40 – Última semana de agosto

Setembro está batendo na porta, junto com os madrileños que voltam para casa. A cidade ainda não está a todo vapor, ou “a toda mecha”, como diríamos aqui, mas se percebe a diferença nas ruas e no trânsito.

 

Por um lado, é assim que gosto de Madri: animada. Por outro, é a última semana de férias… joder! Caraca, que falta de paciência de voltar para a faculdade! Estou numa má vontade que dá gosto! Fico repetindo para mim mesma que o primeiro semestre já foi, só falta mais umzinho e pronto. Será uma linha no meu currículo que me ajudará um dia, ou pelo menos, preciso acreditar nisso agora.

 

Essa semana, acho que entendi o motivo real da minha apatia nessa área. O curso me fez cair a ficha que a Espanha não é mercado para mim, e me dá aquela sensação de preguiça de fazer um esforço inútil. O negócio aqui é pintura, colorido e política. Tudo que meu trabalho não é! Claro que estou simplificando, é mais do que isso, mas vai por aí.

 

Não é desculpa para que eu não possa fazer nada, há alternativas. De toda maneira, estar aqui me abre uma porta para Europa e cabe a mim encontrar uma brecha. Preciso colocar meu pé na Inglaterra, Alemanha, Holanda… lugares onde meu trabalho funcione. Nesse caso, talvez possa ajudar a tal linha no currículo, com uma formação acadêmica européia na área de Artes. É nisso que venho me concentrando como motivação.

 

Ficaria mais fácil se respeitasse meus colegas de curso e, como normalmente esse sentimento é recíproco, mesmo que mascarado com a educação, é provável que eles também não me respeitem. Sinceramente, isso não me importa tanto. O problema é que a minha pouca generosidade em olhar em volta está fazendo com que também olhe para meu umbigo com o senso crítico cáustico habitual, que tanto esforço me custou para amenizar.  Achei que tivesse resolvido isso, mas não resolvi, é a minha natureza, será sempre um esfoço forjá-la. Há poucos rostos que olho e penso: esse tem chance, pode decolar. E, por isso, também passei a me olhar no espelho e pensar, e eu? Será que tenho chance? O que é ter chance?

 

Às vezes acho que poderia relaxar um pouco, não levar tão a sério, afinal de contas, também não tenho problemas pessoais de relacionamento com os outros artistas, não da minha parte, é falta de interesse mesmo. Não vejo o que posso oferecer nem o que possa ganhar e essa impossibilidade de criar alianças me irrita. Daí, rola a culpa de ser tão calculista, fria e crítica e, em paralelo, uma enorme sensação de perda de tempo. Devo ter alguma coisa que aprender com isso, alguma lição, só não entendi ainda qual é. Quem sabe seja aprender a calar minha boca.

 

Tenho a impressão que os próximos meses passarão lentos, mas passarão.

 

Respirar fundo, acender um incenso, posição de lótus, murmurar o mani padami… ooooohhhuuuuuuummmmm….

41 – A saga do esqui

Com a facilidade do carro e o finzinho de férias que me resta, estamos aproveitando todo intervalo possível para ir ao shopping onde há a pista de neve artificial. Luiz chega do trabalho e a gente sai com a bagagem de inverno para esquiar.

 

Ainda me custa um pouco no início, mas cheguei a conclusão que no fim me faz bem e me divirto de forma saudável. Pela primeira vez na vida, sinto falta de uma atividade física que não seja balada ou caminhar pela rua sem muito compromisso. Tenho sentido falta de esporte e isso é inacreditável!

 

Sei lá, acho que tanto eu como Luiz estávamos precisando de alguma atividade que transformasse energia em endorfina. Fazer isso em um ambiente totalmente artificial, de certa forma, nos coloca em uma capsula de tempo fora da realidade. É como se por alguns momentos, a gente pudesse viajar para um lugar longe, com outra estação climática, onde a gente utiliza outros músculos e se concentra em algo totalmente diferente. Fazer isso como fuga pessoal poderia ser complicado, mas fazê-lo junto e nos divertindo, na verdade criou uma boa dose de cumplicidade.

 

Não é que me divirta o tempo todo, acho que tenho mais dificuldades do que prazer. É como as primeiras vezes que a gente dirige e precisa pensar em cada movimento, apertar embreagem, trocar a marcha, olhar o retrovisor… depois fica automático. Ainda não cheguei na fase automática, desço a ladeira o tempo todo pensando: concentrar em um ponto fixo para evitar a vertigem, virar o esqui para a curva, cacete ficou rápido, controla, beleza, agora o outro lado, melhor, tem que descer mais, faz a curva mais rápido, merda esqueci o ombro, relaxa a porcaria do braço, ui, curva outra vez, olha para frente, caraca, mas vem gente atrás rápido, que-que-eu-tô-fazendo-aqui, bom mas já não estou tão alto, foda-se, mais velocidade, atitude, atitude, cara de marrenta, controle… e assim o tempo e o medo vão passando. Até que uma hora o vento frio batendo no rosto é gostoso e sinto que, com toda a dificuldade, eu desci. Então, por que não mais uma vez? Se eu botar um pouco mais de força na perna e relaxar um pouco mais o ombro…

 

O que Luiz pensa ou sente, cabe a ele contar se quiser, mas pela sua forma mais relaxada de esquiar, deve ser menos tenso que eu. De qualquer forma, saímos os dois com cara de mortos e uma fome de leão! Uma vontade de injetar proteína na veia! Carne, por favor!

 

Dessa vez, resolvemos fazer a carteirinha VIP, olha que chic. Pagamos um valor fixo e podemos ir quantas vezes e horas quisermos por um trimestre. Pior, ando pela casa fazendo exercícios improvisados para melhorar minha musculatura e esquiar melhor. ¡Joder!

42 – ¡No fumadores!

Acho que encontramos o único restaurante totalmente não fumante de Madri! Mais, que isso, ainda por cima é bom!

 

Vamos começar do começo. Há uma rua aqui no bairro de Salamanca, chamada “Jorge Juan”, que é um charme! Nela, se encontram uma série de restaurantes e quase todos que experimentei são bons. Há também uma particularidade que é a concentração de restaurantes tailandeses, cozinha da qual sou fã.

 

Aos poucos, eu e Luiz vamos provando um por um. Que tenhamos visto, são quatro tailandeses e esse é um número alto para a cozinha oriental na mesma rua. O espanhol é super conservador em relação à sua comida, raramente experimenta ou gosta de outro tipo de culinária que não seja de alguma região da própria Espanha.

 

Pois bem, faltava ir ao quarto tailandês, que havia passado despercebido até o último mês. Surgiu a oportunidade e resolvemos tentar. Quase chegando na porta, percebemos três pessoas que foram fumar do lado de fora. Isso nos pareceu algo muito, mas muito estranho.

