60 – Operação compras

Acho muito engraçado quando encontro amigos que acreditam que morar na Europa é super chic. Juro que ainda tem gente que me imagina vestindo longos casacos de pele, em um carro conversível, cheia de mordomias e tomando vinho todos os dias. Bom, tirando a parte do vinho, que aqui é mais barato que coca-cola, o resto é fantasia, fica entre a piada e a caricatura.

 

Passar férias na Europa é chic, e mesmo assim na primavera. Morar aqui é outra história! Não reclamo, é mais justo e me divirto para burro, mas está longe de ser uma vida de glamour e de facilidades.

 

Meu apartamento inteiro cabe dentro da minha antiga sala no Brasil. E o pior é que já nem reclamo mais, porque quando digo que acho pequeno as pessoas me olham com cara de incompreensão. Fica uma coisa pernóstica e me sinto arrogante. Por outro lado, após acomodar tudo, ou quase tudo, em ínfimos armários, posso afirmar que minha habilidade na resolução de quebra-cabeças aumentou sensivelmente.

 

Na cozinha, por exemplo, não existe esse conceito de dispensa. Nos armários, mal cabem os acessórios culinários, imagina guardar comida. Improvisei um carrinho de rodinhas, com três gavetinhas, onde guardo as compras. Adicionado ao que cabe na geladeira, é tudo que podemos ter de estoque.

 

Portanto, me acostumei a fazer compras pequenas, quando não diárias, e para isso aquele carrinho de compras de velhinha funciona muito bem. Acontece que de tempos em tempos, preciso dar uma renovada em coisas mais pesadas, como produtos de limpeza, caixas de leite longa vida etc. Nesse dia, montamos uma verdadeira “operação compras”.

 

Na verdade, há duas opções, uma é mandar entregar em casa, o que já fiz diversas vezes. Entretanto, você precisa ficar esperando sem uma hora específica para a entrega. Nem sempre tenho essa disponibilidade. Agora, com o Luiz de carro, acabo abusando um pouco e pedindo ajuda.

 

Começa que para ele ajudar precisa ser no sábado, dia mundial das compras! Um inferno! Já no estacionamento a gente se estapeia por uma vaga. Daí enfrentamos um congestionamento de carrinhos de compras e de pessoas-rolha que não querem comprar porcaria nenhuma, mas estão ali com o único propósito de te encher o saco. Faço o possível para me desligar e me transporto para meu mundo feliz, apesar da cara de desespero do Luiz.

 

Muito bem, uma hora a gente termina e o próximo passo é atravessar todo estacionamento para pegar o único elevador minúsculo. Colocamos as compras no porta-malas, o mais rápido possível, pois já há outro desesperado pela vaga e uma fila de gente buzinando atrás dele.

 

Esqueci de contar, porque para mim isso é óbvio, mas não temos garagem no edifício. Alugamos uma que fica há uns três quarteirões da nossa casa. Aqui isso é muito perto. E claro que também nunca tem vaga na frente do prédio. Portanto, Luiz para em lugar proibido e, outra vez, tiramos as compras correndo de dentro do carro.

 

Enquanto ele vai estacionar, três quarteirões mais longe, vou eu me enrolando com porta, sacola, chave e o caramba. Às vezes, Luiz consegue me ajudar a por as compras no elevador, mas normalmente, utilizo a técnica “polva” que desenvolvi nas terras madrileñas. É simples, consiste em segurar a porta com a perna esquerda, prender a bolsa com o pescoço e com movimento ágil empurrar várias sacolas ao mesmo tempo para dentro do elevador.

 

Bom, vamos complicar mais um pouquinho? Não preciso dizer que o elevador é ridiculamente pequeno, né? Mas até aí, tudo bem, porque ainda temos o luxo de possuir elevador, coisa que não é garantida. Acontece que o prédio é antigo e foi renovado, ou seja, o original não tinha elevador. Aproveitaram uma área de circulação de ar e instalaram o dito cujo onde foi possível. Ocorre que os únicos lugares viáveis para se sair do elevador eram entre dois andares. Isso quer dizer que você sempre tem que subir ou descer um lance de escada, equivalente a meio andar. No nosso caso, como é a cobertura, sempre temos que subir.

 

Agora imagine depois de toda essa ginástica, saio eu troncha do elevador, exerço a técnica “polva” para tirar as compras de dentro dele e olho para essa última escadaria. O que mais posso pensar? Desculpe o francês, mas a única coisa que vem à minha cabeça é puta-que-pariu-três-vezes!

 

Abro a porta suada e cheia de cuidados porque o Jack vem me receber com gracinhas felinas e querendo sair. Nesse caso a “polva” evolui porque preciso da perna esquerda para segurar o Jack e da bunda para segurar a porta. Com muito cuidado para a porcaria da porta não bater porque ela tranca por fora. É mais ou menos o tempo do Luiz chegar, depois de estacionar o carro.

 

¡Joder! Alguém ainda acha isso chic?

61 – A deselegância divertida de “La Latina”

“La Latina” é um bairro colado ao centro da cidade. Apesar da sua proximidade aos pontos turísticos, ainda mantem seu lado castiço e é basicamente frequentada por moradores.

 

Pessoalmente, gosto muito de ficar em algum dos bares ao redor da Plaza Paja. Um dos meus favoritos é o Ficciones, onde as tapas são gostosas e tem um super tiramisú. Nesse domingo, ficamos no Las Musas, ambiente agradável, comida boa, uma torta de doce de leite divina e atendimento… bem, atendimento espanhol. Quando você consegue contato visual com o garçon e o convence a chegar na mesa, até que ele é simpático. De qualquer maneira, quem mesmo está com pressa?

 

Domingo fez um dia lindo. O outono está colaborando com a cidade. Tem chovido bastante, o que em tese está em época, mas ano passado foi a maior seca. Precisamos de água e nunca mais reclamei de chuva. Por outro lado, as temperaturas não estão tão baixas e esse fim de semana fez dias especiais, daqueles que você precisa estar na rua.

 

Portanto, os bares que nesse período já teriam guardado as mesinhas que ficam do lado de fora, adiaram a decisão um pouco mais. Sorte nossa! E que lugar melhor que “La Latina” para curtir um ar livre? Bom, até há outros, mas ficar nas terrazas olhando o povo passar é muito divertido. Há um tipo de campeonado nativo, não formalizado, de quem consegue ser mais esquisito. E pode acreditar, eles conseguem empatar sempre em primeiro lugar. Haja criatividade!

 

Luiz, eu e duas amigas, passamos a tarde sentados em uma dessas disputadas mesinhas externas. Você fica assim do lado de fora tomando conta dos cachorros alheios, reparando a roupa estranha dos outros, os cortes de cabelo irregulares engomados com gel, os sapatos desproporcionais de bicos e saltos finíssimos e pensando se você também não é um pouco esquisita. Enfim, vendo o tempo passar.

 

Prazeres simples que provocam um tipo de nostalgia do que não tinha, sossego. Tim Maia gostaria de Madri.

 

… ora bolas, não me amole, com esse papo de emprego. Não está vendo? Não estou nessa. O que eu quero? Sossego…

62 – Idas e vindas

No fim de outubro, foram embora nossas duas últimas hóspedes, minha tia e prima. Não sei quando as vejo novamente, mas já aprendi a não pensar nessas coisas, a gente sofre menos. O que faço é me despedir como se fosse encontrar as pessoas na próxima semana. E quem pode ter certeza se não será assim? A casa ficou meio vazia, mas sei que é por pouco tempo.

 

Na semana que vem chegam minha cunhada com uma amiga. Elas virão da China, literalmente. Fazem uma parada aqui e voltam para o Brasil. E assim vamos tocando nossa movimentada vida.

 

Por enquanto, ninguém mais previsto para esse ano, mas sempre acaba aparecendo alguém. Só sei que em dezembro quem sai somos nós. O Natal ainda passamos em Madri, mas o ano novo estaremos em uma estação de esquis na França. A propósito, vem um casal de amigos dos Estados Unidos para nos encontrar por lá. Ê mundinho pequeno!

 

Falando em Natal, hoje vi pela primeira vez a decoração natalina que começou a se espalhar pela cidade. Uma amiga havia me falado a respeito e achei meio cedo. No fim dessa tarde, vi com meus próprios olhos.

 

É meu terceiro Natal fora do Brasil. Pelo menos, agora sei onde comprar um tender. Aprendi no ano passado que é vendido no Ikea, uma loja sueca que vende móveis e acessórios para casa. Engraçado, né? Mas é que logo após os caixas, tem uma lojinha que promove os produtos alimentíceos suecos e, felizmente, na suécia comem tender! O peru é mais fácil de encontrar. Acho que vou fazer uma festa para os expatriados perdidos por aqui. Será que fica alguém?

63 – Novembro

Entrou na semana do meu aniversário. Digo semana porque sempre comemoro bastante ou pelo menos tento, ainda que esse ano está custando um pouco a me animar. Não estou triste, só não tenho o mesmo pique de costume.

 

A velocidade em que o ano passou não foi proporcional aos acontecimentos que planejei. Tudo bem, nem tudo que a gente quer consegue, mas é um pouco frustrante chegar ao fim do ano sentindo que as coisas estão muito parecidas ao ano passado. Não estão ruins, talvez não esteja mais habituada à essa semelhança com ontem, mas às vezes tenho a impressão que os degraus aqui são mais altos e o tempo para conseguir as coisas é diferente. Ou será que sou eu que não tenho a mesma agressividade? Estranho, porque sinto que retomei um pouco da raiva que pensei ter deixado para trás. Ainda faz parte da minha natureza.

 

Aparentemente, minha documentação espanhola para o próximo ano foi aprovada. Deveria durar dois anos, mas demorou tanto a ficar pronta que o primeiro já foi quase todo. Melhor que no ano anterior, pois vale mais tempo, entretanto foi aprovada no mesmo período. Parece provocação essas identidades sempre chegarem perto do meu aniversário.

 

Hoje quero menos ser espanhola que no ano passado, o problema é que também sou menos brasileira. E o mais esquisito, tenho menos vontade de ser qualquer nacionalidade. O absurdo título de imigrante parece ter me conformado, me caiu como uma pátria. Deveria ter me incomodado, pois no fundo há um sentido pejorativo, mas a verdade é que aliviou porque finalmente me definiu. Nos EUA era imigrante, aqui sou imigrante, se for para França sou imigrante… pronto, resolvido! Talvez essa seja minha vingancinha pessoal, pois o que deveria me inibir me fortaleceu.

 

Quando você tem uma casa para voltar, se comporta de maneira mais passiva na casa dos outros, pois sabe que é temporário e engole o sapo. Agora, posso respeitar as regras fora do que não é meu, mas como não tenho mais para onde voltar, faço por educação e não por obrigação. E isso faz muita diferença. Entro pela porta da frente e recebo pela mesma porta, todos deveriam merecer esse respeito.

 

Não era tão diferente assim no Brasil, um país com diversidade sócio-cultural e tamanho de um continente. Apenas, não havia me dado conta. Não tinha percebido que o meu sotaque misturado não era tão debochado como o dos nordestinos; achava muito importante lavar algumas roupas a mão e passar lençóis e toalhas, afinal de contas, não era eu que fazia; e não me dei ao trabalho de cortar relações com as pessoas que separavam seus talheres e pratos dos que usavam seus empregados. Não gostava, mas nunca tomei uma atitude séria. No Brasil também há imigrantes ou migrantes, o que dá no mesmo. Acho que se voltasse a morar lá mudaria bastante minha postura, não em relação ao que fazia, mas ao que não fazia ou não dizia. Ali também todos deveriam entrar pela porta da frente e merecer esse respeito.

 

Enfim, agora tenho uma festa para preparar e amigos de algumas nacionalidades para receber, pela porta da frente.

64 – Preparação da festa

Há exatamente um ano atrás, ainda não havíamos dado nenhuma festa desde que havíamos mudado para Madri. Todo mundo falava tanto que o espanhol era desconfiado, arredio e tal, que ficava sem graça de convidá-los.  Mas foi chegando a época do meu aniversário e foi me dando os cinco minutos de vontade de comemorar. Resolvi arriscar e fazer a festa assim mesmo. Foi ótimo! Convidei espanhóis, brasileiros e amigos de outras nacionalidades. Pois veio todo mundo. Na verdade, veio até penetra que virou amigo, mas essa história quem sabe conto outro dia.

 

E um ano e várias festas depois, estou outra vez igual a criança que não sabe se os amiguinhos vem no aniversário. Aqui, dia 09 de novembro, minha data de nascimento, é feriado. Nem é feriado em toda Espanha, só em Madri. É dia de La Almodena, que pelo que entendi, é tipo uma santa padroeira da cidade.

 

Muito bem, esse feriado cai em uma quinta-feira. Muita gente emenda e não trabalha na sexta, igualzinho ao que a gente acha que só acontece no Brasil. Resultado: um monte de gente viajando no fim de semana. Por isso, resolvi fazer a festa amanhã, na quarta-feira, véspera do feriado. Vamos ver se funciona.

 

Comecei a preparar as comidinhas hoje, para não me enrolar no dia. Vou servir carne louca, salada de batatas, beringela assada, surtido de ibéricos, queijos franceses, kani e canapés de salmão defumado. Assim, acho que dá para cobrir todas as nacionalidades, ou boa parte delas. De bebidas: vinho, whisky e caipirinha. Apesar do que, acaba todo mundo querendo caipirinha. Lendo agora, parece muita coisa, mas é que tenho pânico de que falte comida e bebida em festa. Sei que é uma paranóia, mas não consigo evitar.

 

Faço 37 anos e gosto desse número. Engraçado que de crises existenciais sou frequentadora, mas nunca me importei em envelhecer. A idade me tranquiliza.

 

Quer dizer, a idade tranquiliza, mas a festa não. Já vi que nem vou dormir direito!

65 – Finalmente!

Finalmente, chegou o dia do meu aniversário e com ele se foi o inferno astral! Vai gostar de festa assim lá longe, viu? Começou na véspera, com meus amigos legais e internacionais. Deu tudo certo!

 

Como sempre, me empenho na produção: velas, decoração, comidinhas, música. Acho uma delícia ficar pensando em quem-gosta-do-que-mesmo e dar um toque de cada um. Sei lá, acho que é uma maneira de fazer com que as pessoas se sintam bem vindas. Vale a pena pelos amigos do coração que fazem nossa vida melhor e nossa casa mais feliz.

 

Dei até uma de cupido. Não sei se vai funcionar, “que seja infinito enquanto dure”. O importante é dar beijo na boca.

 

Não comprei nenhuma torta ou bolo, na esperança de que ninguém lembrasse de cantar parabéns. Em vão! Dessa vez foi em três idiomas: espanhol, português e alemão. No último, fora a melodia, só entendi meu nome. Mas vá lá, até isso achei divertido, devo estar realmente ficando velha.

 

Só ganhei presente legal! Já fui começando logo a usar o que podia na mesma noite, nem deu tempo de esfriar.

 

De bebidas, como sempre, o sucesso é a caipirinha. Acho muito engraçado como sobra vinho. Quer dizer, sobra na festa, porque depois faço muito bom proveito. Eu mesma, parti logo para a agressão e fui de Blue Label. No aniversário eu mereço, né? Chutei o balde sem piedade e adorei. Quando estou bem, minha resistência ao alcool é muito grande. Engraçado isso de como nosso humor interfere na maneira que o corpo absorve a bebida. Não acordei com um dorzinha de cabeça sequer. Resaca zero!

 

Fiquei com pena do Luiz, que chegou do Cairo no mesmo dia, morto de cansado! Resistiu bravamente até o fim da noite que, inclusive, foi prolongada da nossa casa para o melhor lugar para dançar de Madri, o El Junco, é claro!

 

No dia seguinte, ai que preguiça! Ganhei café na cama, o maior luxo do mundo do melhor marido do mundo. Até meu gato veio me acordar com gracinhas ronronantes. Ficamos morgando em casa, curtindo o feriado. Aproveitei boa parte do tempo para responder as mensagens de parabéns da família e dos super amigos espalhados pelo mundo. Pelo telefone, falei com minha mãe, meu pai, meu irmão, uma amigona do Rio, horas e horas com uma amiga de Munique, meu avô e amigos daqui mesmo que não puderam vir na festa. Nessas horas, confesso que bate um pouco de saudade, mas daquelas boas, não as que te derrubam.

 

Putz, estou muito piegas hoje! Amanhã tudo volta ao normal, mas como é bom ter um dia em que a gente se sente especial e querida. Tenho muita sorte e estou feliz.

66 – A tosse do sapo

Tenho um tipo de tosse alérgica que me ataca de vez em quando. De um modo geral, surge por uma gripe, uma mudança de clima ou alguma alteração besta. Na verdade, é a minha resistência que cai e qualquer bobagem ataca minha garganta. De maneira que a gripe, ou o que seja, vai embora e o raio da tosse permanece. Por observação, notei que é sempre que estou nervosa, tensa, preocupada ou algo do gênero. Resumindo, no popular é quando tenho um sapo na garganta. Enquanto não engolir o sapo ou vomitar o dito cujo, a tosse não vai embora.

 

O curioso é que, mesmo sabendo disso, me esqueço com frequência. Talvez minha cabeça queira esquecer. Há algum tempo minha tosse começou, mas como também entrou outono, o clima mudou e tinha muita gente com dores de garganta, vírus, enfim, essas doenças modernas que sempre surgem nessa época, achei que deveria ser por isso. Não dei muita atenção.

 

Acontece que hoje me ocorreu que poderia ser a tosse do sapo. Daí, fazer o que? Mergulhar no pântano para caçar o bicho. Motivos de preocupação, tenho alguns, quem não tem? O fato é que evito alimentar os girinos e a maioria morre por inanição, mas às vezes passam alguns e viram sapos-boi.

 

Voltei o filme até lembrar quando comecei a tossir e foi por outubro. Acho que tinha a ver com meu documento de identidade que não ficava pronto nunca. Achava que não estava me afetando tanto, já tinha uma certa experiência nisso e tentei levar com naturalidade. Mas também voltei a andar com o documento americano na carteira, caso fosse parada pela polícia ou algum estabelecimento não aceitasse mais meu cartão de crédito. A identidade brasileira não vale muito aqui, mais pelo formato que pela procedência, e minha carteira espanhola vai caducada desde abril desse ano. Por mais que faça parte do procedimento legal, nem todo mundo sabe disso.

 

A proximidade com o aniversário agravou a situação. Nessa época tenho muita vontade de mudar, de realizar coisas. É como o fechamento do ano de uma empresa, você quer correr atrás dos resultados e acabar bem. De repente, me vi com 37 anos, que me soa como quase quarenta, e que podia dizer? Fiz pouco? Talvez sim, talvez não. Nem essa clareza tenho.

 

A festa ajudou, ter amigos me ajuda na certeza de fazer alguma coisa certa. Mas uma hora a festa acaba e fica a casa para arrumar.

 

Arrumar a casa me dava uma sensação de tranquilidade, de um certo controle. Mais do que isso, me fazia acreditar que também estava provendo o conforto para nossa família. Entretanto, acabo de descobrir que não é exatamente assim. Aparentemente, esse é um esforço inútil para manter uma ordem desnecessária de algo que não é meu. Talvez o caos seja mais confortável e, embora vá me custar um pouco, acho que também posso me adaptar a ele em casa.

 

Recebemos visitas no fim de semana e ajudou a aliviar o ambiente. Vieram a irmã do Luiz com uma amiga do trabalho e as duas são muito divertidas. Engraçado elas chegarem exatamente agora, pois pude ver meu passado e meu provável futuro que nunca foi. Como estou diferente de mim. Sinceramente, não tenho a menor idéia se isso é bom ou mau e talvez não compense avaliar por aí. Não é a primeira vez que me deparo com caminhos que não segui. Sei que minha vida é outra e que preciso fazer alguma coisa com ela. Mas o que?

 

Preparei as peças para a próxima exposição coletiva na faculdade, que acontecerá em dezembro. Gostei das obras e tive meus cinco minutos pessoais. Mas assim como na exposição de setembro, está me custando disfrutar, me sinto um peixe fora d’água. Por que posso navegar em tantas águas diferentes, entender tanta gente diferente e, mesmo assim, sempre ter essa sensação de não caber em canto nenhum? Não é uma reclamação nem um lamento, simplesmente não consigo entender.

 

Nossas hóspedes foram embora e não tive nenhuma vontade de arrumar a casa. Luiz começou a arrumar as coisas e eu nem entendi, talvez tenha sido para me agradar, mas não tive vontade de entrar muito no assunto.

