebidas e fiz as comidinhas, coisas de botequim: caldo de feijão, sanduíche de pernil, bolinho de bacalhoada, quibe, empanada de carne, ovos de codorna, ovos coloridos, salpicão de frutos do mar, salada de frango, queijos diversos, patês, batatinhas, frutos secos, azeitonas.

No centro da mesa, um arranjo com sal grosso em formato de estrela de 6 pontas, 7 velas, 1 defumador, alho, água limpa e pedra marroquina para atrair boas energias. Ao lado, um vaso de sal grosso, 1 pé de arruda e outro pé de espada-de-são-jorge. Era nosso canto para o descarrego. Quem quisesse, anotava em um papel amarelo o que quisesse mandar embora e queimava ali mesmo! Está pensando que alguém teve medo ou vergonha? Nada! Pois foram 2 bloquinhos inteiros descarregados!

 

Depois, no corredor, foram coladas no chão 7 fitas azuis. Usávamos nossa imaginação que eram as 7 ondas da praia que a gente quisesse, fazíamos um pedido do que queríamos que acontecesse e pulávamos as 7 ondas!

Pronto, todo mal havia ido embora e havia a esperança de melhorar!

E sabe aquela história dos turnos? Pois é, só funcionou para definir uma hora de chegada, porque ninguém queria ir embora, o que pessoalmente interpretei como um elogio, sinal que estavam gostando, certo? Só foi mesmo quem tinha crianças ou precisava trabalhar, o resto seguiu animadamente no descarrego. Não tenho certeza de quantas pessoas apareceram, mas em ordem de grandeza, contando com as crianças, acho que umas 70! Outro número muito bom! Infelizmente, acho difícil que a gente consiga dar outra festa desse tamanho, não nesse apartamento, mas adorei que essa tenha dado certo.

Mais ou menos pelas 3 e alguma coisa da manhã, depois de umas onze horas de festa, os últimos convidados se foram. Alguns foram descendo o lixo, outros nos ajudaram a arrumar a casa, uma amiga ficou para dormir e também nos ajudou com a limpeza, de maneira que pelas 4 e alguma coisa fomos dormir com a casa limpinha e razoavelmente bem arrumada.

Minha vida não é perfeita e nunca será, acho que a de ninguém é. Mas vou contar uma coisinha, entre nós, só queimei um ou outro papelzinho para dar o exemplo e mostrar como fazia, mas foi até difícil me lembrar do que queria reclamar. Fiz um único pedido às 7 ondas. E se algum dia fizer outro ritual parecido, acho que nos faltou um terceiro espaço, o de agradecer. Provavelmente, seria onde mais me concentraria. Agradeço vir da família que vim e ter as experiências que tive, agradeço pelo meu amor, agradeço pelos meus amigos, agradeço por quem está a minha volta e agradeço por poder compartilhar esses momentos.

18 comentários em “Descarrego”

  1. Ai, Patrícia, que máximo! Parabéns, você também vai nascer de novo! 😀 Boa sorte amanhã, é rapidinho, mas vale o ritual! Besitos

  2. Afee chica, ja chorei , ja ri, ja recordei, tudo isso aqui no seu maravilhoso texto. Realmente a gente queimou, pediu e voce disse tudo, na proxima temos que ter o canto dos agradecimentos porque afinal temos muito , muito mesmo o que agradecer.
    Foi uma delicia como sempre!

    Beijos mil

  3. Querida prima.
    Desde sempre quis aquele colarzinho de rubi que a vó Vivi usava e era a única coisa dela que eu queria pq estava sempre no pescoço dela, agarrado nela. Na última vez que a vi ela insistiu que eu o colocasse e ficasse com ele. Insistiu muito. Até eu colocá-lo. Claro que ela sabia que era nosso último encontro. Físico, né. Porque no coração nos encontramos todos os dias. Mas é DIFÍCIL…
    Já chorei horrores com o seu texto.
    Agora vou ter de sair e minha cara tá de palhaça com nariz mais vermelho do que pimenta!!!!
    Parabéns por escrever por nós e para nós. Sinta aí meu abraço bem apertado e um beijinho especial no seu coração.
    Saudade demais,
    Bettina

  4. Que maravilha de festa 🙂
    Uma das coisas que mais amo no nosso Brasil é essa mistureba de religioes. Minha mae é espìrita, tem um congazinho em casa e vira-mexe està na igreja acendendo vela pra um, rezando pra outro. Sinto falta dessa diversidade aqui na Itàlia (como bem imaginas, o tema religiao aqui pertence a um monopòlio).
    Independentemente de ser fiel ou nao à uma religiao, é sempre muito bom dar uma descarregadinha de vez em qdo, queimar as coisas ruins, manter o pensamento positivo sempre e, sobretudo, agradecer por aquilo que temos.
    Saravà! 😉

  5. Adorei o texto, emocionante.

    Com todo mundo queimando as coisas negativas e desejando coisas boas, a energia que rolava era do bem e ninguém queria ir embora mesmo.

