98 – Tietagem

Estava eu escrevendo, como quase todos os dias, toca o telefone. Era Luiz dizendo que um amigo do trabalho havia chamado para a pré-estréia de um filme, cuja a protagonista era uma amiga dele e da esposa. E aí? É hoje mesmo, topa?

 

Para falar a verdade, estava com um pouco de preguiça, mas é muito difícil eu recusar um convite e, ainda mais, porque parecia interessante. Conheço outras atrizes de teatro, mas assim de cinema, protagonista do filme em questão, seria a primeira vez.

 

Tudo bem que era um filme argentino, mas quer saber, nesse ponto já joguei a tolha. Paguei com minha língua e tenho ótimos amigos argentinos aqui em Madri. Nunca pensei que pudesse dizer isso, mas paciência, não só dito como registrado.

 

E lá fomos nós para o evento. Não tinha grandes expectativas e fiquei surpresa ao chegar em um cinema adaptado a um antigo teatro, lindíssimo, em plena Gran Vía. Na frente, jornalistas, fotógrafos e uma entrada restrita coberta em pétalas de rosa. As pessoas na calçada se acumulavam, curiosas, para ver do que se tratava.

 

Luiz e eu chegamos um pouco cedo e achamos melhor esperar nossos amigos do lado de fora. Afinal de contas, era divertido observar o movimento e saber que dessa vez, estaríamos entre os eleitos a participar.

 

Não demorou muito, chegou o casal de amigos do Luiz, muito simpáticos e, pouco depois, mais três outros amigos que eles convidaram.  Ficamos os sete de gaiatice imaginando se ao entrarmos nos fotografariam e depois ficariam um tanto perdidos tentando descobrir quem éramos. Infelizmente, ninguém nos confundiu com celebridades e portanto, nada de fotografias.

 

Já do lado de dentro, tentamos reconhecer os famosos. Outro problema, a gente quase não vê TV e, lógico, não conseguíamos identificar ninguém. No máximo, desconfiávamos da suposta fama quando alguns flashes disparavam.

 

Pelo telefone, nossa amiga falava com a atriz do filme, sua amiga de infância, que por sua vez estava super nervosa no hotel, esperando a hora de ir. E e eu, curiosíssima, achando tudo aquilo muito divertido.

 

Até que nos chamaram para entrar e dar início a projeção. Com todos sentados, entraram as duas atrizes principais do filme e o diretor. Vamos esclarecer um pouco melhor, o filme se chama Nordeste, foi apresentado em Cannes por seu diretor, Juan Solanas,  muito conhecido pelo seu premiado curta El Hombre sin Cabeza; as duas principais atrizes são Carole Bouquet, atriz francesa chiquerrésima-quero-ser-assim-quando-crescer; e Aymará Rovera, amiga de infância da nossa amiga, bonita e ótima atriz.

 

O filme é bom, forte e trata do drama da adoção ilegal de crianças na Argentina. Aliás, uma história que poderia ser rodada em qualquer país sul americano, incluindo Brasil, pois a realidade é muito parecida.

 

No fim do filme, fomos apresentados à simpática Aymará que fez questão de agradecer nossa presença e tirou com nosso grupo uma foto de sua própria câmera. Agora sim os repórteres deveriam estar se perguntando quem éramos e se deveriam haver tirado uma foto nossa.

 

Completamente famintos, saímos para comer alguma coisa. Considerando que era próximo da meia-noite, era difícil achar um restaurante aberto. Sugeri um bar de tapas, mais especificamente pinchos vascos em La Latina, e para lá nos dirigimos. Bom papo que se prolongou até quase duas da matina.

 

Para quem acordou sem nenhum plano, nada mal para uma quinta-feira. Né, não?

99 – Semana Santa

Aqui, como bom país católico, também se comemora a Semana Santa. O feriado é na quinta e sexta-feira, mas um monte de gente emenda a semana toda. Madri ficou tranquila, havia até lugar para estacionar na rua, impressionante!

 

Há uma série de procissões, levadas com um profissionalismo que lembra o carnaval brasileiro. Não estou sendo irônica, lembra mesmo. A maneira com que as pessoas se empenham e a forma como é apresentado na TV, com narração explicando toda sequência, lembra muito as alas de escolas de samba. Uma coisa curiosa é que os participantes usam capuzes que parecem os da ku klux klan, não sei o significado, mas é meio bizarro.

 

Enfim, cheguei a fazer planos para viajar, mas Luiz resistiu um pouco à idéia e acabamos ficando por Madri mesmo. Não foi mal, tivemos bons programas e aproveitei para fazer uma pequena revolução em casa.

 

Logo no sábado, fomos ao aniversário de uma amiga recente e fizemos novos amigos que renderam outra festa no sábado seguinte. Gente legal, bom papo, comidinhas gostosas e nacionalidades misturadas. Em ambas as casas, música ao vivo. Faz tempo que não vou a festas com voz e violão. Um dos amigos espanhóis ressaltou que todos nós lembrávamos das músicas e suas letras, não havia reparado, me parecia natural, mas na verdade era um grande sinal de memória coletiva, traços de identidade que não percebemos mais ou só percebemos quando estamos fora. Nos conhecíamos pouco, viemos de lugares diferentes e assim mesmo de alguma forma a música nos unia e identificava.

 

Inevitavelmente surgiu o tema da imigração, o que no fundo se tratava de identidade. Notei com um pouco de surpresa que não tinha o menor interesse em participar da polêmica. Percebi também que algumas das minhas convicções já não andam tão convictas assim, felizmente existiu Raul Seixas para não me deixar pensando que sou a única metamorfose ambulante. Talvez precise exercer meu lado camela e digerir outra vez o assunto. De qualquer forma, uma coisa positiva é que não me emocionou, não me fez sentir raiva, nem medo, nem quase nada. No fim das contas, me chamou a atenção minha sincera indiferença escorpiana à questão.

 

Falando nisso, dia 06 de abril completou dois anos que chegamos na Espanha. Em breve, iniciaremos nosso processo para tirar a cidadania espanhola. Pensar na trabalheira burocrática que isso gera me dá um pouco de preguiça e impaciência, mas já não me abala, é só a chatice.

 

Encontramos, por duas vezes, um casal de amigos brasileiros. Uma na casa deles, outra na nossa. Nos sentimos mais próximos e exageramos no teor alcoólico, às vezes é bom para soltar o verbo com menos filtros. Eles passam pelo dilema de continuar ou não no país, há uma proposta fora. Estranho porque queria que ficassem, mas sou incapaz de dizê-lo enfaticamente, sequer sou capaz de torcer por isso. Quem garante que a gente também fique? Quem sou eu para querer que alguém fique? Se tiver que ser, mais um país para conhecer e outra casa para visitar.

 

Saí da casa deles feliz. Um pouco por ter amigos, um pouco por estar com Luiz e um  pouco por que vim viajando no CD emprestado do Ed Motta. Uma música com frases soltas que eu era capaz de conectar e entender perfeitamente… hoje eu quero jantar bem… feijão preto com paio… e agora quem vai admitir… sei que os bancos não vão… a que se estar aqui…

 

Cheguei em casa ainda muito inquieta para ficar, o que acabou sensibilizando Luiz a ir comigo ao El Junco, mesmo sem tanta vontade assim. E dessa vez fui pensando no Capital Inicial, porque todas as noite são iguais, os meninos satisfeitos, as meninas querem mais…  Na saída, um repórter entrevistou Luiz perguntando por jam sessions e disse que sairia no jornal El País de quinta-feira santa. Não levamos tão a sério, mas pelo sim pelo não, compramos o jornal na quinta e lá estava ele, com foto e tudo!

 

Engraçado, estamos nos tornando um casal multi-mídia! Ilustres desconhecidos, os famosos-quem?

 

Nem tudo foi farra. Ao completar dois anos de Madri, me dei conta que completava um ano no atual apartamento. Incrivelmente, continuaremos aqui, sem data para sair. Chegamos a questionar se deveríamos procurar outro lar, mas chegamos a conclusão que era muito trabalho simplesmente para trocar de defeitos, com os daqui já me acostumei. Por outro lado, também me dei conta que fazia aniversário algumas soluções de arrumação meio improvisadas. É difícil comprar móveis ou armários quando você não sossega em canto nenhum, precisam ser muito flexíveis. Sempre fui do tipo que prefere ter coisas boas ou não ter, o que com essa vida cigana, atrapalha um pouco. Resolvi relaxar o nível de exigência e tentar facilitar o lado prático.

 

Fomos ao Ikea, uma loja do tipo da ToK Stok com preços mais acessíveis, onde você compra e monta seus próprios móveis. Na verdade, há tudo para casa, organizadores, luminárias, artigos de cama, mesa e banho etc.  Enfim, compramos um armário pequeno para cozinha e uma estante para livros, além de alguns acessórios para ajudar na arrumação. Luiz montou os armários e eu tratei de começar a mudar tudo de lugar.

