79 – … seguindo por Val d’Isere e nosso roteiro gastronômico

No dia 01 de Janeiro de 2007, ao contrário das possíveis previsões, acordamos sem um pingo de ressaca e ainda muito animados.

 

O casal de amigos brasileiros dormiu no nosso flat e não sei o que aconteceu, mas parece que o quarto cresceu sozinho! Tudo deu certo. Entretanto, amanheceu nevando bastante e não seria prudente que eles pegassem a estrada de volta para Suíça. Já que havia dado tudo tão certo, oferecemos que eles ficassem mais uma noite e eles toparam.

 

Nesse dia não deu para esquiar, estava uma mescla de neve e chuva e as pistas fecharam. Daí, aproveitamos para circular pela cidade, conhecer as lojas e, claro, comer e beber bem.

 

Tentamos ajudar um pouco nossos amigos brasileiros nas compras e demos algumas dicas que aprendemos apanhando. É que quando a gente vem de um país tropical, as coisas que parecem tão óbvias, às vezes não são.  Você aprende, por exemplo, que há pelo menos três invernos: o friozinho, o friozão e o frio com neve. Para cada um deles existe roupa e sapatos apropriados.

 

Enfim, para variar, à noite foi outro jantar gastronômico! Comecei a ficar muito mal (ou bem) acostumada. A gente nem queria mais saber de escolher, todo mundo partia para o menu degustação. Outro banquete fenomenal, dessa vez no restaurante do hotel Christiania. E eu pensando, caraca, vou ter que esquiar muiiiiito para queimar todas essas calorias!

 

No dia seguinte, nossos amigos brasileiros se foram, deixando saudades. Ficaram os amigos americanos e fomos esquiar em pistas diferentes, com a proposta de nos encontrarmos pelo meio do dia.

 

Luiz e eu começamos na pista debutante, para eu ganhar confiança novamente. Depois partimos para outra pseudo-verde, que não era tão grande quanto a do primeiro dia, mas tinha uma ladeirinha muito da sacana. Pronto, travei outra vez. Sabia que estava fazendo alguma coisa errada, mas não conseguia entender o que. Desci duas vezes, na esperança de melhorar, mas o que acabou acontecendo foi eu tomar um baita de um tombo, acho que foi o pior que já levei, daqueles em que você não tem certeza de que lado fica o mundo. Levantei bem aborrecida, não pelo tombo, mas pela incompetência, e decidi: chega! Agora só piso nessa bosta de neve com um instrutor! Luiz já tinha companhia para esquiar e eu precisava sair do limbo.

 

Fomos almoçar emburrados, Luiz porque eu não podia aprender a esquiar com ele, e eu porque não conseguia aprender a esquiar com ele. Parece a mesma coisa, mas não é. Enfim, estava decidido, no dia seguinte faria uma aula com um instrutor profissional.

 

Jantamos no “La Raclette”, com uma tradição de 40 anos e onde o próprio nome indica a especialidade. Nesse dia nos iludimos que comer uma raclettezinha básica seria mais leve, o que obviamente foi pura hipocrisia. Outra vez exageramos.

 

A diferença é que estava um frio do cão, nevando e a caminhada era razoável. Boa notícia, pois queimaríamos calorias no caminho. A preocupação não era com o peso e sim em como dormir depois de toda aquela comida. No início, poderia parecer desanimador, mas na prática foi extremamente divertido. Foi a primeira vez em que adulta brinquei na neve sem me importar com nada, muito menos com quem pudesse estar olhando.

 

Dalí, nos dirigimos ao Le Graal, que realmente deve ser santo, pois foi um parto encontrá-lo. É uma boite com uma estrutura de cidade grande. Ótima música, excelente iluminação, bebidas carésimas e público muito jovem.

 

Aliás, essas pessoas tão jovens e tão ricas, me perturbaram um pouco nesse dia. Em que momento é decidido quem são os elegidos? Será que essas pessoas tem alguma idéia do que passa no resto do mundo? Por que o contraste é tão grande? Senti um misto de raiva e incompreensão. Quase cheguei a me revoltar, quando pensei que talvez também tivesse um pouco de inveja. Não inveja das pessoas, mas dessa irresponsabilidade e falta de consciência do que ocorre em volta, dessa doce ignorância e de todas essas possibilidades. Pensei que também estava ali e também não sei porque eu. Resolvi só dançar.

 

Quando entrou a madrugada, resolvemos voltar para casa. Até porque queríamos esquiar no dia seguinte. A boite oferecia condução, mas preferimos voltar a pé. Ainda queríamos brincar no caminho. Na prática, nós quatro voltamos à infância, talvez o álcool tenha ajudado, não importa,  derrapamos no gelo, fizemos snow angel no chão, guerra de neve e tudo mais que pudéssemos pensar.

 

Acordamos um pouco cansados e só conseguimos esquiar por volta da hora do almoço. Finalmente, tinha um instrutor. Era um coroa francês alto, que falava meia dúzia de frases em inglês e que me inspirou confiança. No início, Luiz nos acompanhou e ele nos levou até um lado da estação que não conhecíamos. Na verdade, achei a melhor parte, com boas pistas e menos movimentada.

 

Nossos amigos americanos nos encontraram e foi ótimo, porque assim Luiz ficou com eles e pude me concentrar melhor na minha aula. Sou muito desligada, preciso de concentração absoluta.

 

De cara, o instrutor me deu alguns exercícios onde descobri finalmente qual a burrada que estava fazendo nas curvas. Estava jogando o peso do corpo para o lado errado, nunca ia dar certo. Uma bobagem que não dava para perceber em uma pista pequena, mas em uma descida mais íngrime era fatal. Ele foi me dando uma série de outras dicas também, mas essa foi a mais importante.

 

A nossa comunicação verbal era algo estranho, entre um inglês macarrônico, meu ínfimo francês e eventualmente algo de italiano. O que importa é que depois de um tempo ele ia na minha frente e eu imitando. E assim é o melhor jeito. Quando dei por mim, havia descido uma bela verde sem grandes problemas e sem ferrar meu joelho.

 

Depois de duas horas esquiando, fizemos um pequeno intervalo. Ele queria me levar para uma pista azul. Ai, que mêda! Encontramos com Luiz e nossos amigos em um bar, eles também aproveitaram para descansar um pouco, porque havia iniciado uma tempestade de neve e estava muito difícil esquiar.

 

Mas o que iria fazer? A aula já havia começado e teria que pagar de qualquer jeito, já estava no topo da montanha e não estava indo mal. Então, paciência, voltamos para a pista, o instrutor e eu, com a tempestade de neve mesmo. Ele não estava dando a mínima, acho que estava acostumado, e nesses momentos, às vezes a única opção é dar uma chance ao caos.

 

Vou dizer que frio não estava sentindo, acho que o exercício e a adrenalina cuidavam desse assunto, mas a visibilidade era simplesmente horrorosa. Você só era capaz de enxergar uns dois metros à frente, mesmo assim, porque peguei os óculos emprestados da minha amiga. Foi quando pensei que talvez isso estivesse ao meu favor, porque ao não ver bosta nenhuma para baixo, também não me dava medo nem vertigem. Não havia nenhuma outra alternativa que não fosse a de seguir o instrutor, rápido, e bem de perto!

 

A melhor parte foi um pedaço em que a neve estava super alta e fofa. Quando a gente faz a curva, parece que passou uma navalha na lateral da montanha. Pesa um pouco mais, mas como meu esforço estava menor nesse dia, graças ao posicionamento corrigido, não senti tanto, e a velocidade mais baixa era ao mesmo tempo mais suave. Estava esquiando nas nuvens. E quando me dei conta, havia finalmente descido uma azul!

 

Ele perguntou como eu estava, content? E eu, fatigué et très content! Dizer isso com a cara roxa pela temperatura, enxarcada e com o nariz escorrendo, foi um tanto bizarro, mas era a mais pura verdade. Estava cansada e muito feliz.

 

O instrutor queria continuar, desconfio que me levaria para uma vermelha. Acontece que estava pedindo arrego. Juro que não por medo, a essa altura não fugiria da raia, mas é que o tempo estava realmente cada vez pior e já não enxergava mais nada.

 

Daí ele topou e disse para pelo menos descermos a primeira verde para eu ver a diferença. Realmente, depois da azul, a verde foi tranquila.

 

Encontrei com Luiz e nossos amigos no Le Bananas. Eles haviam desistido de esquiar assim que a tempestade começou. Me perguntaram como foi a aula. Não sei exatamente como foi, imagino que tenha feito várias bobagens, mas considerando que havia descido uma pista azul, no meio de uma tempestade de neve, estava ali com a cara queimada de gelo e ainda por cima sorrindo, posso dizer que foi ótimo.

 

Voltei para o hotel um pouco antes deles, estava louca para tomar um banho. Eles ainda ficaram pela rua assistindo as atrações, como mágicos engulidores de fogo, escultores de neve e reis magos caminhando sobre pernas de pau. Eu fui para meu próprio planeta de água quente comemorar a musculatura dolorida.

 

Nesse dia fomos outra vez comer raclette, agora no “La Casserole”. Fomos um pouco mais comedidos e pela primeira vez tomamos um vinho mais ou menos. O bom humor era tanto, que até isso virou piada. Mudamos para um melhor e a raclette estava uma delícia. Fiquei doida para comprar um aparelhinho daqueles para fazer em casa. Acho que poderia comer queijo todos os dias.

 

No dia seguinte, não deu para esquiar, nem lembro o que fizemos, acho que aproveitamos para rodar pela cidade outra vez. O jantar sim, para variar, prometia, era o último dia dos nossos amigos americanos em Val d’Isere e eles queriam fechar com chave de ouro. Fomos ao La Table de l’Ours, o único restaurante com estrela Michelin do local.

 

Putz! Chutamos o baldito! Mas vou recomeçar com um pouco mais de classe, porque o restaurante merece. Lugar elegante, atendimento cortês e um quarteto cantando à capela pelas mesas. Outra vez optamos pelo menu degustação, que contava com seis pratos, acompanhados por sete vinhos, porque ganhamos uma taça de cortesia. Aliás, foi o melhor dos vinhos, o sommelier nos favoreceu.

 

Para esticar a noite, fomos para o bar do hotel Les Barmes de l’Ours, onde fica o restaurante, e compartilhamos um puro seguido de champagne, whisky, caipirinha e duas doses de alguma coisa que o barman queria que provássemos! Como é que isso poderia dar certo?

 

Foi maravilhoso, mas no dia seguinte a gente mal conseguia levantar da cama. Aproveitamos para descansar um pouco da maratona. Nesse dia não quis saber de nenhum outro líquido que não fosse água. Nem sair para jantar nos animamos. Compramos um franguinho de televisão e estamos conversados.

 

Na manhã seguinte, pé na estrada novamente, em direção a Madri. Como a viagem seria muito longa, reservei um hotel para a gente dormir e quebrar o trajeto em dois. Reservei um Relais & Château em Puigcerdà, chamado Torre del Remei. Claro que esqueci de anotar o telefone e o endereço do hotel. Tivemos que ligar do caminho para minha mãe fuçar na internet e descobrir para a gente.

 

Quando chegamos, fiquei encantada, o lugar era realmente um charme! Olhei com aquela cara de cachorrinho pedinte para o Luiz e ele topou ficarmos mais uma noite. Queria esticar minhas férias de Cinderela, antes de tornar a virar Gata Borralheira.

 

E como não poderia deixar de ser, o restaurante desse hotel também é fora de série e muito bem conceituado. É conduzido por seu dono, o chef Josep Maria Boix. Posso afirmar que foi um dos melhores lugares onde já comi. Não é simplesmente o que você come, mas o ponto em que está, a combinação de ingredientes, aliado ao ambiente, ao serviço discreto, ao guardanapo de linho, a louça elegante, enfim, todo um conjunto de fatores que ao final é capaz de te provocar emoções.

 

O meu cardápio foi simples e genial ao mesmo tempo. De entrada, um pure de batatas, com ovo pochet, foie gras e trufas. E aí que considero entrar a genialidade, nenhum desses ingredientes é excepcional ou desconhecido, teoricamente qualquer um faz, mas o pure de batatas possuía uma determinada consistência cremosa perfeita. O ovo pochet no único ponto possível, sem a clara nojenta e com aquela geminha divina se misturando ao creme de batata. O foie fresco, cortado em uma fatia fina, onde a parte de cima era dourada, sem passar do ponto em seu centro. E o golpe de misericórdia, a trufa com espessura de uma folha, delicada e cheia de personalidade. Isso não é o paraíso? De prato principal, um confit de pato. E outra vez, na consistência e ponto perfeitos. Quando você não tem absolutamente nada a adicionar ou reduzir.  Acompanhamos com um Alión, vinho de Ribera del Duero, em homenagem à nossa volta à Espanha. E para terminar, um suflê de chocolate, por puro olho grande.

 

No segundo dia, só queria café na cama, descansar e morgar na banheira. Não dormimos tão tarde, nem exageramos, pois a estrada ainda era longa para chegar em Madri.

 

Como em todas as outras partidas, Jack se escondeu embaixo da cama na hora de sair, mas se comportou muito bem pelo caminho. Quando chegamos em casa, definitivamente, nosso felino era o mais feliz por voltar. A rotina simples para ele é tudo de bom, como esse gato é esperto.

 

E assim terminamos nossa viagem, duas semanas depois e dois quilos a mais. Faz tempo que não consigo aproveitar tanto em férias tão completas, com direito a descanso, esporte, gastronomia, farra, desafios… realmente me desliguei do universo.

 

Agora é voltar à realidade. E pensando bem, não é nada má. ¡Que venga 2007!

Madri, 30 de dezembro de 2006 – Uma história que não saiu na imprensa

No dia 30 de dezembro de 2006, às 9:00 da manhã, a banda terrorista ETA explodiu um carro-bomba em um dos estacionamentos do terminal 4 de Barajas, aeroporto internacional de Madri. O atentado se produziu em pleno processo de paz, quando a banda terrorista havia declarado “alto fogo permanente”. Morreram dois equatorianos, Carlos Alonso Palate e Diego Armando Estacio. Segundo a imprensa, cerca de vinte e seis pessoas ficaram feridas levemente com a explosão.

 

Maiores detalhes sobre o atentado e o grupo terrorista, com meia dúzia de clics pela internet, qualquer um pode buscar. Portanto, vou me abster de posicionamentos políticos e simplesmente contar uma história que ouvi essa manhã.

 

Fui levar meu gato na veterinária, que normalmente é bem simpática, mas hoje nos atendeu com um rosto meio sério e abatido. Ao longo da consulta, foi desabafando o porquê. Ela estava no aeroporto, com seu carro estacionado, no momento e local em que a bomba explodiu.

 

Depois de dois anos morando no país, é a primeira vez que conheço alguém que estava diretamente envolvida, como vítima, em algum dos atentados terroristas do ETA.

 

É estranho, mas para a gente que vem do Brasil e vê tanta violência nas ruas, de uma maneira meio maluca, minimiza os danos causados pelo terror. Digo por mim, algumas vezes minha família e alguns amigos me perguntaram sobre como era a convivência com a possibilidade de um atentado. Francamente, me parecia uma pergunta absurda e exagerada. A probabilidade da violência me tocar aqui é muito menor que no Brasil e ainda por cima, os terroristas do ETA costumam avisar sobre as bombas, já que a estratégia é produzir danos econômicos e não pessoais. Não estou colocando essa situação de uma maneira simpatizante aos atentados, pelo contrário, porque com ou sem vítimas fatais, são hediondos e ponto final. Só estou dizendo que nunca me senti ameaçada até hoje. E pior, nunca havia entendido o quanto todo esse processo foi capaz de ferir uma nação e porque.

 

Ouvir a história, olho no olho, me emocionou. Vi uma realidade que não queria, mas que está aí.

 

Começando pelo começo, essa veterinária foi buscar um amigo no aeroporto e estava esperando no carro, lendo, com seu cachorrinho. O amigo chamou pelo celular, dizendo que estava com muitas malas e se ela poderia descer e ajudar. Por isso e só por isso, ela saiu do carro, mas deixou o cão, já que precisaria das mãos para ajudar com as malas. Deixou os vidros um pouco abertos para o cãozinho respirar e se foi pelo que seriam alguns minutos.

 

Literalmente, alguns minutos depois, quando voltou ao estacionamento, a entrada estava bloqueada pela polícia, que avisou haver um risco de bomba. Ela se assustou e disse que precisava buscar seu cão. Os policiais disseram que não havia jeito e que eles se afastassem e pegassem o ônibus para deixar o terminal.

 

Ela disse que sem o cão não abandonaria o terminal e foram os dois, ela e seu amigo, para uma cafeteria no local, esperar a história se resolver. O lugar estava cheio e nenhum dos dois acreditou que haveria mesmo uma bomba. Ligou para a clínica veterinária, para avisar do imprevisto e que poderia se atrasar.

 

Pois durante a ligação, com o celular conectado, a bomba explodiu. Os vidros todos se romperam e houve muita, mas muita gente machucada. Bem mais do que as 26 pessoas que a imprensa anunciou. Ela olhou para o elevador que eles haviam acabado de pegar e simplesmente não existia mais.

 

No meio da confusão, queria voltar para tentar localizar o cão, mas óbviamente, naquele momento quando poderiam haver várias vítimas humanas, ninguém dava muita atenção. As pessoas foram removidas para perto da pista, sob o risco de haver outra bomba e, de maneira meio desorganizada, levadas para outro terminal.

 

Claro que as vidas humanas tem prioridade, ninguém discute isso, nem ela. Mas quem tem animal sabe como a gente se apega aos nossos bichos e ela ainda por cima, como veterinária, não podia deixar de imaginar que o seu cão a essa altura poderia estar agonizando e precisando de atendimento. Era o cúmulo da impotência.

 

Finalmente, conseguiu a atenção de um policial que se sensibilizou com a história e lhe disse que voltasse ao terminal 4, mesmo rompendo as barreiras de segurança e de lá ligasse para ele, que ele tentaria interceder.

 

Ela e o amigo voltaram a pé ao terminal 4, e podem acreditar que a distância é enorme, se escondendo e passando pelas cordas de segurança, até que conseguiram chegar ao estacionamento.

 

A essa altura, os bombeiros finalmente haviam entrado no local, onde havia uma quantidade de fumaça e pó impressionantes. Muitos carros ainda se incendiavam, por causa da gasolina. Havia passado cerca de nove horas, e cada vez mais a possibilidade de encontrar seu animal vivo era menor.

 

Ela falou com os bombeiros, contou a história e se prontificou a assinar qualquer termo de responsabilidade para deixarem ela entrar no local e tentar localizar seu cão. Eles não permitiram, até porque seria impossível entrar no local sem máscaras. Mas se sensibilizaram com ela e entraram para tentar localizar seu carro.

 

Voltaram dizendo que a probabilidade do cachorro estar vivo era muito remota. O carro que estaria estacionado ao lado do dela, caiu cinco andares. O dela permanecia no local por sorte, pois estava estacionado ao lado de uma pilastra, onde o chão é mais firme. Além do mais, o fato dela ter deixado os vidros um pouco abertos, fez com que a pressão interna no veículo não fosse tanta e assim os vidros não explodiram.

 

Ela disse que queria o cão de todo jeito. Sua preocupação maior é que ele estivesse morrendo e, mesmo que isso fosse inevitável, não queria abandoná-lo.

 

Os bombeiros resolveram tentar pela segunda vez e não é que apareceram no meio da fumaça com um cãozinho? Vieram beijando o pobre, que vinha no colo sujo e tremendo, mas conseguiu reunir forças para pular no colo da dona. Finalmente, uma história feliz, no que se pode chamar de feliz toda essa situação.

 

Entretanto, é preciso dizer que os noticiários insistiam em publicar que o aviso sobre a bomba foi dado muito em cima da hora, o que não é verdade. Foram dados três avisos, sendo o primeiro, antes das oito da manhã. Ou seja, havia tempo mais que suficiente para evacuar o local, se as autoridades competentes tivessem levado o aviso a sério.

 

Entendo um lado da imprensa que é o de não minimizar o ato terrorista, mas é importante lembrar que duas pessoas morreram e, depois de ouvir o relato da veterinária, pode acreditar que só não morreu mais gente por pura sorte. Ela mesma não foi evacuada do seu carro, só saiu porque seu amigo ligou pedindo ajuda para as malas. Além do número de feridos ser completamente irreal. Quantas outras histórias parecidas não houveram naquele dia?

 

Sinto muito pelas famílias dos dois equatorianos que morreram. Sinto muito pelas pessoas feridas e traumatizadas com o ato hediondo. Mas hoje vou ficar com a história do cãozinho que ganhou da bomba e da sua dona corajosa que, mesmo correndo riscos, em nenhum momento desistiu dele. Hoje vou ficar com os bombeiros que nasceram com a vocação de serem homens bons. Também vou ficar com as coincidências que fizeram as malas serem muitas, os vidros estarem abertos, o carro estar perto de um pilar e sobretudo vou ficar com a determinação pela vida. Preciso acreditar que às vezes, mesmo que seja só às vezes, em meio a tanta barbaridade, o mundo ainda insista em manter um mínimo de justiça.

 

¡Basta Ya!

80 – Volta à rotina

Acho todo fim de férias muito difícil. Sempre embarco de cabeça nas viagens e, na volta, é normal esquecer coisas básicas, como o andar onde moro, por exemplo. Cheguei a pensar que havia esquecido como falar espanhol, de tão desligada da vida que estava. Claro que foi puro delírio, mas o fato é que cheguei em casa meio desconcertada.

 

Começa com uma pilha de roupa suja e a casa para arrumar, que de cara me lembra que estou longe daquela vida aristocrática do dolce far niente. Depois, logo no primeiro dia, precisava fazer compras, pois a geladeira estava completamente anoréxica, tadinha! Mas até aí, tudo bem, era de se esperar. Também não acho que seja uma rotina assim tão horrorosa, pelo contrário.

 

O que me incomodou mesmo foi como me senti andando na rua sozinha nesse primeiro dia. Não consegui ter a sensação de estar voltando para casa, como costumava acontecer. Não tinha vontade de falar, para não assumir que era estrangeira e quis voltar logo para dentro do apartamento. Foi uma sensação de estranhamento muito esquisita.

 

A verdade é que minhas férias, entre outras coisas, foi um belo de um processo de negação. Não me arrependo, às vezes é bom sumir do mapa. Mas voltar ao planeta terra nem sempre se dá em uma aterrizagem suave. Os problemas estavam no mesmo lugar.

 

Enfim, ajeitando a casa fui fazendo o mesmo com minha cabeça e tomando algumas decisões. Voltei com vontade de trabalhar e com alguns planos adiados no ano passado por falta de tempo. Nada melhor do que planos para começar um ano.

 

Alguns dias depois, na quinta-feira, foi o vernissage de uma amiga e também foi o primeiro dia que me animei a sair. Dessa vez me senti melhor.  Na hora de me arrumar achei que estava diferente, com um ar mais maduro e relaxado. Sei lá, acho que o fato de encontrar os amigos que encontramos nas férias, me situou novamente. Ano passado tive uma vida muito universitária e acho que isso me deslocou um pouco.

 

Saltei uma estação de metrô antes do destino, só para caminhar mais, e dessa vez já não estranhei nada. A exposição dessa amiga foi legal e fiquei feliz por ela. Encontrei outra amiga que estava com saudades e  alguns outros amigos também. Aos poucos, fui lembrando que gosto daqui.

 

Fofoquinha básica, os bombeiros de Madri fizeram um calendário para 2007, com fotos, digamos sensuais, com o objetivo de angariar fundos para a instituição. Pois dois desses bombeiros apareceram no meio do vernissage para vender os calendários, com direito a autógrafo. Óbvio que rolou aquele assanhamento das moçoilas e dos amigos gays que estavam presentes. Um dos textos autografados dizia o seguinte: “para chamar em caso de urgência”. Não é o máximo?

 

Luiz, que estava viajando a trabalho, conseguiu chegar nos últimos cinco minutos e de lá saímos com dois amigos para comer alguma coisa e bater um papinho. Onde mais poderíamos ir? No Trifón, é claro! Nesse dia não estava tão cheio, mas é sempre bom saber que está lá, no mesmo lugar.

 

No dia seguinte, foi a desmontagem da exposição coletiva que participei através da Complutense. Fui o mais cedo que consegui acordar e acho que entrei e saí da faculdade em no máximo dez minutos. Não estava aborrecida nem nada, só queria dar por encerrado esse ciclo. Foi um alívio.

 

No sábado, fomos levar o Jack para vacinar e foi quando soube que sua veterinária estava presente no aeroporto no dia do atentado do ETA. Ouvir sua história mexeu comigo e acabou de me fazer colocar os pés de vez na realidade. Em uma hora de conversa me caíram duzentas fichas e entendi finalmente o que é terrorismo.

 

A saúde do meu pai ainda me preocupa. Pensei se devia ir ao Brasil agora. Fico entre altos e baixos, uma hora acho que ele está ótimo, depois acho que não. Enfim, vou esperar um pouquinho mais.

 

De noite, Luiz me chamou para ir ao El Junco. Fui com o pretexto da necessidade de queimar algumas calorias, mas acabei dançando muito pouco. A única coisa que bebi a noite toda foi uma coca-cola… light! De qualquer forma, encontramos outra vez alguns amigos e isso é sempre bom.

 

No domingo a gente quase fez um monte de coisas, mas no fim não fizemos nada. Só à noite saímos para jantar e caminhamos um bom pedaço a pé. Viemos imaginando quando foi a última vez que pudemos fazer isso no Brasil, sem nos sentirmos ameaçados pela violência, e a verdade é que fui incapaz de lembrar. Essa coisa que parece uma bobagem é um dos principais fatores que nos faz permanecer em Madri, a possibilidade de caminhar na rua sem medo.

 

Segunda-feira, resolvi por mãos a obra. Comecei pelo faxinão completo em casa, virei tudo de cabeça para baixo, troquei os móveis de lugar, me desfiz de roupas e sapatos, enfim, toquei o maior barata voa. Hoje já mandei um trabalho para tentar entrar num salão em Canárias, iniciei outra obra e tenho algumas idéias. 

 

Não tem jeito, não posso viver em uma redoma, então, a única maneira é trabalhar. E convenhamos, apesar dos pesares, trabalhar é bom.

81 – Dia cinza

Segunda-feira, dia internacional da preguiça. Por que sempre deixamos para começar as coisas na segunda, se é justamente o dia menos provável para o mínimo de força de vontade? Enfim, acordei cedo para as horas renderem mais e me deparei com um dia cinzento, chuvoso e frio. Francamente, considero isso uma sacanagem meteorológica!

 

Aliás, faz muitos anos que não durmo tanto em tantas noites seguidas. Graças a dica da minha cunhada sobre a melatonina. Para mim, está funcionando muito bem, estou praticamente no fuso horário das pessoas normais novamente.

 

Quanto ao frio, também não se pode reclamar. Estamos em temperatura de primavera até o momento. Por um lado, muito agradável; por outro, assustador. Sempre achei que essa história do aquecimento global estava distante e, de repente,  já estamos vivendo essa situação. Se o motivo é o buraco na camada de ozônio, o aquecimento solar ou o raio que o parta, não tenho idéia, mas certamente, algo vai mal. Alguma coisa está muito fora da ordem.

 

Enquanto isso, na sala de justiça… vamos trabalhar. Estou tentando visitar pelo menos duas galerias por semana, para começar a conhecê-las e fazer alguns contatos. Na última sexta-feira levei meu portfólio para uma delas. Com certeza estou mais animada, mas é estranho, porque essa semana tomei consciência que não é como no início. Não tenho mais aquela paixão com a arte, no sentido de achar que se não fizesse isso, morria. Ao mesmo tempo, não é mal, é como se fosse uma relação mais madura, agora arte é uma parcela da minha vida, entre outras coisas. Talvez isso seja parte de envelhecer, porque redimensionamos nossas prioridades, na nossa existência parece que cabe mais.

 

Hoje, me propus a fazer minha matrícula em um curso de web design e de francês. Mas essa chuva… ¡joder!

 

Semana passada, uma mescla de notícias boas e ruins. De bom, meu pai parece bem melhor e, ainda que mantenha a cautela, tenho a sensação que será um período mais tranquilo. De triste, um grande amigo muito doente que está difícil não pensar. Como sempre, a vida se alternando.

 

Ontem vi um filme e em determinado momento um pai se refere ao filho com a seguinte frase, “não me lembro de vê-lo um dia inteiro triste”. Fiquei pensando nisso e é interessante como na infância as tristezas, como as alegrias, são efêmeras. A vida é instantânea. Cheguei a conclusão que isso não muda quando ficamos adultos, no nosso dia sempre há motivos para alegria ou tristeza. Simplesmente, fazemos uma opção de onde colocar o maior peso. Talvez nem sempre seja uma opção, mas muitas vezes quem atribui os tamanhos somos nós.

 

De uns tempos para cá, tenho observado a quantidade de coisas que podem passar em um dia, e em que velocidade estonteante. E nesses dias de chuva…

certamente, algo vai mal. Alguma coisa está muito fora da ordem.

 

Enquanto isso, na sala de justiça… vamos trabalhar. Estou tentando visitar pelo menos duas galerias por semana, para começar a conhecê-las e fazer alguns contatos. Na última sexta-feira levei meu portfólio para uma delas. Com certeza estou mais animada, mas é estranho, porque essa semana tomei consciência que não é como no início. Não tenho mais aquela paixão com a arte, no sentido de achar que se não fizesse isso, morria. Ao mesmo tempo, não é mal, é como se fosse uma relação mais madura, agora arte é uma parcela da minha vida, entre outras coisas. Talvez isso seja parte de envelhecer, porque redimensionamos nossas prioridades, na nossa existência parece que cabe mais.

 

Hoje, me propus a fazer minha matrícula em um curso de web design e de francês. Mas essa chuva… ¡joder!

 

Semana passada, uma mescla de notícias boas e ruins. De bom, meu pai parece bem melhor e, ainda que mantenha a cautela, tenho a sensação que será um período mais tranquilo. De triste, um grande amigo muito doente que está difícil não pensar. Como sempre, a vida se alternando.

 

Ontem vi um filme e em determinado momento um pai se refere ao filho com a seguinte frase, “não me lembro de vê-lo um dia inteiro triste”. Fiquei pensando nisso e é interessante como na infância as tristezas, como as alegrias, são efêmeras. A vida é instantânea. Cheguei a conclusão que isso não muda quando ficamos adultos, no nosso dia sempre há motivos para alegria ou tristeza. Simplesmente, fazemos uma opção de onde colocar o maior peso. Talvez nem sempre seja uma opção, mas muitas vezes quem atribui os tamanhos somos nós.

 

De uns tempos para cá, tenho observado a quantidade de coisas que podem passar em um dia, e em que velocidade estonteante. E nesses dias de chuva…

82 – Pausa para uma fofoquinha

Há mais ou menos uns dois meses atrás, em novembro, participei de um programa de culinária,  chamado Otro Plato. A produção vai na casa de estrangeiros, vivendo em Madri, que preparam um prato original do seu país de origem.

 

Bom, meu calvário para fazer o tal programa, já contei por aqui. Morri de vergonha e estava muito curiosa para ver o resultado. Finalmente, foi ao ar e ganhei um DVD para guardar de lembrança.

 

Sabe de uma coisa, até que não ficou mal. Definitivamente, o pessoal da edição foi muito legal comigo, acho que é porque eles gostaram da moqueca de camarão, prato que preparei. Claro que falei umas bobagens em portunhol, mas considerando o pânico em que me encontrava, foi bem melhor do que imaginava. Na verdade, parece que estou tranquila, cozinhando normalmente, o que garanto que está longe da caipira que me tornei no dia.

 

Uma coisa muito importante para o universo feminino, todo mundo diz que a TV engorda, mas não me achei mais gorda. Porque convenhamos, ficar nervosa e falar besteira, tudo bem, mas parecer mais gorda é sacanagem, né?

 

Enfim, missão cumprida!

 

Agora, naquela lista de coisas que a gente precisa fazer na vida, posso riscar o ítem aparecer em um programa de televisão. E quer saber, cá entre nós vou admitir, bem que gostei dos meus dez minutos de fama.

83 – E o inverno chegou

Demorou, mas chegou e com força. O inverno finalmente aterrizou com vontade. Semana passada em Madri as temperaturas ficaram em uma média de 5 graus e amanhã deve chegar a zero. No último fim de semana, as estações de esqui da redondeza começaram a abrir.

 

Não sou fã do inverno e estava achando aquele outono esticado muito agradável. Por outro lado, esse frio contraditoriamente me tranquilizou. Estava muito encucada com a história de aquecimento global e blá, blá, blá… e de certa forma, a baixa temperatura me fez respirar aliviada e acreditar que o mundo pode ter solução. Sei lá, veio como uma mensagem de otimismo.

 

Minha tolerância ao frio está muito boa, melhor do que a maioria dos espanhóis que conheço. Acho que devido às nossas idas frequentes à pista de neve artificial. O que acabou acontecendo foi uma exposição regular a 2 graus negativos, de maneira que o frio atual não está nos afetando tanto. Tem um monte de gente gripada e o vírus nem triscou nossa saúde. Bom sinal.

 

Mesmo assim, sofro alguns efeitos desagradáveis, mas que venho aprendendo a contornar. A diferença de iluminação ainda me incomoda bastante, acredito que seja a parte mais difícil.

 

Aprendi a baixar a calefação até um máximo de vinte graus. É que tenho um tipo de mal estar, que parece uma baixa de pressão, quando saio do frio e entro em um lugar muito aquecido. Dá uma certa tontura, enjôo, às vezes até uma claustrofobia leve. Com o aquecimento da casa mais baixo o choque da entrada é reduzido, além do que, acordo melhor e não fico tão mole.

 

Agora preciso rever a alimentação. É importante introduzir algumas vitaminas e gengibre. Já estou craque nisso. Só não posso relaxar, senão esqueço e quando me dou conta, lá vem a deprê do inverno.

 

Bom, mas também tem um ótimo remédio para o desânimo que ocorre exatamente por essa época, as deliciosas rebajas! Aliás, golpe de mestre do comércio colocar apetitosos descontos bem na hora que a gente quer uma compensação! Ai, que perigo!

84 – Operação coxinha

Já tem algum tempo que ando com vontade de comer coxinha de galinha com catupiry. Aqui não tem. Ultimamente, alguns brasileiros anunciam pelo orkut, mas acabo ficando na dúvida em pedir ou esperando algum pretexto para fazer uma encomenda maior.

 

Enfim, só sei que hoje acordei com aquele desejo incontrolável e cismei que ia fazer a tal da coxinha. Fucei pela internet algumas receitas e acabei encontrando uma que me interessou. Os ingredientes, por incrível que pareça, tinha todos. Pareceu uma mensagem divina: precisava fazer coxinha!

 

Chamei uma amiga brasileira que mora perto e perguntei se ela queria fazer parte da façanha galinácea e ela topou. Deixei engrenado os recheios e a massa e ela me ajudou a enrolar os salgadinhos. É que aproveitei e testei fazer uns bolinhos de carne moída também.

 

Cá entre nós, deu um trabalho do cão! As coxinhas começaram pequenininhas e bonitinhas e  foram aumentando de tamanho, enquanto nossa paciência diminuia.

 

Mas sabe de uma coisa, modéstia às favas, ficou show! Parte pelo gosto, parte pela vontade encubada e o resto por uma fome fenomenal. Daí fazer o que, abrir um vinhozinho e papear, né?

 

Quando Luiz chegou, fritei novamente os salgadinhos fresquinhos e, claro, comi de novo. Tô de coxinha e bolinho de carne até os ouvidos!  Mas que foi bom, foi!

85 – Mala leche

Em dois meses completarei dois anos de Madri e mais de três fora do Brasil. Minha forma de olhar a cidade e o resto do mundo continua mudando.

 

Não tenho mais a sensação de estar me reconstruindo e a questão da identidade me parece resolvida. São pontos em constante transição e mais cedo ou mais tarde retornarão, mas não agora.

 

De repente, me dei conta que a maneira de me vestir e de pentear o cabelo mudou. Normalmente, essa é a ponta do iceberg, quando a gente muda por fora, provavelmente a mudança por dentro já aconteceu. Estou confortável com a aparência que levo, o quer dizer que a troca de pele acabou.

 

Não pareço espanhola e não me importa parecer. Não tenho vontade de me camuflar e ainda não sei se isso é bom ou mal, acho que um pouco dos dois. Por um lado ainda tenho muito carinho pela cidade, mas ao mesmo tempo, me parece tão provinciana que me cansa.

 

Quem sabe seja só o inverno que dê essa sensação de claustrofobia. Ainda que esse ano o inverno não me assustou nem um pouco. Saio no frio quase que desafiando a temperatura, você não me ganha!

 

Talvez seja só implicância. Ou quem sabe a mala leche é contagiosa e esteja mais espanhola do que me imagine.

86 – E lá vamos nós!

Ainda sobraram alguns dias de férias para o Luiz e aqui não tem esse negócio de vender ou adiar férias, ou você tira ou perde. E claro, todo mundo tira. Muito bem, sendo assim, já que insistem né, lá vamos nós!

 

Temos um casal de amigos brasileiros que está morando há pouco tempo na Suíça, os mesmos que encontramos em Val d’Isere no reveillon. Vamos visitá-los e passar uma semana na casa deles. Ou seja, outra viagem que promete ser um festival gastronômico. Cassilda, desse jeito, daqui há pouco não passo pela porta! Não há regime que sobreviva!

 

É verdade que eles moram bem perto de uma estação de esquis, assim que tentaremos compensar o acúmulo de calorias. Vamos ver se a neve colabora. Ano passado nos divertimos bastante na pequena pista de neve artificial do Xanadú, mas a verdade é que agora ela se tornou um pouco entediante. Nunca imaginei que chegaria a esse ponto, logo eu que pensava que nunca passaria da pista de debutantes. E aqui estou, meio marrenta, reclamando até da pista principal.

 

Dessa vez, Jack não vai. Ficamos com pena de levá-lo para mais uma viagem. Além do mais, vamos de avião e ele sente mais do que de carro. Daí pensamos se algum amig@ gostaria de ficar aqui em casa com ele. Até temos quem venha alimentá-lo e limpar a areia, mas a verdade é que nosso gato, diferente dos esteriótipos felinos, sente falta de gente e o ideal seria alguém dormir por aqui,

 

Lembramos de um amigo que estava morando um pouco longe do centro e, de repente, para ele seria legal passar uma semana por essas bandas. Pois foi a maior coincidência, ele estava realmente querendo mudar para um local mais perto e seria mais fácil ter alguns dias para procurar um apartamento com calma. Ele perguntou se poderia vir uma semana antes e, para ser sincera, achei até melhor, pois assim o Jack ia se acostumando com ele. Veio com sua namorada e estão aqui em casa.

 

O lado engraçado, bom e, ao mesmo tempo engordativo, é que cada dia um vai para a cozinha se exibir um pouco. Aí já viu, lá vou eu saindo da dieta. Começou no sábado, quando ofereci um jantar para uma amiga que está indo embora de Madri. Caprichei e o evento foi apelidado de festa de Babete. Pronto, depois disso, quem é que queria ficar por baixo? Todo dia tem pudim, quiche assim assado, vinhozinho etc… ai, ai… E o pior é que eles estavam fazendo a dieta de Atkins! Eu achando que iria entrar na deles e no final, saiu todo mundo pervertido! Sou mesmo uma péssima influência!

 

Enfim, dessa vez vou colocar a culpa toda no Jack. Se não fosse nosso felino metido, quem sabe já teria voltado ao meu peso. Por outro lado, não teria sido tão divertido.

 

Amanhã a gente viaja e só volta pelo dia 15 de fevereiro, bem a tempo de ver a ARCO, o evento de arte mais importante da Espanha.

 

A propósito, na mala vai jamón ibérico de bellota e salchichón, lógico! Joder tío, vai ser gulosa assim lá longe!

87 – O que é, o que é? Quanto mais a gente dá, mais recebe?

Não me canso de dizer que amigos são presentes. É piegas, eu sei, mas é verdade. Aparecem de onde espero e de onde não espero, vão e voltam, uns tão longe, uns tão perto, parecidos, diferentes. O fato é que a vida é muito melhor quando a gente compartilha.

 

Digo pouco aos meus amigos o quanto são queridos, dá uma vergonha danada. Também fico muito tímida quando escuto algo a respeito. Então, melhor não dizer nada, amigos simplesmente sabem. Eu sei.

88 – De volta na área

Cheguei da Suíça, morta de cansada, como é bom de ser depois de dias de férias.

 

Fomos a Chavornay, uma pequena cidade perto de Lausanne, onde ficamos por uma semana. Bom, dizer pequena cidade na Suíça é quase pleonasmo, o país é formado por povoados muito charmosos, conhecidos como “villages”. 

 

A primeira vez que fui à Suíça foi há uns dez anos atrás e só conheci Geneve, muito rapidamente. Agora, aproveitamos para conhecer a parte francesa com um pouco mais de calma e adoramos. Ficamos na casa de um casal de amigos brasileiros, morando por lá desde novembro do ano passado.

 

Como não poderia deixar de ser, chegamos na secura por esquiar, doidos atrás de neve. Mas se não desse também, paciência, o principal era encontrar os amigos e nos divertir um pouco.  O inverno maluco não deixou de atingir a Suíça, e não havia tanta neve como de costume.  De qualquer maneira, dirigindo até os alpes, era possível encontrar estações de esqui abertas.

 

A primeira estação que fomos conhecer foi “Villars”, há mais ou menos uma hora e meia da casa dos nossos amigos. Nesse dia eles não se animaram a esquiar, haviam passado por uma experiência muito desagradável com um péssimo instrutor de esquis e isso os desanimou a tentar novamente. Insistimos um pouco, mas também não queríamos forçar a barra, simplesmente dividimos nossa empolgação e nossas frustrações com o esporte e, quem sabe, ajudasse a plantar a sementinha da curiosidade.

 

Relembrando, as pistas de neve são classificadas por cores de acordo com seu nível de dificuldade. Começam pelas debutantes ou “bunny slope”, onde você aprende a esquiar, e a partir daí vem as verdes, azuis, vermelhas e pretas. Na Suíça, eles não tem verdes, já começam pelas azuis, e nós não sabíamos disso. Até esse momento, a pista mais difícil que havia descido foi uma única azul em Val d’Isere.

 

Muito bem, chegamos em “Villars” e subimos o bondinho, de onde comecei a ver as coisas girando ao meu redor. Respirar fundo, haja naturalmente! Quando chegar é só procurar uma pista fácil para me aquecer e depois começo a brincadeira. Sempre preciso começar por uma pista mais simples, para ganhar confiança. Tá bom, tá certo, quando saltamos do bondinho, onde é que estava mesmo a pista fácil?

 

Ca-ce-te! Não tinha uma porcaria de pista debutante ou verdinha, já começava com uma azul que não conseguia enxergar como continuava! Não acredito que cheguei lá em cima e não teria coragem de descer a bosta da pista!

