80 – Ciao, bela!

Luiz precisou trabalhar por alguns dias em Roma, e dessa vez deu para eu aproveitar e ir também. Até o Jack foi junto!  

Jack tem uma babá! Quando viajamos por um fim de semana, ele fica em casa. Chamamos uma mocinha que vem duas vezes por dia e troca sua comida, a água e limpa a areia. Ela até tem a chave do nosso apartamento. Mas como dessa vez era por 5 dias, muito tempo para ele ficar só, resolvemos levá-lo conosco. 

Muitos hotéis na europa aceitam animais de pequeno porte. Boa parte das companhias aéreas também. Aliás, não me lembro se já contei, mas meu gato tem passaporte europeu com foto e tudo! Juro! Ficou pronto bem antes dos meus documentos! E lá foi meu felino conosco para Itália. 

A origem da minha família é italiana, apesar de nunca termos nos preocupado muito com isso. Quem nasce no Brasil é brasileiro e pronto! De toda maneira, ainda adolescente, aprendi a falar a língua. Quando cheguei na Espanha, fazia uma confusão enorme com os idiomas e tinha um leve sotaque ridiculamente italiano quando tentava falar espanhol. Fiz tanta força para mudar isso, que precisei bloquear o italiano para progredir no castellano. Agora, chegando em Roma, era a prova de fogo! Saberia falar? Entenderia? 

Pois meu italiano estava uma bela porcaria! Saía sempre um espanhol macarrônico! Tudo bem, depois resolvo isso. De certa maneira, foi um bom sinal, quer dizer que o espanhol entrou na veia. 

Eu adoro os italianos! Eles podem até te passar para trás, e como turista isso frequentemente acontece, mas sempre com toda gentileza e um enorme sorriso no rosto. Você não se sente uma trouxa qualquer, se sente uma trouxa especial e encantadora. Convenhamos, isso faz toda a diferença! Acho os italianos deliciosamente mal educados, no ponto exato, o suficiente para não serem chatos e monótonos, mas não tanto ao ponto de serem irritantes ou grosseiros. Enfim, muito bom ver gente que sorri à toa outra vez. 

Luiz alugou uma motorino (lambreta) e partimos a passear em duas rodas. É a forma mais fácil e rápida de se locomover pela cidade. O trânsito é razoavelmente caótico e quase não há onde estacionar. O metrô não é tão bem comunicado e ônibus nem arrisquei. Também não é complicado caminhar, o centro da cidade é relativamente simples de entender e tenho um bom senso de direção. Taxi, para distâncias curtas em locais centrais é tranquilo, mas para distâncias maiores, eles podem te enrolar e cobrar tarifas mais altas. 

Há alguns anos atrás, fomos a Roma e encontramos um casal de amigos que morava em Londres. Alugamos juntos as tais lambretas e foi muito divertido. Uma história engraçada aconteceu com esse casal, bem no meio da madrugada, um frio do cão e nós nas motorinos. Daí para o casal do nosso lado e começam a cantar a música do Steppenwolf: …born to be wild! Fui capaz de me sentir a própria selvagem na motocicleta que não andava a mais que 60 km por hora! A diferença é que naquela época debochávamos da falsa aventura. Anos mais tarde e dessa vez usando capacete, para mim era uma aventura de verdade! Estou ficando velha… 

No primeiro dia, senti um pouco de preocupação por andar na moto, mas não perdi a pose e encarei o desafio. No segundo dia, não tinha mais um pingo de medo, havia me acostumado com a motorino ainda mais potente que a primeira que alugamos, e me senti muito orgulhosa em ser capaz de ousar, nem que fosse um pouquinho. Meu orgulho não durou muito, assim que ganhei total confiança perdi a dignidade, minhas pernas e, desculpe, minha bunda doíam tanto que já estava de saco cheio! Luiz, por favor, vamos devolver o brinquedo e andar ou pegar um taxi? 