 

É que aqui esse negócio de respeito ao nariz alheio é uma “mariconada”, todo mundo fuma e o resto que se dane! No início do ano, entrou uma lei controlando e estabelecendo alguns parâmetros de restrição ao fumo. Nem sempre é respeitada e foi um deus-nos-acuda, que já contei aqui, com a espanholada querendo se rebelar e tal. Mas no fim, foi implantada assim mesmo. Não resolveu, mas melhorou razoavelmente. É um começo.

 

Portanto, chegar a um restaurante e ver três pessoas educadas o suficiente para fumar fora do estabelecimento, nos pareceu raríssimo! Ao olhar para porta, estava lá: o aviso de não fumar! Como assim? Um restaurante totalmente não fumante! Luiz e eu nos olhamos com um misto de surpresa e euforia. Será?

 

Na boa, já entrei sorrindo e com a maior boa vontade. Um pouco desconfiada, melhor era observar com cautela se os outros clientes estavam respeitando também o local. Estavam! Aproveitei para respirar o máximo de oxigênio possível, fiquei até tonta!

 

É nesse momento que você olha discretamente para ver se há câmeras ocultas te filmando para a pegadinha. Pois não era brincadeira, era sério! O restaurante chama “Thaidy”, fica quase na esquina com “Alcalá”. É bonitinho, romântico e a comida honesta. Ainda por cima, não fumam no meu nariz! Fiquei freguesa.

43 – Nem tudo que reluz é ouro

Fiquei meio reticente em escrever essa crônica. Gosto de falar bem dos lugares, criticar entra em lugar comum.  Mas vá lá, como estou no assunto restaurantes e na mesma rua “Jorge Juan”, também é honesto que conte as experiências não tão boas.

 

Há bem pouco tempo, abriu um lugar chamado “Pan de Lujo”. Vi uma reportagem que me chamou atenção. Foi montado em uma antiga fábrica de pães e, por isso, ganhou o nome. Decoração moderna, pratos originais, perto de casa… Estava aguardando o momento de conferir, até que fomos no fim de semana passado.

 

Ao entrar no local, a impressão foi ótima. O restaurante é simplesmente lindo! Tem uma parede de janelas com o mesmo mecanismo de uma porta de garagem, daquelas que abrem inteiras. A visão é um enorme e relaxante espelho d’água. Realmente, se destaca em relação aos seus concorrentes em Madri. Ponto positivo!

 

Tem área de não fumantes! Ainda que seja lei, na prática os clientes fazem um pouco de corpo mole e os garçons, vista grossa. Aliás, aqui se diz “vista gorda”.

 

Achei que começamos bem. Luiz não fez por menos e pediu um Brunello di Montalcino. A noite prometia.

 

Daí o serviço começou a pecar. Aqui é muito comum haver um só garçon para atender uma quantidade grande de mesas. Entendo isso em uma taberna, onde você paga pouco mais de um euro por uma taça de vinho. Economia de escala, natural. Mas convenhamos, não era o caso. Ou, pelo menos, não deveria ser.

 

Na prática, havia dois ou três garçons perdidinhos da silva para atender umas cem pessoas! Isso quer dizer que mal posso reclamar do serviço, porque ele praticamente não existiu. As raríssimas vezes que o pobre do garçon conseguia chegar na nossa mesa era para se desculpar pela demora. Sem contar que nem a posição dos talheres o indivíduo sabia ordenar. Pequenos detalhes que passariam como distração se não fossem se acumulando. Isso não é culpa dele, é falta de gente e de treinamento, culpa do dono.

 

Com tudo isso, o lugar era tão legal e a companhia tão agradável, que fui relevando e aproveitando o momento. Finalmente, chegou meu prato principal. Depois de toda aquela demora, esperava algo surpreendente. Não deixou de ser surpreendentemente fraco, desde a apresentação ao sabor. Não era ruim, era medíocre.

 

Posso ser capaz de perdoar muitas falhas em um restaurante, dependendo do que me ofereça em troca. Mas existe um ítem que não se perdoa margem de erro: comida. Uma excelente comida pode compensar uma decoração cafoninha e um serviço despreparado, mas a recíproca não é verdadeira, a ordem dos fatores altera o produto!

 

Que pena, foi quase um dos meus favoritos e agora nem tenho vontade de dar uma segunda chance!

44 – A feijoada do Luiz

Luiz faz aniversários secretos. É o meu oposto, detesta festa nessa dia, fica meio bicho-do-mato, ainda que venha melhorando ao longo dos anos. Conheço algumas pessoas assim, que até são animadas normalmente, mas no dia ou perto do aniversário, ficam meio borocochô ou não muito sociáveis.

 

Enfim, estava louca para fazer uma feijoada e agosto não costuma ser muito propício. Primeiro porque é muito quente, segundo porque tem um monte de gente viajando. Então, já havia decidido fazê-la no início de setembro, que coincidia com o aniversário do Luiz.

 

Perguntei a ele se queria aproveitar para comemorar e ele ficou meio reticente. Quando uma amiga nossa disse o que estava na minha cabeça: que ela vai fazer a feijoada, ela vai. Ela quer saber se você quer ganhar presente ou não?

 

Ele acabou concordando, se fizesse algo menor e mais “low profile”. Sem problemas, o fato de ser um almoço já restringia o número de convidados. Queria chamar mais amigos e foi uma escolha de Sofia. Optei por chamar apenas brasileiros, com exceções de quem sabia do que se tratava uma feijoada. Poucos espanhois apreciariam o prato e dá muito trabalho conseguir os ingredientes para desperdiçar. Fiquei um pouco preocupada se teria lugar para todo mundo sentar, afinal, comer uma fejuca em pé, com o prato na mão, seria razoavelmente desconfortável. No fim, deu certo, o pessoal é legal e bem informal.

 

Bolo e parabéns para você: nem pensar! Ele me mataria! Tudo bem, ninguém aguenta bolo depois do feijão.

 

Comecei os preparativos no dia anterior, como tem que ser. Dessa vez, tinha ingredientes de primeira, trazidos fresquinhos da última viagem ao Brasil. Essa foi a mala que quase ficou na alfândega, mas fui salva pelo gongo! Ou seja, foi sofrido! Merecia ser bem aproveitada e apreciada. Bons ingredientes falam sozinhos, portanto, tomei o dobro de cuidado para não atrapalhar. E ainda por cima era aniversário do Luiz e ele topou a festa! Caraca, que responsabilidade! Caprichei.

 

Demos um jeito até de fazer couve à mineira. Aqui não tem a nossa couve, tem uma tal de “berza” que se parece, mas nem sempre a gente consegue achar no mercado. Entretanto, tenho meus macetes, em caso de emergência, há outras duas opções, a folha de acelga e a couve-de-bruxelas picada e preparada da mesma maneira. A folha de acelga é melhor. Claro que o vendedor da mercearia não entendeu nada quando perguntei se tinha berza e, depois da resposta negativa, perguntei pela acelga que também funcionaria. Comprei uma braçada de acelga, literalmente, porque aquilo mingua bastante depois que cozinha. Refogada com muito alho, bacon e costelinha em cubos… ¡hombre!

 

Deu um trabalho do cão, mas valeu a pena. Fiz com gosto e modéstia às favas, a fejuca ficou de “puta madre”! E isso em espanhol é um elogio!

 

Não sou daquelas que fazem cerimônia em relação à própria comida, como tanto ou mais que meus convidados. Pois me atraquei com as lingüicinhas defumadas, carne seca e aquele feijão grosso. Qualquer tentativa de dieta seria impossível, não que tenha me esforçado muito por isso.

 

Luiz me pareceu bem tranquilo e ouvi da sua própria boca a possibilidade de transformar a feijoada do seu aniversário em tradição da casa. Isso sim é uma revolução! Ou será que foi a caipirinha?

 

Estranhei a falta de um casal de amigos que havia me confirmado presença. Como eles tem uma bebezinha, e crianças são imprevisíveis, imaginei que talvez na hora de sair houvesse algum contratempo. Depois ligaria para ver o que aconteceu. 

 

Enfim, passado meu habitual stress se teria comida e lugar para todos, me diverti bastante e matei o desejo de comer a tal da feijoada. E o principal: Luiz satisfeito e amigos repletos! Fiquei feliz.

 

Só faltou uma coisa: uma fileira de redes para dormir. Lógico que bateu a maior lombeira generalizada! A conversa começou a ficar um pouco lenta, os olhos meio caídos, o sofá mais disputado… e assim a festa foi chegando ao fim, com a promessa sem muita credibilidade de nos encontrarmos mais tarde para a “movida madrileña”.

 

Logo que o pessoal saiu, dei aquela encostadinha básica de quinze minutos no sofá, só para descansar um pouquinho. Quando abri os olhos, havia passado uma hora e meia e a casa já estava mais organizada. Em caso de reuniões, sou especialista no antes e Luiz no depois.

 

Daí fomos bater aquele papinho no quarto da TV e resolvi checar os e-mails no computador. Era por volta das 21:00hs e o interfone tocou. Brinquei com o Luiz: são nossos amigos que não vieram no almoço! Ele foi atender e não é que era mesmo nosso amigo! Começamos a rir pela confusão, mas ao mesmo tempo, fiquei na dúvida se havia acontecido alguma coisa e achei melhor ver primeiro o que tinha ocorrido.

 

Chegou nosso amigo sozinho, sem a esposa e a filha. Ele estava com o rosto de quem achava algo estranho e perguntei a ele, assim meio desconfiada, você sabia que era almoço, né? Claro que não. Coitado, acho que ele queria sumir! O pior é que se eles soubessem que era um almoço, a esposa e a filha poderiam ter vindo.

 

Esclarecido o mal entendido, demos boas gargalhadas e convenhamos, pode ter sido um pouco constrangedor, mas foi muito engraçado! Nesse momento, ele só podia agradecer o fato de não ser uma festa a fantasia! E, já que estávamos ali mesmo, por que não o segundo turno da feijoada? Começamos outra vez e no final, ainda mandei uma quentinha para minha amiga não ficar aguada.

 

Óbvio que depois ninguém aguentou sair coisa nenhuma! Enrolamos um pouco vendo televisão e dormimos como duas rochas.

45 – Meu lobo

Luiz fez 40 anos. A festa, já contei na crônica passada, mas hoje, a comemoração foi só nossa. 

 

Devo ter algum problema, porque acho envelhecer muito legal. O aniversário nem foi meu e fiquei feliz da vida. Mal posso esperar para chegar a minha vez, quero ter essa sorte. Nem sei onde será a festa, mas posso garantir que será um festão.

 

Ele é mais discreto e respeito sua opinião. Portanto, a celebração do dia do aniversário foi em particular. Mas alguma coisa precisava ter, algum ritual de passagem era importante.  Afinal de contas, meu amor chegou na idade do lobo.

 

Pois começamos em grande estilo, com uma Veuve Clicquot na temperatura ideal, tinindo de gelada. No calor que faz em Madri, foi show! E por que não, ao som de Dire Straits, afinal de contas, combinava com o contexto.

 

Na sequência, um Pera Manca 2001, que apesar do nome esquisito, é um vinho fabuloso. Como curiosidade, foi o mesmo que Cabral serviu aos índios e é citado nos versos de Camões. Finalmente, Luiz conseguiu comprá-lo e era perfeito para ocasião. Entre a champagne e o tinto português, é assunto nosso, mas o jantar não foi nada mal.

 

Difícil eleger a comida, não tinha o sabor desse vinho na minha memória e me senti desafiada. Fiz um rocambole de carne de porco e de frango, coberto por presunto cru e recheado com queijo, pêssego e marrom glacê. De acompanhamento, um tomate com queijo de cabra e uma salada de espinafre com rabanetes. Estava tateando no escuro em termos de sabores e combinações. Acredito que em uma próxima oportunidade, tentaria uma carne de cordeiro ou uma ave de sabor mais pronunciado.

 

Vinho interessantíssimo. Para um paladar menos preparado, pode decepcionar no início, porque a expectativa é alta. Entretanto, como quem sabe que não precisa provar nada a ninguém, o Pera Manca chega devagar. Não é um vinho de explosão, mas de intensidade, persistente. Poderia ser mais adequado para a ocasião?

 

E assim passou a noite, nós três, Luiz, eu e Jack, entre telefonemas de amigos e mensagens pela internet. Às vezes, a vida pode ser muito boa.

46 – Ufa! Que semana!

Semaninha atribulada! Caramba, não tive tempo de sentar para escrever uma cronicazinha! Portanto, farei o samba do criolo doido e tentarei contar tudo em uma só. Um cronicão express!

 

Começou no domingo, pela manhã, quando acordei super cedo para levar Luiz ao aeroporto. Levar é maneira de dizer, simplesmente acompanhá-lo, já que ficaria toda a semana fora, em Dubai. Cheguei quase a me arrepender, não por ter acordado às oito da matina em pleno domingo, mas quando vi a confusão que era o check in do seu vôo. Para tentar tornar visual o que estou escrevendo, basta imaginar que a fila “única” possuía três “sub-filas” diferentes e se embolava na entrada seguindo a lei do mais forte ou do mais cara-de-pau. Uma mistureba de idiomas e de gente! Não dava para saber quem trabalhava na companhia aérea, quem trabalhava em agências de turismo ou quem simplesmente estava ali não se sabe porque. Uma zorra!

 

Dubai não é essa bagunça, muito pelo contrário. Acho que era só o vôo com preço promocional que contribuiu para esse caos. Enfim, voltei aliviada para casa e com vontade de dormir mais um pouquinho. Luiz seguiu seu trajeto para o Oriente Médio, com direito a perder uma escala pelo caminho. Por mais incrível que pareça, no fim deu certo e o mais impressionante: a mala chegou junto com ele!

 

Muito bem, segunda-feira lá fui eu para faculdade. Diferente das minhas expectativas, a volta às aulas não foi tão má. O curso está me parecendo mais interessante que no primeiro semestre, fizeram algumas modificações na maneira de conduzir as aulas. Mas, enfim, tenho até medo de elogiar. De qualquer maneira, estou levando de forma mais leve e desencanada. Aparentemente, vou participar de uma exposição pelo fim de setembro, vamos ver.

 

Bom, saindo da aula com duas amigas, como disse, em plena segunda, uma delas sugeriu passarmos em um bar para tomarmos uma “copa”. Por que não? Luiz não estava na cidade mesmo. Pois fomos a terraza da Casa de América, uma das minhas favoritas. Estava um pouco vazia, mas a conversa era agradável e engraçada. Algumas cavas depois, nos pareceu uma ótima idéia sair para dançar. Resumo da ópera: passei rapidinho em casa para checar se Jack estava bem, fui para casa da minha amiga, de lá fomos para o Areia, um bar muito legal, fazer hora para o El Junco animar. E não é que o El Junco encheu? Eu amo essa cidade! Dancei até às quatro e meia da matina e ainda saí mais cedo que a minha amiga!

 

No dia seguinte, acordei morta de cansada, mas não tão tarde porque precisava entregar um desenho em uma “convocatoria”. Aqui, os salões de arte para os quais você envia seus trabalhos e tenta participar, chamam-se “convocatorias”. Soube dessa em questão muito em cima da hora, mas não quis perder a oportunidade de tentar. Desenho não é minha praia, mas estou beirando o desespero de fazer qualquer coisa, só para aquecer os motores. Pois bem, terminei o trabalho como pude e fui entregá-lo no caminho para faculdade.

 

Chegando lá, a decepção, não podia participar porque não sou espanhola nem hispano-americana. Liguei para um outro amigo artista brasileiro, que me deu a dica do salão e o avisei do problema. De lá, fui para aula meio sonâmbula e preocupada. Nem tanto por esse salão, que me preparei às pressas, mas porque me abria um precedente de não poder participar de outros.

 

No dia seguinte, quarta-feira, acordei com o telefonema do meu amigo artista. Ele tinha conseguido convencer a organização do salão a nos aceitar. Meio tonta de sono, ouvi um, “corre que eles aceitaram a gente, mas tem que ser na parte da manhã”. Lá fui eu outra vez tentar entregar meu desenho. No espaço cultural, vi uma série de outros desenhos já entregues e foi absolutamente intimidador. Francamente, o meu parecia brincadeira de criança, fiquei até com vergonha. Mas assumi como um exercício de humildade e depois precisava desencantar de uma vez!

 

De lá, corri para faculdade para tentar descobrir se ainda existia a minha escultura que deve participar da exposição em setembro. Existia! Estava guardada direitinho. Tive um trabalho do cão para montá-la sozinha, me faltavam mais quatro mãos. Mas funcionou. Corri para a aula, meio atrasada e nojenta, afinal de contas, montar uma escultura em ferro não é exatamente uma atividade leve.

 

Na mesma quarta-feira, descobri que o Salão da Bahia havia aberto suas portas e, na verdade, já estava fechando as próprias! Tinha até sexta-feira para enviar um projeto. Esse é o principal salão de arte contemporânea no Brasil e é meu sonho participar de um deles. Tenho um trabalho pronto que só estava esperando para enviar para lá, mas ainda não havia posto no papel. Ou seja, já deu para perceber que passei a quinta-feira como uma alucinada para finalizar as arestas da obra, fotografar e escrever tudo. No fim da tarde, havia fechado meu projeto e, modéstia às favas, fiquei muito satisfeita. Se vai entrar, não sei, é muito difícil. Mas foi importante para mim realizá-lo. Em alguma próxima crônica contarei sobre ele.

 

Na quinta, durante a aula, houvi o rumor que o Salão da Bahia havia prorrogado as inscrições. Caramba, que alívio! Ganhei mais um tempinho e bom que a idéia está fechada. Para completar, uma outra “convocatoria” que gostaria de participar também prorrogou as incrições para semana que vem. O legal é que antes, não estava muito animada a enviar um projeto. Mas depois da confusão que foi essa semana, ganhei ritmo de trabalho e daí me animei. Quer saber, funciono mesmo é na pressão!

 

Sendo assim, ganhei uma folguinha na sexta-feira, que foi aproveitada com a visita à exposição de um amigo artista.  O mesmo da “convocatoria” de desenho. Aliás, muito boa. De lá, fomos almoçar com sua esposa e uma amiga deles. Foi bom para dar uma relaxada.

 

Luiz chegou à noite de Dubai, morto de cansado, mas empolgado com a viagem. Dessa vez, teve um pouco mais de tempo para conhecer a cidade e quer que eu vá com ele em novembro. Acho que vou, também estou muito curiosa para conhecer o lugar. Ainda sobrou um pouco de energia para irmos por umas “tapas” na nossa copa cozinha: El Fogón de Trifón. A gente gosta muito de lá e a informalidade do serviço nos faz realmente sentir em casa. Dessa vez, fiquei devendo ao Trifón uma receita de moqueca. É que a gente deu a ele um vidrinho de azeite de dendê para experimentar. De quebra, ainda estreiei a bata lindíssima que Luiz trouxe para mim de Dubai.

 

Ufa, chegou sábado! Dormimos até tarde e de lá fomos esquiar, só para variar um pouquinho. Um casal de amigos com a filhinha nos encontrou pelo Shopping. Acho que eles se animaram a viajar conosco em dezembro para uma estação de esqui, espero que dê certo. Nesse dia, a pista de esqui artificial estava um porre! Muita gente e uma fila enorme para subir. Perdi a paciência e só aguentei uma hora. De qualquer forma, valeu pela companhia.

 

Domingo, voltamos e estava bem melhor. Eu, com minha roupa nova enfurecida de neve, até peguei um esqui maior e, inclusive, me arrisquei em um salto! Tá bom que o salto foi mínimo, era um morrinho de nada, mas fiquei toda orgulhosa. Principalmente, porque foi um dia em que minha vertigem estava atacada, me custou muito começar a aproveitar a descida.

 

Pues… nada… assim foi a semana e já me preparo para a segunda-feira. Ai, que preguiça!

47 – Quanto vale um sonho?

Há pouco tempo atrás, estava lendo um texto relacionado à importância de se ter um sonho. Para ser franca, nem me lembro se era uma reportagem ou estava em algum livro, o que ficou na cabeça foi a viagem que tive na sequência. Perguntei a mim mesma qual era o meu sonho, e para minha surpresa, não consegui pensar em nada específico.

 

Esse branco me assustou. Lembro quando poderia oferecer uma lista de, pelo menos, uns quinze sonhos, assim, de bate pronto! E, dessa vez, só podia pensar em coisas importantes, porém genéricas, como ser feliz, saudável, bem sucedida… Pode ser a maturidade, mas acho que é mais do que isso.

 

De repente, me dei conta que a impossibilidade de fazer planos a longo prazo havia se convertido, por tabela, em incapacidade de sonhar. A enorme habilidade desenvolvida para controlar expectativas me transformou em uma chata descrente.

 

Lutar contra a correnteza pode ser muito desgastante e, para quem precisa se adaptar a mudanças com frequência, a resistência é o pior caminho. Mas será que às vezes a gente também não precisa nadar um pouco contra a maré? Nem que seja para exercitar! Em que momento a estratégia oportunista se converte em passividade?

 

Acho que muitas vezes meu amuleto era minha crença de ser capaz de quase tudo. A certeza de domar meu destido era minha proteção. Agora me encontro nessa encruzilhada: do que mesmo quero ser capaz?

 

Sinceramente, andava muito incomodada buscando um sonho, até que me cansei de não encontrá-lo. Daí tropecei nele!

 

Na última semana, estive preparando um projeto para enviar ao Salão de Arte Contemporânea da Bahia. A obra que estou pleiteando é uma instalação autobiográfica que conta e resolve um ano complicado da minha vida. Entrar nesse salão é mais difícil que vestibular de faculdade pública! Minhas chances são remotas, mas pela primeira vez, sinto que tenho alguma chance. Pois bem, preparando o envelope para enviar hoje, senti um frio na barriga muito estranho. Estava nervosa e emocionada pelo simples fato de enviá-lo, sem nenhuma garantia de sucesso. Foi quando me dei conta que estava, finalmente, tentando realizar um sonho.

 

Pouco? Talvez, mas é um começo. E como foi bom lembrar que ainda posso e tenho tempo.

48 – Sabe quem mora em Madri?

Faz tempo que não escrevo sobre o esquisito do dia. Acho que estou me acostumando com eles a ponto de nem me chamarem mais atenção.

 

Talvez seja porque já desenvolvi aquela habilidade de olhar para o nada quando estou em um transporte público. Aquela coisa de tornar tolerável a presença muito próxima de completos desconhecidos. Nesse sentido, bom que chegue o outono, pois o cheirinho de verão é dose!

 

Muito bem, estava no meu habitual transe do metrô, quando de repente levantei a vista um pouco e vi, do outro lado da estação, um cidadão vestido de fraque negro comprido com botões grandes dourados, uma bengala com cabeça também dourada, muito bem cuidada e brilhante, cabelos longos e cavanhaque. Reconheci na hora: era o conde Drácula! Tenho certeza, sorte que ele não me viu!

 

Quer dizer, acho que não me viu, pois levava óculos escuros, ainda que fosse noite, e foi muito rápido. Rodava sua bengala no ar, enquanto conversava com uma pobre mocinha, que deveria ser sua próxima vítima!

 

Fui o resto do caminho tentando controlar o riso. Provavelmente, alguém também me olhava e imaginava do que aquela louca esquisita estaria rindo sozinha?

49 – Drácula mudou de ramo

Na crônica passada, contei do meu encontro com o Drácula, o homem de fraque negro do metrô. Pois, para minha surpresa, fui informada por uma amiga aqui de Madri que o cidadão é famoso na Espanha pela sua bizarra profissão de cobrador de dívidas!

 

E eu que achava difícil me surpreender!

 

Muito bem, é que há uma empresa de cobranças que coloca um homem vestido de fraque seguindo um devedor. Aparentemente, o resultado é rápido e as dívidas são pagas num instante. Ou seja, definitivamente, ele chupa o sangue do indivíduo, mas de uma maneira mais contemporânea.

 

A brilhante idéia já foi copiada em outros países. No Brasil isso é ilegal, afinal de contas, um país tão sério…

 

Enfim, até o velho conde, rendeu-se à modernidade e agora terceriza seus serviços. Fala sério, era só o que faltava. Pode?

50 – Jantar em Paris

Uma vez, quando morávamos em São Paulo, estávamos deitados na cama vendo televisão, por volta das 18:00hs. Toca o telefone, um casal de amigos cariocas nos chamando para assistir um show da Fernanda Abreu no Rio de Janeiro, naquele mesmíssimo dia.

 

Luiz falou com eles que assim muito em cima da hora ficava complicado, afinal de contas, morávamos em outra cidade. Desligou o telefone e daí por diante o nosso diálogo foi mais ou menos o seguinte: Muito em cima, né? Nem que a gente quisesse… pois é, e a gente já tá até de pijama… e no Rio… tem que pegar um avião… então vamos… checa os horários dos vôos… liga para seu irmão buscar a gente?

 

Pouco mais de duas horas depois, estávamos na frente do Canecão com meu irmão e as nossas malas no carro dele. Pequeno detalhe, o casal de amigos que nos convidou chegou ao local mais tarde que a gente!

 

Valeu muito a pena, foi o máximo e ficou uma história super divertida para lembrarmos. Naquela época, me parecia algo totalmente extraordinário pegar um avião para assistir um show em outra cidade!

 

O tempo passou, a vida mudou, estávamos nós aqui em Madri e descobrimos que um casal de amigos brasileiros estaria em Paris…

 

Eles passariam pouco tempo por lá e perguntaram se por acaso a gente não poderia se encontrar por aquelas bandas. Achei a idéia ótima e enchi o saco do Luiz para a gente ir. Ele também queria, mas viaja muito mais do que eu, por causa do seu trabalho, e acaba só conseguindo se agendar meio em cima da hora. De maneira que, só na sexta-feira à tarde tivemos certeza que no sábado poderíamos estar em Paris.

 

A essa altura, tinha combinado de sair também na sexta-feira com mais dois casais de amigos daqui de Madri. Não dava para furar, já havíamos tentado outras vezes e sempre acontecia alguma coisa, portanto, resolvi sair mesmo assim. Jantamos e depois fomos dançar. Chegamos em casa por volta das três da matina e precisávamos acordar às cinco e meia para embarcar às oito! Não é difícil fazer as contas do quanto dormimos naquela noite.

 

Eu amo Paris! Acho a cidade mais bonita do mundo! Também gostamos muito do casal de amigos que fomos encontrar por lá, o que quer dizer que estava empolgadíssima, mesmo sonâmbula. Pois saímos o dia todo e só nos rendemos à uma ligeira cochilada no fim da tarde, afinal de contas, queríamos jantar bem.

 

Admito que eu e Luiz parecíamos dois gatos gordos preguiçosos, onde a gente encostava por mais de cinco minutos, os olhos iam fechando. Por sorte, com o dia agitado, a gente esquecia um pouco do sono. Só foi duro de aguentar quando nossos amigos entraram na Notre Dame, porque como nós já conhecíamos, resolvemos ficar na praça da igreja sentados para descansar um pouco. Luiz queria deitar no meu colo e falei com ele que seria péssima idéia, porque dormiria também e achariam que éramos dois mendigos! Enfim, nesse momento, pedimos arrego e fomos dar a tal cochiladinha no hotel antes de sair à noite.

 

Por incrível que pareça, acordei nova! Fomos ao Ze Kitchen, restaurante elegante, mas despojado, de cozinha fusion, obviamente, pendendo mais para a francesa. Uma Champagne Diamant para iniciar os trabalhos, seguida por um Chateauneuf-du-Pape arrasador. Depois demos uma volta pela rua e nos prometemos fazer isso todo ano. Espero que a promessa não seja só a empolgação do vinho, pois levei a sério.

 

No dia seguinte, bem cedo outra vez, embarcamos de volta a Madri. Em casa, nosso gato esperava ansioso e com uma carência canina. Fez de tudo para se mostrar, mas estava bem.

 

Há alguns anos atrás, me parecia quase uma loucura pegar uma ponte-aérea no susto. Dessa vez, nem havia me dado conta do que estava fazendo até que avisei a minha mãe que estaria viajando, caso ela quisesse falar comigo. Foi ela que começou a rir e a dizer que isso de passar um fim de semana em Paris era o máximo. E foi já no aeroporto que Luiz lembrou do show que fomos assistir às pressas no Rio e que agora, ir a outro país parecia normal.

 

Na verdade, é normal. Não é muito diferente de ir de São Paulo ao Rio, tanto pelo preço, como pela distância. Mas convenhamos, que quando vamos para o terreno poético da fantasia, sair de Madri para jantar com amigos em Paris c’est très chic! Não tem preço!

51 – Novelas mexicanas podem ter final feliz

Na segunda-feira, precisei acordar cedo.  Estava cansada do fim de semana e com um pouco de má vontade que nem sei se também era medo. Tinha uma missão importante: começar a montar minha primeira exposição coletiva em Madri.

 

Toda dificuldade que tivemos no início e o fato dela ter sido adiada por pouco mais de dois meses, me provocou o efeito “São Tomé”, a ponto de não ter nem vontade de convidar ninguém, pela dúvida se realmente ela aconteceria e se eu estaria nela.

 

Há cerca de um ano e meio não montava uma exposição. Participei de umas duas, nas quais enviei trabalho, mas era aquela coisa de não deixar o currículo em branco. Nenhuma que sentisse que era para valer. Meu website virou um cartão de visitas estático que mal tinha voltade de manter. Esse mês, nem sei da onde veio ou se veio de um lugar só, mas minha energia ficou diferente e minha atitude mudou. Trabalhei mais que em um ano. Na verdade, não é que tenha trabalhado mais, mas finalmente comecei a executar os trabalhos. Sabe a história que de boas intenções o inferno está cheio? Pois consegui sair da intenção.

 

É que às vezes tenho essa sensação de precisar me preparar, acumular determinadas experiências e depois sair para ação. É um pouco como o pulo do gato, que precisa recuar e calcular seu salto para chegar mais alto. Gosto dessa metáfora, que não é minha. Nesse caso, demorou mais do que gostaria. Ainda não sei se foi pouco ou muito, mas foi o tempo que precisei.

 

Anos de vida executiva me adestraram na capacidade de ter mais de uma vida e era saudável separá-las: não confundir o pessoal com o profissional. Agora preciso lidar com a questão de não ter mais essa possibilidade, minha vida é uma só, na melhor das hipóteses, com ramos diversos. Nesse sentido, respeitar meu próprio tempo tem sido um exercício de diciplina, paciência e auto-conhecimento de limites.

 

Mas ainda na manhã de segunda, o que precisava mesmo era enfrentar meus demônios. A descrença, o descaso e a falta de fé. No caminho, já meio atrasada por me enrolar com detalhes bobos em casa, me dei ao luxo de pegar um taxi e fui pensando que talvez tudo isso não passasse do medo de (me) expor novamente. Resolvi mudar minha atitude defensiva e me abrir. Muito concentrada, confiei no meu trabalho e, consequentemente, realizei um ato de fé. Nesse momento, já não ligava mais se seria um evento importante, simplesmente era importante para mim.

 

Não cheguei atrasada, talvez o trânsito também tenha colaborado, às vezes o caos tem boa vontade com quem também tem com ele. Trabalho, tive muito, mas nada que me incomodasse. Na verdade, quanto mais trabalhava, mas me animava. Não tinha idéia de quanto esse ambiente me fazia falta. Não sei quem serei, mas ao longo do dia, fui lembrando quem sou. No fim da tarde, tive meus cinco minutos. As pessoas me pareceram mais interessantes e o mundo me pareceu possível. Foi um momento de solidão e fiquei emocionada sozinha, mas não me senti solitária. Não chorei, ou pelo menos, acho que ninguém viu.

 

Na terça-feira, os últimos retoques de iluminação e disposição das peças. Participei com mais sete artistas, todas mulheres. Sinceramente, gostei do trabalho delas também. Respeitei e me senti respeitada. De uma maneira geral, melhorou muito meu conceito sobre a turma, os professores e o curso.

 

Na quarta-feira, dia 27 de setembro, o vernissage. O horário foi um pouco ingrato, às 13:00hs, nunca vi inauguração de dia, mas nem isso achei ruim. A frequência foi boa e teve até coquetel oferecido pela própria faculdade. Gostei.

 

Os primeiros dez minutos para mim são sempre uma agonia completa. A exposição pode ser na portaria do edifício que fico nervosa do mesmo jeito! Depois fui relaxando e quando acabou estava novamente feliz. Havia concretizado mais um ritual de passagem e no final tive um pouco de vontade de chorar. Não era de tristeza.

 

Chamei alguns amigos para almoçar em casa. Três artistas, sendo duas que também participaram da exposição, e mais outro amigo. Queria comemorar e compartilhar a alegria com quem também a sentia ou entenderia. Foi divertido, mas voltar à noite para aula, depois de uns vinhozinhos na cabeça, foi muita vontade!

 

Cheguei em casa pouco antes do Luiz retornar de Paris. Estava feliz, mas tão cansada que era difícil sorrir. Parecia atropelada por um trator.

 

Hoje é quinta, e a vida já voltou ao normal. Ainda que quando me olhe no espelho, venha a sensação que meu jeito de olhar mudou. Talvez, tenha mudado.

52 – Temporada de outono

O outono chegou. A temperatura ainda vai bem agradável, mas já se faz necessário um casaquinho à noite e no início da manhã. O edredon saiu do armário e comecei a fuçar nas roupas de inverno. A luz é outra e agora escurece por volta das oito da noite.