 

Nossos amigos já haviam decidido ficar só no restaurante, e com toda razão. Ninguém começa em uma pista assim, é perigoso. Luiz resolveu descer para me contar como era e se havia alguma forma de chegar em uma pista verde. Como disse antes, até esse momento a gente não sabia que não existia pista verde na Suíça.

 

Fiquei esperando, não sei se com mais medo ou mais raiva. Na verdade, sei sim, me deu o maior medo de descer uma azul de cara e que não conseguia visualizar o caminho com antecedência. É que quando me bate a vertigem, preciso evitar olhar para baixo e me concentrar em pontos mais próximos. Por isso, memorizo mais ou menos por onde preciso ir antes de começar a descer. Ou seja, além de começar por uma pista mais difícil, estava com um esqui alugado que não sabia se era igual ao meu e não tinha a menor idéia de como era a porcaria da pista! E mesmo assim, com uma vontade danada de descer… Mas a merda daquele medo estava me matando! Não sei lidar com isso de maneira muito madura e vai me dando raiva.

 

Daí chegou Luiz todo animado dizendo que ”eu tinha total condição de descer” a tal da pista. Eu queria dar com os “palos” na cabeça dele! Era só o que precisava, alguém me fazendo admitir que tinha medo de descer a bosta da pista. Ficava insistindo para eu pelo menos chegar na beira e olhar. Como assim só chegar na beira? Não existe essa possibilidade, não tem mais ou menos,  ou vou ou não vou.

 

Até que ele me irritou tanto com sua provocação bem intencionada, que parti para a malcriação, ai que raiva! Tá bom, eu vou, mas se eu travar ou me machucar, você vai ouvir tanto… #@$%^&#$*… Pronto, baixou o espírito  da megera! Com raiva fico poderosa. Chegar na beira só para olhar uma merda! Vou para descer.

 

Não sei se pela raiva ou pelo que, mas quando olhei a pista mais de perto, senti que podia. Não era fácil para mim, entretanto, não vi nada que achasse que não pudesse fazer. Não digo fazer bonito, mas concentrada tinha técnica para encarar. Luiz foi na frente mais devagar e eu fui pensando em cada movimento de cada curva, como se fosse necessário uma estratégia de guerra com precisão Suíça.

 

Cheguei embaixo da pista longa sã e salva. Exausta, queria mais. Luiz feliz da vida, não sei se por minha descida ou porque seu dia estava salvo, acho que um pouco dos dois. Repetimos a descida um par de vezes e cheguei a disfrutar. Descer uma pista azul não é nenhuma façanha, mas para mim parecia ser. Como é bom!

 

Paramos por cansaço. Às vezes, em uma pista longa, você vê alguns esquiadores dando umas paradinhas no caminho. Nem sempre é porque estão em dificuldade, mas é para descansar um pouco mesmo. O problema é que se eu parar no caminho e ficar olhando para baixo, há o risco de bater a vertigem, e consequentemente me dar um branco. Por isso, desço o mais rápido possível, dentro das minhas limitações. E claro, chego quase sem perna.

 

Dali fomos almoçar com nossos amigos, no próprio topo da estação. Vinhozinho para relaxar, bom papo e, em seguida, pegamos a estrada de volta a Chavornay. Na volta, pausa para um café em uma cidadezinha muito charmosa, na beira do lago, chamada Vevey.

 

A Suíça parece um fazendão em diferentes tons de verde, ainda que fosse inverno. Quando se chega aos Alpes, parece que alguém pegou a paisagem e deu uma esticada. Montanhas pontudas, com pinheiros contrastantes apontando para cima. Muito bonito. Talvez entediante para uma latina morar, mas como turista, só tenho elogios.

 

Uma coisa curiosa, muitas vezes as pessoas tem um tipo de estábulo embaixo da casa, onde dormem as vacas. É prático e ajuda a manter o local aquecido. Já o aroma que exala… Felizmente, onde moram nossos amigos não há vacas tão próximas.

 

No domingo, fomos conhecer Gstaad, na parte alemã. Segundo meu digníssimo marido, a estação mais badalada da Suíça. O lugar é bem legal mesmo, outra cidade com jeito de cartão de natal. Nesse dia, nossos amigos finalmente se animaram a esquiar e botamos a maior pilha. Foi uma experiência positiva, pegaram um bom instrutor, o que deu a eles confiança e vontade de tentar. Adoramos, quanto mais amigos  convertidos, mais divertida essa história pode ficar.

 

Chega-se ao local por um caminho bonito, mas sinuoso. É preciso subir uma enorme montanha por uma pista estreita, sem acostamento, num zig zag torturante que fez meu estômago se embolar. Mas, para os menos sensíveis, a paisagem é realmente linda.

 

Muito bem, em Gstaad, o local que escolhemos para esquiar, além da pista de iniciantes, contava com uma pista azul razoavelmente fácil, parecida a uma verde com alguns locais de maior dificuldade. Para mim, beleza, via a pista toda, tranquila, nossos amigos aprendendo e parecendo curtir… até que Luiz resolveu tentar uma outra pista que não dava para ver bem onde começava e muito menos que nível era.

 

Daqui há pouco desce ele dizendo que era uma pista azul um pouco mais difícil e mais longa da que a que eu estava descendo, mas que “eu tinha total condição de descer”. Estava começando a pegar implicância dessa frase. Olhei com aquela cara de Galfield na segunda-feira, joder! Lá vem! Tá bom, vamos nessa. Acho que ele sabia que a fila para subir na pista mais fácil já estava me entediando e entre o medo e o tédio…

 

Durante a subida fui examinando a pista. Achei possível, mas percebi que teria problemas com a vertigem. Na verdade, disso sabia desde o carro, quando comecei a ficar tonta nas curvas. Não tem problema, simplesmente precisava usar meus velhos truques índios. Respirar mais rápido, focar em um ponto mais próximo, pensar no meu mantra secreto, concentrar nos movimentos… enfim, entre técnicas e mandingas, preparada.

 

Quando a gente olha uma montanha de cima, ela sempre parece muito maior do que quando olhada de baixo. E pode crer, aquela montalha olhada de cima era alta para cassilda! Mas estava bem e ainda que na adrenalina, comecei a descer tranquila. Fomos no esquema inicial de sempre, Luiz na frente dando umas paradinhas para me esperar e eu atrás calculando caminhos e curvas.

 

Desci muito concentrada, era uma pista difícil para mim, mas estava indo bem até um momento que não lembro exatamente porque, olhei para baixo e senti medo. O medo me deu uma tremenda travada. Pronto, não acredito que vou fazer igual a Val d’Isere e ficar encalhada aqui. É estranho, mas bate um branco que esqueço como se anda. A diferença é que na França, realmente não sabia o que fazer para continuar descendo, dessa vez, por um momento de lucidez consegui pensar que sabia o que fazer, era só não entrar em pânico.

 

Então, vamos por passos, primeiro controlar a vertigem e o enjôo. Para isso respiro muito rápido, parece que vou ter um filho, sei lá porque cargas d’água, mas parece que o oxigênio me clareia as idéias. Ok e agora? Não tinha outro jeito que olhar para baixo e pensar como desceria. Descer até a base da montanha me parecia impossível, daí pensei que não precisava descer até o final, simplesmente precisava fazer a próxima curva e nisso me concentrei.

 

Para fazer a próxima curva achei que estava muito perto do fim da pista à minha frente e se errasse poderia cair nas árvores, daí resolvi que precisava andar para trás devagar. Ninguém descendo, beleza, não tô atrapalhando. E consegui dar uns três passos para trás e ganhar espaço. Nisso percebi que haviam mais umas duas ou três pessoas travadas. Acho que um deles tentava animar um dos encalhados, além do Luiz embaixo me falando qualquer coisa que não conseguia prestar atenção. Isso, de certa forma, me animou. Pensei que não foi só a vertigem, provavelmente era uma parte da pista mais difícil mesmo.  Tentei me lembrar das últimas aulas de esqui e para que lado colocar o corpo.

 

Só precisava fazer a próxima curva… e agora a próxima… e mais uma… e estava no jogo novamente! Lembro de falar alguma coisa para o Luiz como “pode descer que eu tô bem”.

 

Cheguei lá embaixo morta de cansada e com a musculatura doendo para burro! Entretanto, joelhos ok, bom sinal. Só uma vontade enorme de me jogar no chão e ficar deitada na neve. Foi quando o enrolão do Luiz me informou que parte da pista que descemos era vermelha e, claro que ele sabia desde o início.

 

Ver-me-lha! Aquilo ficou reverberando na minha cabeça e a ficha não caia. Como assim vermelha? Fiquei tão passada que não conseguia comemorar, na verdade, acho que nem estava acreditando muito naquela história.

 

Resumo da ópera, encontramos nossos amigos, que estavam super satisfeitos com a aula e já mais saídinho nos esquis. Tínhamos todos razões para comemorar.

 

De lá, fomos famintos comer um almoço-jantar nos arredores do castelo de Gruyère. Pedimos carne seguida de raclette, aos olhos confusos da garçonete que não entendia como íamos comer tanto. Não só comemos, como houve espaço para a sobremesa.

 

Durante a semana, circulamos de carro pelos arredores. Um dos dias fomos a uma pequena estação de esquis já na França. É engraçado isso de cruzar um país tão rápido, ainda me soa surreal atravessar uma rua para dar uma esquiadinha na França, depois voltar para Suíça antes do jantar. Enfim, a estação mesmo era pequenininha, mas quebrava um galho. O problema é que nesse dia estava a maior chuva e a experiência de esquiar foi bizarra. Era muita vontade, viu? Achava que, com a chuva, a pista estaria mais escorregadia, mas é exatamente o contrário, ela deixa a neve de um jeito que faz seus esquis freiarem. Por estranho que pareça, é muito mais difícil controlar um esqui freiando que deslizando.

 

De qualquer forma, o passeio é lindo e as cidadezinhas ao redor muito charmosas. A propósito, também nem sempre jantávamos na mesma cidade, afinal de contas, tudo tão pertinho. Nessa noite, por exemplo, jantamos em Concise.

 

A semana passou e era hora de voltar para casa. Ficou a vontade e os planos de nos encontrarmos mais vezes para as próximas aventuras.

 

No apartamento, Jack nos esperava calmo, mas com saudades felinas. Nem fez doce, foi completamente entregue desde nossa chegada, parecia que tinha engolido um vibrador de tão ronronante. O casal de amigos que ficou hospedado enquanto viajávamos já havia ido embora, mas deixaram um pudim de boas vindas prontinho na geladeira. Voltar assim fica mais fácil.

89 – Mais um carnaval

Um par de dias após a chegada da Suíça: carnaval. Essa época é uma das mais difíceis para mim, porque adoro, mas gosto do carnaval bem brasileiro, de me acabar de dançar na rua e de cantar as músicas que sei de cor desde a infância.

 

Talvez seja um dos poucos rituais com o qual ainda me identifique, me traz a certeza, por alguns dias, de que sou mesmo brasileira e me dá muito orgulho de ser. Nem todos meus carnavais foram perfeitos e, de certa forma, não sentia tanta falta deles quando estava no Brasil. Mas o fato de sair de lá atribuiu um peso maior a essa questão.

 

Ver de longe, por fotos e reportagens, os blocos e os trios passarem, me deixa surumbática. É como se me perdesse um pouco. Tento não pensar tanto no assunto, mas de uma maneira absurda, a própria tristeza e a saudade me lembram quem ainda sou. Pode ser que por isso tenha boa memória. Lembrar me confirma que sou de verdade. Lembro, logo existo.

 

Enfim, nem tudo é tristeza e o que não tem remédio… fabrica-se uma fórmula caseira para quebrar o galho, certo?

 

Fomos a uma festa de carnaval brasileira aqui em Madri mesmo, na Sala Caracol. Era também a despedida de uma amiga que voltou ao Brasil, depois de passar um ano por essas bandas. Pulei e suei um quilo inteiro. Voltei para casa quase sem voz. Tudo bem, ainda sambo e não perdi o ritmo.

 

Quero meu crachá!

90 – Despedidas e mais despedidas

Despedir é foda! Desculpa, mas não dá para definir de outra maneira mais didática.

 

Olha que já melhorei muito e me despeço com razoável classe, consigo fazer piadinhas, raramente choro, mas daí a dizer que é simples… nunca é.

 

E por que não é? As despedidas parecem pequenos velórios, como se o fato de não vermos as pessoas fará com que elas desapareçam num passe de mágica. Elas não desaparecem, só mudam de lugar e talvez aí esteja a chave, porque talvez sejam mesmo pequenos velórios por causa dessa mudança, desse deslocamento. Toda mudança encerra um período, fecha um ciclo, para quem vai e para quem fica. De alguma maneira a gente morre um pouco e renasce em seguida. Mas daí, já é outra coisa.

 

Ocorre que por muito tempo tento pular essa fase da pequena morte e partir direto para o renascimento. Mas sabe de uma coisa, nem todo fim é ruim, é só um fim. E todo recomeço é bom, porque é exatamente o momento em que a gente pode tudo.

 

Tenho tentado aprender a celebrar as partidas.

91 – Areia movediça

Em fevereiro, acontece a feira de arte mais importante da Espanha, a ARCO. Galerias de arte contemporânea de todo o mundo se reúnem em um enorme espaço expositivo aqui em Madri.

 

Ano passado foi a primeira vez que visitei a feira. Confesso que depois de haver visto tanta coisa ruim, a ARCO foi um certo refresco e até me empolguei em alguns momentos. Entretanto, esse ano não tive a mesma empolgação. Não achei ruim, gostei de algumas coisas mais que outras, mas em nenhum momento me bateu aquele “uau!”.

 

Pior, não me deu vontade de ter um trabalho ali. Para mim, é difícil dizer isso, porque sei que soa como um enorme despeito, mas é a mais pura verdade. Ainda não sei se foi pela feira mesmo, ou porque perdi o gosto, mas acho que as duas coisas.

 

Na semana seguinte, precisei voltar à faculdade de Bellas Artes para pedir meu diploma. Uma burocracia meio chata e que me custou cento e vinte e sete euros! Mas o que incomodava mesmo era o fato de ter que ir lá. E não quero jogar toda a responsabilidade por essa falta de vontade no curso em si, vem muito de mim e do momento. É que já faz um tempo, cada vez que inicio um trabalho ou me aproximo desse contexto, me sinto em areia movediça, parece que quanto mais me movo, mais afundo. Ao mesmo tempo, estou bem no meio da poça, para onde ir?

 

Ocorre que antídoto e veneno são provenientes do mesmo material e o que em muito veio a ser minha cura, agora parece ter mudado de lado. Só não sei até quando. Outro dia estava escutando uma música que a Marina canta, que diz “sonhos são como deuses, quando não se acredita neles, eles deixam de existir”. Esse trecho me apunhala, porque volta a responsabilidade ao meu umbigo, sou eu quem não acredita mais e que ando me picando com o próprio veneno.

 

Tenho todas as desculpas legítimas do mundo para estar onde estou, mas essa angústia, irmã de armas, sempre me lembrando que não é o suficiente.

92 – Escrivaninha à milanesa

Não sou uma pessoa sexista! Não sou mesmo. Mas reconheço que muitas vezes, ou por aprendizado, ou por DNA, ou pelo raio que o parta, homens e mulheres pensam diferente.

 

Realmente me intriga porque os homens sempre acham que tudo grande é melhor. E veja bem, estou me referindo a absolutamente tudo! A televisão maior, de preferência com um super mega controle-remoto para os 500 inúteis canais,  o micro-ondas maior, o carro maior… enfim, às vezes o maior pode ser substituído pelo mais caro. O importante é que seja mais.

 

Meu digníssimo marido não foge à regra masculina, o que muitas vezes (nem todas!) até me diverte. Como, por exemplo, a vez que comentei que precisava comprar uma frigideira e ele, sempre atento às minhas necessidades, me apareceu à noite todo orgulhoso com uma wok! Olhando aquela panela onde cabia comida para umas oito pessoas, fiquei imaginando como fritaria um ovo, motivo pelo qual, precisava de uma frigideira nova.

 

Mas também, não falei com todas as letras que era para fritar um ovo, caramba! E aí está o “x” da questão. Homens pensam no imediato e se orgulham de suas rápidas decisões, sem prestar atenção que a velocidade desse pensamento pode se dever ao fato de não parar para pensar dois segundos nas possíveis consequências.

 

E antes disso virar uma crônica feminista, longe da minha pretenção, porque no fundo acho o pensamento masculino divertido, vamos ao que interessa.

 

Luiz me liga empolgadíssimo porque havia visto no mercado uma lata de azeite de não sei quantos litros, de excelente qualidade, preço ótimo e que, ainda por cima, dava de brinde um recipiente ENORME de vidro para armazená-lo, com torneirinha e tudo. Primeira pergunta feminina: mas vou botar isso aonde? Faço compras semanais ou diárias porque as coisas não cabem mais na cozinha!

 

Lá vinha eu, a castradora! Só podia ser pessoal! Enfim, sem muita paciência nesse dia, encurtei a história e resolvi dizer, tá bom, que saber, ótima idéia, preciso muito dessa garrafa gigante de azeite.

 

Aparece ele todo feliz com uma garrafa realmente gigante. Próxima pergunta feminina inconveniente: mas cada vez que for cozinhar tenho que fazer um malabarismo com a panela embaixo dessa torneirinha? Putz grilo! Mas você é chata, hein? Que perseguição! Ele tinha a solução perfeita, encher o vidro antigo, bem menor, com o azeite do garrafão. Assim, só precisava repor de vez em quando, pronto!

 

Ah, tá! Se é você que vai fazer isso… perfeito! Acho que essa parte ele não ponderou, mas eu é que resolvi não me estressar. Quer saber, ele teve a idéia, se responsabilizasse por ela e todos seríamos felizes, certo?

 

Foi quando ele descobriu que para encher um vidro menor levava horas, precisando segurar o recipiente embaixo do garrafão. Deixei ele sofrer uns cinco minutos, sentado com cara de tédio na cozinha, garrafão na beira da pia e ele segurando um vidro menor. Acho que foi a primeira vez que ele ponderou que talvez não houvesse sido mesmo uma boa idéia.

 

Bom, sou meio canalha sim, mas não espírito de porco e a verdade é que fiquei com dó de deixá-lo ali e dei a idéia de fazer um tipo de mecanismo com algumas caixas sobre o banco, de onde se equilibrava a garrafinha a ser enchida. Era só ele não esquecer de verificar, de tempos em tempos, se já estava cheia.

 

Tudo muito bom, tudo muito bem, no dia seguinte lá fui eu arrumar um espaço em cima da escrivaninha de madeira da sala. Ficou apertado, mas admito que deu seu charme. Depois pensei, uma hora vai acabar e ele não vai ter saco de comprar outro garrafão. Tranquilo.

 

Até que o refil acabou e, claro, pedi a ele, amor, precisa encher o vidro de azeite outra vez. Digamos que ele não me abriu um largo sorrido diante da tarefa, mas não reclamou. Descobriu que no novo local, ainda era mais fácil de encher o refil, pois apoiava a garrafinha na própria escrivaninha, com o garrafão um pouco mais acima. Outra vez, só precisava verificar quando estivesse cheia. Tarefa essa que ameaçou querer me passar e tirei o corpo fora mais do que depressa. Claro que se lembrasse avisaria, também não preciso ficar de pirraça, mas sou super distraída e essa função não era minha. Não conte comigo para lembrar de nada!

 

Homens e mulheres, pensando diferente ou não, acho que é fácil imaginar daqui para frente o que aconteceu. Claro que ele esqueceu de fechar a maldita torneirinha e vazou azeite por uma noite inteira sobre a escrivaninha e o chão.

 

Ele acorda bem mais cedo que eu e, no dia seguinte, despertei com uma frase mais ou menos assim: &*$% que #$%iu! Acordei assustada e perguntei do quarto o que tinha sido. E ele: foi a $%%##$%%%#^& desse azeite que vazou a noite toda!

 

Por quase três segundos vivi o dilema de descer para ajudar, mas a verdade é que ainda enxergava embaçado e suponho que meu humor não ajudaria muito. Daí, fiz o que qualquer mulher racional faria, fechei os olhos bem forte e pensei que se ignorasse o problema com toda minha energia, quem sabe desapareceria? O esforço foi tanto que o pior é que dormi de verdade e só ouvi alguma coisa como, quando chegar do trabalho pode deixar que limpo melhor.

 

O fato de continuar dormindo foi uma sábia decisão. Pois quando levantei da cama estava de bom humor e um pouco curiosa para ver o estado de calamidade pública que a sala deveria se encontrar. Foi bem melhor do que imaginava, pois pelo menos o chão estava seco.

 

Pensei com meus botões, cassilda a lei de Murphy funciona mesmo, não é que esqueci de comprar papel toalha para cozinha? Será que o Luiz achou os panos descartáveis embaixo da pia? Essa dúvida foi satisfeita alguns segundos depois, quando vi no lixo um monte de papel higiênico! Papel higiênico? Claro, lógica masculina, para limpar a cagada, seja ela qual for: papel higiênico! Nem quis saber quantos rolos ele gastou, mas acho que deve ter sido suficiente para embrulhar uma múmia! O importante é que o chão estava razoavelmente limpo, o que não é tarefa simples quando se trata de azeite.

 

Por outro lado, a escrivaninha… tinha poças de azeite. Felizmente, ele lembrou de tirar as gavetas onde guardo roupa de cama. Sim, guardo roupa de cama na escrivaninha por absoluta falta de espaço, mas essa é outra história. Enfim, essa parte da roupa estava milagrosamente limpa. Entretanto, esqueceu duas gavetas menores onde guardo toalhas de mesa, guardanapos de tecido e panos de prato. Essa outra parte precisou ser toda lavada… três vezes! As brancas em água sanitária.