Uma coisa foi muito legal, por conhecer bem a cidade e não ter mais a pressão do turismo, pudemos aproveitar de maneira mais relaxada. É que da última vez que fomos, ainda morava no Brasil, daí você encara trocentas horas de avião, em férias super difíceis de conciliar e tem sempre um pouco da neura de precisar aproveitar cada minuto. Não acho errado, faz parte e acho que também vale à pena, mas a situação agora era outra e adorei! Não fui visitar museus, não fui à Capela Sistina e esbarrava por puro acaso nas piazzas e fontes mais famosas. Luiz queria passear de motorino e eu queria bater perna em Trastevere. Tomar um brunch o mais devagar e preguiçosamente possível! Voltar para o hotel e tomar um banho de espuma bem demorado. Sair à noite para jantar uma super pasta, tomar um vinho nacional e comer tiramisú.  

Infelizmente, devo admitir que em alguns momentos a culpa me bateu. Algumas vezes, quando estou muito feliz, me bate na consciência a dúvida se mereço. Considerando que tudo na vida tem um preço, e eu sei que tem, fico um pouco preocupada se estou colhendo um esforço ou se a conta ainda vai chegar. Sei que é um pouco neurótico, mas é a verdade. Ainda é muito difícil conviver com o contraste de sentar calmamente em uma piazza, tomando um belo vinho e ver, ao lado dos monumentos, os mendigos e os vendedores ambulantes tentando sobreviver. Entendo que a solução não depende de mim, mas sei que posso fazer meu papel e sei que posso fazer mais. Nesse sentido, talvez tenha sido bom, pois voltei com muita vontade de trabalhar. 

A volta para casa foi um pouco atribulada. Começou com Luiz esquecendo seu computador no hotel e tivemos que voltar do meio do caminho para o aeroporto e buscá-lo. Chegamos no check in em cima da hora, na verdade, até um pouco atrasados. Saímos em disparada para não perder o vôo. Na hora de passar pela fiscalização, os funcionários se apaixonaram pelo Jack e o policial cismou que tinha que me mostrar a foto do gato dele também. Imagina a gente em uma pressa louca e o policial procurando a foto do gatinho dele no telefone celular para nos mostrar todo orgulhoso! Em outra situação, teria batido o maior papo, mas ali estava agoniada. Quando chegamos no balcão de embarque, quase toda fila já havia entrado, fomos os penúltimos. Ufa! 

A partir daí foi mais tranquilo. O vôo estava vazio e nos deram uma cadeira bem atrás, assim ficamos sossegados com o gato, sabendo que ninguém ouviria seus miados de reclamação, se isso ocorresse. O comissário de bordo, também apaixonado por gatos, deixou a gente abrir a bolsa de transporte porque queria brincar um pouco com o Jack antes do avião decolar. No resto da viagem, meu felino metido teve até uma poltrona só para ele, sua bolsinha foi presa ao cinto de segurança. Ele se comportou super bem, um rapazinho, e quando chegamos, novamente a tripulação queria vê-lo enquanto os passageiros não saíam. 

Como nada na vida é perfeito, uma das nossas malas não chegou. Claro que foi a minha, com as roupitas novas que comprei. Lógico que comprei roupas e uma bota linda que estica minha perna uns 20 cm! Não sou uma pessoa naturalmente consumista, mas convenhamos, estava na Itália e ganhamos em euro! Quer comparar moda italiana com espanhola, sinto muito! Todo mundo já sabe que adoro Madri, mas as roupas aqui não tem a mesma elegância. E voltando à mala, hoje pela manhã nos ligaram dizendo que localizaram a dita cuja e a trarão no fim do dia. Agora é torcer para chegar tudo certo. 

O importante é que chegamos todos bem e Jack, que infelizmente detesta viajar, já cheirou, se esparramou e se esfregou pela casa toda. Queria ter essa sua habilidade de chegar no elevador e reconhecer o cheiro da minha casa, como se sempre houvesse sido ali e sempre houvesse sido minha. 

81 – A deprê de inverno

Mesmo antes de mudar para cá, havia ouvido falar muitas vezes da depressão que pode causar o inverno. Não é que não acreditasse nisso, mas nunca acreditei que pudesse acontecer comigo. