20 – Outra vez a Copa

Estou uma acompanhadora assídua dessa Copa 2006. Além dos jogos do Brasil, assisto a outros tantos. Nunca estive torcendo em uma Copa onde conhecesse tanta gente de tantos lugares diferentes do mundo; nas passadas, meus amigos ao redor eram sempre brasileiros. Agora, além deles, também são espanhóis, franceses, alemães, mexicanos, koreana… tem de tudo!

 

De quatro em quatro anos, descubro porque levo esse tempo todo sem assistir futebol: é que me dá o maior nervoso! Cassilda, é duro admitir, mas eu gosto de futebol! Paro de ver os jogos depois da Copa porque levo muito a sério. E agora, ainda por cima, fico nervosa com os jogos do Brasil e dos outros países! Joder, tío que fuerte!

 

Ontem, depois de assistir e comemorar a vitória da Alemanha, fui com Luiz a um restaurante e bar mexicano, chamado ”Sí, Señor”. Temos uma amiga mexicana, que mora com uma amigona brasileira, que nos convidou e estava lá com uma galera. Cheguei até meio borocoxô, ando com o humor mais ou menos, mas me animei com a torcida super empolgada e barulhenta.

 

Sei que é algo meio estranho um casal de brasileiros no meio de uma colônia de mexicanos e ainda por cima em Madri. Mas havia um bom motivo, o jogo era contra a Argentina. México perdeu, mas foi suado, uma pena. Na dúvida, já havia torcido para Alemanha antes, que acredito que dê conta do recado na próxima partida.

 

E hoje fomos a um churrasco de salsichão na casa de um casal de alemães. Foi também mais um casal de franceses e assistimos todos juntos ao jogo de Portugal e Holanda. A narração estava em alemão, conversávamos em espanhol com diversos sotaques, olhava a tela e via o brasileiro Felipão saltitante pelo time de Portugal. Francamente, às vezes isso é meio confuso, o mundo de repente me pareceu tão misturado!

 

Na semana passada, quando atravessava uma rua, um homem negro dirigindo um carro avançou o sinal. Estava errado, mas fez isso devagar, acho que se distraiu mesmo com tanta gente. Uma senhora pelo meu lado falou alto: está pensando que está na sua terra? O resto das pessoas riu, acharam engraçado a piadinha preconceituosa; eu não achei, fiquei com vergonha por ela. Na minha cabeça só vinha uma frase: sim senhora, no planeta terra. Mas acho que isso ela não seria capaz de entender.

 

Nesse momento, os países me parecem times de futebol, não são muito diferentes deles. Os jogadores e técnicos competem em equipes diversas pelo mundo, às vezes em seu próprio país e às vezes não. Em determinada ocasião são chamados a defender sua bandeira, sua raiz, sua nação. Cada país defende seus interesses sob regras e, quase sempre, ganha o melhor, pelo menos em tese. Ao fim da partida, vemos adversários se abraçando e muitas vezes sabendo que se encontrarão no mesmo time em breve, quem sabe em outro país que pode ser de nenhum deles. FairPlay. Não seria bom se o mundo fosse sempre assim?

 

Hoje vi a surrealista cena dos jogadores expulsos de Portugal e Holanda, em um jogo razoavelmente violento, sentados juntos conversando civilizadamente. Aliás, fora da Copa, são do mesmo time. Se por um lado me pareceu bizarro, por outro foi familiar. Puxei da memória e me lembrei algo que tenho muito orgulho, ainda que na época não tivesse muita noção do que significava.

 

Quando tinha por volta dos sete ou oito anos de idade, tinha uma amiga favorita no colégio. Nessa idade a gente tem sempre “a melhor amiga”. Minha melhor amiga mudou de turno e nos separamos. Alguns meses depois, foi realizado um tipo de competição entre as turmas desse mesmo colégio e passamos a ser de times diferentes. Revê-la foi uma alegria enorme, me pareceu um super encontro. Nossa torcida, sentada em um tipo de arquibancada, ficava lado a lado, com uma escada no meio. Sentamos nós duas no meio dessa escada, ela do lado da sua equipe e eu do lado da minha. Assistimos a competição abraçadas, cada uma torcendo para seu time. Claro que alguns alunos, também crianças, fizeram seus protestos quanto à nossa estranha torcida, mas desistiram muito rapidamente, pois eu a defendia no meu time e ela me defendia no seu. Não me lembro mais quem ganhou, era o menos importante.

 

Acho que finalmente entendi porque uma Copa do Mundo importa e porque mobiliza tanta gente. Pode ser utilizada de maneira distorcida ou manipulada pela imprensa, mas no fim das contas e acima de tudo, deixa sempre seu exemplo.

21 – A dor de despedir e a força de encontrar

Estou me preparando para viajar ao Brasil. Normalmente, é um momento de alegria onde fico muito ansiosa em reencontrar minha família e meus amigos. A vontade de encontrar a todos é ainda uma super motivação, mas a parte da alegria está muito difícil.

 

Adiantei minha viagem para julho por causa do meu avô, bem doente. Estou tentando chegar a tempo. Tempo de que? Difícil dizer, essas coisas não se sabem, mas se sentem ou se pressentem.

 

Cheguei a tempo de despedir das minhas duas avós, com as duas troquei olhares muito conscientes e cúmplices de ambas as partes. Sabíamos que era uma despedida. Elas estavam prontas. Eu não e, desde então, sei como uma pessoa olha quando entendeu sua hora. Esse jeito de olhar tem assombrado os meus dias, porque há o risco do meu avô me olhar assim e eu vou saber.

 

Tenho também um amigo muito querido, que não é de sangue, mas considerado da família. Um guerreiro que vem desafiando a medicina, mas que se encontra no limite da própria força. Outro que vai me olhar e eu vou saber.

 

O que ainda não sei é o que vou fazer. Como vou reagir? O que deveria dizer? Será que o fato de me preparar para isso significa que desisti deles? Porque não desisti, simplesmente estou apavorada. Até lá vou me acalmar, tenho certeza, mas está me custando.

 

Definitivas ou não, essas despedidas estão me tirando o chão, ainda me dói muito despedir.

 

Não esqueço que há também o encontro, com meus valentes queridos e os amigos de sempre. Saber que ainda há quem me espere sem vergonha de admitir sua saudade é muito mais do que poderia pedir.

 

Acabo de lembrar que conhecerei duas princesinhas, uma prima que já deve estar próxima aos seus dois anos e outra priminha que nasce em julho mesmo. A vida se encarrega de colocar a si mesma em perspectiva. Acho que isso deve querer dizer alguma coisa.

22 – Como ser um homem por algumas horas

Pela terceira vez consecutiva, Luiz viaja a trabalho durante um jogo do Brasil. Francamente, acho que os gringos estão marcando reuniões nesses horários só de sacanagem! Deve ser puro despeito!

 

Enfim, devo admitir que às 17:00 horas, durante a semana e fora do Brasil, ficou difícil para todo mundo assistir. Pois bem, resolvi ver Brasil e Gana de casa, sozinha. Imagine minha agonia ao descobrir que não passaria na TV aberta, única que temos. Ensaiei acompanhar pela internet, mas assim que Ronaldo fez o primeiro gol, me deu os 5 minutos e resolvi ir para o Bo Finn, mesmo sabendo que não haveria ninguém conhecido.

 

Na boa, por algumas horas dessa tarde experimentei ser um homem. Convenhamos, ir a um pub, sem companhia, simplesmente para assistir a uma partida de futebol! É o  mais masculino que já cheguei a fazer na vida! E sabe de uma coisa, não foi mal, me senti super poderosa por essa besteira. Bom, talvez não tenha sido tão masculino assim, porque tomei vinho branco. Mas considerando que nunca tomo cerveja e está um calor do cão, acho que não chega a diminuir o mérito. Poder ir para um balcão de bar, sem nenhum engraçadinho metido a machão conquistador enchendo meu saco, não tem preço!

 

Quando o jogo estava praticamente no final e eu vidrada na TV, de repente percebi uma mão acenando na minha frente. Era minha amiga francesa, que trabalha perto desse pub. Não combinei nada com ela, afinal, era um jogo do Brasil, mas ela sabia que normalmente vamos ali assistir às partidas, assim que resolveu dar uma passadinha para ver se me encontrava com Luiz. Olha que mundo pequeno! Outra vez, Madri, essa cidadezinha do interior…

 

Adorei. Não estava me importando em assistir a partida sozinha, mas é chato você ganhar e não ter ninguém ao lado para contar vantagem. Ops! Acho que fiquei muito tempo como um homem, já estou pensando parecido!

 

Bom, acontece que também era dia de França e Espanha e ela me chamou para ver o jogo com eles, os franceses. Topei e lá fui eu com um casal de franceses para outro pub. Estava um pouco desconfiada, não sei se no Brasil estaria muito segura indo torcer para o time adversário da casa e aqui não me parecia tão diferente. Os espanhóis estavam muito animados e crédulos de sua vitória. A princípio, os franceses queriam ver o jogo da rua, o que não me soava como uma boa idéia. É que montaram telões em duas praças conhecidas na cidade (Puerta del Sol e Colón) e esses locais estavam abarrotados de gente, obviamente, torcendo pela Espanha. No fim, decidimos ir a esse pub, que estava cheio de espanhóis e franceses, o que me pareceu bem razoável.

 

Foi engraçado, no início do jogo, fiquei dividida. Por um lado, havia me preparado para torcer pela Espanha, mas agora tinha os amigos franceses… cheguei a torcer para a bola! Depois resolvi torcer pela França mesmo. Por meus amigos, porque a torcida espanhola passaria a apoiar o Brasil e porque uma revanche não seria nada mal. Será que estava pensando novamente como um homem?

 

Assisti a uma partida animada, entre gritos de “allez le bleu” e “a por ellos”. É verdade que também rolava “hijo de puta, pam, pam, pam”. E para provar que futebol também pode ser cultura, descobri porque alguns jogadores cantam o hino francês e outros não. Nem todo francês gosta do hino, muitos o acham autoritário, pesado e simplesmente se negam a cantá-lo. Ou seja, La Marsellese não é uma unanimidade.

 

Ao final do jogo, para minha tranquilidade, não houve agressões ou hostilidades no bar. As pessoas estavam um pouco entristecidas, mas sem grandes feridas.

 

Caminhei de volta um pedaço com os amigos, depois peguei o metrô para casa sozinha. Não estava exatamente preocupada, mas atenta. Tem muito espanhol que acha que sou francesa, vai se entender o porquê, e não queria confusão. Minha linha passou por Colón, onde havia uma concentração de torcedores aborrecidos e o único ponto onde realmente me preocupei um pouco. Mas a coisa estava muito mais no desabafo que na intenção de violência. Melhor assim.

 

Cheguei em casa sã e salva. Liguei rapidinho para o Luiz ficar tranquilo e fui direto para o banho, até minha alma fedia a cigarro. Fiz minha escova e deitei na minha cama limpinha com meu felino gordo. Ser homem de vez em quando pode ser divertido, mas prefiro ser mulher.

23 – … tô aqui, com uma amiga de infância!

Eu tenho amigos de infância! É como ganhar na loteria! Digo ganhar, porque surgiram na minha vida depois de muitos anos afastados, viva a internet!

 

Não é a primeira vez que escrevo dos meus amigos de Brasília, que estudaram comigo entre a 1a e a 8a séries, mas é que essa semana recebi a visita de um deles aqui em Madri. Ontem fomos jantar, com a outra amiga da mesma escola que já mora na cidade há alguns meses, aliás, essa já virou da família. Foi o segundo encontro internacional de ex-alunos, muito legal! O primeiro, foi em fevereiro desse mesmo ano e para mim é sempre uma emoção encontrá-los. Difícil explicar, fico nervosa antes e feliz depois. Incluo também os maridos e esposas, que multiplicam  essa coisa boa de conhecer gente.

 

Acho que deve ser assim para muitas pessoas. Alguns felizardos, conseguem crescer convivendo com seus amigos de tantos anos e talvez não percebam que isso é um presente. Para nós, os nômades, é complicado, precisamos de um esforço a mais para não perder as pessoas no tempo. Esforço que não me importo em fazer, porque me ajuda também a não me perder nesse tempo. O olhar do outro constrói quem somos, os amigos recuperam nossa memória.

 

Não gosto de todo meu passado, muito menos acho a infância a fase mais feliz da vida, pelo contrário, sobrevivi a ela. No início, encontrar os amigos que pertenceram a esse passado não foi fácil, parecido para muitos de nós desse grupo, nos perguntamos quantos fantasmas íamos desenterrar e confrontamos quem realmente éramos, e não quem nos esforçávamos para lembrar. Isso é sempre duro. Por outro lado, quando a gente consegue passar desse medo, dessa barreira inicial, a recompensa é enorme. A gente de repente percebe que não era tão má assim, tão gorda assim, tão feia assim… só faltava um pouquinho de perspectiva, de olhar com um pouco mais de distância. Descobrir que os temores e traumas passavam na cabeça de quase todos, simplesmente alguns disfarçavam melhor, traz um alívio estranho e a sensação aconchegante de se sentir parte de um grupo.

 

Foi engraçado escutar meu amigo falando ao telefone:… tô aqui, com uma amiga de infância! Sei que não era nenhuma novidade, mas foi diferente escutar da boca de outra pessoa e saber que era eu. Não apenas tinha amigos de infância, era amiga de infância de alguém! Parece um trocadilho, mas não é, na prática faz diferença, me trouxe uma consciência maior de quem sou e das minhas responsabilidades. E gostei.

25 – Fui ao Brasil

Cheguei no Brasil dia 04 de julho de 2006. Em função do fuso horário, aterrisei no Rio de Janeiro no mesmo dia que viajei, como se a viagem que dura dez horas tivesse durado apenas cinco. No aeroporto, graças à greve da Receita Federal, esperei por duas horas minha bagagem, com meus pais de molho do lado de fora, também esperando.

 

O pior é que disseram para gente que estavam passando todas as malas no raio-X. Bom, não trazia nada de perigoso ou criminoso, entretanto, vinham algumas coisinhas, digamos, ligeiramente ilegais. Claro que levei uma mala cheia de comida! Uma pata inteira de jamón ibérico, fuet, azeitonas com anchovas, azeite de oliva enfurecido y otras cositas más! A possibilidade de deixar isso tudo no balcão da alfândega não era nada animadora. Roupa mesmo, nem tinha tanta, normalmente, gosto de viajar super leve e tenho prática em fazer malas só com o necessário.

 

No fim, deu certo e, apesar da longa e ansiosa espera, minha mala não foi aberta.

 

Na casa dos meus pais, foi o tempo de distribuir os regalitos, conversar um pouquinho, fazer uma mala menor e dormir. No dia seguinte, pegamos a estrada para Belo Horizonte, pretendia dividí-la com meu pai, mas acabei me esquecendo de levar a carteira de motorista. Que mancada! Luiz depois mandou para mim pelo correio, o que corrigiu essa minha falha técnica.

 

Foi uma viagem bem tensa, não tinha muita certeza como encontraríamos meu avô, motivo da nossa ida a BH. Estava muito concentrada e com todos os intintos em absoluto alerta.

 

Quando o encontrei, olhei direto em seus olhos e procurei o que não queria ver. Não estava ali, soube que não era sua hora e, no meu egoísmo de neta que não queria perdê-lo, respirei aliviada. É difícil ter esse dom bendito e maldito, mas finalmente ele me trouxe uma boa notícia.

 

Ficamos na casa da minha tia por quase uma semana, que vou contar com mais calma. Foi denso e difícil, também com lições e momentos importantes que vou me lembrar.

 

Meu avô conseguiu se tornar uma pessoa melhor, venceu a barreira de demonstrar seus sentimentos, foi capaz de perdoar e aceitar ajuda também de onde não esperava. Está conseguindo ser para os outros a pessoa que sempre foi para a família, um homem bom.

26 – Afasta de mim esse cálice

Nem tudo foi um mar de rosas. Passado o primeiro alívio de ver meu avô vivo e lúcido, minha ficha foi caindo e entendi as reais proporções do problema. Ele estava sofrendo e minha tia também. As pessoas ao redor também, mas acho que o peso maior é entre os dois. Meu avô precisava de mais conforto e independência; minha tia de dividir toda essa responsabilidade e trabalho.

 

Meu avô está com um problema renal grave e precisou entrar na hemodiálise, três vezes por semana. Quando o visitei, estava realizando o processo pelo pescoço, precisava fazer a cirurgia para colocar a fístula no braço. Isso faz com que ele só tenha uma posição para dormir, o que é bem incômodo. Está inchado e com muita dificuldade para andar. Está também perdendo sangue pelas fezes o que pode ser algo simples ou bem complicado, ainda não temos um diagnóstico.  Isso faz com que ele caia em anemia constante e necessite regularmente de transfusão.

 

Desde que me entendo por gente, ele sempre teve uma certa insônia pela noite, acordava algumas vezes, mas de dia dormia bem. Pois continuou igual, só que agora necessita ajuda para levantar e caminhar, mesmo assim, com muita dificuldade. Ou seja, minha tia precisava levantar durante toda à noite para ajudá-lo e isso a estava deixando exausta.

 

Durante nossa estadia por lá, tentamos repartir um pouco a tarefa para que ela descansasse, mas a verdade é que ela acabava acordando do mesmo jeito. Os dias eram razoáveis, a rotina era difícil mas possível, quando anoitecia o clima ficava mais difícil e as manhãs cada vez mais sonolentas.

 

Em uma das noites, acordei com um ruído e corri para o quarto dele, minha tia o segurava pelas costas, mas ele estava caído no chão. Levantá-lo não era tarefa simples, tentamos, mas deu medo dele cair e se machucar e fui chamar meu pai, que veio junto com minha mãe. Enfim, depois de levantado, descobrimos que ele não se machucou, pois foi escorregando com minha tia o apoiando e amortecendo a queda, mas claro que depois desse susto, ninguém podia dormir. A imagem dele derrubado no chão me doeu.