 

O móvel não ficou feio, pelo contrário, dizem que é bom de vez em quando passar um pouco de óleo para hidratar a madeira. É verdade que não precisava ser azeite de oliva extra virgem e a madeira deve estar hidratada para os próximos cinco séculos! Tudo bem, o problema mesmo é que a gente passa por ela e dá a maior fome. Felizmente, ali não bate sol, caso contrário, estou segura que fritaria como uma croqueta.

 

Já com a casa limpa, chega o Luiz com a cara de criança que fez arte, bonzinho mesmo. De certa forma, deve ter ficado mais aliviado porque quebrei o galho e limpei a casa durante o dia. Talvez estivesse mais aliviado ainda porque estava de bom humor.

 

A propósito, o azeite é realmente muito bom, tanto para cozinhar quanto para lustrar os móveis.

93 – Caminho de Santiago for dummies

Há alguns meses atrás, acredito que pelo final do ano passado, começou a me dar vontade de fazer o Caminho de Santiago. Para quem me conhece, mesmo que só um pouquinho, com certeza deve imaginar ser uma vontade bizarra. Na verdade, até eu acho estranho porque, em tese, não tem o meu perfil em nadinha.

 

Sou ateísta e, dependendo do ângulo que se analise, quase hedonista, adoro uma mordomia, sou meio fresca e com mania de limpeza, nesse caso com uma certa paranóia em relação a banheiros limpos e banho quente. Tenho os pés mais machucáveis do planeta, não gosto de acordar cedo, nunca fui uma pessoa rural, aliás, difícil ser mais urbana. Enfim, por que raios mesmo quero fazer o tal do caminho?

 

Ainda não sei, mas deve haver algum motivo porque ele não sai da minha cabeça. Engraçado porque nunca conheci tanta gente que o havia trilhado, assim de repente, do nada. Pelo blog, por amigos, por conhecidos, não importa, a informação a respeito tem praticamente me perseguido. Sei que quando estamos atentos à alguma coisa isso acontece, de certa forma parece que o universo conspira, mas podemos racionalizar e dizer que simplesmente olhamos com mais atenção e buscamos a informação que nos interessa. Pode ser.

 

O fato é que resolvi seguir a intuição e tomar uma atitude, decidi que vou trilhá-lo. Estipulei uma data, não tão rígida, mas para ter um objetivo. Saí da voz passiva em esperar as informações que chegavam e passei a pesquisar a respeito em livros e websites. Não sei explicar direito, mas parece que de alguma forma, ao tomar a decisão, o caminho começou.

 

Daí comecei a refletir se teria algum objetivo nobre para fazê-lo. Para ser sincera, não achei nenhum. Cada vez que me pergunto o que quero do caminho não acho nenhuma resposta concreta, só quero caminhar e aprender o que ele tiver a me oferecer. E se não tiver nada a oferecer, pelo menos me deu uma meta, um plano, e isso já me deixa no lucro.

 

Por outro lado, acho que a gente precisa respeitar os próprios limites e também resolvi que não quero todo esse coñazo de sofrimento. Vou fazer o “Caminho de Santiago for dummies”, uma versão light. Não digo turística porque está bem longe do meu ideal de turismo, mas enfim, andei lendo sobre os albergues, como funcionam e tal. Todo mundo diz que é uma tremenda experiência, mas cá entre nós, é uma tremenda experiência de banheiros compartilhados e lama no chão que dispenso. Comecei a procurar hotéis e pousadas e cheguei a conclusão que nem são tão caros assim, principalmente para quem já mora na Espanha e usa o euro como moeda corrente. Não preciso de um hotel cinco estrelas, só quero um banheiro com o mínimo de privacidade e uma cama decente sem nenhum estranho chulézento roncando do meu lado.

 

Vi também que não preciso fazer tudo de uma vez só, é normal se dividir o caminho, além de haver outras possibilidades ao Caminho Francês, o mais conhecido, que começa em Saint Jean Pied-de-Port. Outras opções seriam os  Caminhos de Finisterre ou o Inglês, mas não sei, sigo tentada a optar pelo Francês, mesmo que fazendo um trecho menor, começando em Pontferrada, por exemplo.

 

Luiz não tem vontade de fazer o caminho e acho que não tem nenhuma obrigação. Para falar a verdade, acho que devo fazê-lo sozinha, é coisa minha. No máximo, com uma amiga ou amigo que respeite o silêncio. Talvez tenha essa amiga e acredito que possa funcionar. Também tem o lado de me dar mais segurança por ter alguém conhecido junto e acredito que possa oferecer o mesmo em troca.

 

Comecei a me preparar fisica e psicologicamente e quem sabe tenha sido isso que me fez sentir que o caminho havia começado. Estou avaliando o estritamente necessário para levar e preciso, com urgência, achar o sapato adequado para amaciá-lo com antecedência. Caminho com regularidade distâncias bem razoáveis, mas acredito que precise fazer isso com mais disciplina. Estou atenta onde as dores me surgem após caminhadas mais longas e preciso tomar cuidados especiais com joelhos e coluna.

 

O curioso foi observar que, pelo menos em princípio, esse preparo não está sendo tão difícil, o que contradiz o que acredito ser meu próprio perfil. Parte da minha rotina, no que se pode chamar assim, já abrangia automaticamente uma série de requisitos. Definitivamente, o que preciso me concentrar não é em “o que” e “como”, mas em “por que”. Desconfio que essa resposta só desvendarei lá.

94 – Turbulência

Viajei por dez dias. Cheguei dia 06 de março no Rio, só dormi e fui direto para Belo Horizonte, onde fiquei até dia 09. De lá, voltei para o Rio até 16 de março. Aterrizei de volta em Madri dia 17, bem a tempo de comemorar nosso aniversário de casamento, mas vamos contando pouco a pouco.

 

Que tal começar pela viagem de avião?

 

Não nasci com medo de avião, pelo contrário, até gostava. Um dia, por volta dos meus 12 anos acho, passei por um CB, cientificamente conhecido por cumbulus nimbus. No popular é a nuvem da tempestade. Teoricamente, o avião não pode entrar nessa nuvem, pois fica totalmente instável, correndo o risco de quebrar uma asa, por exemplo. Muito bem, na prática significa uma nuvem preta que faz um barulho horroroso, onde parece que o avião está freiando. Logo depois disso, ele perde o controle e passa por um tipo de turbulência onde cai tudo dentro do avião. Suficiente para me deixar com medo muitos anos. Depois disso, passei por urubu na turbina, pouso em furacão etc. Enfim, viajar de avião passou a ser algo nada muito agradável.

 

Assim como me veio o medo, foi embora no ano passado. Sem mais nem porque, simplesmente perdi o medo e adorei. Não vou dizer que ame voar, mas não é mais um problema.

 

Ainda bem, porque a viagem ao Brasil dura pouco mais de dez horas na ida e nove e meia na volta. Longa distância.

 

Convenhamos, viajar de avião é algo realmente muito esquisito. Como dizia meu sogro: mais pesado que o ar… inventado por brasileiro… sei não…

 

Em que outro lugar a gente paga caro para ficar igual a sardinha enlatada, e iniciamos com a representação de um possível acidente? Sério, a gente já entra sendo prevenida para agir caso a coisa não dê muito certo.

 

A parte que acho mais divertida é a explicação do uso do salva-vidas. Olha que prático, a gente com a máscara de oxigênio que despencou do teto, super tranquila, tem que ficar tateando embaixo da poltrona, onde a mão não alcança, para achar o tal do salva-vidas.

 

Daí a aeromoça adverte que aquela porcaria pode não funcionar. Mas tudo bem, porque nesse caso é só encher soprando por uma bombinha. Coisa também muito simples para se fazer em pânico.

 

Por último, avisam que o salva-vidas só deve ser inflado fora do avião. Ou seja, recapitulando, você apavorada, depois de cair trocentos mil metros, achar a porra do salva-vidas embaixo da poltrona e sair do avião atropelando todo mundo, ainda tem que, no meio de ondas gigantescas, descobrir se a porcaria funciona e, em caso contrário, soprar aquela meleca enquanto afunda. Mas também, vamos combinar, qual é a chance real de que se o avião cair você conseguirá usá-lo, né? 

 

Nesse caso, não seria mais simpático desistir dessa demonstração inútil, que ninguém presta atenção mesmo, e simplesmente fingir que nada de mal pode acontecer? Pronto! Todo mundo ficaria mais feliz. As aeromoças evitariam aquela cara de babaca lá na frente falando sozinhas, os passageiros se iludiriam que nenhum problema poderia passar… olha que maravilha!

 

Fica aí minha sugestão: acabar com as demonstrações de medidas de segurança e prevenções de como agir em caso de acidente. Se alguém tiver sorte o suficiente para estar vivo depois da queda, que se vire!

95 – A viagem

Desembarquei no Rio, fui uma das primeira a saltar do avião… e uma das últimas a pegar as malas. Entre uma coisa e outra, tive a gostosa experiência de passar pela imigração do meu próprio país. Sem fila e com um agente que mal olhou meu passaporte, mas reconheceu rapidamente meu sotaque e me apontou a saída mais próxima. Direto! Simples assim, fácil assim e bom assim. De maneira que a espera pela mala me cansou, mas não me aborreceu.

 

Meus pais me buscaram no aeroporto e já estavam preocupados pela demora, porque sabem que sempre levo comida como lembrança de viagem. A verdade é que dessa vez levei bem pouca coisa. Umas azeitonas, azeite, fuet, vinho, besteirinhas, nada demais. Estava todo mundo de regime em casa mesmo.

 

No dia seguinte, embarcamos meus pais e eu para Belo Horizonte para ver meu avô. Achei ele muito bem, dentro do quadro, é lógico. Debilitado, com dificuldade para se locomover, fazendo um pouco de confusão com as coisas, mas incrivelmente de bom humor. Agora, às vezes ele se esquece de algumas pessoas, nem sempre. E o curioso é que tem absoluta consciência disso. Ou seja, ele sabe que deveria lembrar e é consciente que está fazendo confusão. Enfim, por esse motivo, foi a primeira vez que me preparei para ele me encontrar e não saber quem eu era. Felizmente, isso não aconteceu, ele sabe quem sou, onde moro e tudo mais. Confesso que algumas vezes nosso assunto parecia conversa de bêbado, repetindo a mesma coisa várias vezes em uma altura pouco convencional. Não importa, não ligo.

 

O mais engraçado foi que meu avô agora está com um corte de cabelo feito a máquina, bem curto e, no hospital, as meninas brincando com ele inventaram de penteá-lo como moicano. Ele gostou! Em casa, ficava de farra passando as mãos no cabelo, centralizando o topete grisalho, como um punk. E essa é a imagem que escolhi para lembrar dele por aqui.

 

Foi legal também encontrar toda a família daquelas bandas. Minha tia, meus primos, minha priminha… antigos e novos integrantes. Acabei trazendo a documentação para tentar tirar a cidadania italiana, além de uma foto da minha tataravó, porque das bisavós já tinha.

 

Passados três dias, voltamos para o Rio de Janeiro. Daí só tinha uma semana antes de voltar e foi tudo muito corrido. A maior parte do tempo, como de costume, dei prioridade à família. Encontrei a casa dos meus pais um pouco triste, meu pai sem paciência para se tratar e minha mãe muito cansada. Mas não sei, ao longo da semana, apesar de alguns momentos difíceis, houve uma certa onda de otimismo e tive a impressão de que a situação começava a clarear.

 

O apartamento do meu irmão foi vendido e ele voltou temporariamente para a casa dos meus pais. Logo depois, cheguei eu para visitá-los, de maneira que a casa de repente ficou cheia e deu uma movimentada no astral. Sei lá, tudo foi se ajustando e tomando um rumo que me parece ser para o bem.

 

Encontrei um casal de amigos que morou aqui em Madri e foi show. Apesar de surreal, porque para mim era um pouco confuso encontrá-los na sua própria casa em outro país. Uma sensação de deslocamento esquisita, como se estivéssemos um pouco soltos no espaço. Pouco tempo para tanto assunto, mas deu para matar a saudade. Eles parecem felizes juntos, o que me deixou feliz também. De quebra, ainda levei uma quentinha depois do jantar. Engraçado isso, depois que saí do Brasil peguei esse hábito, amigos que comem aqui em casa, levam comida e faço a mesma coisa, assim na maior cara-de-pau. E acho ótimo! Acredito que a gente acaba desenvolvendo alguns laços familiares e perde a cerimônia.

 

Uma amiga do tempo de colégio me visitou com o filhinho. O interessante é que ela soube que estava grávida dele aqui em Madri, quando passeava com o marido. Luiz e eu fomos os primeiros a saber, pois jantamos juntos no dia em que ela confirmou a notícia. Ou seja, conheci a “notícia”, agora com uns cinco meses. Muito bonitinho e super tranquilo.

 

E falando em neném, também encontrei meus primos do Rio, com a priminha que consegui conhecer na maternidade na última visita. Outra linda! Aliás, o povo no Brasil está fértil, viu? É um atrás do outro! Deve ser a água. Ainda não consegui conhecer todos os filhos dos amigos, não dá tempo!

 

Meu irmão também namorando e a namorada tem uma filha que é outra fofa, mas já maiorzinha.

 

Love is in the air, everywhere I look around, Love is in the air… lá lá lá…

 

Enfim, a semana passou rápido e estava com vontade de chegar em casa, afinal de contas, depois de presenciar tanto romance, estava com saudades do meu.

 

No carro, ainda no aeroporto, ao ligar o rádio, ouvi aquela música ruim e pensei, estou em casa!

 

Cheguei em Madri em 17 de março e nosso aniversário de casamento foi em 18. Luiz reservou nosso jantar no Dassa Bassa, de um chef bem conhecido por aqui, chamado Dario Bario. Muito bom o restaurante e acabamos conhecendo o próprio Dario, que foi super simpático e ficou todo orgulhoso da gente comemorar as bodas por lá.

 

Na volta, passamos no Trifón para última copa, como não poderia deixar de ser.

 

Sábado que vem tem festinha em casa para comemorar com os amigos. É que não dava tempo de fazer a festa no mesmo fim de semana da chegada do Brasil. Vamos fazer um dia de comemorações. Temos amigos muito diferentes, por idade, interesse, filhos etc. Cada um poderia vir em um horário. Por isso, copiei a idéia de outra amiga e faremos assim, a festa começa a partir das 13:00 horas e vai até o último cliente. Os amigos virão por turnos. Uma boa forma de agradar a todos e caber todo mundo no apartamento. Será que isso vai dar certo?

96 – Mas logo na minha vez?

Aqui na Espanha estão passando uma série de reportagens sobre espanhóis que foram imigrantes no passado. É uma forma de lembrá-los que a situação que vivem hoje já foi uma realidade para eles também, ou em outras palavras, uma maneira de evitar ou diminuir o preconceito contra os imigrantes estrangeiros.

 

Tenho lido muito sobre problemas com brasileiros tentando entrar em outros países. Fiquei um pouco preocupada nessa última vinda do Brasil, como seria recebida? Sabia que de acordo como fosse tratada, isso poderia influenciar muito minha postura aqui em Madri. E verdade seja dita, fui tratada com o respeito simples que precisava. De longe o agente da imigração viu na minha mão o passaporte e a carteira com meu visto. Quando cheguei, sorriu e disse “brasileña residente”! Entreguei o papel que havia preenchido no avião, sobre a entrada no país e ele me devolveu dizendo que não precisava mais dele, pois já morava aqui. Foi o suficiente para revigorar minha boa vontade de adaptação.

 

Estive vendo que,  por conta dos 50 anos de união européia, no Brasil também estão fazendo reportagens sobre imigrantes brasileiros na Europa. De maneira geral, me pareceram  programas com mensagens positivas, com a tentativa de evitar que o brasileiro se sentisse excluído em outras sociedades.

 

Sei que a gente presta mais atenção às informações que estamos diretamente relacionados, mas de uma certa maneira, essa questão me pareceu tomar uma proporção mais importante nos últimos anos. Parece ser uma preocupação mundial. O que faz todo sentido em um mundo pós-globalizado.

 

Há muitos anos conheço estrangeiros que vivem fora de seu país. Entre dificuldades e facilidades, me parecia uma vida menos complexa que hoje, talvez fossem mais entendidos como estrangeiros que imigrantes. De repente, sou eu que estou nessa situação e descubro que a regra mudou. Além do que, o número se multiplicou e esse volume assusta. Só me ocorre o pensamento meio egocêntrico, mas logo na minha vez?

 

A primeira vez que pensei assim, foi ainda nos Estados Unidos, quando tirava o visto de residente para Espanha. Nós entramos no país na mesma época em que houve uma legalização maciça de imigrantes e, por conta disso, todos os procedimentos estavam mudando. No consulado espanhol de Miami, por onde nosso processo correu, fui informada que boa parte da demora e complicação da nossa situação se deveu ao fato de sermos o primeiro caso a iniciar ali depois da mudança da lei. Ou seja, estava todo mundo ainda aprendendo como proceder. O que mais poderia pensar além de “mas logo na minha vez”?

 

A atendente do consulado, diante da minha decepção, disse que estava sendo pioneira e abriria caminho para as outras pessoas. Acho que não abri caminho para ninguém, porque eu mesma não fui responsável por nada. Mas achei muito gentil e otimista da parte dela me dizer isso. Dava à toda aquela encheção de saco um olhar de aventura.

 

E foi com esse olhar que cheguei aqui. O tempo e a relativa rotina foi provando que aventura é uma coisa, conto de fadas é outra. Isso já esperava.

 

Por outro lado, às vezes também é legal. Saber que esse é um tema super atual, todo esse movimento dentro do planeta e nós bem no meio dele. Conhecendo na prática, vivendo na veia. O preço é alto, não é um conto de fadas, mas sim que é uma aventura e é a minha vez.

97 – Para 13 anos de bodas…

Sábado fizemos uma festa para comemorar os 13 anos de casados. Todo ano que é possível a gente comemora e, dessa vez, para 13 anos de bodas, foram 13 horas de festa! Estávamos prontos à tarde, a partir dàs 13:00 horas, e às duas da matina foi embora o último convidado.

 

Segundo Luiz, foi praticamente uma rave. Idéia essa que adorei para as bodas de ouro, já pensou? Aquele monte de velhinhos em uma rave? Ao invés de consumir extasy e ácido, optaríamos por viagra e prozac. Acho que seria um sucesso! Fora aquela fila ao lado da pista de dança para tomar oxigênio. Porque certamente, junto ao DJ, contrataria médicos e enfermeiras para ficarem de plantão. Bom, mas para essa ainda faltam 37 anos, então vou me concentrar na festa passada.

 

Como de costume, ao longo da semana fui preparando as comidinhas e comprando as bebidas. Dessa forma, não ficou tão pesado. No dia mesmo, chutei o balde e aproveitei a festa como uma convidada. Fiz carne louca, salpicão de frutos do mar, tomates pata negra em azeite e balsâmico, beringela assada, salada de batata e, o campeão, caldinho de feijão. Também comprei uns queijinhos, frios, salgadinhos de pacote, essas coisinhas para beliscar. De bebida, como sempre a caipirinha é a favorita. Mesmo assim, consumimos cava, cerveja e vinho. Claro que coca-cola para as crianças, que vieram durante à tarde,  e um dos amigos que não toma um pingo de álcool. Ninguém saiu da linha, mas foi o suficiente para estarmos alegres. Se tivessem exagerado também, pouco me importaria, provavelmente acompanhasse.

 

A idéia de fazer o dia de comemorações, que copiei de uma amiga aqui de Madri, me pareceu interessante por vários motivos. Sábado é um dia que costumamos ter mais de um compromisso e acaba sendo a escolha de Sofia. Além disso, tem os amigos com filhos que às vezes não conseguem babá, tem os amigos que não conseguem acordar porque foram para balada na noite anterior, tem os que querem seguir para noite depois da festa, tem os que se adaptam a qualquer horário, enfim, dessa maneira, fica conveniente para todos. Dificilmente em meu apartamento caberia todo mundo ao mesmo tempo, assim o caos que se encarregasse de esvaziá-lo ou enchê-lo. E viva a anarquia!

 

A verdade é que me diverti pra burro! Adoro a casa cheia, fica animada e dá um astral muito bom. Digo sempre que temos muita sorte com os amigos que conhecemos, cada um com seu próprio estilo e personalidade. Sei que a conversa fluiu sem dificuldade e mesmo as crianças se integraram sem problemas. A sensação que tenho é que tudo funcionou e não vi a hora passar.

 

Bom, também é verdade que ao fim da noite os olhos do Luiz já estavam pequenininhos. Nas fotos fica até engraçado ver como a expressão dele vai mudando. Eu continuava ligada na tomada 220V, movida a cava, entretanto, admito que no dia seguinte era totalmente imprestável. Não consegui nem por o nariz na rua. A gente morgou o domingo inteirinho! De qualquer forma, era bom ficar em uma casa cheia de flores, chocolates e comidinhas do dia anterior.

 

Estava feliz. Compartilhar esse momento me deixou mais feliz ainda, é sempre como reforçar um ritual. Continuamos aqui, juntos. A responsabilidade é nossa, mas a energia boa dos amigos ajuda a tocar a vida para frente e disso não quero me esquecer, portanto, celebramos. Vinícius que não me leve a mal, mas que seja imortal e infinito para sempre, e pronto! Não é tão poético, mas é romântico e bem mais gostoso.