 

Daí me baixou os cinco minutos de Maria e também ataquei a bat-caverna. É que há um espaço atrás de uma escada aqui em casa, onde haviam três estantes móveis, que basicamente escondiam todo meu material de trabalho. O problema é que de tão apertado e escuro, parecia mesmo uma caverna. Foi se tornando impossível encontrar alguma coisa naquele buraco negro, além da dificuldade em limpá-lo. Pois tirei tudo, pus tudo abaixo, trouxe duas estantes para fora da cova e, de quebra, ainda desmontei uma das mesas da sala para ganhar mais espaço. Parecia que havia passado um tufão pelo apartamento, juro! Daquele jeito que você tem a impressão que não acabará de arrumar nunca.

 

Acho que tenho a síndrome de Diógenes às avessas. É muito difícil manter e me apegar às coisas, sinto um alívio impressionante ao me desfazer de lixo ou de objetos e íntens que não vejo grande utilidade. Ou seja, ao acabar o faxinão total, estava morta de cansada e com as costas doendo, mas ao mesmo tempo, me sentindo mais leve e satisfeita. Até o Jack parecia dar sua aprovação, se espalhava pela casa e buscava novos cantinhos de esconderijo.

 

O engraçado é que toda essa mudança começou porque queria comprar umas plantinhas novas para a varanda, já que a primavera chegou. Por esse motivo saí com Luiz e optei pelo Ikea porque também aproveitaria para comprar umas caixas organizadoras. Só que, na medida que andávamos pelos corredores, foi me ocorrendo que poderíamos comprar as estantes e tal. No fim das contas, compramos tudo para casa, menos as plantas.

 

E entre festas e arrumações, a semana passou. Ainda faz frio, mas os dias estão mais claros e longos. Tem chovido bastante também. Tenho muita vontade de guardar os casacos de inverno e começar a usar camisetas ao ar livre. Às vezes, até consigo desligar a calefação e abrir as janelas.

 

Na minha varanda tem um gerânio com um botão de flores doido para abrir. Uma planta um pouco raquítica que resistiu ao inverno como pôde e, mesmo assim, insisti em regá-la e ela insistiu em gerar um botão. Ficamos na janela esperando a primavera vingar para sair.

100 – Meu tabu

Tenho quase trinta e oito anos, treze de casada, e há pelo menos vinte afirmo não querer ser mãe. Normalmente, sob olhares desconfiados tentando imaginar qual seria meu problema. Porque claro, isso só poderia ser algum tipo de anomalia.

 

Esse questionamento já me chateou, me aborreceu e, às vezes, francamente chegou a me irritar. Por que é tão difícil entender um “não quero porque não”. Por que precisava explicar? Depois cheguei a uma indiferença cética onde aprendi a fingir que ouvia as mesmices de sempre como se fossem alguma novidade que nunca tivesse pensado a respeito. Que diferença iria fazer, quem não concorda com você dificilmente te ouve e percebi que perdia tempo explicando algo óbvio que entrava por um ouvido e saia pelo outro. Afinal de contas, que raios todo mundo tem a ver com isso? Então, resolvi funcionar como espelho, respeito na mesma proporção em que sou respeitada, é mais fácil. No final, faria o que quisesse mesmo.

 

Meu motivo é muito simples, não sei lidar com uma relação de dependência. Saber que um ser dependerá da minha sanidade e estabilidade é absolutamente assustador. Filhos não são compatíveis ao meu estilo de vida. Simples assim, nenhum mistério, nenhuma aberração. Na minha opinião, é um motivo muito fácil de se entender e altamente válido, mas soa como nada para quem não quer ver.

 

Ouvi algumas vezes que isso é egoísmo da minha parte. E, em seguida, vinha o argumento, e quem iria cuidar de mim quando estivesse velha? Pombas! Eu não querer ter um filho é egoísmo, mas ter um filho para cuidar de mim na velhice é o que? Pois já ouvi absurdos assim e sempre procuro lembrar da minha sábia avó que dizia: melhor ouvir isso que ser surda.

 

Também vinha gente no cantinho me perguntar se havia algum “problema”, com aquela cara de coitadinha, quem sabe buscando alguma confissão secreta, íntima e constrangedora. Será que eu era estéril? Será que meu marido era brocha? Será que sofri abusos na infância? Vamos combinar, se eu realmente tivesse algum desses problemas, o que marcar um “x” vermelho sobre eles me ajudaria? A mim, em nada, esse tipo de explicação só satisfaz a quem escuta, porque o mórbido as pessoas sabem aceitar, o difícil é o diferente.

 

Depois vem as questões paralelas, que não são o motivo, mas o complementam. Tem todo o trabalho, a paciência, o custo, um mundo incerto e blá, blá, blá… Engraçado, porque isso para mim é totalmente secundário, mas é o que as pessoas parecem entender com maior facilidade, concordando ou não.  O fato é que essas outras questões que chamo de paralelas são todas solucionáveis e de uma forma ou de outra, podem ser compensadas com o que uma criança traz de bom. E portanto, nunca foram o meu real motivo, simplesmente o acompanham. É a relação de dependência que me trava e essa não tem solução, ou você aceita ou não.

 

Felizmente, também há muita gente que respeita, para minha sorte, a maioria das que conheço. Perguntam por curiosidade normal ou simplesmente para iniciar um assunto. Esses nunca me incomodaram. Nunca me incomodou falar nisso ou interagir com quem pensasse diferente, e sempre fiquei muito feliz ao receber a notícia de uma gravidez desejada. Eu gosto de criança.

 

O que incomodava não era a dúvida nem a curiosidade, era o julgamento. É a tentativa de te convencer pelo simples fato e prazer de ter razão, de justificar a própria vida e as próprias limitações. E a verdade é que depois de um tempo, nem isso me incomodava mais.

 

O importante é que Luiz pensa igual e, como eu, não depende de uma geração para se completar ou se realizar como pessoa. Muita gente precisa, acho que para a maioria é algo visceral e respeito esse sentimento, simplesmente não o compartilho.

 

Até aí, qual é o problema? Pois nenhum. Só pensava no assunto porque era uma questão que me faziam quase que diariamente. Mas da minha parte, entre quatro paredes, nunca havia saído a pergunta: eu quero ter um filho?

 

O problema começa agora, porque com quase quarenta anos o questionamento não é mais quero ou não quero e sim, será que posso? Não poder é muito diferente de não querer. Não é mais alguém que me cobra, fui eu que resolvi abrir a caixa de Pandora. Maldito pretérito imperfeito do subjuntivo, e se eu quisesse? E se eu quisesse por minhas próprias razões? E se eu quisesse mudar minha vida?

 

A única e rápida vez que havia pensado nisso foi ainda namorando com Luiz. Já conhecia sua opinião a respeito de não querer ser pai e considerava isso um grande atrativo. Ele também sabia que não queria ser mãe. Mas não sei porque ele me olhou de um jeito e perguntou, e se a gente tivesse uma Bianquinha? Por alguns segundos pensei, talvez com ele eu tivesse. Mas rejeitei o plano em seguida e, aos vinte e poucos anos, foi muito fácil e conveniente esquecer a pergunta e a sensação. Ele nunca mais perguntou e eu nunca mais cogitei.

 

Minha mãe, por alguns anos me cobrou. É a única que, gostando ou não, acho que tem esse direito. Ela quer ser avó e, até eu que nunca quis ser mãe, queria ser avó. Daí um dia respondi que decidiria com 35 anos. Por que? Fácil, porque é considerado um limite saudável para engravidar pela primeira vez. Por que de verdade? Ganhava tempo, fazia de conta que decidiria depois e no fundo, apenas adiava o não.

 

Aos trinta e cinco, decidi que não. Depois de uma noite insana e no meio de uma das maiores ressacas que tive na vida, admiti que sou mesmo uma porra louca com a sorte de ter aparência normal. Como é que sem um pingo de juízo seria capaz de cuidar e educar uma criança? Essa vida não é para mim. Não é um lamento, posso ter outras felicidades, mas essa não é para mim.

 

Achei que essa decisão me traria o conforto, o alívio de resolver um problema. Sentia falta do tempo quando tinha a certeza absoluta que não queria. E por um tempo foi confortável saber que estava finalmente resolvido.

 

Ano passado fui ao Brasil e conheci minha priminha, com pouco mais de um ano. Foi um choque. Ela era a minha cara. Parece absurdo, mas é verdade, ela era a minha cara quando bebê. Foi uma sensação bizarra de ver concretamente a minha filha. Não consegui contar para ninguém e ela já nem parece mais comigo. Foi só um momento, mas me tirou o chão.

 

Algumas coisas são tão íntimas e tão difíceis que ficam remoendo na sua cabeça sem você perceber direito. E esse ano, em pleno carnaval, tomando um vinho com Luiz, simplesmente saiu da minha boca a pergunta, por que não adotamos uma criança? Assim, do nada. Não sei quem assustou mais, eu ou ele, que me devolveu na mesma moeda, se é para ter, por que não engravidar? Do que mesmo a gente está falando? Que papo mais absurdo, só pode ser o vinho.