 

No mesmo dia, soube que meu pai vai operar no Rio de Janeiro, no início de dezembro. Está com a carótida entupida. De certa maneira, já estávamos esperando e não parece ser uma cirurgia complicada, mas sempre preocupa um pouco, principalmente por estar longe. Ele parece tranquilo, o que é boa notícia. De toda maneira, é o segundo sinal violento que recebe para se cuidar. E preciso me acostumar com o fato de que isso não é minha responsabilidade, muito menos minha culpa.

 

Pela primeira vez na vida, tomei um remédio para dormir. A irmã do Luiz me garantiu que era natural e não viciava, é melanina. De qualquer forma, só peguei duas pastilhas, ainda tenho muito medo disso. Sempre preferi meu sono de merda do que medicação para dormir. Ontem não resisti à tentação e tomei o tal comprimido. Fui deitar pensando absurdos como por exemplo, se a melanina ajuda a dormir, será que as pessoas negras dormem melhor? Será que durmo mal porque sou branquela? Antes de evoluir muito esse par de bobagens, ao som da televisão e da rotineira briga dos vizinhos, dormi.

 

Acordei bem, descansada. Pouco depois, Luiz me avisou por telefone que a carta da imigração havia chegado no nosso antigo endereço. É a carta que faltava para atualizar meu visto de residência em Madri. Pus uma roupa correndo e fui lá buscar. Há poucos metros do edifício,  sem querer comecei a me preparar para o caso de não ser a carta correta, de ser outro de tantos enganos entre esses sete meses que vou conferir o correio no endereço anterior. Não era um engano, era a carta mesmo com a aprovação do meu visto para mais dois anos, dos quais um já quase passou. Bom, não é o passo final, com essa carta preciso ir na próxima segunda-feira tirar minhas impressões digitais, levar foto etc, e daí leva mais um tempinho para eles imprimirem a carteira. Mas essa parte costuma ser mais rápida e não há mais nada a ser aprovado.

 

Voltei para casa naquela alegria misturada com não-sei-o-que. Vinha comemorando e ao mesmo tempo pensando que se precisasse ir ao Brasil às pressas por causa do meu pai, seria complicado. Lembrei que já passei por isso antes e, no fim, deu tudo certo. Então, por que não tentar ser um pouco otimista? Vamos por partes.

 

No apartamento, sentei com mais calma para ler e organizar a papelada que tenho que levar na segunda. Quanto mais lia, mais tossia. E foi aí que lembrei da bosta do sapo! Tinha um sapo-boi e uma família de girinos engasgados na garganta. Como não estava com a menor vontade de engolí-los, resolvi vomitá-los um a um no teclado e queimar os que sobraram com um bom café pelando. Quem sabe assim a tosse acabe.

Errata

Algumas confusões são divertidas. Na crônica anterior, contei sobre uma medicação natural para dormir à base de melanina. Na verdade, era melatonina. Tudo bem que o nome é parecido, mas esse “to” no meio da palavra faz toda a diferença. Com melanina, no máximo poderia ficar mais moreninha, mas meu sono continuaria uma bela porcaria

67 – O mistério da batata frita

Vou me exibir um pouquinho e dizer que cozinho bem para caramba! Modéstia às favas, vou da comidinha caseira até pratos sofisticados sem descer do salto. O único problema é quando alguém resolve ser legal e me fazer companhia, porque me distraio e erro. Mas agora já perdi o pudor e aviso às pessoas que fico mais tranquila em cozinhar sozinha. Não ligo se for alguém que queira aprender, ou cozinhar junto, mas que fique claro que não é hora de conversa. I am a woman in a mission! Pisou na cozinha, a coisa é séria.

 

Acontece que tenho um ponto fraco que me irrita. Simplesmente, não consigo fazer a bosta da batata frita! Até rimou.

 

Enquanto morava no Brasil e nos EUA, isso não era um problema. Nunca liguei para batata frita, acho que fica com muito gosto de óleo. O cheiro e a aparência eram bem mais provocantes do que o sabor em si. Agora, quando mudei para Madri, a coisa mudou completamente. Aqui eles fritam a batata em azeite de oliva. Além do gosto ser radicalmente melhor, posso me iludir que é mais saudável.

 

Tem um tal de “huevos rotos” que consiste em batata frita no azeite, normalmente em rodelas, ovos fritos e uns pedacinhos de jamón. Há algumas variações, mas é basicamente o ovo com batata. Gosto quando o ovo vem frito com aquela geminha mole e a gente corta e mistura tudo. Putz! É um chute no balde!

 

Por isso, pouco a pouco, fui ficando com vontade de fazer a tal da batata frita no azeite, até que me arrisquei. Minha primeira batata não ficou ruim, ficou absolutamente asquerosa! Uma droga mesmo, foi humilhante! A segunda batata já não ficou tão asquerosa, só uma droga. Mesmo assim, o pobre do Luiz teve que comer sem fazer cara feia e provou seu amor quando fechava os olhos e fazia aquele som de “huuuummmmm”… E eu querendo jogar aquela merda daquela batata na parede! Ai, que raiva!

 

Daí vieram as dicas infalíveis: tem que secar a batata… tem que por antes no congelador… o óleo tem que esquentar até acender um fósforo… tem que vestir a batata de baiana… Fala sério, pareciam os planos infalíveis do Cebolinha, nenhum deu certo. Dez a zero para a batata!

 

Dei um tempo porque estava afetando minha auto-confiança culinária. No alto do meu despeito, tentei me convencer que nunca quis fazer batata frita mesmo, que invenção era essa agora.

 

Até que hoje Luiz ia viajar para Dubai e decidi preparar alguma coisa rápida para ele comer antes de encarar tantas horas de vôo. Fui na cozinha ver o que tinha e a geladeira estava caída que só, coitada. De repente, vi os ovos e bacon, mas achei que faltava consistência. Virei para o lado e lá estavam elas: as batatas! Caraca, juro que chega escutei aquela musiquinha de duelo de faroeste. Nem pensei muito para não me intimidar, arregacei as mangas e parti para o ataque. Não é possível que não acerte fazer uma porcaria de uma batata frita!

 

Muito bem, fazer eu fiz. Fiz uma tremenda cagada na cozinha! Azeite para tudo que é lado, roupa com cheiro de gordura, cabelo nojento… e tudo isso para fazer uns “huevos rotos” que beiravam as raias do medíocre. Bom, pelo menos posso dizer que foram as melhores batatas que fiz na vida e não estou mentindo.

 

Ao final, sob forte resistência, tive que me render ao conceito Mc Donalds. Fazer uma comida gourmet é mole; difícil, desculpe, é fazer a merda da batata frita!

68 – Mais (ou menos) um capítulo da novela documentação

Ontem cumpri mais um passo nesse longo caminho que consiste a regularização da documentação de uma imigrante. Pronto, já assumi, sou imigrante mesmo! Paciência.

 

Essa etapa foi a da renovação do meu NIE, como expliquei algumas vezes, é a carteira de identidade do estrangeiro. Na primeira etapa, a sua carteira vale por um ano; nessa segunda, vale por dois anos. A minha primeira carteira, ou tarjeta, como chamamos aqui, venceu em abril e demorou todo esse tempo de burocracia, sete meses, para ser tudo aprovado e eu poder tirar as digitais outra vez e entregar novos retratos. Nesse período, sou legal no país, mas não possuo um documento em mãos que prove isso, o que é bem incômodo. Ficava sempre na dúvida se alguém ia me fazer provar que fucinho de porco não é tomada.

 

Na verdade, existe uma declaração de viagem que posso tirar, caso precise deixar o país e voltar durante esse período de trâmite da documentação. Tirei uma que valeu até agosto passado e talvez precise tirar outra agora, pois viajarei no Natal e Ano Novo. É que depois de tirar as digitais, huellas em espanhol, a carteira demora cerca de quarenta dias para ficar pronta e viajarei antes disso. Tudo bem, daí é só esperar, não há mais nada a ser aprovado.

 

Devo confessar que dessa vez foi bem melhor do que na primeira. Começa que adiantou um passo. Na primeira vez, ainda existia um documento intermediário entre a carta que recebi e o dia que tirei as digitais, mas isso é muito chato de explicar. Depois, da primeira vez passei quatro horas em uma fila, do lado de fora, a cinco graus centígrados! Agora, havia  uma advogada me acompanhando, que contratou uma pessoa para guardar lugar na fila, ou seja, quase não esperei. Até que enfim tive alguma mordomia latina! Já estava desacostumada.

 

Mas definitivamente, o que me chamou atenção mesmo foi o atendimento dos funcionários espanhóis, sensivelmente melhor. Considerando que sempre reclamo do que não gosto, preciso ser justa e elogiar a evolução. Primeiro, acho que as pessoas aprenderam o serviço. A lei de imigração aqui mudou muito no ano passado e acredito que ninguém sabia muito bem o que estava fazendo. Os processos já estão mais ajustados e há bem menos gente a ser atendida.

 

Depois, tenho certeza que houve algum tipo de treinamento dos funcionários. Sou ex-consultora e farejo isso de longe. Quando a segunda pessoa que te atende, antes de começar a fazer qualquer coisa, te olha nos olhos e diz bom dia, pode acreditar, isso não é berço, é treinamento.

 

Enfim, foi um alívio. Por mais que estivesse com tudo certinho, sempre acho que na hora pode surgir algum porém. É uma neurose, mas o pior é que às vezes eles encrencam. Felizmente, não aconteceu nada imprevisto e, ainda por cima, o atendimento foi ótimo!

 

Como havia imaginado, até minha tosse melhorou! Também, menos um sapo-boi entalado na garganta!

69 – Terça-feira em Madri

Fi-nal-men-te estamos na última semana de aula. Chega! Agora só fica faltando a exposição, que inaugura no dia 12 de dezembro e irá durar cerca de um mês. As duas peças que vou expor estão praticamente prontas, assim que estou prestes a dar o ano por encerrado.

 

Saí da aula na terça-feira, junto com minha amiga brasileira e, para variar, as duas famintas. Luiz viajando e eu com preguiça de cozinhar. Resolvemos jantar nós duas, alguma coisa leve.