 

Não sei se é a estação ou meu inferno astral, que nem está tão infernal assim, mas ando com uma vontade danada de renovar. Estou dando uma limpa na casa, quero mudar utensílios, móveis, roupas, cabelo… quero mudar.

 

Vontade de dar uma festa, de ter um apartamento maior, de animar a dirigir outra vez, de acabar a pós em artes, de aprender outra língua e, o mais assustador, comecei a me visualizar morando em outras cidades. Talvez seja fogo de palha, pode ser que essa agitação acalme depois do aniversário. Pode ser que seja só o outono.

53 – Nova temporada de hóspedes

Com o outono, chegou também a nova temporada de hóspedes. Logo no início de outubro, veio uma amiga que estudou comigo em Brasília e agora mora em Turin. Há mais de vinte anos não nos víamos e, graças à internet, olha a gente se encontrando novamente. Viva a tecnologia!

 

Foi uma visita rápida, minha amiga parou aqui em casa por dois dias. Muito divertido e deixou um gostinho de quero mais. Além disso, ela acabou de fazer o Caminho de Santiago, coisa que estou com vontade de planejar. Pois deu mais vontade ainda de fazê-lo e ela me deu boas dicas. Acho que tentarei no próximo ano, vou esperar chegar mais perto para decidir.

 

Muito bem, para tornar esse reencontro mais surrealista, também está morando em Madri uma outra amiga de infância. Nós duas nos encontramos sempre, mas ela também havia perdido o contato com essa amiga de Turin. Nós três estudamos no mesmo colégio há mais de vinte anos atrás! Agora nos encontramos tanto tempo depois em outro país! Cada uma com sua trajetória e seu passado diferentes se cruzando pela vida.

 

Não faltou assunto nem intimidade, foi fácil.

 

Na semana que vem, chegam minha tia e prima. Matei a saudade delas agora em julho, quando fui ao Brasil, mas mesmo assim, estou achando muito legal recebê-las em casa.

 

E no fim do mês, chega um casal de amigos. São australianos, de origem grega e moram em Singapura! Se eu achava que minha vida parecia culturalmente confusa…ai, ai, esse mundo anda muito mundial, viu?

 

Essas idas e vindas tem me feito notar que não sofro mais, ou pelo menos sofro pouco com despedidas. E quando isso acontece, é mais por empatia com quem vai ou fica do que com meu sentimento propriamente dito. Acho que não acredito mais em reais despedidas, agora me parece sempre que é só uma questão de esperar a próxima oportunidade. Pode ser um mecanismo de defesa também, mas o motivo já não faz mais diferença, importa que não sofro. Importa que as medidas de tempo e espaço se tornaram absolutamente relativas.

54 – Vermelha

A exposição acabou, desmontei minha obra e consegui guardá-la em casa. Essa fiz pensando em como armazená-la depois. É impressionante como minha vida é totalmente estruturada para ser desestruturada, móvel. A consciência desse fato primeiro me era indiferente, depois passou a me incomodar um pouco, depois foi quase insuportável, agora tende a ser simplesmente mais uma variável.

 

Mudei a cor do cabelo, sou vermelha de novo, pronta para guerra, mesmo que seja contraditoriamente pacífica. Troquei a disposição dos móveis da casa, meus móveis-coringa para apartamentos-sanfona. Acendi os incensos. Joguei um monte de coisas fora, vendi e dei outras. Estou trocando meu guarda-roupa, na medida do possível. Minha maneira de cozinhar está modificando sutilmente, assim como meu paladar. Conheço bem esses rituais. Já sei que vem por aí mais uma troca de pele.

 

Por outro lado, estou bem. Preparada. Às vezes com um pouco de angústia, velha companheira, essa sempre me acompanhará. Mas não estou triste. É o signo de fênix e não me assusta mais queimar até as cinzas. É necessário e estou disposta a entrar na fogueira.

 

Minha fita do Senhor do Bonfim arrebentará em breve. Sinto que vai começar o jogo de cachorro grande.

55 – Aranjuez, Patones de Arriba e Alcalá de Henares

Quase  todo hóspede que vem nos visitar quer conhecer Toledo, Vale de los Caidos, Segóvia… enfim, algumas cidades ou pontos turísticos nos arredores de Madri que são bastante divulgados.

 

No início, juro que achava legal. Gostei de conhecer essas cidadezinhas e não me importava repetir o passeio. Mas acontece que depois da quinta vez que você vai para os mesmos lugares, começa a encher o saco. Deixa eu tentar explicar uma coisa, simplesmente, não aguento mais ir a Toledo!  Segóvia então, até me arrepia!

 

Se você já me visitou, se deu bem! Se não visitou ainda, se vira! Não levo mais ninguém para Toledo e pronto! Mostro onde tem excursão, explico como faz para ir de trem, tudo com a maior boa vontade. E aproveite enquanto ainda não cansei do centro da cidade. Aliás, esse será difícil me cansar, pois adoro caminhar por Madri.

 

Muito bem, dessa vez, com a visita da minha tia e da minha prima, resolvemos fazer alguns passeios diferentes. Fomos a cidades que ainda não conhecíamos. Era um risco, pois não sabíamos se os passeios compensavam, “mas tudo vale à pena se a alma não é pequena”.

 

Sendo assim, lá vão algumas sugestões de ótimos lugares não tão visados pelo turista estrangeiro.  Primeiro fomos ao Palácio de Aranjuez, que é lindo. Almoçamos ao ar livre em um dia bastante agradável, olhando para o tal do palácio.

 

Depois, fomos conhecer uma cidadezinha chamada Patones de Arriba, e antes que alguém pergunte: sim, tem o Patones de Abajo e a história é muito curiosa. No ano de 1808, o povo dos Patones de Abajo, se refugiou na serra logo acima e passou desapercebido pelos invasores franceses. Foi a única cidade que, por não ser encontrada, não se submeteu a Napoleão, tornando-se assim um reino, com seu próprio rei! O que isso tem de histórico e de lenda, quem poderia saber? O fato é que é engraçado e deve ter algum fundo de verdade. Hoje, é um povoado com casas de pedras e paredes cobertas de heras, uma gracinha! É um ótimo lugar para ir almoçar, pessoalmente, adorei o restaurante Poleo.

 

Finalmente, fomos a Alcalá de Henares, cidade de Cervantes com dois mil anos de história. Pequenininha, mas com uma “Calle Mayor” muito charmosa. Nessa cidade,  há um tipo de restaurante-galpão que serve um super frango assado conhecidíssimo pelos locais. Ainda não tive a chance de almoçar por lá, mas qualquer dia desses nós iremos e contarei a experiência.

 

Resumindo, não é que ainda tem um montão de coisa nova para fazer nessa terra?

56 – Ai, que saco cheio!

Por que o tempo demora tanto a passar quando a gente não se diverte? Por mais que o curso tenha melhorado nesse segundo semestre, meu saco já está para lá de cheio. Francamente, começo a me desanimar cada vez que me arrumo para ir à faculdade. O caminho me cansa, o metrô me cansa, a caminhada me cansa, a conversa me cansa… caraca, como cansa!

 

Na semana passada, matei todas as aulas, sempre me prometendo que iria na do dia seguinte. Tinha a excelente desculpa das minhas hóspedes. E claro que estava muito mais divertido aproveitar o tempo com elas. Essa semana não dá para enrolar outra vez. Na verdade, acho que hoje tive a melhor aula do ano, mas meu esgotamento é tanto que nem desfrutei o merecido.

 

Será que é meu inferno astral? Meu aniversário está chegando e para piorar a situação sinto que a tradicional festa que adoro fazer tem tudo para micar.

 

Saudade dos meus amigos e da minha língua.

 

Tô parecendo a hiena do desenho animado, ó vida, ó sorte…

57 – Melhorando

Minha fase hiena reclamante está acabando. Primeiro porque eu mesma me canso do mal humor, segundo porque tenho amigos muito legais que ajudam a vida ficar melhor. Terceiro porque tenho alguém do meu lado que sempre se esforça para que eu fique feliz. E por último, podendo ou não, vou dar a festa de aniversário mesmo e dane-se!

 

Há exatamente um ano atrás estava no maior dilema se dava ou não uma festa. Foi a primeira em Madri e, apesar dos meus receios, no fim deu tudo certo.

 

A festa de aniversário foi no mesmo dia em que meu documento espanhol ficou pronto. Na verdade, foi o dia em que fui tirar minhas digitais. Encaramos, Luiz e eu, uma fila de quase quatro horas embaixo de um frio de 5 graus. Na época acho que não fiz essa comparação, mas talvez de alguma forma estivesse nascendo outra vez. É possível que aconteça a mesma coisa agora. A renovação do meu documento está há meses atrasada, quem sabe possa nascer novamente em novembro.

 

Por enquanto, estou tentando me acostumar que sou uma imigrante. I-mi-gran-te! Parece um palavrão, um xingamento. Ainda não tinha caído a minha ficha até essa semana. Sempre me considerei só estrangeira. Acontece que uma estrangeira que mora fora do seu país de origem é uma i-mi-gran-te. Bom, pelo menos posso dizer que já faço parte de alguma estatística. Depois, ainda é melhor que em inglês, onde o termo é “alien”, o mesmo utilizado para alienígena. Eu era uma “legal alien”, que imaginava a tradução como uma alienígena gente boa. Ficava mais simpático.

 

E por falar em simpático, vou terminando com o Sting que ficou muito mais legal depois que se divorciou do Raoni.

 

… I am an alien, I am a legal alien, I am an English man in New York…

58 – Pausa técnica

Essa semana andei bem ocupada, preparei duas apresentações sobre meu trabalho. Uma para a “sessão crítica” da faculdade, que consiste em uma banca de professores e alunos que escutam o que você faz e seus projetos. A outra apresentação foi para um crítico de arte espanhol.

 

A tal da sessão crítica, na minha opinião, foi um verdadeiro fiasco. Francamente, parecia uma prova oral de colégio primário. A diferença é que era impossível acertar todas as questões. Consistia em professores tentando achar alguma coisa errada no seu trabalho, o que por princípio já acho uma babaquice. Considerando que um artista, quase sempre, realiza uma obra auto biográfica, é como dizer que a vida de alguém é errada. Até que passei razoavelmente ilesa, ainda que não tenham me adicionado nada. Talvez preferisse uma crítica ruim, mas consistente, do que um blá-blá-blá que entra por um ouvido e sai por outro. Faz tempo que não escuto tanta bobagem, não só sobre minha obra, mas de maneira geral. Enfim, passou! Prova superada!

 

Já a apresentação para o crítico, levei a sério. Fiz um documento formal e por escrito. Não sei se ele vai gostar e estou um pouco insegura quanto a isso. Mas chega uma hora que você precisa arriscar e mostrar a cara, nem que seja para levar um murro.  Não tenho uma resposta ainda, ele está viajando. Vamos ver o que acontece na volta.

 

Quanto ao salão da Bahia, não entrei. Continua como um sonho, quem sabe um dia… Fiquei chateada, mas não como imaginava. Talvez a resposta negativa tenha vindo em um momento que não me importou tanto. Acho que o fato de ter parado para refletir sobre o próprio trabalho me fez lembrar ou reafirmar minha motivação.

 

Parei para olhar meu próprio umbigo e descobri que continua no mesmo lugar e ainda é meu.

59 – Aeróbica semanal

Madri faz bem para o físico! Caminho bastante e com regularidade, o que me garante resistência; nas escadarias do metrô e me equilibrando nos vagões, malho bumbum; carregando as compras, malho braço; e nos fins de semana só fica faltando a aeróbica. Fazer o que? Ir para balada. Sou praticamente uma atleta!

 

Quer dizer, também tem a parte da faxina, onde faço a malhação conjunta. Mas essa considero mais como um exercício espiritual para me deixar um ser humano melhor.

 

E voltando à balada aeróbica, que é bem mais interessante, ontem fomos ao Lolita Lounge. Faz tempo que queria ir até lá, mas como fica um pouco mais afastado da nossa casa, ou seja, não dá para voltar a pé, a gente sempre enrola. O lugar é bem legal, música boa, iluminação no ponto certo e decoração interessante. Uns móveis modernos, umas luminárias exóticas, uma parede imitando pele de zebra, enfim, original. Tentarei voltar outras vezes.

 

Primeiro passamos no Summa, meu restaurante japonês favorito aqui, fica próximo ao estádio Santiago Bernabeu. Fomos com uma amiga brasileira e, cá entre nós, desconfio que ela atraiu os olhares do sushiman. De lá, fomos caminhando para o Lolita, onde encontramos uma amiga dessa amiga que é grega. Super simpática, mas fuma como uma chaminé, daquelas que acendem um cigarro no outro. Impressionante!

 

Tem uma coisa curiosa que sempre noto nas noites madrileñas, os homens que saem sozinhos, digo em um grupo só de homens, se divertem entre si, sem grandes frescuras. No Brasil também há grupos masculinos, mas não posso imaginar um dançando com o outro sem parecer uma situação constrangedora. Pois aqui eles dançam juntos sem o menor stress. E aos preconceituosos de plantão, não tem nada a ver com homossexualismo. Nós meninas já fazemos isso há muito tempo com mais naturalidade e fico feliz que os meninos se libertem dessa paranóia.

 

O fato é que a noite foi bem divertida. Não voltamos tão tarde, com a promessa de irmos esquiar no dia seguinte, o que nunca aconteceu. No dia seguinte o que deu foi a maior preguiça. Também, com essa vida tão atlética, merecia um descanço, né?