 

Voltei para o meu quarto meio enjoada e fui ao banheiro lavar o rosto. Na minha cabeça vinha a frase “afasta de mim esse cálice”. E pela primeira vez entendi o que ela significava. Não era meu avô que queria afastar, mas tive que assumir a covardia que não pertence a minha natureza. Logo eu, a que dormia nos hospitais, a que mantinha o sangue frio, a cheia de iniciativa. Escondida no banheiro, tive que confrontar o fato de me sentir aliviada de não ser a minha tia naquele momento, e também tive que enfrentar o medo de imaginar que serei eu um dia.

 

Pai, afasta de mim esse cálice! Não sei porque veio, mas a frase resoava na minha cabeça, sem nenhuma conotação religiosa, veio seca e dura! E se a fé não mereço e não me cabe, rezei mesmo sem ela. Não sei quanto vale a oração de um ateu para outro, isso não importava. Ajudou a pensar em alguma coisa, a lembrar de alguma coisa e a fazer a noite passar menos devagar.

 

Na luz do dia, a vida voltava a ficar mais normal. Começamos a avaliar a possibilidade de contratar alguém para dormir com ele e liberar um pouco minha tia. Idéia que não agradava em nada ao meu avô.

 

Por outro lado, nem tudo foi um mar de lama. Matei a saudade do meu avô e sei que ele gostou de me ver e que eu o visse ainda lúcido. Não foi a única coisa boa. Mesmo sem muito tempo para sentar e conversar, estava com meus pais e meu irmão. Encontrei minha tia, que é muito querida, minha única em primeiro grau. Quando era criança, nas férias normalmente meus pais precisavam viajar com meu irmão, que na época tinha um problema de saúde. Passava na casa dos meus avós, desse que está doente, com minha tia e meus primos. Foram muito presentes na minha infância. Minha prima mais velha é a pessoa mais meiga do planeta inteiro e agora tem uma filhinha tão fofa que quase me deu vontade de ter uma (disse “quase”). Deu tempo de me reconhecer e ensaiar meu nome que saía como “…aaanca”. Meu primo do meio é multitalentos, não há nada que se interesse que não aprenda. É confortante saber que mais alguém no mundo sente que uma vida só é muito pouco. Minha prima mais nova é exótica e teve a sorte de crescer com a atitude de gente livre. Meu tio, com quem não convivi tanto, estava mais próximo e pude descobrir afinidades até então desconhecidas. Encontrei outras pessoas que gosto e quero o bem, essa lista é muito longa.

 

No fim dessa viagem a Belo Horizonte, não podia dizer que me diverti, mas também não estava exatamente triste. Foi um tipo de felicidade diferente, que não sorri, mas você quer. Fiquei na dúvida se deveria voltar no final de semana seguinte. A verdade é que senti que meus pais também precisavam de mim no Rio, principalmente minha mãe. Decidi acompanhar à distância, por telefone, e só voltar na semana próxima se fosse necessário.

 

Não voltei. Um dia antes de deixar o Rio, em direção a São Paulo, recebi a notícia inesperada. Meu avô havia melhorado. Fez a cirurgia da fístula no braço, o que em breve o livrará do desconforto daquela porcaria no pescoço e começou a se animar, fazer piadinhas, brincar com a bisneta, pedir comida, dormir melhor… enfim, coisas pequenas que para a gente são muito grandes.

 

Recebi a notícia com alegria e cautela. Talvez reza de ateu funcione, talvez minha vó esteja alerta, talvez seja só a vida se encarregando de se resolver. Um leão de cada vez e, por hoje, vou comemorar e aceitar desse cálice.

27 – Na Cidade Maravilhosa

Ao chegar no Rio de Janeiro, adoeci. Não me preocupei muito porque sei que é relativamente normal. Quando minha bateria acaba e relaxo, caio de cama, mas me recupero muito rápido. No dia seguinte, já estava bem de saúde outra vez.

 

Não tinha muito ânimo nem paciência para festas ou bares. Acho que estava para poucos amigos, meu objetivo era ficar mais com minha família e observar as coisas. Acordei cedo todos os dias, longos e cheios de coisas para resolver.

 

Senti vontade de navegar um pouco no passado, buscar origens. Aproveitei e viajei para Teresópolis, com meus pais, e para Cabo Frio e Búzios, com minha mãe. Em Teresópolis, fui jantar no restaurante Dona Irene, um dos meus favoritos e do Luiz também. Cabo Frio está muito diferente, às vezes é difícil reconhecer os lugares, está uma cidade bonita, mas tive dificuldade em me achar. Aproveitamos o meu único dia de praia e, aí sim, lembrei porque já foi possível eu ser morena. Búzios está a mesma coisa, pelo menos a Rua das Pedras, para mim foi mais agradável, talvez porque estivesse igual.

 

Dirigi bastante e até gostei! Estava um pouco enferrujada, mas definitivamente é como andar de bicicleta.

 

A saúde do meu pai me preocupa, ele não vem se cuidando como deveria e o excesso de peso vem trazendo uma série de problemas e desconfortos. Isso vem deixando minha mãe bem nervosa. Entretanto, ele é adulto e vacinado, a decisão não é nossa. A gente só pode torcer para que um dia a ficha caia, porque sua presença é importante para a família e para os amigos. Esperamos que ele busque auxílio, pois sozinho dificilmente conseguirá reverter essa situação. 

 

Minha mãe se cuida melhor, se esforça para ter uma boa qualidade de vida. Quando estou lá, ela me dá atenção tempo integral, às vezes fico até meio culpada de estar atrapalhando algum programa, mas a verdade é que aproveitamos bem o tempo.

 

Com meu irmão, estamos em uma situação estranha, um pouco afastados. Nos vemos e nos falamos normalmente, mas não é a mesma coisa. Algo esfriou e perdemos afinidades. A distância não ajuda muito, mas espero que o tempo volte a cruzar nossos caminhos em algum momento.

 

Sinto bastante saudade deles aqui. No dia-a-dia, não parece tanto, a gente se acostuma. Mas logo que volto de viagem ou quando eles voltam de uma visita, sinto um pouco mais. Nesse sentido, gostei de encontrar seus amigos do Rio, me dá a tranquilidade de sentir que eles não estão sós. E se funciona o velho ditado que quem dá um doce ao meu filho, adoça a minha boca… funciona também para quem dá um doce aos meus pais.

 

Encontrei a família do Luiz, que é parte da minha. Jantamos no restaurante do Círculo Militar. Não me lembrava de ter ido ali antes, mas gostei. Informal, agradável e com aquela vista linda! Aliás, essa importância para a “vista” é coisa do Rio, né? Vi meu sobrinho do coração, que havia me pedido uma camisa do Real Madrid. Está com doze anos e já já me passa em altura.

 

Para completar, consegui chegar a tempo de ver nascer a mais nova priminha, uma loirinha gorduchinha linda que nasceu enorme! No hospital, durante a visita, ainda encontrei meus primos e minha tia-madrinha. Nômade tem que aproveitar esses momentos para encontrar as pessoas!

 

Por fim, participei do meu único encontro social com amigos. Uma reunião de ex-alunos do Colégio Santo Antônio, no Fiorentina do Leme. São meus amigos de Brasília, algumas vezes falo deles.  Um dos casais, inclusive, nos visitou esse ano em Madri. Foi muito divertido encontrá-los todos, temos conseguido manter um vínculo de amizade bem bacana.

 

Havia passado quase três semanas e estava com saudades do Luiz, do Jack e da minha casa. Fica difícil para a gente viajar junto para o Brasil, principalmente nessa última viagem, que decidi adiantar meio em cima da hora.

 

Embarquei para São Paulo, onde passei o último fim de semana antes de voltar para Madri.

28 – For women only

Muito bem, acho que estou meio densa, né? Uma pequena pausa para gaiatice? Pois esse capítulo é dedicado às meninas. Não que os meninos não possam ler, mas simplesmente não entenderão nada. ¡Lo siento! Há prazeres que são absolutamente femininos!

 

Chegando ao Brasil, houve uma coisa que precisava fazer com urgência urgentíssima: me internar em um salão de beleza, lógico! Cortei o cabelo, fiz mão e pé, depilação, sobrancelha, escova progressiva, limpeza de pele, luzes, hidratação… TU-DO! Todo tempinho extra, sofria uma tortura diferente e saía feliz da vida!

 

Só uma mulher é capaz de entender como é possível entrar em um salão se sentindo a pior das criaturas e sair se achando a poderosa Ísis!

 

Sim, em Madri tem salão de cabeleireiro e o preço nem é tão exorbitante quanto nos EUA, mas não é a mesma coisa que no Brasil. Nem se compara! Não há nada como explicar na sua língua o corte de cabelo exatamente como você quer, mesmo que seja impossível conseguí-lo. Não há nada como fazer uma depilação que se preze sem precisar ficar explicando porque você quer que cave um pouco mais. Cassilda! Todo mundo não sabe por que? Porque a gente se sente mais sexy na hora de dar! Porque a gente gosta de usar biquini sem precisar ficar se ajeitando o tempo todo! Porque é mais higiênico! Precisa realmente fazer a gente dizer? Não são todas mulheres? Francamente, isso é óbvio! Será que alguém poderia fazer um manual para as depiladoras européias explicando que virílha não é coxa? Virílha também se chama em depilação de “contorno”, e um contorno con-tor-na!

 

Capítulo escova: não é o máximo fazer escova com tanta frequência que você chega a acreditar que seu cabelo é arrumadinho assim naturalmente? Quando saí do Brasil poderia jurar que meu cabelo era liso de nascença! Dessa vez, não conversei, tratei de fazer a escova progressiva! Não dura para sempre, mas me iludirá por algum período. Só não fiz a tal da chocolate porque não deu tempo! Fiquei numa curiosidade…

 

Depois da reforma completa, me senti segura para ir comprar uma calça da Gang. Minha mãe achou um pouco cara e tive que explicar para ela que não estava pagando um jeans e sim uma cirurgia plástica. Pois o diabo da calça me deixou com a bunda que nunca tive e nunca terei! Convenhamos meninas, isso não tem preço! Olhei no espelho e me perguntei se não estava parecendo um pouco vagabunda. Para ser sincera, estava… um pouco. Mas quer saber, quem aqui de verdade quer parecer freira? Só não precisa exagerar, né? Como tenho cara de santa, acho que na média, passo. Duvido que Luiz ache ruim!

 

Capítulo sapatos: claaaaaaro que sim! Fui comedida, só comprei dois pares e um deles ganhei da minha sogra. Por outro lado, aproveitei para usar meus saltões. Aqui em Madri é difícil, porque como caminho muito, preciso de sapatos bem confortáveis e com saltos baixos. Vamos falar a verdade outra vez: ou o sapato é bonito ou é confortável! As duas coisas, normalmente é pedir demais! De qualquer forma, como foi bom me sentir alta outra vez.

 

Alta, com o cabelo arrumado, unhas feitas, pele limpa e bumbum levantado, estava pronta para qualquer desafio!

 

… eu gosto de ser mulher…sonhar arder de amor… desde que sou… uma menina…

29 – Em Sampa

São Paulo faz parte do meu roteiro oficial no Brasil, simplesmente, não dá para não ir. Morei lá dez anos e adoro! Tem trânsito, poluição, violência… mas fazer o que? Também tem amigos, os melhores restaurantes, uma noite fantástica…

 

Acredito que o principal mesmo é que foi a cidade onde me tornei independente e, em seguida, construí junto com Luiz a estrutura do que é hoje nossa vida. Essa cidade tem um poder diferente de fazer você conseguir o que batalha e o que merece. Sei que em outros lugares isso acontece também, mas São Paulo é especial nesse sentido.

 

Aconteceu uma coisa esquisita, pela primeira vez, tive dificuldade em lembrar os caminhos pelas ruas da cidade. Ia me lembrando a medida que andava nelas, mas não veio naturalmente. Sempre tive uma facilidade incomum em circular de carro pelas confusas ruas paulistas, mas dessa vez foi mais complicado.

 

Por sorte, tive a mordomia dos meus amigos e sempre alguém me levava para os lugares. Ia olhando tudo como se estivesse fora do corpo assistindo. Uma sensação muito estranha. Só um dia, quando fui bem perto de onde morei alguns anos, tive aquela sensação familiar. Existe um lugar na Marginal Pinheiros, pouco depois de passar a ponte Cidade Jardim, que sempre foi onde eu tinha o sentimento de estar chegando em casa. Não me senti assim, mas mexeu um pouco comigo. Entretanto, quando entramos efetivamente no Morumbi, havia tanta construção nova que me confundi em uma das ruas.

 

No sábado, fiz um encontro geral com amigos no “Dloon”, em Moema. Sempre faço assim, marco um lugar grande e aviso a todo mundo. Quem pode aparece. Foi bem divertido e também foi a comemoração de aniversário de uma das amigas.

 

No dia seguinte, almocei no Tordesillas, um dos meus restaurantes favoritos em Sampa. Fazem comida brasileira e tem um Bobó divino! Não é barato, mas vale pelo cardápio delicioso e pela oferta de cachaças, que também adoro. Ali encontrei um amigo, ex-aluno do Santo Antonio, que veio de Campinas para o almoço; e também com a “Diretoria”, já explicada em crônicas anteriores. Na sequência, fomos ao Buena Vista.

 

Na segunda-feira, fiquei por conta da família paulista, amigos queridos que não sei dizer se adotamos ou fomos adotados. Conheci a “Area Artis”, galeria de arte dessa minha amiga, que está super bem montada na Rua Normandia, vale o programa.

 

Jantei com o casal de amigos, da casa onde estava hospedada, no Chalézinho. Comemos um foundue de carne feita no vinho. Ótima companhia e foi bom para relaxar um pouco. Nesse dia não estava me sentindo muito bem e no dia seguinte de manhã embarcaria de volta para Madri.

 

Na terça de manhã, acordei de malas prontas e fui direto para o aeroporto. Passei mal a viagem inteira com enxaqueca e cólicas homéricas. Lei de Murphy. Por outro lado, está confirmado: perdi completamente o medo de avião. Essa é uma excelente notícia!

 

Não tive medo minha vida inteira, começou depois de passar por algumas experiências aéreas meio complicadas. Passei por CB, por urubu na turbina com pouso de emergência e, para completar, um pouso em final de furacão. Cada vez que o avião balançava um pouquinho, era impossível não me lembrar. Mas agora, aparentemente, isso acabou e não sinto a menor falta.

 

De qualquer forma, foi muito bom pisar em terra firme outra vez.

30 – De volta para casa

Pousei em Madri às 6 da matina e Luiz levantou vôo para Londres às 7. Ou seja, não nos encontramos. Falamos pelo celular no aeroporto, mas foi impossível sair antes que ele fizesse o check in. Paciência!

 

Na hora de passar pela alfândega, mais um suspense! Óbvio que minha mala estava repleta de comida e cachaça! Lingüicinhas e costelinhas defumadas, carne seca, paio…  A cachaça é permitida, mas tem que vir na mala de mão e acho que só podem duas garrafas. Tinha cinco, dentro da mala. Como ninguém nunca me para, achei que valia o risco.

 

Pois na saída, eu e bem umas dez pessoas que vinham na minha frente do Brasil foram paradas e mandadas para passar a mala em um raio-X. Quando o raio-X acusava alguma coisa, elas iam para uma salinha atrás abrir a mala. O que mais poderia vir à cabeça nesse momento? F#$%u!

 

Mantive a calma, ou melhor, a cara-de-pau e fiquei atenta ao que poderia fazer para me safar. Era a última da fila e havia dois agentes fiscais. Minha mala já estava na boca da esteira, quando a mesma parou e o agente chamou as pessoas que passaram na minha frente para conferir a mala na salinha. O outro agente que ficou, começou a dar uma tremenda dura em dois homens que tinham mesmo pinta que eram imigrantes. Começou a perguntar onde eles iam, se queriam trabalhar aqui, essas coisas. Quer saber, ia ficar ali esperando para ser a próxima? Arrisquei.

 

Tirei a mala da boquinha do raio-x, já encostando na cortina, e a coloquei de volta no carrinho. Puxei minha carteira de residente e falei no melhor espanhol que podia, com cara de desentendida: Eu moro aqui, por onde eu passo? O agente, muito mais preocupado com a dura que estava dando, olhou de relance minha carteira e me mandou voltar e passar direto pelo portão sem ser revistada.

 

Ufa! Feijoada salva pelo congo!

 

Chegar em casa foi um grande alívio, estava super cansada. A única coisa que aguentei foi brincar um pouco com meu gato curioso e tomar um banho. Pelo caminho, fui encontrando bilhetinhos do Luiz pelo apartamento todo, ele sempre dá um jeito de estar presente.

 

Mergulhei na cama exausta e ainda não muito bem. Nem fome eu tinha. Só me recuperei mesmo no dia seguinte, quando Luiz voltou.

 

Fomos jantar no Trifón, antes que eles fechassem as portas no verão. Agora só em setembro. Muitos restaurantes aqui fazem isso, fecham em agosto. A cidade fica deserta.

 

Essa semana chegam três hóspedes e o apartamento vai animar outra vez. Enfim, de volta para casa.

31 – O pântano e afins

Uma semana depois de chegar do Brasil, estava com a casa pronta para receber as próximas hóspedes: uma amiga da nossa faixa etária, sua filha e sobrinha, ambas com 14 anos. Para algumas pessoas, a idéia de receber adolescentes assusta. Para mim, parecia divertido.

 

Minha única preocupação era saber escolher os programas adequados, pois não tenho filhos nem amigos com filhos dessa idade aqui. As meninas ganharam a viagem como presente de 15 anos e queria que elas tivessem uma experiência legal para lembrarem no futuro.