 

Paramos no bom e velho Trifón, minha copa cozinha. Claro que era só para tomar um vinhozinho, comer rapidinho e pronto. Tudo mentira! Juntar duas baladeiras e acreditar que na segunda taça de vinho ainda teríamos algum juízo…

 

Bom, não tinha nada para fazer no dia seguinte mesmo, assim que demorei quase trinta segundos para aceitar a proposta de dar uma passada no El Junco.

 

Não sei quantas vezes já falei do El Junco, um bar de jazz pequeno, esfumaçado e com jeitão underground. Isso descreve o lugar, mas não a experiência, essa fica difícil definir. Foi mais ou menos assim, chegamos e o moçambicano-gente-boa-com-nome-de-vício nem cobrou nossa entrada. No fundo, rolando aquele show de jazz rasgado e informal. Não dava para saber direito quem era da banda e quem era do público, porque o palco é meio parte da pista de dança e os músicos se alternavam. A noite foi do trumpete, nem é meu instrumento favorito, mas a bola era dele. Engraçado isso nos shows de jazz, todos podem ser ótimos, mas a noite é sempre de algum, pelo menos na minha opinião. Sentamos em uma das pouquíssimas mesas altas e alguém tentou pegar meu whisky, acho que só para começar a conversar. Daí perguntou de onde éramos e eu disse Brasil, ele disse que era argentino e fiz uma indisfarçável careta, ele perguntou se a gente não gostava de argentinos e falei depende, da onde? Ele disse Buenos Aires e pensei, piorou! Tá bom, última chance, Pelé ou Maradona? Ele enrolou, mas disse Maradona. Lo siento, tío! Sem possibilidade de diálogo. Três erros em três respostas, acho que fui até legal porque não sabia se minha amiga estava interessada. Mais tarde, no banheiro feminino, eu, minha amiga e uma espanhola decidíamos algo importantíssimo para a humanidade, deveria deixar minha camiseta para dentro ou para fora da calça? Melhor para fora porque não estava de cinto. A espanhola achava o Brasil muito legal e quis saber o que achávamos de Madri. Pues yo, ¡encantada! Dançando na pista e fofocando em português, notamos a presença de um papagaio de pirata fazendo de tudo para escutar nossa conversa, até que perguntou se éramos polacas. Polacas?! Disse que ia ao bar buscar alguma coisa e perguntou se a gente também queria algo, muito gentil, mas não obrigada. Um cidadão se entitulando “el mago” se aproximou da minha amiga e começou a fazer uns truques de mágica com cartas, daqueles bem antigos. Acompanhava uma portuguesa que ficou minha amissíssima de quinze minutos, muito simpática. Quando ela foi embora, incentivei seu outro amigo, um espanhol baixinho bioquímico, a realmente deixar de fumar por sua namorada com nome de tênis. Ele dizia, sincero, que ía tentar parar por ela, mas claro que dizia isso enquanto acendia outro cigarro. O pessoal da banda passou por nós e avisou que iam para outro bar, chamado “El Barco”, e nos convidaram a dar uma passada por lá. Quem sabe, mais tarde. Muito bem, isso tudo junto, aliado a uma música excelente e à possibilidade de dançar do jeito que você quiser, é o El Junco.

 

Minha amiga e eu, saímos para procurar o tal “El Barco”. Pedimos informação ao simpático moçambicano da porta. Ele sabia mais ou menos onde era e foi ajudado pelo pedinte, a quem apesar de educadamente negarmos uma contribuição, participava com boa vontade da explicação. Bom, cada um falava uma coisa e nós entendemos uma terceira, porque nunca achamos o bar. Desistimos, já estávamos cansadas e paramos no “Sprint” para comer um cachorro quente, que na minha cabeça media uns dois metros! De lá, voltamos para casa.

 

Cheguei sã, salva e fedida a cigarro. Tomei um banho rápido e apaguei até o dia seguinte, quando acordei com uma ressaca daquelas! Burra, bebi pouca água. Também, Luiz não estava lá para me lembrar! Com a cabeça pesando duzentos quilos e totalmente mareada, fiz o que era mais lógico: me pesei. Beleza! Voltei ao meu peso. Só uma alma feminina consegue ver o lado bom de uma ressaca seguida de enjôos: emagrece!

70 – Quando estamos velhos e para que?

Acho que a primeira vez que me dei conta de que a idade poderia ser um limitador, tinha por volta dos vinte e pouquíssimos. Hoje me parece uma idade desproporcional para se sentir velha, mas houve um motivo. Sei lá porque cargas d’água, me deu vontade de aprender a dançar balet e simplesmente não existia turmas iniciantes para essa idade, ou melhor, para qualquer pessoa com mais de doze anos! E não é que quisesse ser bailarina do teatro municipal, mas não importa, seu corpo não responde à altura e você não é mais capaz de realizar os movimentos.

 

Enfim, me pareceu estranho, mas tinha tantas outras possibilidades, que não dei maior importância ao fato.

 

Anos mais tarde, já com Luiz em Atlanta, fomos com um casal de amigos fazer escalada indoor pela primeira vez. Claro que não dei nenhum show, mas fiz e me diverti, assim como nossos amigos. Minha amiga era a única  escaladora profissional. Quando saímos, seu marido nos disse que se sentia feliz em ser capaz de ainda tentar um esporte novo. Não estávamos acima do peso, não tínhamos nenhum problema aparente e tínhamos um histórico de atividade física que nos permitia experimentar. O que ele não sabia é que eu, diferente dos demais, não tinha nenhum histórico de atividade física, sempre fui uma ociosa nesse sentido e, por ignorância, me orgulhava disso.

 

Entretanto, o que ele disse ficou martelando na minha cabeça. Por um lado, compartilhava de sua satisfação por ter sido capaz de, ou mal ou bem, participar da atividade. Por outro, me ressenti de ter sido tão relapsa ao longo da vida, possuindo um biotipo que certamente me favoreceria no esporte. Nunca havia me dado conta que não cuidei do meu corpo com a atenção merecida. E pela segunda vez, senti que a idade poderia ser um limitador.

 

O tempo passou e fomos visitar um amigo em Vermont, que mora perto de uma estação de esquis. Luiz estava louco para tentar, eu tinha alguma curiosidade, mas o frio era maior. De qualquer forma, lá fomos nós. Ele saiu esquiando logo de cara, tem muita facilidade para esportes e também muito equilíbrio. Para mim não foi tão fácil. Difícil dizer o que me atrapalhava mais, se o frio, se a resistência ou o desconhecimento. Só sei que foi duro e fiquei com uma sensação ambígua de curiosidade e decepção. Mas uma coisa era evidente, esse sentimento de ter começado tarde demais. Aos 35 anos, não é que a idade poderia ser um limitador: era um limitador de fato e, nesse caso, o tempo do verbo faz toda a diferença.

 

Um ano depois, em Andorra, procurei ter uma atitude mais positiva. Afinal de contas, Luiz estava tão empolgado com a idéia de esquiar, que não me custava tanto assim tentar. Mas a verdade é que tinha poucas ambições. Queria no máximo ser capaz de acompanhá-lo e brincar um pouquinho nas pistas iniciantes, enquanto ele se atrevia pelas mais complicadas. E digo, sinceramente, que foi quando me bateu forte o ressentimento de não ter começado criança. Não digo só pelos esquis, mas pelo meu descaso físico.

 

O lado positivo é que fiquei com a pulga atrás da orelha e um gostinho de quero mais. Sentia que nunca seria uma esquiadora, mas poderia melhorar. Apesar de tudo que me custava, havia alguns momentos que me superava e era muito bom.

 

Em Madri, começamos a frequentar uma pista de neve artificial, no shopping Xanadú. Já contei algumas vezes essas experiências e como, aos poucos, fui evoluindo e passando a gostar. Lembro-me da primeira vez que fomos até lá e só Luiz esquiou. Fiquei olhando de fora e pensando que nunca conseguiria descer aquela pista com ele. Novamente me enganei que iria ficar na pista de iniciantes, gastando tempo, enquanto ele desceria na maior. O fato é que a pista pequena ficava cada vez mais fácil e entediante. Entre o tédio e o medo, sempre prefiro o medo e comecei a descer a pista maior também. Nos tornamos frequentadores do lugar e, ainda que me custasse muito no início, cada vez desfrutava mais.

 

Um dia em casa, quando saí do banho, notei com uma certa surpresa que minhas pernas estavam diferentes, mais rígidas e com músculos que não tinha. Olha, aos vinte anos, isso poderia não ser nada demais, talvez nem notasse, mas arrastando nos quarenta, quando as únicas novidades no nosso corpo são celulites e uma bunda desaparecente, pode acreditar que ao perceber qualquer coisa mais dura, nem que seja o nariz, a gente quer soltar rojões de felicidade! Não é que seja tão relaxada, me cuido, mas no sentido de comer coisas saudáveis, procurar não sair do peso, um creminho aqui outro ali, enfim, o básico feminino para desacelerar o processo de envelhecimento. Ou em outras palavras, não me importa envelhecer, só quero envelhecer bem.  Mas reverter essa situação e perceber que podia não só estacionar temporariamente esse processo, mas sim melhorar fisicamente, para mim foi uma vitória.

 

Gaiatices à parte, fiquei muito orgulhosa, não apenas pelo lado da vaidade, mas por essa sensação de conseguir correr atrás do prejuízo. De repente, me caiu a ficha que parte da minha dificuldade nos esquis estava na minha cabeça. Tenho limitações, levo dois joelhos operados, sinto vertigens, não sou nenhuma garota, mas e daí? Se cada vez que for fazer alguma coisa tiver que pensar em todas as desvantagens… Isso sim seria cabeça de velha.

 

Percebi que estava reclamando muito e fazendo menos do que poderia. Essa resistência  me deixou com um pouco de raiva. Finalmente, mudei minha atitude de verdade. Decidi que aprenderia a esquiar bem e pronto.

 

Coincidência ou não, depois dessa decisão tomada, minha maneira de esquiar mudou, alavanquei a curva de aprendizado. Continuo tendo dificuldades, mas me limitam cada vez menos. Desço a pista envaretada, nem sempre tão controlada, mas mantendo a pose.

 

Nesse fim de semana, ganhei um par de esquis. Estreiei ontem, quando passamos mais de três horas na pista, até congelar os pés.

 

Posso estar velha para fazer balet, mas para esquiar ainda dá tempo!