 

De lá viemos em casa trocar de roupa, como disse era carnaval e sairíamos em seguida. Pois quando me olhei no espelho percebi que alguma coisa estava muito fora da ordem e caí num choro como não me saia há muito tempo. Chamei o Luiz para conversar, pára tudo!

 

Pela primeira vez na minha vida me perguntei se queria uma filha e resposta foi quero. E pela primeira vez saiu da minha boca, com a minha própria voz, eu quero ser mãe. Não era um sim definitivo, mas era por aquela noite, e naquela noite eu quis muito ser mãe.

 

No dia seguinte, me senti um pouco esquisita e não consegui mais tomar o anticoncepcional. Tomo progesterona há mais de seis anos, período pelo qual não menstruo mais. Na época que comecei, a ginecologista, assim como a bula do remédio, dizia que se resolvesse engravidar, a regra poderia levar entre seis meses e um ano para regularizar. Portanto, achei que não corria riscos, tinha um bom lastro e, outra vez, um tempo para pensar e digerir todas essas informações. Não falei com Luiz, achei que seria uma pressão a mais, no fundo sabia que não havia chance de engravidar no momento, essas coisas não são tão rápidas em retornar, ainda mais na minha idade. Três semanas depois viajaria para o Brasil, melhor conversar com calma na volta, talvez tivesse mudado de idéia.

 

Pouco antes de viajar estava estranha, via trinta grávidas por dia na rua e imaginava se eu estivesse também. Outros problemas me preocupavam e, aos poucos, fui esquecendo o assunto.

 

No Brasil, parecia que havia instalado um íma para crianças, elas simplesmente vinham para mim. Um instinto maternal que nunca tive, uma coisa maluca que me deixou um pouco confusa. Deixei vir, aproveitei para tentar vivenciar a experiência, pensar com um pouco mais de tranquilidade, afinal de contas, ninguém pôs uma faca no meu pescoço exigindo uma decisão tão urgente. Não falei muito a respeito, só conversei com uma amiga que acabou de ter neném e que tinha uma postura por um lado favorável, mas sem me pressionar. Tudo que não precisava nesse momento era mais pressão.

 

Contrariando as expectativas, em menos de um mês que havia parado o remédio, minha menstruação desceu, ainda no Brasil. Fiquei surpresa porque sentia uma mistura de alívio e tristeza. Foi quando me dei conta que, apesar de racionalmente saber que não era possível, no fundo esperava um milagre. O acidente tiraria minha responsabilidade, afinal, se engravidasse sob essas circunstâncias era porque tinha que ser. Como pude me sabotar desse jeito? Por outro lado, era possível, meu corpo me mostrava que ainda tenho tempo. Agora a responsabilidade voltava a ser minha, o controle voltava a ser meu e só fiquei mais confusa.

 

De volta a Madri, contei ao Luiz, melhor tomarmos nossas precauções. Em plena consciência, não quero acidentes, não sou assim. De qualquer maneira, meu instinto maternal se foi junto com o período. Talvez fossem os hormônios falando mais alto.

 

Não consigo conversar com quase ninguém a respeito e achei que escrever me clarearia as idéias. A palavra escrita ajuda a ordenar o pensamento.

 

Minha menstruação desceu pela segunda vez como se fosse um aborto. Vontade de chorar por nada, pode ser a TPM que estou desacostumada. Ainda não sei o que quero, mas sei que não posso passar por isso todo mês. Essa semana, volto a tomar o remédio. Às vezes, a gente só precisa de um pouco de tempo para aceitar ser diferente.

101 – Brinquedo novo

Há um tempão estou doida por uma máquina de fazer café expresso. Tive uma no Brasil uma vez, mas francamente, era uma bela porcaria. O café não fazia aquela espuminha deliciosa em cima, daquelas que deixa o açucar difícil de descer.

 

Em Atlanta, uma amiga tinha uma máquina da Illy que achei o máximo. Além do design retrô, o café era uma delícia e fazia a tal da espuminha. Tive muita vontade de comprar uma também, mas a possibilidade de vir morar na Espanha adiou os planos. A voltagem é diferente e não sabia sobre a facilidade de encontrar o café.

 

Enfim, em Madri, nosso espaço na cozinha sempre foi muito limitado e lá ia eu adiando a compra.

 

Nesse último faxinão, depois de arrumar os armários novos e limpar a bat-caverna, por incrível que pareça, me sobrou espaço no balcão da cozinha. Bom, admito que liberei o tal espaço cheia de más intenções em comprar a cafeteira, mas entre um desejo e sua execução, às vezes há um longo caminho.

 

Luiz deu força, não por ele que dá a mínima para café, mas porque sabe que sou uma viciada em cafeína e estava empolgada com a idéia. Pediu umas dicas a um amigo que havia pesquisado a respeito das marcas diferentes e lá fomos nós ao El Corte Inglés.

 

A princípio, juro que fui mais para pesquisar preços, olhar as máquinas e decidir depois. Mas digamos que nosso processo de decisão nunca é muito demorado e, em menos de meia hora, estávamos de volta com meu brinquedo novo. Optamos por uma Nespresso da DeLonghi.

 

Claro que estou de café até os olhos e quicando pela casa, mas bem que é divertido.

102 – Desafio

Atenção! Hoje vou mudar tudo! Vamos inverter a ordem das coisas, conto com as respostas de vocês. Será que rola?

 

Seguinte, lanço um desafio: quais são os chavões, os comentários e as perguntas mais irritantes do mundo?

 

Assim, aquilo que você escuta zilhões de vezes ao longo da vida e, às vezes, mesmo sem querer, repete igualzinho. Aquilo que te provoca uma expressão de tédio imediata, mas você dá aquele sorriso amarelo, porque a outra alternativa é um palavrão. Aquelas vezes que você dá uma resposta educada, enquanto imagina a cabeça do seu interlocutor explodir. Enfim, acho que deu para entender o conceito, quem nunca passou por algo semelhante?

 

Vou começar com minha lista…

 

  • Nossa, como você cresceu, te vi neném – é mais irritante quando você é adolescente
  • Mas isso até meu filho faz – em um museo ou galeria de artes
  • E o namorado? – quando está solteira
  • E o casório? – quando está namorando. Essa pode ser substituída por “E o seu? “, quando você está relatando um casamento alheio
  • E o neném, quando chega? – quando você está casada. Essa também porde ser substituída por “Filhos, vocês não querem?” E olha que curioso, porque a pergunta normalmente chega na forma negativa – não querem? Mas se você responder “não”, será obrigada a ouvir uma ladaínha.
  • Linda mensagem – título de e-mail
  • Posso te falar de Jesus – fica especialmente interessante quando você está tomando um drink
  • Desculpa te perguntar… – certamente virá uma pergunta inconveniente ou estúpida
  • Você já ouviu falar da Amway? – naquela reunião roubada que você estava crente que havia sido lembrada por ser uma pessoa legal
  • Você não notou nada? – quando feita para um homem
  • Estou em busca de novos desafios – em uma entrevista de emprego. Falando nisso, e aquela perguntinha canalha, me fale de um defeito e uma qualidade… Existia algum defeito diferente de perfeccionismo?
  • Sabe como é feito o foie gras? – quando você está com aquela boca boa para a primeira dentada
  • Você se incomoda que eu fume? – com o cigarro na mão e prestes a acendê-lo
  • Iiihhhh, mas tava muuuito mais! – frase dita olhando para cima e estalando os dedos, logo depois de você chegar da Europa branca como papel e elogiar o bronzeado de alguém
  • Que idade você acha que eu tenho? – não me sacaneia, né?

 

E você? O que te irrita?

103 – Primavera, brechó, terrazas…

Finalmente, a primavera parece ter dado as caras. Oficialmente já havia chegado, mas todo início de estação é meio inconstante, como se o próprio tempo também precisasse se adaptar às mudanças.

 

Meu humor segue a luz, a medida que os dias vão se esticando, vou também me expandindo e tendo mais vontade de fazer as coisas. E mesmo que não faça nada, sou envolvida por um otimismo e uma energia diferente. Dá vontade de aproveitar os dias e tomar sol. Diferente do inverno, acordo sorrindo, mesmo com preguiça e sem conseguir pensar direito.

 

Nesse sábado, participamos de um brechó. Muito divertido! Aqui conheci vários brasileiros através do orkut, e também por lá fiquei sabendo do tal brechó de primavera. Por coincidência, a amiga que estava organizando, conheci através do blog, ela também tem um que frequento e aproveito para fazer a propaganda www.dmadrid.blogger.com.br .

 

Enfim, foi um espaço organizado para você levar coisas da sua casa, como utensílios e roupas, que estivesse disposta a vender ou trocar. Algumas pessoas, que trabalham com vendas, também levaram coisas novas, como biquinis, bijouterias etc.

 

Achei a idéia ótima! Por acaso, havia dado uma tremenda limpa em casa e tinha algumas coisas que me davam pena jogar fora, mas ao mesmo tempo, não tinha para quem dar. Por que não vender a um preço baratinho? Luiz se animou e também deu uma revisada no seu armário. E lá fomos nós, os dois muambeiros, vender praticamente tudo a 1 euro por unidade.

 

Chegamos ainda no início, o que nos deu a sorte de encontrar um bom local para expor a mercadoria. Entretanto, as pessoas que haviam chegado até aquele momento levavam coisas novas e confesso que me deu um pouco de vergonha. Será que tinha entendido bem a proposta? De qualquer maneira, a gente já estava lá mesmo e quem entra na chuva…

 

Depois de um tempinho as pessoas começaram a chegar e havia de tudo. Fiquei mais à vontade e, digamos que fomos aperfeiçoando nossa cara-de-pau. No final das contas acho que fomos os que mais venderam, com a menor rentabilidade da reunião. O importante é que a gente se divertiu e tínhamos um excelente argumento de venda. Mas esses óculos não são masculinos? Veja bem, custa 1 euro. Não tenho certeza se esse tênis vai caber… Mas veja bem, custa 1 euro. Estou meio na dúvida se levo os talheres… Presta atenção, custam 1 euro, o conjunto!

 

Aproveitei e comprei dois colares lindos e baratíssimos! Além de trocar uma blusa por um casaco. Sem dizer que, ainda por cima, as meninas levaram comidinhas e refrigerantes que acabaram sendo nosso almoço. Conhecemos um monte de gente e, para tudo isso, pagamos 2 euros pela nossa participação. Quem poderia dizer que não acabamos no lucro?

 

De lá, fomos bater na porta da casa de um casal de amigos. A gente tinha mais ou menos combinado, mas não conseguimos confirmar por telefone depois. Talvez munidos da cara-de-pau recém adquirida no bazar, arriscamos ir de qualquer jeito e aparecemos meio de surpresa. Se o dia já ia divertido, a noite completou nosso sábado. Esticamos a conversa até bem umas duas ou três da manhã.

 

Domingão, acordamos tarde. Um amigo chamou para almoçar e fomos em um restaurante africano que gostei muito, chama Kim bu mbu. Deve querer dizer alguma coisa em alguma língua, mas espero que não signifique turista babaca, porque esqueci de perguntar. Importa que a comida era gostosa e a decoração exótica. Bom papo, relaxante.

 

De lá, quis voltar caminhando para casa. Não era tão pertinho assim, mas como dispensar aquele dia agradável? Pela primeira vez no ano, pude tirar o casaco em Madri e andar com uma blusa bem fresca. Como é bom!

 

Fiquei surpresa ao ver que as “terrazas” do Paseo de la Castellana já começaram a abrir, isso costuma acontecer mais próximo ao verão. Terrazas, nesse caso, são os bares e restaurantes com mesas ao ar livre. Digo nesse caso porque também pode ser a tradução de varanda, em uma casa ou apartamento. O conceito que está por trás é desfrutar a área externa e obedeci ao pé da letra.

 

Depois ficamos só de preguiça em casa. Em Madri, existe o costume que nunca entendi direito de fechar os restaurantes no domingo à noite. As ruas, que normalmente estão repletas, faça chuva ou faça sol, se esvaziam ao anoitecer do domingo. Não é que não exista o que fazer, mas em comparação com os outros dias e horários durante a semana, incluindo o sábado, é significativamente mais vazio.

 

Daí jantamos em casa, aproveitei e fiz uma carne seca desfiada e acebolada daquelas! Deu sede a madrugada toda, mas da minha parte, nenhuma reclamação.

104 – Maratona de Madrid

Havia escutado alguma coisa de uma maratona que fariam aqui em Madri e passaria perto de casa. Mas para ser sincera, me esqueci completamente.

 

Hoje pela manhã, acordei com uns sons vindo da rua, como se fosse de uma festa, uma torcida, algo assim. E eu, mas domingo de manhã? Na dúvida, fui dar uma olhadinha na janela e bem na esquina da minha rua, de camarote, dava para ver um pedaço da tal maratona.

 

Infelizmente, estava sem a máquina fotográfica. Luiz levou para TelAviv, para onde viajou a trabalho. Paciência! Não é muito diferente do Brasil, aliás, acho que as maratonas se parecem em todo o mundo, não tem muito o que inventar.

 

Tinha de tudo! Gente com cara de atleta, grupos uniformizados, corredores de fim de semana, alguns que pareciam não saber bem o que faziam ali, uma correndo de calça jeans, um correndo e falando no celular… até um vestido de noiva havia! Fiquei pensando, mas que gente corajosa. Puxa vida, você acorda de propósito, em pleno domingo, e encara esse sol na cuca pelo prazer de participar. Tem os profissionais, mas a verdade é que a maioria me parecia de amadores. Que determinação!

 

E a torcida? Pessoas que saem à rua para incentivar completos estranhos. Ouvia aplausos e frases como, muy bien, venga, vamos, guapaGuapa? Mas isso é uma corrida ou um balet flamenco? Não importa, estavam ali também, com o papel que lhes cabia.

 

Gente assim me emociona, traz à tona um lado bom do ser humano. Juro que não ando tomando nenhuma substância química legal ou ilegal, simplesmente o início da primavera me deixa desse jeito, meio piegas e otimista. O sol é um excelente antidepressivo!

 

Engraçado que acordei com vontade de desenhar, pouco a pouco me volta inspiração para trabalhar, mas vou cautelosa.  Enfim, a parte interessante é que normalmente gosto de trabalhar ouvindo música e hoje achei muito mais divertido ouvir os sons que vinham da rua. A curiosidade felina de saber o que acontecia do lado de fora me interrompia várias vezes, mas valia à pena. De qualquer forma, todo aquele ruído junto também era um pouco de música.

 

Daqui a pouco acho que não resito e vou dar uma voltinha no parque do Retiro.

105 – Dias atribulados

Felizmente, vou ocupadíssima! Fiquei produtiva de uma hora para outra. Efeito primavera!

 

O engraçado é que ando conversando com a mulherada na cidade, também leio alguns blogs de brasileiras que moram em Madri e é unânime, todas são alteradas pela primavera. Será que isso também acontece com os homens? Porque o Luiz não parece mudar tanto assim com as estações.

 

É um tipo de sensação que a gente aprende quando sai do Brasil, ou melhor, quando se muda para um país de estações definidas. Achei que a medida que o tempo fosse passando, essa sensação se amenizaria, mas foi ao contrário, pelo menos por enquanto. A maneira de viver em cada estação é muito diferente, as roupas, o humor, a disposição, a arrumação da casa, os armários, os horários, tudo muda de perspectiva. Olhar o mundo de outro ângulo, faz com que se pareça outro mundo.

 

Semana passada fomos ao teatro com uma amiga assistir a um espetáculo de dança, do grupo Ananda Dansa. Bom show, apesar de meterem o coñazo político no meio também. Aparentemente, qualquer manifestação artística espanhola precisa falar alguma coisa de política. Achei que fosse só em artes plásticas. Enfim, no inverno teria me irritado, na primavera só pensei, mas até tu Brutus!

 

De lá, Luiz precisava voltar para casa e dar mais uma trabalhadinha. Fiquei com minha amiga espanhola no Trifón. Ela é muito engraçada, se diz uma combinação bombástica pois é mulher, baixinha e advogada! Ou seja, o cão! Mas a verdade é que acho ela muito divertida. Além do mais, ela fala super rápido e meu castellano melhora muito quando sou exigida.

 

Na sexta-feira, semana fechada com chave de ouro, um chá de Luluzinhas, aniversário de uma amiga. Na verdade, foi um almoço esticado para chá. Cheguei no fim do almoço, quando conheci dois espanhóis muito simpáticos. E na sequência, fiquei para o chá das brasileiras. Bom para relaxar em português e não sentir culpa em fazer um delicioso programa de dondoca.

 

O tal chá foi no Café do Círculo de Bellas Artes, um lugar razoavelmente tradicional, com um certo charme decadente e um teto altíssimo. Fica a uma boa distância da minha casa, uma caminhada de uns 45 minutos a passos largos. Resolvi ir a pé, preciso muito caminhar. Daí veio o dilema feminino, era um chá, né? As mocinhas costumam ir mais arrumadas. Mas como iria caminhando pelo parque arrumada? E depois preciso urgentemente amaciar minhas botas de trekking, as tais do Caminho de Santiago. Quer saber, pensei, lá é um lugar meio central mesmo, o que quer dizer que está sempre cheio de turistas. Pois então, vou disfarçada de turista americana. E lá fui com meu modelito medonho e confortável. Valeu a pena, nesse dia andei para burro e fazia um calor horroroso.

 

Na volta, Luiz até se ofereceu para me buscar, mas quer saber, queria mesmo era caminhar. Nem as trovoadas estavam me assutando, pensei, estou saudável, pode chover. Peguei uns pinguinhos de nada já quase em casa e até achei bom.

 

No sábado, feijoada e cachacinha na casa de amigos. No início da noite, Luiz viajou para Israel, fui com ele até o aeroporto. Quando soube que ele aterrizaria em Tel-Aviv, confesso que me assutou um pouco, nunca me preocupo com suas viagens a trabalho, mas dessa vez fiquei meio cismada. Entretanto, ele mesmo estava achando bem legal, era sua primeira ida para lá e estava super animado. Pensei, quer saber, acreditar que nada de mal irá te acontecer é o melhor amuleto que conheço. Depois, logo chegava o dia de São Jorge, Ogum. Se Luiz tivesse um santo de devoção seria ele, estava bem protegido. Portanto, relaxei. No fundo, acabei ficando com vontade de ir também, quem sabe em uma próxima vez.

 

Por outro lado, não foi tão mal ficar um pouco sozinha, é chato, mas tinha um monte de coisas para fazer e um desenhão que me deu um trabalho monstro, mas gostei do resultado e finalmente consegui terminar um trabalho para mim mesma. Simplesmente porque sim.

 

Cuidei das minhas plantas, segui os conselhos recebidos, coloquei adubo e terra nova. Juro que elas pareceram ficar até felizes. E não é que meu gerânio raquítico floresceu? Inclusive, tem até outro botão nascendo. Daí, um outro gerânio resolveu se exibir e colocou botão também. Enfim, acho que resistirão, fiz minha parte e elas fazem a delas.

 

Meu gato não sai mais da varanda, só quer saber de ficar no sol e aproveitar o bom tempo. Ele também muda na primavera. Aqui não há redes de proteção do tipo que usamos no Brasil para proteger as crianças e animais domésticos de uma queda. Sempre fui um pouco paranóica que ele caísse e, em princípio, achei que a melhor solução era manter as janelas fechadas. Com o tempo, venho aprendendo a confiar mais nele e a aceitar que um pouco de liberdade vale um pouco de risco. E agora curtimos nós dois a brisa fresca que entra em casa.

106 – Andanças

Segundona, daquelas em que a gente promete tudo e tem tudo para não fazermos nada!

 

Mas essa segunda-feira acordei decidida, ou começo seriamente minha preparação para o Caminho de Santiago, ou simplesmente não vai rolar! Não dá para ser amanhã, não dá para ser depois, é hoje ou não é.

 

Pois foi.

 

Levantei com toda a preguiça do mundo e um monte de coisas para fazer. Não importa, faço depois de caminhar.

 

Procurei vestir as roupas adequadas para o caminho, o que inclui uma bota de trekking e uma calça verde militar de secagem rápida. Uma camiseta, um rabo de cavalo e eu era a própria Lara Croft depois da gripe. Vamos dizer que o modelito lembrava. Tirando os peitos antigravitacionais e a cintura impossível, até que levava um ar Tom Raider.

 

O problema é que tem que andar um pouquinho até chegar no Parque do Retiro, onde elegi fazer minha preparação. E andar vestida assim na rua me provocava um certo desconforto. Já sei, protetor solar e meu óculos da invisibilidade!

 

Os gigantescos óculos da invisibilidade não me deixam propriamente invisível, digamos que estava chamando um pouco a atenção e não exatamente no bom sentido. Mas percebi que ter meus olhos escondidos me exercia um fator avestruz, do tipo, se não podem ver para onde estou olhando, estou invisível! É maluco, mas funcionou.

 

Finalmente, cheguei ao parque, quando Lara diria, aham… Comecei minha caminhada, como sempre observando tudo ao redor. Muito rápido, afinal de contas, não fui passear, queria realmente me desafiar. Procurava sempre o trajeto mais longo e mais difícil, sol, pedras, pequenas ladeiras, tudo que normalmente evitaria. Engraçado, porque ao tomar o caminho mais difícil como opção ele não pareceu tão ruim assim.

 

Andei duas horas seguidas, a passos bem rápidos, acho que para começar está bem. Vou tentar fazer isso por toda a semana e, quem sabe, aos poucos ir aumentando o ritmo.

 

Na volta, fui comprar o almoço. Adoro isso da gente comprar a comida do dia. Dá um pouco de trabalho, mas é tão civilizado e você compra tudo fresco. Vontade de comer saudável, tomate, frutas, peixe. E que sede!

 

A grande dúvida era: será que essa persistência duraria até terça-feira?

 

Pois durou.

 

Acordei ainda mais cedo, um pouco dolorida é verdade, mas ainda decidida. Nem senti mais vergonha de ir vestida meio esquisita. Apesar de ainda precisar dos grandes óculos.

 

Comecei a reconhecer alguns rostos no parque, principalmente dos velhinhos. Tem um casal que está sempre no mesmo lugar, com um cão, também velhinho, sentado no meio. Alguns amigos que caminham juntos e, pelas idades, me surpreende que ainda tenham algum assunto não conversado. Uma senhora na cadeira de rodas, muito agasalhada, apesar do calor. E vários caminhando com passos lentos, mas decididos e orgulhosos.

 

Hoje havia um grupo com cegos e cães-guia sendo treinados. Aliás, havia muita gente caminhando com seus animais e aparentemente são bem educados, pois não vi as sujeiras deixadas de lembrança. Gatos também havia, a maior parte vive no próprio parque, mas também tinha uma mulher meio esquisitinha que passeava com um gato na coleira, o que por si só já é algo raro. Também levava um carrinho de bebê vazio. Acho que o carrinho era para o gato, mas achei mais seguro não observar por muito tempo. Vai que interrompia a participativa conversa entre ela e seu bichano.

 

Tem bastante fiscalização, a pé, de bicicleta, de carro e a cavalo. Acho bom, mantém o respeito. Com os da bicicleta, cruzo toda hora. E os de cavalo, fico imaginando se também lhes fosse imposta a lei de limpar as porcarias dos animais. Ao invés de sair com os pequenos saquinhos plásticos pretos, sairiam com verdadeiras sacolas de compra.

 

Na volta para casa, com quem cruzo na calçada? Nada mais, nada menos que Almodóvar! Meu vizinho de bairro. Com uma camisa listrada e seus próprios óculos da invisibilidade! Ainda bem que fui treinada no Rio de Janeiro a passar por celebridades como se nada estivesse acontecendo. Agora, se em seu próximo filme aparecer uma estranha nas calçadas de Madri, vestida de exploradora em busca de um antigo artefato, botas de trakking e enormes óculos escuros de mosca… sou eu!

107 – Agora vai!

Depois de dois dias de determinação ferrenha em caminhar no parque, claro que caiu um toró daqueles e não deu para por o nariz na rua. Luiz me disse, também, você assim tão esportista, até choveu!

 

Verdade seja dita, de se admirar que não foram canivetes. Não posso negar que um pouco de razão ele levava, mas realmente decidi que preciso mudar alguns hábitos. Vamos combinar que a balada dos fins de semana não pode ser considerada seriamente como um esporte. Querer fazer o Caminho de Santiago, caiu como uma luva para me motivar em vários sentidos.

 

No segundo dia de chuva, fiquei de olho e na primeira nesga que abriu no céu, desci tão rápido para caminhar que até me surpreendi com a boa vontade. É verdade que também esqueci do alongamento e o preço me foi cobrado dolorosamente mais tarde. Tudo bem, assim vou aprendendo. Pelo menos fui.

 

E se por um lado os céus pareciam me desafiar, por outro, uma ótima notícia, ganhei companhia para caminhada. Uma amiga nova que mora perto e resolveu, por seus próprios motivos, andar no parque do Retiro com regularidade. Não sei se conseguiremos ir todos os dias juntas, mas uma boa companhia sempre estimula. Além do mais, o parque é razoavelmente seguro, mas em alguns lugares não vou negar que fica um povo meio esquisito, ela também acha. Como uma brasileira sobrevivente, prefiro não correr riscos. Em dupla, não creio que alguém se atreva a nos perturbar. Depois, ela é simpática e fica bem mais divertido, passa mais rápido.

 

Quanto ao povo suspeito do parque, Luiz chegou a me oferecer spray de pimenta, o que no primeiro impulso aceitei. Depois pensei melhor e acho que não. Não quero entrar nessa neurose de já sair de casa achando que algo pode acontecer.  Levei muito tempo para desenvolver a sensação de que estou segura e prefiro dar mais uma chance ao caos.

 

Mas enfim, voltando ao Caminho, por mais determinada que estivesse, essa semana tive alguns altos e baixos. O primeiro foi em relação à temperatura, que havia aumentado significativamente e pensei que talvez prejudicasse nossa agenda. Quem sabe devêssemos esperar até o outono. Depois, apesar da chuva e até um pouco por causa dela, a temperatura baixou novamente. Dificulta a preparação, mas vi com muito bons olhos, porque novamente viabilizou a idéia.

 

Combinei de fazer o Caminho com uma amiga, mas como não nos falávamos há algumas semanas, fiquei na dúvida se ela ainda estava animada. Cogitei se faria sozinha, cheguei a conclusão que faria de qualquer jeito, mas no fundo não estava tranquila, queria a companhia dela. No domingo, finalmente nos falamos e ela nem pestanejou, topou na hora e fechamos nossa data.

 

Valeu por não ter desanimado. Digo, dúvidas acho que terei sempre, até o momento de iniciar, sei que ainda haverão outros altos e baixos. Mas o mais importante foi não ter desistido de treinar, mesmo achando que poderia furar. Acho que agora vai!

108 – Moving song

Quinta-feira prometia ser um pouco aborrecida. Luiz ainda viajando e eu sem grandes coisas para fazer.

 

Uma amiga espanhola resolveu ter aulas de salsa perto da minha casa e ficou de passar depois da aula para sairmos de tapas, não confundir com sair no tapa que é outra coisa. Muito bem, de repente, vai que a quinta não seria tão má assim. Daí um amigo brasileiro chegou com algumas encomendas e não sabia se passava eu na sua casa ou ele passava aqui para deixar. Dei a idéia, tenho uma amiga vindo aqui na quinta, não quer se juntar a nós? Topou. Na própria quinta, chega de viagem uma amigona disposta a fazer alguma coisa para matarmos a saudade do papo e da cidade. Ué, então vem também! Veio ela e outro amigo que não via há alguns meses.

 

A primeira garrafa de vinho, abri só para esperar todos chegarem. Mas e a preguiça que bateu de sair para algum lugar? Então, pronto, abro a próxima garrafa e vira festa. Além do mais, imagina se viria gente em casa e não teria nenhuma comidinha na manga, claro que tinha. Um caldo verde quase light, pouca batata, muito paio.

 

Ganhei um monte de presentes, assim do nada. Meu amigo brasileiro, das encomendas, me trouxe regalitos culinários, sabe que sou chegada ao fogão. A amiga espanhola me trouxe uma morcilla de cebola especial para experimentarmos. A amiga brasileira, esteve em Recife e nos trouxe uma peça autêntica ma-ra-vi-lho-sa do Brennand! Fiquei feliz, não preciso ganhar presentes, mas adorei, me senti querida.

 

No dia seguinte de manhã, depois de uma semana longe, chega Luiz. Cheio de presentes também. E eu, caramba! Mas que onda boa! Não sei o que fiz para merecer tantos presentes, nem é meu aniversário. Talvez ainda não tenha feito, quem sabe é um sinal para pensar mais nos outros. De qualquer maneira aproveitei.

 

Uma das coisas que ganhei foi uma máquina fotográfica bem pequena, para morar na minha bolsa. Muitas vezes estou na rua e quero registrar um momento. Tento registrar esses momentos quando escrevo, mas às vezes acho que uma imagem ilustraria melhor. E já comecei a usar meu brinquedinho novo.

 

Na sexta, fomos ao clássico Trifón. Luiz voltando de viagem, uma amigona brazuca também voltando depois de três semanas fora. Às vezes, a gente precisa ir a alguns lugares para saber se o mundo também ainda está no mesmo lugar. E estava, no mesmíssimo bom lugar.

 

O problema foi caminhar as duas horas do dia seguinte! Na porta do parque já estava cansada. A vida boêmia é ligeiramente incompatível com a vida atlética, mas dá-se um jeito. Vou ver se dou uma maneirada etílica nesse mês e, nas duas últimas semanas antes do Caminho, corto tudo alcoolico. No resto do dia só morgamos e curtimos a tranquilidade que é um feriado em Madri.

 

Acontece que Madri é uma moving song, não sei como descrever melhor. Às vezes, tenho dificuldade de falar da cidade sem usar o gerúndio. As coisas simplesmente vão acontecendo e, quando dispostas, as pessoas vão aceitando e aproveitando as oportunidades que a cidade alavanca.

 

No domingo, acordei tarde, não sabia se iria caminhar, talvez me desse um feriadinho também. No MSN aparece minha nova amiga botando pilha para irmos andar no parque. Quer saber, por que não? Então vamos.

 

Cheguei em casa e Luiz queria sair para comer. Cassilda, no feriado, domingo, às 16:30… joder! Vai ser difícil, mas vamos tentar. Conseguimos em um dos restaurantes americanos, acho que os únicos que estavam abertos. Foi quando pensei ser uma sábia decisão ter caminhado aquele dia, pois acabava de ingerir milhões de calorias. Dali, dois amigos chamaram para encontrar em um bar perto de Alonso Martínez. Fomos. De lá, vocês já viram 300? Ah, então vamos. Caminhamos até o cinema no centro da cidade, onde conseguimos ver o filme na versão original.

 

Aliás, adorei os efeitos especiais do filme. Digo, aqueles abdômens especiais. Vamos combinar, aquilo não pode ser sério, né? Vem cá, 300 homens sem nem uma barriguinha?

 

Na saída, nossa amiga havia contado que a terraza do Hotel Reina Victoria já estava aberta. Ai, que curiosidade! Vamos dar uma passadinha? Já estamos do lado mesmo. Pois o lugar é o máximo! Fizeram um ambiente com um toque oriental, chic e despojado. Alguns sofás, futons, mesinhas e uma vista privilegiada da Plaza de Santa Ana. Voltaremos.

 

Apesar do feriado, de nós quatro, só eu não precisava trabalhar hoje. Portanto, dalí voltamos para casa. Satisfeitos, dia bom. Moving song…

109 – Como ir a Salamcanca via Barcelona: a viagem que foi sem ter sido

As quintas-feiras estão se tornando dias de boas surpresas. Outra vez Luiz viajava e eu não tinha lá grandes planos. Cheguei a mandar uma mensagem para minha amiga espanhola que dança salsa aqui perto, perguntando se ela passaria em casa. Ela até respondeu, mas a resposta custou tanto a chegar, que bem antes disso ela bateu na minha porta.

 

Sinceramente, isso era pouco depois das nove e já estava cogitando colocar meu pijamão. Bom, mas daí ela apareceu e me animei. Segundos depois de abrir a porta para ela, outra amiga brasileira liga perguntando sobre os planos para a noite. Ué, vem para cá você também. Ela só podia um pouco mais tarde, mas estava com outro amigo que topou vir naquela hora e ela se juntaria assim que desse.

 

Com minha geladeira anoréxica, mal que ela padece quando Luiz viaja, descemos para o Trifón e tomamos posse da nossa velha barrica de guerra.

 

Conversa vai, conversa vem, a amiga espanhola precisou ir, prometendo voltar na próxima quinta. Ficamos eu, a amiga e o amigo brasileiros. A última rodada de café, ofereci em casa, obviamente, com minha super cafeteira nova. Agora, todo mundo que vem aqui tem que tomar café!

 

Enfim, esse povo toma um vinhozinho e fica um perigo! Vira meu amigo e diz que alugou um carro para o fim de semana. Ele queria ver não-sei-quem em Barcelona… minha amiga também com um rolinho em Barcelona… então, por que mesmo nós não vamos amanhã para Barcelona? E eu? Bom, não tinha ninguém para ver em Barcelona, mas por que não? Temos uma amiga legal que mora em Barcelona, serve? Vou ficar fora dessa? Nem morta.

 

O pequeno detalhe é que Luiz estava em Milão e só voltava para Madri no início da noite de sexta. Já sei, ele troca a passagem dele para Barcelona, pronto! Então, combinado.

 

Como era um pouco tarde, não quis ligar para Luiz e acordá-lo. Mandei um e-mail para ele ler logo cedo, avisando dos planos malévolos.

 

De manhã me liga ele: como assim? Que? Onde? Quando? Mas a passagem não pode ser mudada. Preciso voltar para Madri e pegar outro avião para Barcelona. Então vê os preços para mim. Quanto? Peraí que estou chegando no escritório, já te ligo?

 

Nesse caso, deixa eu confirmar mesmo se o povo vai ou foi só empolgação do vinho. Liguei para minha amiga que estava de malas prontas desde cedo. A idéia era saírmos por volta das 15:00horas. Beleza, só precisava esperar Luiz ligar de volta para me confirmar. Mas cadê o Luiz? Ele simplesmente desapareceu em uma reunião interminável.

 

Daí ficávamos nós três nos ligando para saber o que fazer. A não-sei-quem do meu amigo não estava, o rolo da minha amiga muito menos e eu sem saber se Luiz iria ou não. O que mesmo a gente vai fazer em Barcelona, hein?

 

E se a gente fosse para um lugar mais perto? O Luiz não precisava pegar avião, a gente sequestrava ele no aeroporto e seguia viagem. Salamanca? Salamanca é legal e ainda dá para dar uma esticadinha até León. Fechado!

 

E meu gato? Que faço com meu felino? Levá-lo seria até maldade, porque é muita viagem de carro sem sossegar em canto nenhum. Plano “A”, deixar um montão de comida para ele. Ele gosta de companhia, mas sozinho mesmo seria só o sábado. Plano “B”, achar uma alma caridosa que possa dar uma passadinha em casa de vez em quando para ver se está tudo bem. Felizmente, o plano “B” deu certo e fui correndo deixar a chave com uma amiga que me quebrou esse galho.

 

Luiz finalmente apareceu, um pouco mais animado/conformado com seguir viagem para Barcelona. Onde você se meteu? Não, não, mas não vamos mais para Barcelona, agora é Salamanca. A gente passa no aeroporto e te pega. Levo roupa para você.

 

A verdade é que Luiz gostou muito mais dessa opção, e cá entre nós, eu também. Os amigos animados e lá pelas dez da noite, chegamos em Salamanca.

 

O hotel ma-ra-vi-lho-so a um preço de pegadinha. Ficamos no Melia Las Claras Boutique. A cidade super alto astral, linda! Só baixamos as malas no hotel, trocamos de roupa rapidinho e fomos para rua.

 

Acho que estávamos na mesma boa onda e tudo ficava divertido. Ninguém tinha planos rígidos de ir a lugares muito definidos, portanto o que aparecesse a gente aproveitava. Só o nosso amigo conhecia a cidade, para nós três era tudo novidade.

 

Começamos por um bar de tapas, que obviamente não prestei atenção no nome. Mas era um lugar de aparência tradicional e que estava bem cheio. Demos sorte e literalmente voamos em uma mesa liberada entre distraídos logo no início. Papo bom… vinhozinho… abrimos e fechamos vários negócios… fizemos planos possíveis e impossíveis… e fomos os penúltimos a ir embora do lugar.

 

De lá, nosso amigo nos encaminhou a uma rua onde haviam vários lugares para dançar. A princípio iríamos em uma tal de Camelot. As boites costumam contratar uns rapazes ou moças como se fossem relações públicas, que ficam na rua tentando convencer os passantes a entrar na casa onde trabalham. Parte desse convencimento, inclui oferecer um drink. Muito bem, pois no caminho para a Camelot, um desses relações públicas nos abordou com um sotaque familiar. Claro que o sujeito era brasileiro e, verdade ou não, nos disse que onde iríamos só havia pirralhada, que a dele era muito melhor. Tá bom, conterrâneo, vamos te ajudar! Fomos na Capitolio. E não é que incrivelmente a música estava boa! Além de uma rodada de bebida grátis!

 

Chutamos o baldinho, mas uma hora achei que Luiz estava realmente cansado. Voltamos para o hotel mais cedo que nossos amigos. Verdade que mais cedo é só maneira de dizer. Pegamos chuva no caminho e nos perdemos um pouco. Nem assim perdi o bom humor.

 

Uma coisa engraçada é que pela cidade haviam vários rapazes vestidos com uma roupa preta meio medieval, uma calça curta um pouco bufante e uma capa de príncipe. Acho que essa roupa se chama tuna. Vamos combinar que se o menino tem mais de oito anos, a roupa é bem ridícula, mas por outro lado, um cidadão precisa ter uma grande auto estima para sair vestido assim na rua sem se importar. Bom, digamos que tenho uma certa amiga que também não se importou muito em relacionar-se com um mocinho de calça bufante e capa negra, afinal de contas, quantas oportunidades na vida existem para você ficar com um príncipe encantado?

 

Nosso amigo descobriu um afther hours e emendou sua noite até amanhecer.

 

No dia seguinte, quem é que conseguia pensar em dirigir até León? Todos de ressaca! E nem assim perdemos o bom humor.

 

Luiz, eu e nossa amiga passeamos pela cidade a pé. Até pegamos um trenzinho que faz um tour de 20 minutos, é um pouco pagação de mico, mas em uma cidade onde os rapazes se vestem de príncipe, por que não andar de trenzinho?

 

Dia de primavera super bonito. Pelo meio da tarde sentamos em uma vinoteca, quase em frente ao hotel, com mesinhas e cadeiras confortáveis do lado de fora. Começamos meio devagar, com água e coca-cola. Sentamos ali para esperar nosso amigo que ainda não tinha conseguido acordar. Acontece que o lugar era ótimo! Comi o melhor hamburguer da Espanha, gourmet mesmo. Na verdade, comemos um monte de coisinhas gostosas e tomamos um vinho branco geladinho. Nosso amigo se juntou a nós e ficamos horas aproveitando o sol agradável.

 

Mas foi batendo uma lombeira daquelas! Quer saber, que tal aderir ao costume local e fazer uma bela siesta? Fechado! Aproveitei também para mergulhar em uma banheira de espumas e esquecer um pouco do aquecimento global e da falta de água no planeta! Só hoje, prometo me comportar no resto do ano!

 

Anoiteceu e fomos caminhar na Plaza Mayor. Chegamos no tempo perfeito para ver a iluminação ser ligada e a praça mudar de cara e de cores. Ao redor da praça, assim como nas igrejas, há uns medalhões com rostos esculpidos em alto relevo, como se dessem uma saidinha para olhar na janela. Isso não é comum, normalmente se fazem pinturas ou esculturas de corpos e bustos. Essa coisa mesclada com relevo, assim tridimensional mas ao mesmo tempo lembrando um quadro, é difícil encontrar. Na praça tocava uma banda de jazz, que não interessou muito ao resto do grupo. Fui andando bem devagarzinho para aproveitar o máximo possível das notas e de como elas ajudavam a colorir a praça.

 

Em uma das ruelas que saem da Plaza Mayor, encontramos um restaurante bem no meio de um pátio interno, meio escondido e charmoso, chamado Valencia. Fome mesmo, não tínhamos tanta, afinal, exageramos na vinoteca. Mas comer e coçar…

 

De lá fomos dançar um pouco, não consigo me lembrar mais o nome da boite. Era bem maior do que parecia por fora e de decoração medieval interessantíssima. Já a música estava bem ruinzinha, espanhola demais. Nos divertimos do mesmo jeito, mas não ficamos até tão tarde. É duro admitir, mas estou ficando velha, ainda aguento um pique acelerado, mas meus dias seguintes são fatais.

 

E no dia seguinte a esse, domingão, acordamos tarde, colocamos as malas no carro e tomamos direção à serra Peña de Francia. Uma subida razoavelmente vertiginosa e uma vista muito bonita. Aliás, com a quantidade de chuva que caiu no país esse ano, está tudo verde pela estrada. Seguimos em direção a La Alberca, onde almoçamos muito bem. Aliás esse pueblo é uma surpresa, uma arquitetura diferente da dos arredores, bonitinha mesmo e com ótimos restaurantes.

 

Na estrada para Madri, ainda passamos ao lado das muralhas de Ávila. Pegamos um pouco de trânsito na entrada da cidade e estávamos em casa por volta das 20:00 horas.

 

Meu gato estava indócil e não sabia mais o que fazer para se exibir! Ficava até engraçado subindo e descendo a escada, miando, fazendo gracinha… é uma figura mesmo!

 

Pois bem e assim passamos o fim de semana. Não fomos nem a Barcelona nem a León e quem mesmo está reclamando? Sempre bom ter um pretexto para mais uma boa viagem. Mas também acho que a próxima viagem de trabalho do Luiz, na quinta-feira, vai deixá-lo meio na dúvida do que faremos com ele na volta.

110 – Monotemática

Ando ansiosa e monotemática. Quase não consigo pensar ou falar nada que não seja ou não esteja relacionado ao Caminho de Santiago. Agora falta pouco mais de uma semana para começá-lo. Nem acredito.

 

No último mês, tenho andado diariamente em ritmo pesado por pelo menos duas horas, faça chuva ou faça sol. Não tive nenhuma bolha, o que é muito animador. Ou seria anima-dor? Porque todo dia me dói, ou o joelho, ou a coluna, ou os pés, ou os músculos…. Está melhor, porque antes doía tudo junto ao mesmo tempo.

 

Hoje me perguntaram se estava preparada fisicamente. Respondi pela primeira vez que estou e com a consciência tranquila. Não quer dizer que acredite que vá ser fácil, mas finalmente acredito que é possível.

 

Acontece que acho que essa parte física talvez não seja a mais complicada. Ou mal ou bem, sempre se pode caminhar menos ou mais devagar. É o que o Caminho representa  e suas possíveis consequências que tem me posto para pensar.

 

Essa semana uma amiga me trouxe uma reportagem da Newsweek que tratava desse tema, de uma certa onda que parece haver surgido no que diz respeito ao redescobrimento do poder da peregrinação. Estaria eu nesse movimento mundial sem ter me dado conta? Pois se já está difícil entender meus próprios motivos, imagina tentar entender o dos outros. Resolvi deixar um pouco de lado o inconsciente coletivo e concentrar no meu umbigo.

 

Tenho curtido muito cada passo que é dado. Comprar equipamento, testar as roupas, amaciar os sapatos, ler, planejar, pesar, abrir mão do vinho, acordar mais cedo e andar até as pernas anestesiarem. Surpreendentemente, aproveito momentos antagônicos ao meu estilo de vida.

 

A questão é que me caiu uma ficha intrigante. Todo esse tempo tenho procurado manter as expectativas no seu devido lugar. Não me vejo em uma fase de grandes transformações, não vou buscar revelações nem respostas. Só quero usar o privilégio de poder pensar um pouco na vida fora do contexto habitual. Quero as metáforas, quero ocupar minha cabeça com coisas básicas, com os próximos quilômetros, o que vou comer e onde vou dormir. Esse é um luxo primário que nem todos querem ou podem. Mas me ocorreu que essa história pode se inverter. Percebi que estava me preparando para não mudar e não me decepcionar com isso, simplesmente caminhar. Até hoje, não havia contado com uma probabilidade concreta: e se funcionar? E se eu tomar grandes decisões? E se minha vida mudar? A única coisa que não me preparei até agora é justo o que todo mundo normalmente busca ou relata.

 

A verdade é que se for olhar mais de perto, já mudei. A forma com que tenho tratado meu corpo, a saúde, os limites e a maneira de ver as coisas não é definitivamente a mesma. Portanto, entre crenças e descrenças, melhor não subestimar o poder do caminho.

 

Confesso que isso me assustou um pouco, mas acho que essa consciência foi um passo importante. Não sei o que vai acontecer e não posso por o carro diante dos bois, mas devo estar atenta a possibilidades diferentes. Preciso de um amuleto rápido.

 

Proteção eu tenho, não posso reclamar. Gente do bem tem cruzado meu caminho e o caos conspira a favor. Tive companhia para caminhar por praticamente todo o treinamento, conheci pessoas que tem compartilhado informações preciosas, não estarei sozinha durante o trajeto e Luiz me apoia. É um excelente começo que espero poder retribuir em algum momento.

 

Por agora, só posso dizer que preciso ir e preciso andar…

 

Deixe-me ir preciso andar,
Vou por aí a procurar,
Sorrir pra não chorar
Deixe-me ir preciso andar,
Vou por aí a procurar,
Sorrir pra não chorar

Quero assistir ao sol nascer,
Ver as águas dos rios correr,
Ouvir os pássaros cantar,
Eu quero nascer, quero viver

Deixe-me ir preciso andar,
Vou por aí a procurar,
Sorrir pra não chorar
Se alguém por mim perguntar,
Diga que eu só vou voltar
Depois que me encontrar

 

Candeia

111 – Troca de Pele

Hoje é quarta-feira, dia 23 de maio. Nesse domingo, pela manhã, chega em Madri a amiga que fará o Caminho de Santiago junto comigo. Viajaremos de trem no domingo à noite e chegaremos em Pontferrada na madrugada de segunda. É o único hotel reservado, considerando que chegar quase às 4 da matina e procurar um lugar para ficar pode não ser uma boa idéia.

 

No dia 28, descansaremos e conheceremos a cidade. No dia seguinte, iniciamos a caminhada para valer. Serão 200 Km a pé até Santiago de Compostela, mas prefiro pensar na quilometragem de cada dia, assim só preciso andar 25.

 

A partir de Pontferrada, fiz um roteiro baseado em informações de amigos, guias e websites. Como não queremos, pelo menos a princípio, ficar nos tradicionais albergues, procurei as cidades com alguma estrutura de hoteizinhos ou pousadas. Os preços, inclusive, são muito razoáveis e um pouco de privacidade e conforto não é mal. Em teoria, não parece difícil, mas vamos ver na prática.

 

De qualquer forma, tento não ser tão rígida, o planejamento é bom para ir entrando no clima e se preparar para o percurso. Mas treino é treino e jogo é jogo. Então, melhor ter algumas cartas na manga e alternativas de acordo com o que formos passando pela estrada.

 

Devemos levar entre 8 e 10 dias para chegar a Santiago. Às vezes acho que prefiro mesmo fazer em 10 dias. Não sei se vale à pena apressar a chegada. Como já comentaram comigo e concordo, talvez seja melhor curtir bem o caminho.

 

Nossos maridos, que também são amigos, não quiseram caminhar. Correndo o risco de ser mal interpretada e sendo brutalmente sincera, achei melhor assim. Uma opção é exatamente o que a palavra significa, uma escolha, se for obrigatório não faz o menor sentido. Depois, acho que independente de ir sozinha ou acompanhada, o caminho é absolutamente individual. A companhia traz um pouco mais de segurança. Mas nesse momento, preciso da minha solidão e de algum silêncio. Sei que minha amiga respeitará essa condição e farei o possível para não atrapalhá-la também.

 

…tá bom, tá bom… vou levar o celular, afinal ninguém é de ferro! Não ficarei 10 dias sem falar com o Luiz, mas nem morta!

 

O marido da minha amiga deve nos encontrar no primeiro fim de semana, pelo meio da caminhada. Ele se ofereceu para, nessa parte do percurso, levar as mochilas ou quem sabe uma caroninha. No fundo, acho que ele imagina que a essa altura o que mais a gente desejará é um pouco de mordomia. Mas a verdade é que tenho praticamente certeza que não.

 

Engraçado, porque assim que soube que ele nos encontraria, lógico que me animei, será bom ver um rosto conhecido e para ela mais ainda. Automaticamente, quando olhei o roteiro pensei que talvez fosse melhor pular uma das cidades caminhando e ir direto a outra de carro, onde a estrutura de hotel é melhor, assim ele aproveitaria mais o fim de semana e nós ganharíamos um dia de caminhada. Pois me peguei absolutamente triste com essa idéia.  Afinal de contas, qual seria a graça? Não devo satisfações sobre o caminho a ninguém, só fiz a credencial peregrina por uma questão de segurança e porque gosto de um ritual. Então, por que me sabotaria e pularia uma parte? Na-na-ni-na-não, continuo achando que será ótimo encontrá-lo, quem sabe o descanso da mochila por um dia até tope, mas salvo alguma lesão física (isola!), da estrada ninguém me tira!

 

Já o Luiz, vai direto de carro para Santiago de Compostela, nos encontrar no fim do caminho. Eu mesma pedi. Não faço questão que ele esteja no trajeto, mas tenho o pressentimento que a presença dele será importante para mim no final. Se não der, paciência, outra vez, foi minha a escolha. Mas que ia gostar, bem que eu ia.

 

Nem tudo é tão sério e muitas vezes me divirto com as piadinhas que fazem comigo. Tem duas que cada vez que lembro fico rindo sozinha.

 

Uma delas foi um dia que estávamos com amigos em um bar e de lá, quando íamos para outro lugar, ficou aquela dúvida se a pé ou de taxi. E eu, por mim, vou andando! E o Luiz, agora tudo ela quer caminhar, e ele e uma amiga ficavam para mim: run Forest, run!

 

Outra, Luiz e amigos imaginando os outdoors que deveriam haver pela estrada do Caminho de Santiago. Propaganda de hotel com foto daquela banheira maravilhosa de hidromassagem e o texto: caminhe, mas fique no hotel “X”, 5 estrelas.

 

O mais hilário é como fico ridícula caminhando com o “modelito peregrina” pelas calçadas de Madri. Claro que preciso treinar vestida a caráter. Não tem nada demais, mas fica gozado quando fora do contexto. Quem é que sai para andar na rua com botas de trekking, um único “stick” de montanha, imitando um cajado, e mochila? Pior, para ter certeza de quantos quilos estou carregando, coloco na mochila uns pacotes de arroz e feijão. Ou seja, ainda por cima levo comida para passear!

 

E o bonezinho que comprei, com um tipo de saia atrás da nuca, para proteger melhor do sol? Até eu quando me olho no espelho tenho vontade de rir, imagina os outros? Esse, para ser franca, não tive coragem de sair na rua. Vai ficar para a estrada mesmo. Tudo bem que uso meus óculos escuros da invisibilidade, mas dignidade tem limite!

 

Fora que mulher é fogo! Minha amiga e eu conversando pelo skype sobre os preparativos… aquele assunto sério, elevado… de repente vira ela, e o melhor você não sabe, tenho uma amiga que fez o Caminho e perdeu 12 kgs! E eu, jura, beleza! A gente pode patentear a Dieta de Santiago, é só caminhar pelo menos 100 km, comendo mal e dormindo pouco… Chegamos a conclusão que na pior das hipóteses a gente ia emagrecer! Se não me encontrar nem me elevar enquanto ser humano, ao menos minha bunda ficará mais dura, pronto!

 

Enfim, um pouco de bom humor também ajuda! Alivía o nervoso que dá por se aproximar do início. Ai, que mêda!

 

Nessa última semana tivemos hóspedes. Fica corrido conciliar os treinos e principalmente a cabeça que vai longe, mas com boa vontade a gente dá um jeito. Talvez até tenha sido bom mudar em parte o tema da conversação.

 

Um dos programas que fiz com eles foi levá-los a um hamman, ou banho turco. É um excelente lugar para relaxar. Além das piscinas térmicas, a gente faz uma massagem no final. A massagem que escolhi foi esfoliante. Aproveitei e, quando cheguei em casa, fiz esfoliação no rosto também. De repente me vi pensando, que engraçado, hoje resolvi abandonar toda a pele morta. Até minha pele mudei.

 

Outra vez não sou a mesma, outra literal troca de pele, ainda que não tenha certeza do que isso signifique. Também não sei se estou no preparo físico ideal, mas é o melhor que já estive.

 

Vou, estou pronta.

 

Do I contradict myself? Very well, then I contradict myself, I am large, I contain multitudes (Walt Whitman)