    Acho que vc foi modesta na sua contagem Bibi.. eu diria umas 100.

    Nao teve o cantinho do agradecimento, concordo que ficou faltando e o primeiro que pediria, seria por você e pelo Luis, tamanha generosidade e carinho, naquele momento e em tantos outros nessa nossa jornada madrileña. Saude, luz e felicidade. Lindos!

    Detalhe, Bianca nao parou e sempre é assim quando tem algo na casa dela. Dessa vez, recebia as pessoas dando passe, explicava com paciência qual era o processo do ritual, daqui a pouco, ja estava no batuque, depois na cozinha feito uma bruxinha preparando poçoes, (pratos maravilhoso), cinco minutos depois estava dançando e assim foi a noite toda.

    OBRIGADA!!!!

  6. Só posso dizer que obrigada.- Agradeço ter podido participar dessa festa!!! Relato simplesmente maravilhoso. Super beijo!

  7. Nós vivemos aqueles momentos que para mim foram muito tristes e o ano foi 1991.
    Bjs

  8. Nossa Bi, que bacana. Amei todo o texto, de arrepiar . Minha avó materna morreu no hospital, junto comigo, segurando minha mão, impossivel não lembrar.

    Bjus!

  9. Bi, excelente texto e comovente. A festa foi tudo de bom, com essa energia positiva q acompanha você e Luiz sempre!
    Tudo feito no maior cuidado e com muito carinho para os amigos. Nao pude deixar de identificar algumas coincidencias em certas passagens das nossas vidas, o que me fez voltar no tempo mais de 30 anos. Essa despedidas sem palavras nos colocam pra pensar…
    Com certeza da proxima vez precisamos de um cantinho do agradecimento. Se pararmos pra pensar, temos sempre mais para agradecer do que pedir!
    Beijo grande e obrigada pela linda festa 🙂

  10. Que relato lindo, Bibis!! Simplesmente lindo!
    E OBRIGADA mais uma vez, é sempre muito bom estar na sua casa:)

  11. MUITO QUERIDA BIANCA. ACABO DE LER E REVIVER NOSSA LEMBRANCA MAIS INTIMA E EMOCIONANTE,BOM SABER QUE TAMBEM PARA VOCE ESTA ESPERIENCIA TE FEZ ENTENDER QUE AS DESPEDIDAS SAO ABRACOS DE ALMAS QUE SE AMAMPELA ETERNIDADE,E VEM ATERRA VIVER NOVAS ESPERIENCIAS.NAO SE PREOCUPE EM FAZER UMA FESTA PARA AGRADECER,POIS O MELHOR AGRADECIMENTO ESTA EM VIVER COM AMOR ONOSSO DIA A DIA.MIL BEIJOS DASUA UNICA TIA.

  12. Oi Bianca

    Estou escrevendo neste email conectado ai é da Luciana!
    Mas que festinha boa, eu tô precisando com urgencia de uma dessa, hahahaha.
    Se soubesse com antecedencia teria enviado por email vários papeis para queimar.
    Mas realmente de agradecimentos a gente as vezes esquece de fazer.
    Tai mais um motivo pra outra festinha.

    Beijos

    Marianne

  13. Acho que cada pessoa tem sua própria história (ou versão da mesma história) e suas lembranças. Assim que desejo a vocês boas lembranças de gente querida e esperança que as coisas tendam a melhorar. Muito obrigada a todos! 🙂

  14. Ola
    Bianca
    que
    texto
    feliz
    a
    emoçao
    foi
    grande
    em
    vivenciar
    atraves
    das
    suas
    palavras
    esse
    momento
    da
    despedida
    tia
    Vivi
    Obrigada
    Beijos
    MarciaeInea

  15. Êeee, Bianquinha, só li a crônica hoje, que legal, amei.
    É a vida, é bonita e é bonitaaaa, né?
    A tu festa do descarrego foi demais, muito obrigada por me haver convidado 🙂
    Um beijo gordo! Klara.

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