71 – Um mico muito legal

Não me considero uma pessoa tímida. Também não sou das mais extrovertidas, até pareço mais séria do sou de verdade, mas tímida mesmo, acho que não. Entretanto, nesse sentido, tenho um ponto fraco indisfarçável, é só ligar uma câmera de vídeo na minha frente e me transformo em uma caipira. Pode ser até vídeo de casamento que simplesmente me paraliza.

 

Pois muito bem, estava eu tranquila checando meus e-mails e me chama pelo MSN uma amiga brasileira que vive aqui em Madri. Começou me contando que foi convidada a participar de um programa culinário que vai ao ar em cadeia nacional da televisão espanhola. A equipe vai na casa de estrangeiros que vivem em Madri e eles fazem pratos típicos de seu país. Puxa! Achei o máximo! Falei, que legal, quer dicas para cozinhar? Ela me respondeu, mas não sei cozinhar, achei que era sua cara e queria te indicar.

 

Como? Eu? Euzinha? Nunca! Jamais! Mas de jeito nenhum! E comecei a suar e a corar só de imaginar a possibilidade! Escuta, podemos fazer assim, te ensino como fazer e você faz. E ela disse que não tinha chance e começou a me convencer. Coloquei um milhão de barreiras que ela foi derrubando uma a uma. No fundo, tinha vontade de fazer, mas me dava uma vergonha danada!

 

Acontece que tenho por princípio não perder oportunidades. A verdade é que era algo legal, em um programa de qualidade e fazendo uma coisa que adoro, cozinhar. Mas realmente, além de me pegar desprevenida, estava com a casa cheia de visitas e seria impossível fazer qualquer coisa por aqueles dias. Então fiz o seguinte, deixei o destino decidir, disse para ela que naquela semana não tinha jeito, só poderia se fosse na segunda quinzena de novembro. Claro que disse isso por duas razões, uma que ganharia tempo, a outra porque jurava que não iriam topar. E, nesse caso, não seria eu quem estaria desistindo e, portanto, não estaria perdendo nenhuma oportunidade, certo?

 

Óbvio que eles toparam e a responsável pelo programa me ligou, aliás, muito simpática. Putz-caraca-que-vergonha! Mas não tinha como dizer não. Aceitei.

 

Várias vezes ensaiei escrever sobre o assunto, mas estava tão nervosa que não saía nada. Sei que é uma tremenda bobagem, não é nada demais, mas desde quando os medos são racionais? Achei que a melhor estratégia era não falar no tema e fazer de conta que não ia acontecer.  Aquela coisa de “se eu fingir que o problema não existe, será que ele desaparece”?Até que a responsável pelo programa me ligou nessa segunda-feira, marcando a gravação para hoje, quinta-feira.

 

Falando em estratégia, sou uma pessoa de estratégias, ou seja, tenho uma grande habilidade na preparação. Pura necessidade. Preciso dessa habilidade, porque se depender do improviso, estou ferrada! Bom, daí me preparei o melhor possível no dia anterior. Comprei todos os ingredientes, deixei tudo organizado, limpei a casa e a cozinha. Até aí, tudo bem. Quando comecei a pensar no que ia dizer para a câmera, pronto, iniciou meu calvário. Fui dormir, pensando nos nomes dos ingredientes em espanhol. Só preguei os olhos graças à bendita melatonina.

 

Às onze da manhã, a equipe da TV chegou em casa. Fui logo colocando minha dificuldade, que era basicamente… tudo! Morro de vergonha das câmeras, nunca cozinho com ninguém perto, muito menos explicando o que estou fazendo e, ainda por cima, tendo que falar em espanhol. Meu castellano já não é perfeito e o normal é, quando ficamos nervosos, voltar ao nosso idioma nativo. Resumindo: que-raios-tô-fazendo-aqui-socorro!

 

Para minha sorte, o pessoal era do bem, tinham muita paciência. O programa que eles fazem não é com artistas ou chefs profissionais, é com gente comum, cozinhando em casa. Ou seja, eles estão acostumados a lidar com o nervoso e a inexperiência. Pelo menos, isso me disseram e me foi conveniente acreditar.

 

Achei que quando começasse a gravar, aos poucos meu nervoso fosse diminuindo e tudo fluisse mais naturalmente. Para ser sincera, não relaxei, fiquei tensa até o final. Mas, ao mesmo tempo, consegui me divertir, porque afinal de contas era muito engraçado. É verdade que me enrolei algumas vezes, mas eles me disseram que estava bom. Sei lá, acho que é porque na edição eles cortam muita coisa.

 

Enfim, paguei uma família inteirinha de micos e só houve um momento que realmente curti, foi quando o cheiro da moqueca de camarão começou a invadir a casa e a deixar todo mundo com fome. Pensei, tudo bem, com as câmeras I suck, mas aqui o jogo é meu. Foi o que recuperou minha dignidade.

 

Mal a gravação terminou e devoramos a moqueca. Até o prato de apresentação, montado para a filmagem, foi devidamente aproveitado na refeição. Imagina se a gente ia deixar camarão de enfeite! Aí sim, relaxei. Conversamos, brincamos, bebemos caipirinha e foi muito divertido. Não sei se manteremos contato, acho difícil, mas bem que gostaria.

 

Quando eles foram embora estava ao mesmo tempo exausta e eufórica, doida para contar a alguém! O celular do Luiz não atendia de jeito nenhum. Liguei para minha amiga, a que me indicou para o programa, e fofoquei com ela, morrendo de rir, ainda um pouco nervosa e falando compulsivamente. Aos poucos, a adrenalina foi baixando e fui me sentindo cansadíssima.

 

Mais tarde, Luiz chegou de Milão. Havíamos combinado de jantar fora e não entendi quando ele me perguntou meio irônico se não queria passear com ele no aeroporto. Mas como assim? Ele tinha acabado de chegar de lá! Muito bem, ele foi ao aeroporto de carro, porque não iria ficar tanto tempo fora e, dessa maneira, facilitava sua vida em não precisar pegar dois taxis. Na volta, claro que ele esqueceu e pegou um taxi para casa. Só na frente do edifício, quando pegou a chave para abrir a porta, e junto veio a chave do carro, é que ele se lembrou. Lá fomos nós para o aeroporto e ainda por cima de metrô, porque não havia uma porcaria de um taxi na rua. Olha, confesso que já esqueci mala em aeroporto, mas um carro?

 

Na volta para casa, merecíamos um bom jantar. Resolvemos arriscar o Rubayatt. Digo arriscar pois nessa época do ano, entre quinta e domingo, os restaurantes estão super hiper repletos. Conseguimos literalmente uma última mesa. Como sempre, carne excelente e atendimento no altíssimo padrão paulista.

 

E assim, com chave de ouro, fechamos a noite de um longo dia.

72 – Fim de ano

Por que no fim do ano nos bate essa urgência de ver os amigos? Tudo bem que é um pretexto para vermos os que não tivemos a oportunidade de falar com tanta frequência, mas acontece a mesma coisa com os que encontramos toda semana.

 

Não sei o que ocorre, mas quando um ano se vai, bate essa vontade de nos despedir das pessoas. Talvez seja isso que dê um gosto de reencontro ao vê-las na semana seguinte, porque afinal de contas, será em um novo ano. De certa forma, acho que nos dá a ilusão de também sermos, ou podermos ser, novas pessoas.

 

Madri não foge a essa regra. Os restaurantes estão repletos, as dietas foram para o saco e a agenda das pessoas se tornou um quebra-cabeças complicado. O que acho disso? Adoro! Sou chegada a uma confusão.

 

A atrativa decoração de Natal e toda essa correria, me distraem do inverno que chegou devagar, mas chegou. A vontade de hibernar em casa e as alterações de humor pela mudança da luz já chegaram também. Preciso tomar cuidado para não ficar de pijamas o dia inteiro, principalmente agora que as aulas da faculdade acabaram. Ou seja, hora de vitamina C, gengibre e rua!

 

Nessa sexta-feira, foi o jantar de fim de ano com as meninas do curso de espanhol. Esse curso acabou há séculos, mas felizmente, conseguimos manter nossa amizade entre Brasil, França e Alemanha. E claro, também mantivemos nosso idioma próprio, que é algo entre o espanhol e o esperanto. Dessa vez, os maridos se juntaram a nós e fomos jantar no Nabuco, um ótimo restaurante italiano que fica na Calle Hortaleza. Ganhei esse jantar no meu aniversário, de modo que Luiz e eu fomos convidados.

 

Esse restaurante é muito perto do El Junco, ou seja, mesmo sem planejar uma noite tão longa, foi impossível não entrar ali pelo menos para um drink e uma dançadinha. Francamente, passar bem na frente da casa e não entrar seria até provocação. Enfim, Luiz comprimentou em português o simpático moçambicano da porta, que nos passou na frente da fila, afinal de contas, somos clientes habitués. Ainda conseguimos assistir ao finalzinho de um ótimo show de jazz, mas não ficamos até tarde, ou melhor, até de manhã. Ainda no El Junco, Luiz ligou para um casal de amigos brasileiros que costumava ir conosco lá, antes de retornar ao Brasil. E como sempre, só ele consegue conversar, porque não escuto nada pelo celular. De qualquer forma, é divertido, pois parece que eles estão mais próximos.

 

No sábado, nos escondemos do mundo. Descongelei o restinho de feijoada do aniversário do Luiz, devidamente devorada. Nesse tempinho, é tudo de bom! Só saímos para esquiar, em um horário razoavelmente improvável. Esquiamos mais ou menos de 23:00 à uma da matina. Para dizer a verdade, a pista não estava exatamente boa. A neve estava uma porcaria; estava lotado de gente, apesar do horário; um dos acessos ao topo da pista não estava funcionando; e uma mocinha responsável pela manutenção da pista tentou quebrar meu pé com uma pá de neve. Sobrevivi quase sã e quase salva, o que com um pouco de otimismo, considerei um bom sinal.

 

No domingo, outra festinha de fim de ano na casa de uma amiga. Por sorte, foi cedo e deu para conciliar com o concerto de cordas de um quarteto, onde toca outro amigo. O concerto foi em Cobeña, uma cidadezinha pequena há cerca de 15 km de Madri. O quarteto é formado por dois violinos, uma viola e um violoncelo. Nosso amigo é o da viola, que para quem não conhece, é um tipo de violino um pouco maior. Ainda bem, porque ele também é um pouco maior que as pessoas normais e acredito que um violino ficaria desproporcional na sua mão.

 

Talvez o fato de ter sido realizado em uma cidade pequena fez com que a função não fosse tratada com o devido respeito. Ninguém sabia exatamente quando aplaudir e o responsável pelo espaço insistia em falar ao telefone. Mas com um pouco de boa vontade e espírito natalino, até que às vezes ficava engraçado. O importante é que tocavam muito bem e foi uma maneira excelente de terminar o fim de semana.

 

Gosto de reparar, além da música, as expressões dos músicos. A menina do viloncelo, por exemplo, tocava com as mãos e as sobrancelhas. Algumas vezes, as expressões faciais dos músicos me lembram a dos surdos-mudos. De alguma forma estão pensando em uma língua diferente. Um dia queria muito entender essa língua. Quem sabe isso não se transforme em uma promessa de ano novo?

73 – Dia comprido

Hoje é 6 de dezembro, quarta-feira, feriado não-sei-de-que, alguém me disse que é dia de São Nicolau. Na sexta será feriado outra vez, de maneira que boa parte dos espanhóis emendarão a quinta. Aqui, essa emendada de feriado se chama “puente”, ponte, como no Brasil.  A rua está deserta e Luiz está em Paris. Que saco de dia! A hora não passa.

 

Feio, o dia não está. Tem chovido bastante e não reclamo, precisamos muito da água. Mas hoje amanheceu ensolarado. Acontece que no inverno amanhece com jeito de fim de tarde e me dá a sensação que nossas manhãs são roubadas.

 

Deu vontade de sair para caminhar, mas não animei. De qualquer forma, está tudo fechado, vou olhar o que? Pensei em fazer uma faxina na casa, mas fiquei bem quietinha esperando essa vontade imbecil passar.

 

Falei com minha mãe pelo MSN, meu pai opera hoje a carótida. Todo mundo diz que é uma cirurgia simples, já li que é uma cirurgia simples, até acredito que seja uma cirurgia simples, mas é uma cirurgia. Só vou sossegar quando ouvir alguém me contando que deu tudo certo e foi uma cirurgia simples.

 

Li noticiários de todo planeta pela internet, os blogs de opinião, as comunidades do orkut… Perdi o hábito do jornal impresso, mas sinto falta de saber as notícias daqui, do Brasil e de outros lugares. Para falar a verdade, um dia imagino que vou acabar me cansando dos noticiários da internet também, não pela forma, mas pelo conteúdo. Como desgraça dá ibope! Entre um jornal e outro, dá vontade de dar uma passadinha no banheiro e cortar os pulsos! Aquecimento global, tsunami, palestinos ou israelenses? E por que não “e” ao invés de “ou”? Nunca consigo abrir uma página de notícias no Brasil, cuja a manchete ou os principais temas não estejam vinculados à corrupção. Às vezes agradeço o fato de não ter a necessidade de gerar um filho.

 

Tentei trabalhar em alguma peça, mas me senti voltando ao colégio e precisando estudar para uma prova chata. Daquele jeito em que tudo é pretexto para distração, toda hora a gente precisa beber água e procurar algo que possa ter nascido na geladeira nos últimos cinco minutos.

 

Hora que não passa…

74 – Quando um peido é capaz de derrubar um avião

Felizmente, a cirurgia do meu pai correu sem maiores problemas. Hoje ele vai para o quarto e já poderá receber visitas. O médico tirou de sua artéria uma quantidade de gordura de forma e tamanho de um camarão empanado!  Ele estava calmo, sua maior preocupação era que ficaria com fome muito tempo, ou seja, tenho mesmo a quem puxar.

 

Mais relaxada, lá fui eu assistir o jornal na TV. Havia reclamado tanto das notícias de desgraça e não é que veio uma reportagem no mínimo curiosa?

 

Essa neurose americana do controle de tráfego aéreo chegou ao limite do ridículo. A reportagem tratava de um avião da American Airlines que pousou por medidas de segurança e expulsou uma passageira antes de prosseguir o vôo. A parte hilária é a história. Aparentemente, a senhora em questão comeu algo que não devia, o que gerou digamos assim, gases. Com vergonha do cheiro, ela acendeu fósforos para disfarçar. E o cheiro dos fósforos, por sua vez, assustou a tripulação e outros passageiros. A propósito, fósforos são proibidos nos vôos. Portanto, se você comeu repolho antes de embarcar, melhor levar um perfuminho. Mas lembre-se, pequeno, porque o limite me parece que é de 50 ou 100 ml e deve ir em um saco plástico transparente. Agora, voltando ao assunto, foi o cheiro dos fósforos que assustou?

 

Resumindo: peidar nos EUA agora pode ser considerado um ato terrorista! Dependendo do aroma em questão, devo admitir que talvez não seja uma medida tão negativa.

 

O repórter que dava a notícia até tentou guardar um tom mais sério, chamando os puns de flatulências. Mas a verdade é que mal conseguia conter o riso.

 

Enfim, imaginem o mico dessa pobre senhora flatulenta, com a melhor das intenções aromáticas, sendo expulsa com o avião inteiro sabendo que ela era peidona! Pior, dá para imaginar o depoimento? Ela com aquela luz na cara, algemada e o policial perguntando: minha senhora, qual o motivo de acender fósforos durante o vôo? E ela preferindo dizer que era terrorista só para não assumir que peidou! Não, francamente, porque depois desse circo todo eu preferia ir para Guantamo que assumir o ato flatulento.

 

Convenhamos, se ainda fosse um homem, vá lá. Porque certamente ele se transformaria no herói da galera e contaria com enorme orgulho, durante a partida de futebol, que seu peido supersônico era tão poderoso que fazia até avião interromper o vôo! Mas uma senhora… coitada!

 

Enfim, acho que usei todas as palavras proibidas na internet para ser rastreada, só faltou bomba, ui, falei! Ai, que mêda!

75 – Aprender a paciência

A vida de um expatriado tem um sério problema, ainda não inventaram o aparelho teletransportador do Star Trek. Por mais que as distâncias pareçam cada vez mais curtas, tem momentos que a coisa complica e dá uma vontade absurda de ser onipresente. A santa internet e o bendito telefone ajudam muito. Mas tem uma hora que o que você gostaria mesmo é da presença física.

 

Uns três dias após a cirurgia, meu pai foi liberado para ir para casa, o que nos foi de grande alívio. Infelizmente, sentiu alguns efeitos colaterais neurológicos e precisou voltar ao hospital por medidas de precaução. Claro que assustou todo mundo. É uma das horas que o teletransportador faz falta.

 

Tenho aprendido a ser mais otimista e confiar nas informações que as pessoas me passam, até porque a outra alternativa é enlouquecer. Procuro seguir a relativa rotina planejada, mas é óbvio que normalzinha não dá para ficar. É muito estranho de uma hora para outra se sentir prestando atenção a tudo, como se qualquer coisa pudesse ser um sinal. O que você sonha, o tom de voz que te contaram algum procedimento, o que seus instintos te dizem… Fazer o que? Se é o que você tem?

 

Enfim, meu pai voltou ao hospital e iniciou uma série de exames para descobrir o que tinha acontecido. Repetindo como um papagaio o que meu irmão me disse, em princípio está tudo bem, foi um rompimento de uma pequena ramificação que eles teriam utilizado como fonte secundária de fluxo sangüíneo, ou algo parecido. Mas que na verdade, a coronária principal, a que foi operada, está em perfeitas condições. Eles alargaram a outra coronária e, segundo o médico, a probabilidade de acontecer essa ausência de coordenação dos membros direitos, o que aconteceu com meu pai, é menor do que em uma pessoa normal.

 

Estaria mentindo se dissesse que entendi perfeitamente essa explicação, mas todas essas palavras juntas até que fazem algum sentido. Uma coisa importante eu aprendi, quando te dão alguma explicação, qualquer uma, isso é bom. O ruim é quando está naquela fase do estamos-averiguando-o-que-poderia-ser. Porque isso normalmente quer dizer que eles não tem a menor idéia do que se trata!

 

Acredito que ele fique internado mais alguns dias e, mesmo não apresentando mais nenhum problema, acho importante que ele só saia quando tiver certeza que está tudo bem. Por um lado, me dá um pouco de pena, porque sei que ficar em um hospital é um saco. Por outro, talvez funcione como um aviso, não sei. Pode parecer um pouco cruel o que vou dizer, mas acho que o enfarte salvou a vida do meu pai. Não foi o suficiente e ele precisou de outro aviso. Talvez esse tempo forçado ajude a clarear as idéias.

 

De qualquer forma, é difícil para mim. Sempre fui a acompanhante de hospital oficial da família. Tenho meus truques, entro em qualquer UTI na hora que quiser, consigo a paciência que nunca possuo normalmente e posso me tornar um leão-de-chácara com enfermeiras irresponsáveis ou visitas inconvenientes. Agora mesmo, isso não me adianta em nada. Só posso telefonar, perguntar e buscar informações para ler a respeito. Absolutamente inútil! E o rojão fica com minha mãe e meu irmão. Há o resto da família e os amigos, aos quais sou grata, mas fico com essa sensação, até um pouco pretenciosa, de que não é a mesma coisa.

 

Por que não vou ao Brasil? Complicado. E também pode ser que em dois ou três dias, tudo isso esteja resolvido. Assim espero e é o que aparenta ser. Quer saber, um pouco de otimismo também não é mau.

76 – Ufa!

A terça-feira amanheceu prometendo ser um dia complicado. Mesmo assim, sinceramente não estava de mal humor. Acordei cedo, sou pontual, mas como costuma acontecer quando não estou muito afim de fazer as coisas, me enrolei com besteiras e me atrasei um pouco.

 

Hoje iniciou a montagem da próxima exposição coletiva que participarei. A inauguração será na quinta-feira, dia 14 de dezembro. Como na última exposição, com o mesmo grupo, não estava lá muito animada. Sempre fico achando que em cima da hora pode dar algum pepino, sei lá, acho que no fundo é o saco cheio do curso.