 

Nosso apartamento comporta bem dois hóspedes. Três, era a primeira vez que testaríamos. Perguntei antes para nossa amiga se uma delas se importaria em dormir no sofá e ela disse que não. Portanto, resolvi levar uma cama de hóspedes para a sala e acomodar as duas meninas ali: uma na cama e outra no sofá. E no quarto, ficou outra cama de solteiro e espaço para as malas. Dessa forma, achei que elas ficariam mais à vontade para ter o “quarto da bagunça”.

 

O quarto da bagunça é um fato normal quando você recebe. A não ser que você tenha um vasto armário com lugar para todas as roupas da mala, coisa que não existe aqui, não há muito como organizar. Como seus hóspedes podem fazer? A mala fica no chão e bagunça um pouco mesmo, não tem jeito. Eu aprendi a apertar o botão “F” e Luiz desenvolveu um tipo de visão periférica, onde ele só olha da metade do quarto para cima. Funciona!

 

Muito bem, dessa vez, elas apelidaram o quarto da bagunça de “pântano”. Quando alguém entrava era um tal de “vai se perder no pântano”, “cuidado com o pântano”…

 

Resolvido o quesito acomodação, fomos aos passeios. No primeiro dia, caminhei com elas pelo centro histórico, já tenho essa rota de cabeça. Fomos à Plaza de España, Opera, Palácio Real, Calle Mayor, Plaza Mayor, Calle Cava Baja, almoçamos na Plaza Paja, voltamos para Puerta del Sol, subimos a Calle Preciados até a Plaza Callao. Tivemos que parar na Plaza Callao para irmos na Varig, pois com essa confusão que houve, elas precisavam confirmar como voltariam ao Brasil. No fim, deu tudo certo.

 

Minha amiga me contou que as meninas haviam gostado de comer no Planet Hollywood, em Paris. Na verdade, não sabíamos se elas haviam gostado mais do lugar ou do garçon bonitinho. De qualquer jeito, o mais parecido a isso que temos aqui é o Hard Rock Café. Então, jantamos ali e aproveitamos para mostrar a Plaza Colón. Voltamos caminhando para casa, subindo toda a Calle Goya.

 

No dia seguinte, fizemos o passeio no teleférico, que possibilita uma boa visão da cidade. Vai de Pintor Rosales até Casa de Campo. De lá, caminhamos até o Templo de Debod, um presente do governo egípicio à Espanha. Tomamos o metrô e fomos ao Estádio do Santiago Bernabeu. É que as meninas queriam respirar o mesmo ar que o Bekham respirou, andar onde ele andou… essas coisas. Vamos combinar que elas tem bom gosto, né? Há um tour nesse estádio, onde a gente tem uma visão panorâmica do campo, conhece a tribuna de honra, o vestiário, tira foto no banco de reservas e zona técnica, passa pela sala de troféus e termina na loja do Realmadrid. Mas acho que a melhor parte foi tirar foto com o ascensorista bonitinho. Se não foi a melhor, foi a mais engraçada.

 

No mesmo dia e já meio cansadas, fomos ao museu Reina Sofia e fiz com elas o trajeto rápido. Na saída, voltamos de metrô pela estação Atocha, onde tem uma floresta tropical artificial.

 

Na noite de sexta-feira, agora junto com Luiz, fomos para a Calle Huertas, com as meninas disfarçadas de adultas. É que ali há diversos lugares para dançar, acontece que o limite de idade é acima de 18 anos. Mas arrumadas, de salto alto e misturadas conosco, elas entraram sem grandes problemas. De lá, ainda passamos na Bodeguita del Medio, mas já estava meio vazio. Agosto é um mês meio paradão.

 

Luiz alugou um carro para o fim de semana e, no sábado, fomos ao shopping Xanadú. Não fomos fazer compras, é que lá há uma pista artificial de neve para esquiar e até que quebra bem o galho. É no mínimo curioso esquiar a 2 graus negativos, quando lá fora está quase 40 positivos! As meninas e nossa amiga esquiaram bem logo de cara, levaram jeito para a coisa. É verdade que houve alguns tombos curiosos, mas vou poupá-las desses detalhes.

 

No fim da tarde de sábado, a discoteca Kapital faz uma sessão para maiores de 14 anos e levamos as meninas. Claro que já estavam mortas, por conta da tarde de esqui, mas a curiosidade foi maior. Por volta das 21:30 elas nos ligaram para buscá-las. Voltaram morrendo de rir dos cortes de cabelo e da coreografia, digamos exótica, que os meninos faziam. Nesse dia, elas se viraram e jantaram em casa mesmo e nós e nossa amiga fomos jantar fora com uma outra amiga de Madri. Fomos ao El Barril, na minha opinião, um dos melhores restaurantes de frutos do mar daqui, só que o paladar e o preço é voltado para o público bem mais adulto. O que quer dizer que acabo de me chamar de velha.

 

No domingo, fomos a Segóvia, conhecer o aqueduto romano e almoçamos por lá. Na volta, paramos no Valle de Los Caídos. Mas, aparentemente, o grande programa do dia foi depois, quando encerramos a tarde no parque da Warner. E eu que nem sabia que tinha parque da Warner aqui!

 

Na segunda-feira, foi mais tranquilo. Na verdade, boa parte das atrações da cidade estavam fechadas, assim que foi um dia mais para descansar e fazer as últimas compras. Aliás, se pode imaginar que três mulheres juntas acompanhadas de uma quarta, independente da idade, possuem uma certa facilidade para se empolgar nas compras, que incluíram duas malas extras para levar as coisas.

 

E agora vou dedurar, também levaram um monte de comidinhas espanholas! Não sou a única gulosa com uma família de esganados! Adorei saber que tem mais gente no planeta que viaja e leva comida! E o pior é que dá vontade de levar mesmo, pena que vou perder a festa da volta.

 

Em casa, à noite, Luiz chegou com a novidade: um carro. Agora temos carro em Madri, essa história vou contar depois. Daí fomos estreiar o tal carro novo na maior gaiatice, com direito a foto e tudo. Jantamos no Tony Roma’s, uma cadeia americana com jeitão country e famosa pelas ribs. Não é exatamente meu estilo, mas para variar um pouco e fazer algo diferente, valeu. De lá, rodamos de carro até a Plaza de Castilla e voltamos para casa.

 

No dia seguinte, as malas já amanheceram prontas e fomos cedo para o aeroporto. Talvez até tenhamos ido cedo demais, mas é que essa época muita gente viaja, dá overbook com frequência e, ainda por cima, os bilhetes haviam sido reemitidos para outra companhia. Na dúvida, achei melhor não arriscar e as pobres tomaram um chá de aeroporto. A viagem será longa, mas espero que tenha valido a pena.

 

Quando cheguei em casa, Jack desceu a escada histérico miando. Acho que me viu saindo com elas e todas aquelas malas e pensou que eu ia viajar outra vez. Depois de uma sessão de macaquices, ou melhor, gatices, sossegou e relaxou.

 

Fui conferir como estava o pântano e agora não passava de uma floresta desmatada. A casa ficou meio vazia, mas é sempre assim quando as visitas vão embora. Sobro eu e Jack. Dessa vez, até que não foi tão mal, porque Luiz não precisou viajar e à noite já estávamos na nossa rotina. Um vinhozinho, um jamón, um queijinho, Jack se esparramando no chão… também não dá para reclamar da vida, né?

32 – El coche

Um ano e meio depois de chegar em Madri, jurando que não queria mais dirigir na vida, eis que entra ele cheio de moral: o carro novo!

 

Havíamos abandonado esse conceito de ter carro, até que Luiz passou a ter direito a um no seu trabalho. Quando alguém te oferece uma BMW zerinho, totalmente na faixa, vamos combinar que fica difícil dizer não.

 

Essa história começou há pouco mais de um mês atrás, quando ele descobriu que poderia ter direito a um carro pela empresa. O processo é um pouco burocrático e não tínhamos certeza de quanto tempo tardaria. Resolvemos esperar, sem contar muito que fosse acontecer. Pois aconteceu.

 

Como contei na crônica anterior, tínhamos visitas em casa e Luiz fez surpresa ao chegar com o carro novo. Vou confessar que gostei da idéia. O automóvel vai ficar com ele, que realmente precisa. O escritório agora fica mais distante do nosso apartamento e não há como chegar de metrô. No meu dia-a-dia, um carro não me faz falta e vai continuar sem fazer, mas é bom ter uma mordomia de vez em quando. Acredito que vá ajudar também a conhecer melhor os arredores de Madri.

 

Claro que vem acompanhado de alguns probleminhas básicos, como por exemplo, onde estacionar? Agora é fácil, agosto a cidade é vazia e sobram vagas, mas em setembro essa situação vai mudar rapidamente. Estamos buscando lugares próximos para alugar uma garagem e espero conseguir resolver isso logo.

 

Há uma outra questão pendente, tanto eu como Luiz temos as carteiras internacionais. Entretanto, para dirigir aqui, precisamos tirar a carteira de motorista espanhola. Isso significa que precisamos fazer auto-escola e provas teórica e prática. Um saco, né? Mas não tem jeito. Acho que a minha, vou adiar um pouco mais, já que não devo dirigir mesmo. Acontece que Luiz precisará fazer o mais rápido possível. Isso aqui é a maior máfia, você precisa pagar cerca de 200 euros para uma escola, mesmo sabendo dirigir e já tendo carteira em outro país, e depois fazer os testes, que não são nem um pouco simples. A prova teórica inclui mais questões de primeiros socorros do que de direção. Paciência, espero que na minha vez o Brasil tenha algum acordo com a Espanha e não tenha que passar por essa chatice novamente. A propósito, passamos por isso em Atlanta também.

 

Quanto à relação com o carro, para mim ocorreu algo curioso, acho que quando a gente mora em São Paulo, existe uma ligação direta entre seu automóvel e seu status social. Acontece em outros lugares, mas pessoalmente, percebi isso de maneira mais clara em São Paulo. Você se sente o que o seu carro é. Em parte, talvez seja por passar tanto tempo nele. Nos Estados Unidos, isso também ocorre, mas como estava de implicância, não dei muita atenção por um certo despeito. Aqui, de repente senti que me empolguei toda pela marca do carro. Achei que me sentiria mais importante e fiz mil gaiatices com Luiz e seu super carro novo. Mas a verdade é que, quando entrei no automóvel, ao ouvir as brincadeiras das nossas hóspedes, que estreiaram o carro conosco e também ficaram de gaiatice com Luiz, a única coisa que vinha na minha cabeça era: mas é só um carro. Será divertido e nos dará maior mobilidade, mas é só um bem de consumo. Eu não sou ele, nem quero ser.

 

Continuarei caminhando pelas ruas, fazendo nossas compras a pé e voltando da balada de taxi. Afinal, ficamos caretas, no bom sentido, e só bebemos com responsabilidade. Ocorre que bom mesmo é ter carro e não precisar.

33 – … en estos días de verano

No ano passado, fiquei meu primeiro agosto em Madri. O suficiente para jurar de pés juntos que jamais faria essa tontería outra vez!

 

Como tudo que a gente promete que nunca mais fará é logo a primeira coisa que a gente faz, a Lei de Murphy não me deixou fugir à regra e cá estamos nós, outro agosto aqui.

 

Esse é o mês que Madri muda de endereço. Muitas lojas e restaurantes fecham para férias, a cidade fica deserta, animais são abandonados, velhinhos são largados nos hospitais pelas próprias famílias, enfim, coisas bem tristes.  E isso tudo se deve ao calor insuportável que faz nessa época do ano, que leva todo mundo a fugir sem olhar para trás. Ficam meia dúzia de gatos pingados que sobraram, uns pringados.

 

Pois se o universo conspirou para que fosse assim, também nos ajudou a mostrar mais uma máxima, a que toda a regra tem exceção e que nem sempre isso é ruim. O clima está incrivelmente agradável! Os dias estão lindos e o calor razoavelmente suportável. Dá até medo de elogiar.

 

É verdade que na hora da siesta, entre 3 e 5 da tarde, a coisa fica meio complicada. Mas as manhãs e as noites estão uma delícia! E, convenhamos, na pior das hipóteses, ainda posso dizer que estou passando férias em Madri!

 

Os dias ensolarados tem a mesma claridade da praia e, mesmo usando protetor solar diariamente, nem estou tão branquela. Saio de camiseta cavada e tenho até marquinha branca da fita do Senhor do Bonfim que não arrebenta nem a pau!

 

Ontem fiz um programa que adorei, andar de bicicleta no parque do Retiro. A dica foi de uma amiga brasileira que mora aqui, fui com ela. Na Avenida Menéndez Pelayo, bem na frente de uma das portas para o parque, há uma loja que aluga bicicletas.

 

Minhas primeiras pedaladas saíram meio desengonçadas, mas rapidamente entrei no esquema. A boa notícia é que não ando tão enferrujada, minha musculatura amanheceu sem um pingo de dor. A parte difícil é, digamos, a parte glútea. Caraca! Aquele banquinho miniatura torturador de bumbuns só pode ser sacanagem dos fabricantes, né? Precisa mesmo ser tão pequeno e desconfortável? Deve ser um complô para vender short acolchoado!

 

Mas, enfim, a gente esquece o desconforto quando vai um pouco mais depressa, sente o vento no rosto e aquela luz, que parece estroboscópica, se alternando entre as folhas das árvores. Em breve, elas estarão amarelando e continuarão bonitas até o inverno.

 

Uma coisa engraçada, a gente não transpira. O clima aqui é tão seco que o suor evapora! Você precisa estar bem atento para não desidratar. Por outro lado, você não fica com aquela aparência nojenta de quem parece que não toma banho há dias. Apesar que alguns não tomam mesmo!

 

Assim que conseguir sentar sem franzir a testa, voltarei lá para repetir a dose. Quem sabe da próxima vez me anime e vá de biquini. Praia de europeu é gramado no parque, sabia? Quem não tem cão…

34 – Las terrazas

Quando entra o verão, por volta de junho, também se inaugura a temporada das “terrazas”.  Não se traduz exatamente como terraço. Tratam-se de espaços com mesas ao ar livre, não necessariamente no teto dos edifícios, pode ser nas calçadas mesmo. É quando as mesas dos bares e restaurantes se mudam para o lado de fora e todo mundo quer curtir o bom tempo.

 

Apesar do pouco tino comercial que o espanhol possui, as “terrazas” parecem fugir um pouco à essa regra e os estabelecimentos se esforçam em viabilizar espaços criativos, bonitos e confortáveis. Normalmente, inclui algum tipo de evento musical ou artístico.

 

Há “terrazas” realmente interessantes e hoje indicarei algumas que gostei. A primeira tem um jeito mais tradicional, sem perder a elegância. O lugar chama “El Espejo” e fica na calçada do Paseo de Recoletos, quase na Plaza de Colón. Possui uns vitrais coloridos, com jeitão de estação antiga, e é comum ter apresentações em um enorme piano de cauda.

 

Outra “terraza” super charmosa, que entrou rapidamente para a minha lista de favoritas, é a da “Casa de América”. Inaugurou esse verão e já começou bem. O bar tem um clima de lounge, com almofadões e esculturas metálicas. Inclusive, serve caipirinha. A partir das nove da noite, abre o restaurante “Paradís”, também ao ar livre, entre heras gigantes, embaixo da copa das árvores e a luz de velas. Bom serviço, bons vinhos e cardápio original. Fácil agradar.

 

Uma outra que é bonitinha e agradável, mas só serve bebida e há pouca oferta é o “Marula”, embaixo do Viaduto de Segóvia. Esse viaduto possui uma história meio fúnebre, era de onde os suicidas espanhóis gostavam de se jogar. Como se pode observar, até para se matar, se seguia algum tipo de processo estabelecido. Vá ser burocrático assim lá longe! Hoje em dia, para evitar a tradição esdrúxula, o viaduto é todo protegido com vidros bem altos. Mas enfim, o local não possui nenhum tipo de clima pesado, pelo contrário, é arborizado e simpático. Fica na região de La Latina, uma área bem castiça e alternativa da cidade. É só lembrar de não ir com muita fome!

 

Para quem gosta de música eletrônica, as “terrazas” de “La Casa Encendida” são uma boa pedida. Oferecem sempre concertos com hardcore, post-rock, drum’n’bass, hip-hop, trip-hop, entre outras linguagens que a gente não sabe bem o que significam e é mais fácil chamar de música eletrônica.

 

O que não falta em Madri são opções de “terrazas” em estilos e preços distintos. Continuarei experimentando. O fato é que, enquanto o tempo está bom, a gente adora por as manguinhas de fora, literalmente.

35 – Fiesta de la Paloma

Sexta-feira, fomos matar a saudade da balada. Desde que havia chegado do Brasil, não saíamos para dançar.

 

Começamos pelo “Lateral”, um bar com ótimos tapas e o maitre mais antipático da cidade, que é quem sempre me lembra porque demoro tanto para voltar lá. Mas enfim, passado o mal humor do déjà vu de stress da chegada, a companhia estava agradável e relaxei.

 

Luiz estava meio cansado e achei que de lá voltaríamos para casa. Ele acabou se animando e fomos ao bom e velho “El Junco”. Chegamos cedo demais e ainda estava vazio. Daí, fazer o que? Quem está na chuva…

 

Decidimos tentar o Berlin Cabaret. Finalmente, conseguimos entrar! O Berlin é um dos meu lugares favoritos por aqui, bizarro, mas tudo funciona. Entretanto, há muitas outras pessoas que compartilham da mesma opinião e no fim de semana fica praticamente impossível entrar. Quer dizer, pelo menos para mim que não tenho paciência para filas longas sem nenhuma garantia.

 

Bom, mas contei essa história porque o tal do Berlin fica em La Latina e, por isso, fomos parar nessa região pela uma da matina, até rimou. Acreditávamos que poderia estar meio vazio, afinal de contas era um fim de semana de “puente”. Puente é o nosso feriado emendado. O feriado mesmo era na terça-feira, mas ninguém trabalhava desde sexta.

 

Quando saltamos do metrô, a surpresa: a rua estava absolutamente lotada. Uma amiga perguntou a um policial do que se tratava e ele respondeu educado, mas com a voz de quem dizia algo óbvio: La Paloma! Para quem não sabe, paloma quer dizer pomba em espanhol.

 

Claro que não tinha a menor idéia de que raio de festa era essa, mas havia escutado algo sobre o feriado ser por causa de uma “paloma”. Não achei que ninguém faria tanta festa por conta de uma pomba e certamente seria algum tipo de santa ou algo assim. Nesse dia, descobri que era a “Virgen de la Paloma”, celebrada todo dia 15 de agosto, quando há missa televisionada e um tipo de cerimônia em que um esquadrão dos bombeiros baixa o quadro com a imagem da virgem. Há festas por toda Espanha, procissões, touradas etc. E, por favor, que não me perguntem o que a tourada tem a ver com isso.

 

Como em todo país religioso, as festas pagãs são ótimas! Em La Latina, os bares colocam música alta e mesas do lado de fora. Montam balcões para vender bebida na área exterior e a rua fica entupida de gente! A decoração parece de uma grande festa junina, com as bandeirinhas e tudo. Até que é animado, ainda que seja difícil para eu entender uma imagem gigante de santa entre a música eletrônica dos DJs de bares concorrentes. Dura todo o feriado, haja energia!

 

Cair de pára-quedas no meio de um festão na rua não foi nada mal. Boa forma de voltar à ativa na noite madrileña.

36 – Montanha-russa

Quando era criança, um dos meus brinquedos favoritos era a montanha-russa. Acho que havia algo do proibido, de ter idade para entrar em uma. Mas era principalmente pelo gosto da sensação da queda e do contraste entre a calma normal e a adrenalina logo em seguida. Essa coisa de ir de zero a duzentos em alguns segundos.

 

Com o tempo, fui perdendo um pouco essa vontade, até me parecer sem graça. E não é que não seja mais possível me impressionar com as quedas ou curvas, que se tornaram bem mais radicais, mas simplesmente é uma sensação que não me faz mais falta. Foi parecido ao kart, antes de poder dirigir, era algo que me empolgava bastante. Logo após ter minha carteira de motorista, me parecia bobo pilotar um carrinho tão pequeno e desconfortável. Sei que é outro conceito e outras emoções, mas era assim que percebia.

 

Há umas poucas semanas atrás, fomos a um parque onde as principais atrações são montanhas-russas e não tive vontade de entrar em nenhuma. Aquilo ficou martelando na minha cabeça depois, por que tamanho desinteresse em algo que já gostei tanto? A gente precisa ter cuidado com o que pergunta, porque as respostas chegam e a minha chegou. Acho que não sinto mais falta porque muitas vezes minha vida se transforma em uma.

 

O feriado foi gostoso e coroado por uma ida ao “hamman”, banho turco. Passei uma quarta-feira de princesa com amigas, alternando entre piscinas de temperaturas diferentes, sauna e massagem para relaxar. Perfeito! Só não percebi que não era um dia de calma, e sim de calmaria.

 

No dia seguinte, acordei tranquila e resolvi fazer um bobó de camarão para o Luiz, prometido desde minha ida ao Brasil. Chamei alguns amigos para jantar conosco, algo informal, é que há comidas que são feitas para se saborear com mais gente. Separei os ingredientes e fui checar minhas mensagens na internet.

 

Comecei a ler uma mensagem da minha mãe, havia uns dois dias que a gente não se encontrava virtualmente, o fuso agora está um pouco complicado. Ela começou a me contar da sua saúde, que estava com uma tosse que não passava, que ia no médico… e no meio da mensagem começou a me contar que meu avô cortou os fios do pescoço, por onde faz a diálise. Tomou as rédias por sua conta e tentou resolver esse assunto de uma vez por todas. Quando minha tia tomou conhecimento, foi o corre-corre que se pode imaginar para salvar a vida dele. Naquele momento, tudo estava sob controle e ele estava bem, em casa novamente.

 

Li a mensagem e fiquei paralizada alguns minutos na frente da tela. Não conseguia falar nada, ligar para ninguém, nem chorar. Há coisas que a gente não tem palavras para descrever. Minha reação inicial foi um pouco patética, acho que por negação, não sei. Resolvi ler as outras mensagens, como se nada tivesse acontecido, precisava ter alguma coisa na minha cabeça que não fosse a frase: meu avô tentou se matar.

 

Não consegui ligar para o Luiz e contar, até agora é difícil para eu escrever, mas não posso apagar esse capítulo porque ele aconteceu. Era cedo ainda para ligar para o Brasil e fui para cozinha decidir se faria ou não o bobó. Naquele momento, ligar para as pessoas e explicar porque estaria cancelando o jantar era mais difícil que me concentrar nele. Resolvi adiar a decisão e comecei a preparar os ingredientes. Descascar a mandioca devagar, cortar em cubos pequenos os tomates, a cebola e os pimentões coloridos, amassar o alho e lembrar de não colocar quase sal. O sal era muito importante porque salgo a comida quando não estou bem. A atividade rotineira e a vontade de acertar foi clareando um pouco as idéias e me acalmando de uma forma meio absurda. A verdade é que era bom ter alguma coisa que pudesse controlar e fazer direito.

 

A hora passou e liguei para o Brasil, primeiro para o Rio, falei com meus pais por MSN e minha mãe por telefone. Em seguida, liguei para minha tia em BH, que é quem está com meu avô. Não sabia se isso era melhor ou pior, mas era a única coisa que conseguia fazer para tentar ajudar. Conversei com ela e entendi melhor os detalhes. Falei um pouco também com meu avô, nos segundos que ele tem paciência para telefone. Aparentemente, a situação estava sob controle, apesar de todos ainda estarem bastante abalados. Meu avô não sabe direito o que passou, não tem muita certeza do que foi verdade e do que foi sonho. Ele está lúcido, mas não em cem por cento do tempo. Ele sabe o que faz, mas não mede muito as consequências e a memória se confunde. O que talvez seja bom.

 

Voltei para cozinha me convencendo que não tinha nada mais a fazer. Só podia fazer um bobó. E fiz. Não salguei, ficou um pouco ácido, mas isso eu sabia como corrigir. Acho que o mais importante na cozinha não é acertar, mas saber corrigir. A única coisa que me restava para salvar naquele momento era um jantar.

 

O caos cooperou comigo, Luiz e nossos convidados chegaram praticamente na mesma hora. De maneira que não precisei me esforçar muito para fazer a cara de que estava tudo sob controle porque a conversa foi fluindo naturalmente. Em alguns momentos eu me lembrava, mas com um pouco de vinho aqui, um bate papo ali, fui sinceramente conseguindo me distrair. Apesar de me impressionar com essa capacidade de sentir coisas tão contraditórias ao mesmo tempo.

 

Exagerei no vinho. Sabia que não me desceria da mesma maneira, mas não me importou. Estava de saco cheio de tanto controle, que se fudesse o controle, o que queria mesmo era chutar o balde! Por isso, quando nossos amigos disseram que dali sairiam para dançar, falei com Luiz em particular que precisava ir junto. Contei para ele, discretamente, o que aconteceu e acho que ele percebeu que estava a um triz de explodir, ou implodir. Ele não podia ir também, era o único que precisava acordar cedo no dia seguinte, mas acredito que sabia que estava entre amigos e que quando entro nesse loop, preciso de ar.

 

E assim foi. Saí com eles e ainda bebi um pouco mais. Por contraditório que pareça, me diverti. Entrei num tipo de universo paralelo feliz e me acabei de rir e de dançar a noite toda. Na volta para casa, minha amiga voltou comigo e, às gargalhadas, não conseguíamos entender porque a fechadura estava viva e não aceitava a chave de nenhuma maneira! Da calmaria à tempestade, da depressão à euforia, em algumas horas, lá ia eu na porcaria da montanha-russa outra vez.

 

Quando deitei, minha cabeça girava horrores e na garganta a frase ainda estava entalada. Nem todas as gargalhadas do mundo tiraram ela do lugar. Aquele dia ainda existia e não havia confrontado a realidade como deveria. Meu avô quis se matar. Olhei para o lado e Luiz já estava dormindo, não tive coragem de acordá-lo, pelo menos, não de propósito. Desci e fui conversar com minha amiga. Pela primeira vez, consegui contar sem me controlar e chorei até ficar exausta. Finalmente, podia dormir.

37 – Esquiar no verão

Nos arredores de Madri, há um shopping que tem uma estação de esqui com neve artificial. Não é imitação de neve, é neve mesmo! Lá dentro faz entre um e dois graus negativos. Tem uma pista pequena para iniciantes e outra maior, com 250 metros de descida. Diz a lenda que é a segunda maior pista de esqui indoor no mundo. Claro que não é a mesma coisa que descer uma montanha real, mas quebra bem o galho.

 

Esse shopping chama Xanadú e fica um pouco longe da nossa casa. Antes de ter carro, ficava difícil a gente se animar para ir, me dava preguiça só de imaginar. É que a gente tem quase todo o equipamento, menos os esquis, daí levamos uma verdadeira bagagem. Convenhamos que de metrô e ônibus é muito chato. Taxi na ida ainda vai, mas na volta é a maior dificulade para conseguir um. Ou seja, a gente só ia quando coincidia de ter alugado um carro. Agora ficou mais fácil e vamos quase todo fim de semana. Assim, quando chegar o inverno, o mico é bem menor.

 

Continuo achando muito trabalhoso levar e colocar toda aquela roupa de astronauta, mas agora que esquio um pouco melhor, até que me divirto. A pista pequena para iniciantes, hoje em dia funciona só para meu aquecimento. Há muito pouco tempo atrás ainda me parecia um desafio, agora é um pouco tediosa e acabo preferindo ir para a grande. Entre o medo e o tédio, opto pelo medo. Preciso começar a descer a grande com Luiz, mesmo não sendo em uma montanha, é alta o suficiente para me dar um pouco de vertigem. As primeiras vezes, desço até a metade olhando para as costas dele e não para baixo, depois vou me acostumando.

 

Esse fim de semana fomos com uma amiga, que é bem iniciante. Luiz adora quando consegue mais algum adepto ao esporte e tem paciência para ensinar. Ele tem jeito para professor, só não funciona comigo, mas com o resto do planeta parece que sim. Ele esquia bem melhor que eu, o que não deve ser muito difícil. Mas agora, pelo menos, consigo acompanhá-lo e é bom ter alguma atividade em comum.

 

O curioso dessa história é que estamos em pleno verão madrileño! Agosto costuma ser o mês mais insuportavelmente quente do ano e, ainda que esse ano esteja razoável, continua muito estranho sair para esquiar com o sol a pino! Você sai de camisetinha e sandália e na sua mala tem calça e casaco impermeável, underware e meias de lã, além das malfadadas botas de esqui!

 

Bom, todo esquiador tem coxão e tenho a esperança que ajude a modelar minhas pernas, ainda que até o momento, o máximo que consegui foram ematomas. Não caio muito, mas sou hiper sensível e as botas apertadas sempre me marcam um pouco. Além do fato de ter sido atropelada por um snowborder. Aliás, essa é uma regra, você nunca deve se aborrecer com quem te atropela. Normalmente, ele ou ela fazem isso porque foi impossível evitar! Experiência própria!

 

Comecei a esquiar adulta e há algum tempo atrás me ressentia de não ter tido a oportunidade antes. Fica difícil quando você mora nos trópicos e seus pais não querem sair de férias no inverno! Sentia que se houvesse começando mais jovem, poderia ser boa esquiando, me senti assim como alguém que passou da idade para fazer balet. Agora, continuo achando que nunca poderei acompanhar alguém que começou criança, mas posso evoluir mais do que imaginava. Mais que o suficiente para me divertir.

 

Em dezembro, estamos planejando esquiar na Itália. Pode ser em outro lugar também, tanto faz, desde que dessa vez seja em uma montanha de verdade. Até lá, preciso aprender a fazer aquela cara meio marrenta de quem está acostumada. Atitude ajuda muito!

38 – Terapia econômica

Desde que saí do Brasil, não temos empregada nem faxineira. Limpar a casa não é a coisa mais gostosa do mundo, mas depois de um tempo a gente se acostuma. Além do mais, o apartamento é pequeno, comparado aos que morei, e os produtos de limpeza são bem práticos.

 

Não quero dizer com isso que goste de fazer a faxina, mas simplesmente que entrou na minha rotina.

 

Nessa última viagem ao Brasil, Luiz ficou sozinho por três semanas. Ficava imaginando o caos que estaria o apartamento quando eu chegasse. Mas a verdade é que ele se virou direitinho e um dia antes da minha chegada, contratou uma diarista. Bom, foi melhor do que nada, com certeza, mas a verdade é que ficou bem meia boca, como já imaginava.

 

Enfim, nunca me animei a chamá-la novamente e voltei, pouco a pouco, a fazer as coisas de casa.

 

Tanto eu como Luiz estamos vivendo um período meio complicado. Alguns amigos e familiares com problemas de saúde, emocionais etc. É difícil viver isso de longe porque não temos muita coisa a fazer. Por outro lado, às vezes é conveniente estar distante, por mais egoísta que pareça esse pensamento. De uma forma ou de outra, tem dias que nos custa manter o bom humor.

 

Acontece que tenho vocação para ser feliz ou, pelo menos, tomei essa decisão um dia. Então, chega uma hora que eu mesma me encho o saco de estar para baixo e procuro alguma atividade produtiva. Algumas vezes, é algo legal, intelectual, criativo, mas outras é braçal mesmo. Parto para violência e vou para o faxinão.

 

Hoje foi dia de faxinão daqueles! Encarnei a “Maria”, detonei os produtos de limpeza, botei luvinha, prendi o cabelo e levei a coisa a sério. Tornei literal a expressão poder comer no chão, só estava bom quando os rejuntes entre os azulejos mudavam de cor. Estava perigosíssima! Nem o gato chegava perto. Ataquei a casa e não sobrou pó sobre pó.

 

Os machistas e as feministas que não me escutem, mas foi libertador! Fazer faxina no dia-a-dia é um porre! Fazer faxina limpando neuroticamente a casa é terapêutico!

39 – Subindo a serra

Com a chegada do carro, estamos conhecendo uma parte diferente da cidade: a Madri longe! Claro que longe é uma questão de referencial, e a minha referência é o centro da cidade.

 

Aqui segue um pouco o conceito americano de suburbios. Ou seja, as casas e os apartamentos maiores ficam afastados do centro, em alguns casos, até em algum município adjacente.

 

Sou bicho de cidade, não temos filhos nem planos e não quero dirigir. Portanto, o suburbio, que aqui chamamos “cercanías”, para nós não faz sentido. Por outro lado, não sou exatamente o que se pode chamar de uma pessoa de convicções eternas e acho que as portas devem permanecer abertas. Então, não custa passear pelas redondezas e saber o que há de diferente, nem que seja para confirmar nossas opções atuais.

 

Como sou uma gulosa, ou melhor, gourmand que fica mais chic, uma boa maneira de cativar minha atenção é me sinalizar boa comida. Por isso, nesse momento, a gente tem buscado um roteiro gastronômico um pouco mais afastado, o que serve de pretexto e motivação para passear pelas “cercanías”.

 

Compramos um GPS para facilitar nossa mobilidade. Sempre resisti a ter um, porque prefiro arriscar os caminhos, me deixa mais atenta e acredito que ajude a fixar melhor as possibilidades de rotas. Mas não sou eu que estou dirigindo e realmente o tal do brinquedinho é prático. Luiz colocou uma voz de mulher indicando o trajeto e, por causa da marca, ela passou a se chamar “Tomtom”.  A parte engraçada é que ele consegue implicar e discutir até com a Tomtom!

 

Muito bem, mas vamos ao que interessa. Luiz trabalha em Las Rozas, um município que fica a mais ou menos uns 40 minutos de carro da nossa casa. Pode ser em menos tempo, é que aqui o trânsito também é muito movimentado e ele pega alguns “atascos”, que não são “atalhos” e sim engarrafamentos. Enfim, assim como os brasileiros e diferente dos americanos, o espanhol tem o saudável hábito de almoçar. Daí Luiz acaba conhecendo alguns restaurantes legais próximos ao seu trabalho. Quando ele vai a um que acha que vou gostar, a gente já tem um lugar para ir depois com mais calma.

 

Ontem fomos a um restaurante chamado “La Santina”, que fica em Galapagar, um município a cerca de uma hora de Madri e pouco depois de Las Rozas. Fica na serra e, óbvio, o clima é bem mais fresco que aqui. A comida é asturiana e o lugar não me pareceu frequentado por estrangeiros. Também, além de longe para burro é meio escondido, você só vai se tiver alguma indicação. Mas vale a pena!

 

Um dos pratos mais conhecidos da região de Austurias é a “fabada”. Um tipo de feijoada feita basicamente com feijão branco, lingüiças (morcillas e chorizos), toucinho  e  açafrão. A oferta de frutos do mar também é bem interessante. A bebida típica é a Sidra, que é literalmente atirada ao copo de longe e do alto. Não é só por charme, precisa ser servida assim. Entorna-se a garrafa o mais alto possível e se derruba o jorro de maneira que ele bata na boca do copo e, com esse impacto, se oxigene. Fica mais divertido quando está ventando e a pessoa se esforça para acertar o alvo. O sabor me lembrou o da cerveja, que não gosto. Portanto, não sou a pessoa mais indicada para recomendá-la. Posso dizer que é bem diferente das sidras brasileiras e francesas. Luiz gostou.

 

O passeio é interessante, não só pela comida. A gente pegou uma estradinha que nos fez lembrar o caminho para Teresópolis. Na volta, já escuro e ao som do Rappa e Janis Joplin, deu para ver Madri completamente iluminada, linda!