 

No caminho fui melhorando a atitude e procurando pensar coisas positivas, aquele jeito Pollyana de ser. Ainda era cedo para ligar para o Brasil e estava preocupada em saber notícias da família. Daí tentei lembrar de um tipo de versinho que minha mãe me ensinou quando era bem menina. É bobo, mas me distraiu, diz assim “na vida, só há dois motivos para se preocupar: vencer na vida ou perder a partida. Se você vencer na vida, não há motivo algum para se preocupar. Mas se perder a partida, das duas uma: ou seu estado é excelente, ou seu estado é de um doente. Se seu estado é excelente, não há motivo algum para se preocupar. Mas se seu estado é de um doente, das duas uma: ou você vai para o céu, ou você vai para o beleléu. Se você vai para o céu, não há motivo algum para se preocupar. Mas se você vai para o beleléu, vai encontrar tantos amigos a penar, que não há motivo algum para se preocupar”. Acho que foi a primeira vez que parei para pensar no que isso queria dizer, e não me pareceu muito maternal alguém me ensinar que podia ir para o inferno tranquila que iria encontrar muitos amigos. Entretanto, o fato é que quando era criança, o que achava divertido era decorar o verso e pensar que não deveria me preocupar tanto.

 

Cheguei na faculdade meio desengonçada, sem graça, com uma mochila pesadíssima e minhas obras debaixo do braço. Mas a verdade é que quando piso numa sala de exposições para os preparativos, me baixa um não sei o que inexplicável. Esqueço da vida, me absorve. É um momento solitário onde parece que o mundo anda em outra frequência. Sinto que ainda estou aqui e é muito bom.

 

Simplesmente adoro o clima da preparação, os bastidores. Todo mundo ajuda todo mundo, ferramenta para lá, tinta para cá, palpites, nervoso, escada. Tem problemas também, mas acho que entro em um tipo de transe e até o que é ruim acho bom.

 

Claro que rolou um barraco. Toda exposição coletiva que se preze rola um. Às vezes mais discreto, às vezes mais violento, às vezes até engraçado. O importante é que na hora que se grita o luz-câmera-ação, a coisa tem que funcionar. E normalmente funciona. A propósito, o barraco nem foi comigo… por enquanto! Tenho aprendido a facilitar minha vida.

 

Voltei para casa suada, carregando um monte de tralha, com as unhas cheias de tinta nos cantinhos, cabelo mais ou menos, musculatura dolorida, ou seja, resumindo, feliz. Vai ser peão de obra assim lá longe!

 

A medida que ia chegando perto do apartamento, fui voltando ao planeta terra e, automaticamente, a ansiedade em ligar logo para o Rio foi aumentando. Queria saber como estavam as coisas com meu pai. Meu bom humor soava como bom preságio, mas preferi ir com cautela. E para acabar com o suspense, está tudo bem, meu pai já saiu do hospital e atendeu o telefone em casa.

 

Um dia de cada vez, e por hoje só posso agradecer.

77 – Um tema delicado

Há alguns meses comecei a notar algo que me incomodava, mas de maneira muito abstrata: a questão da imigração. Não falo só do meu próprio umbigo, talvez um pouco, mas do que tenho observado pela rua.

 

Sinceramente, não sei se minha percepção é um pouco distorcida. Cheguei na Espanha muito empolgada e talvez tenha feito vista grossa para uma série de problemas. E quando via, me convencia rapidamente que era uma questão isolada, que gente boa e ruim tem em todo canto. Certamente, há verdades e meias verdades em tudo isso.

 

Mas o fato é que não posso mais fazer de conta que não vejo o preconceito crescente em relação à imigração aqui, e isso me incomoda cada vez mais. Para ser justa, nunca me tocou diretamente, acontece que moro em um bom bairro e tenho aparência européia. Mesmo meu sotaque, apesar de claramente estrangeiro, nem sempre é identificado da onde. Não conto isso com nenhum orgulho, muito menos pelo contrário, é só uma descrição. Não sei se de certa forma, por sorte, fui protegida.

 

Entretanto, de um tempo para cá, algumas cenas e histórias soltas começaram a se juntar em um quadro que não me parece nada bonito. Um homem negro dirigindo um carro se atrapalhou em uma faixa de pedestres, e uma senhora espanhola disse bem alto “está pensando que está na sua terra? Tá acostumado com as vacas?“; foi acompanhada de risos de outros pedestres. Um estudante de dentro de um carro, do nada, gritou para uma mocinha grávida, romena, que limpava pára-brisas “rumana hija de puta”. Uma senhora no supermercado insistia em furar a fila na frente de uma amiga brasileira e ao não conseguir, esbravejada que isso era culpa dessa imigração. Nos restaurantes, o atendimento de merda, que sempre foi de merda, agora se diz que antes era bom, começou a piorar depois da imigração e dos contratos ruins. Todos os dias os jornais mostram barcos carregados de homens negros chegando em Canárias, de maneira que você não sabe se sente pena ou medo, e francamente, não sei qual dos dois sentimentos seria pior. E não é difícil ouvir que os imigrantes estão roubando empregos de espanhóis.

 

A culpa é da imigração! De repente, essa se tornou a desculpa fácil para boa parte dos problemas do país. Na dúvida, culpe os imigrantes!

 

Complicado. Atrás de todos esses comentários, se esconde uma enorme ignorância e uma completa falta de justiça. O simples fato de estar consciente disso deveria me colocar acima dessas questões, mas na prática não é tão fácil assim. Sei me defender muito bem, mas é desagradável ter que me posicionar na defensiva cada vez que abro a boca. E cada vez que abro a boca, colo um crachá no peito: sou imigrante. E a cada vez que levanto a cabeça por não ter do que me envergonhar, quantos precisam abaixar a sua, por pura necessidade?

 

Engraçado como as pessoas tem o dom de esquecer a parte da história que não interessa. Quantos espanhóis imigraram para buscar melhores condições de vida, para fugir da guerra, para escapar da ditadura e, por que não lembrar, para fugir da fome? Por que não divulgar que com toda essa legalização de imigrantes, além de ser uma atitude exemplar, foi também uma maneira fantástica de evitar que a previdência falisse? Por que não explicar à população que para um estrangeiro ser contratado, precisa provar judicialmente que um espanhol não quer ou não pode exercer o mesmo cargo?

 

Quer saber de uma coisa, detesto admitir isso, mas aqui na Europa as pessoas são muito mais preconceituosas com os imigrantes do que, por exempo, nos Estados Unidos. Ali o sistema é uma máquina de fazer loucos, mas as pessoas, nesse sentido, estão mais abertas. Não é perfeito, mas por incrível que pareça, são bem mais acessíveis. Aqui, a cabeça dura começa na própria população. Paguei com minha língua.

 

Eu gosto de morar em Madri, aprendi a adorar essa cidade com seu melhor e seu pior. Tenho amigos espanhóis que respeito e que não se enquadram nessa massa de ignorância. Mas hoje preciso dizer que estou muito aborrecida e decepcionada com esse lado perverso.

 

Colorín colorado, este cuento se ha acabado…

78 – Férias entre 2006 e 2007

Sair de férias é o tipo de coisa que até quando é ruim, é bom! E quando é bom, então… é correr para o abraço! Pois seguindo essa lógica, hoje posso abraçar o mundo, porque foi uma viagem e tanto.

 

Vamos começar pelo começo. O ano de 2006 foi difícil para mim, não posso dizer que foi um ano ruim, seria injusto, mas foi complicado. Muitos problemas de saúde na minha família e na do Luiz, um curso que será bom um dia, mas que me atravancou um bocado ao longo do ano, a ficha caindo que sou uma imigrante… e por aí vai. Não importa mais, sobrevi e muito bem, obrigada. Também é verdade que muita coisa boa aconteceu. Entretanto, o fato é que ao chegar em dezembro, mal podia aguentar para fugir do planeta.

 

E assim foi. Entre a última semana de dezembro e a primeira de janeiro, não quis saber do que ocorria no mundo. Ouvi de orelhada que executaram o Saddam, que uma bomba explodiu em Madri e algumas outras desgraças que, sem o menor pudor, fiz questão de ignorar. Não vi televisão. Ainda por cima, checar a internet do caminho era uma tarefa árdua, a Europa ainda é pouco evoluída nesse sentido. Como estava fugindo de qualquer tarefa, também mal chequei a internet. Para ser brutalmente sincera, não queria nem fazer as perguntas retóricas de “como vai, tudo bem?” porque as pessoas podiam levar a sério e responder. Egoísmo mesmo, ao cubo, mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Juro que não sou assim normalmente, mas fui durante duas semanas inteirinhas. E como foi bom.

 

Saímos de carro, Luiz, eu e, claro, o Jack. Lógico que ele foi, imagina se deixaríamos nosso felino sozinho tanto tempo. Nosso gato internacional metido conheceu mais dois países e se comportou divinamente em toda a viagem.

 

Começamos por Andorra, um micro país entre as fronteiras de Espanha e França. Fica há cerca de seis horas de Madri e era nossa segunda vez por lá. Ali passamos o Natal só nós três. Foi bastante tranquilo e relaxante, estávamos precisando. Acho que foi a melhor forma de iniciar.

 

Como nada é perfeito, a neve não ajudou muito, ou melhor, a falta de neve não colaborou. Por outro lado, essas estações de esqui já não podem mais só contar com a natureza e fabricam sua própria neve artificial, quando a temperatura permite. Por isso, felizmente, pudemos esquiar, ainda que não fosse a melhor neve do mundo. É que, quando isso acontece, a neve fica um pouco dura e empedrada. Mas quer saber, foi o suficiente para a gente se divertir e uma boa desculpa para ficar nas jacuzzis e saunas do hotel até a pele enrugar.

 

As pistas de neve seguem uma graduação de acordo com sua dificuldade que é definida por cores. Há as pistas debutantes, que são onde você aprende a esquiar. Depois vem as verdes, as azuis, as vermelhas e as pretas, nessa ordem, sendo as pretas mais difíceis. Quer dizer, para mim, as pretas parecem absolutamente impossíveis! A minha maior ambição era terminar a viagem sendo capaz de descer uma azul.

 

Melhor explicando, descer, sou capaz de descer qualquer uma. A questão é ser com ou sem dignidade. Afinal de contas, descer de bunda ou rolando também é descer, certo? Pois queria descer uma azul com alguma dignidade.

 

Em Andorra, desci apenas as verdes. Além da neve não colaborar, só me sentia confortável em tentar uma azul se fosse com um instrutor. Isso faz toda a diferença, porque eles sabem alguns exercícios que te propiciam corrigir a postura, centro de gravidade, enfim, para mim é fundamental. Acontece que sei que Luiz não gosta de esquiar sozinho e tentei acompanhá-lo. De qualquer forma, com uma neve ruim, seria um desperdício pagar a um instrutor.

 

Depois de uma semana em Andorra, seguimos para uma pequena cidade francesa próxima a Bourdeaux, chamada Bourdeilles. Lá ficamos por dois dias, na casa de um casal de amigos holandeses. Bourdeilles é uma cidade medieval linda, tranquila e agradável. E como não poderia deixar de ser, também tem seu castelo. Aliás, coisa chata isso de viajar pela França, toda hora você esbarra em um castelo… ai, ai…

 

Enfim, foi bom para descansar um pouco dos esquis e me deixou com uma vontade enorme de ter uma casa pela região.  Sonhar não custa, quem sabe um dia.

 

O casal que visitamos é muito especial, gente do bem, e tem uma filhinha temporão de nove anos que é uma fofa. Ela simplesmente ficou encantada com o Jack, mesmo ele não tendo lhe dado muita bola, afinal de contas, apesar de ser considerado da nossa família, ele ainda é um gato. A combinação felino-criança não costuma ser a mais indicada. Mas, na medida do possível, até que ele se comportou direitinho. Com o casal, nos comunicávamos em inglês, a filha só falava holandês e digamos que o meu holandês não é exatamente fluente, o que quer dizer que só sei dizer “bom dia”. Mas isso não foi problema, ela era bem inteligente e fomos dando nosso jeito.

 

De Bourdeilles, seguimos para Val d’Isere, no que deveria ser sete horas de viagem, mas graças ao trânsito horroroso, levou nove. O pobre do Jack chegou tortinho e nós exaustos!

 

Ficamos em um apart hotel, o único que conseguimos alugar com uma antecedência de uns dois meses. É que na Europa eles se planejam para tudo e quando você deixa para em cima da hora (sim, dois meses é considerado em cima da hora!) é muito difícil conseguir um bom local. Alugamos um flat simples, porque hotel não tinha mais, considerado de bom preço para a região e o principal, muito bem localizado.

 

Ao chegar no flat, confesso que minha impressão não foi das melhores. Acho que a pessoa que arrumou o lugar ou os últimos hóspedes tinham, digamos, um belo de um cecê francês e o quarto estava fedendo mesmo. Tinha três preocupações, a primeira era em relação à nossa estadia; a segunda é que chegaria um outro casal de amigos americanos para o mesmo apart e fiquei pensando que eles poderiam passar por esse problema; e a terceira é que existia a forte possibilidade de um casal de amigos brasileiros, fosse dormir conosco uma noite.

 

Enfim, Luiz e eu ficamos nos olhando com aquela cara de nádegas e ele achou que a gente podia solucionar comprando uns aromatizadores, paninhos de limpeza ou algo assim. Não tinha outro jeito, então respirei fundo, mas não tão fundo porque fedia, e fomos ao supermercado bem próximo. Compramos os tais aromatizadores etc, voltamos para o flat, abri bem as janelas para arejar e fomos arrumando o quarto da nossa maneira, tentando arranjar o máximo de espaço possível. Sabe de uma coisa, não ficou mal e conseguimos sair para jantar, relaxar um pouco e esperar nossos amigos. Sabíamos que ia começar a parte da farra na viagem.

 

Val d’Isere é simplesmente linda! Um cartão postal natalino. Tudo que queria, me mudar por alguns dias para uma cidade de contos de fadas. Ali parecia não haver problemas, as pessoas eram bonitas e com cara de bem sucedidas. Estávamos prontinhos e descansados para chutar o balde!

 

Foi a parte da viagem também que teríamos companhia. Um casal de amigos americanos veio diretamente de Atlanta nos encontrar por lá, fizemos as reservas do apart juntos. Eles são super animados e a diversão era garantida. Um outro casal de amigos brasileiros, que acabou de se mudar para Suíça, também prometeu nos encontrar para a noite de Reveillon. O único problema é que, claro, não estavam achando onde ficar. Gostamos muito deles e não queríamos perder a oportunidade de vê-los, daí oferecemos que eles dormissem conosco no flat, caso não encontrassem hotel para ficar.

 

Acontece que nós pensamos que o flat fosse maior e quando chegamos e vimos o tamanho e, ainda por cima, o tal do futum, imagina o drama. Felizmente, antes deles chegarem, o problema aromático já estava resolvido e tínhamos pensado em uma arrumação que eles caberiam. A verdade é que a boa vontade de todos os lados colaborou e coubemos sem maiores transtornos. Foi tão bom que eles não ficaram só uma noite, ficaram duas. E nós adoramos!

 

Mas vamos por partes. Chegaram os dois casais no dia 31 de dezembro. Os americanos pela hora do almoço, e os brasileiros no fim da tarde. Nossa reserva para festa de Ano Novo era a partir das 20:30 horas.

 

Nessa manhã, antes deles chegarem, foi nosso primeiro dia de esquis em Val d’Isere. Lá fui eu e minha vertigem subir uma montanha incomensurável com o Luiz no maior gás me dizendo que havia uma pista verde, a mais fácil, que vinha até embaixo. Pensei com meus botões, como em uma altura dessas pode haver uma pista verde até o chão? Mas me convenci que iria encarar os desafios e mesmo desconfiada, topei a parada.

 

Logo que saltei do bondinho e olhei a pista, só vi aquela ladeira abaixo super intimidatória. Não leve a mal, mas aquilo não é verde nem f…! Queria matar um e o único conhecido era o pobre do Luiz. Ficamos andando igual a barata tonta procurando alguma descida razoável e, quando havia desistido, muito frustrada, Luiz viu uma escada que levava a um nível mais abaixo, no que ele jurava que aí sim era a pista verde.

 

Lá fomos nós. Não falei que ia encarar os desafios nos esquis? Pois então pronto, decidi que desceria aquela bosta daquela pista. Muito bem, descer, desci. Mas aviso que o &*$#%@* que demarcou aquela pista como verde deve até ter mãe, mas com certeza está na zona, aquela bandida!

 

Luiz com toda a paciência do mundo e eu uma verdadeira megera! Não, porque para descer aquela pista eu precisava de muita raiva. Assim, qualquer engraçadinho que pensasse em fazer alguma piadinha, teria medo quando olhasse para minha cara!

 

Não caí, nem sei como, mas apesar das joelheiras que uso, ferrei meu joelho esquerdo. Em pelo menos dois momentos travei de uma forma que a vontade era de parar e chorar. Na última travada, pensei seriamente em sentar no chão, desistir e me arrastar até a base da ladeira, onde havia um bar. Estava exausta e as pernas doíam para burro. Foi quando me deu raiva e é por isso que digo que só com raiva podia descer aquela merda. Luiz, coitado, tentava me animar, mas a essa altura não queria escutar ninguém. Passaram por mim três esquiadores em fila, fazendo uma diagonal que acreditei possível. Resolvi tentar, pensei que se caísse, foda-se, rolava até embaixo, mas não ia sentar de propósito.

 

E assim foi, consegui chegar na base da pista, onde havia um bar e um bondinho para descer o restante. Cheguei puta, torta, cansada e dolorida, mas cheguei. Estava disposta a descansar um pouco e continuar a descer com o Luiz. Mas ele achava melhor que eu descesse pelo bondinho, já que a pista não parecia nada verde e também estava difícil para ele, que esquia bem melhor que eu. Resolvi ter um mínimo de maturidade e achei que não valia à pena ferrar mais meu joelho logo no primeiro dia na cidade. Aceitei descer no bondinho de onde vi Luiz deslizar sério o resto da pista e agradeci não estar nela. Ainda não.

 

Lá embaixo, fomos até a pista de debutantes, para eu reaprender a esquiar. A situação foi tão drástica que simplesmente esqueci os conceitos mais básicos e regredi. Achava que precisava de um instrutor, mas resolvi esperar que os nossos amigos chegassem e fizessem companhia ao Luiz esquiando.

 

Os amigos americanos chegaram pela hora do almoço e nossa bagunça iniciou. No quarto deles, percebi rapidamente que não havia nenhum problema aromático, o que me tranquilizou. De cara, abrimos uma Veuve Clicquot e iniciamos os trabalhos. Os amigos brasileiros chegaram no fim da tarde, quase na hora de se arrumar para a festa. Ambos tiveram problemas na estrada, havia uma parte bloqueada e tiveram que fazer um enorme retorno. Chegaram cansados, mas animados.

 

A festa foi o máximo! Reservamos uma mesa no restaurante do hotel Blizzard, um dos melhores da região. Difícil descrever porque estava tudo perfeito nos mínimos detalhes. A decoração linda, tudo branco e dourado, a louça elegante, a música adequada e a comida simplesmente divina. Um verdadeiro banquete regado a champagne na temperatura perfeita.

 

Houve um momento em que me emocionei discretamente. É que estar em um lugar tão mágico, com Luiz e nossos amigos tão queridos, me provocou um ataque súbito de humildade e pensei que não merecia tanto. Mas era um dia de festa, o melhor do ano e não cabiam lágrimas. Não sei se merecia ou não, mas estava lá. Queria que outras pessoas também estivessem, minha família, outros amigos. Queria que todo mundo tivesse pelo menos um dia assim. Merecendo ou não, estava muito feliz.

 

Após o jantar, a pista de dança foi aberta e a música era ótima. Dançamos até! A meia-noite, rompemos saltando com o pé direito e brindando. Como é bom dividir esses momentos e que bom não estarmos sozinhos.

 

Logo em seguida, nós as meninas fomos tomar um ar fresco do lado de fora. Seguramente a temperatura era negativa, mas depois de dançar e com tanto champagne na cuca, estávamos mortas de calor e sem casacos. Recebemos o melhor presente da noite, começou finalmente a nevar,  exatamente no momento em que saímos.

 

Os maridos se juntaram a nós e foi quando veio a brilhante idéia de pular as sete ondas. Sou a cética ateísta, mas filha de Iemanjá, e não posso de jeito nenhum deixar de pular as sete ondas! Fizemos sete montinhos de neve, afinal de contas também é água, e um a um pulamos para garantir a proteção de Janaína por 2007.

 

Se o ano depender de como o iniciamos, esse tem tudo para ser fantástico! Claro que haverão problemas, faz parte da vida, mas é muito bom começar com uma dose de otimismo. Não é o máximo ter um dia em que a gente acredite que tudo pode dar certo? Muito amor, amigos, fartura, felicidade e fantasia. E que assim seja.

 

Saúde!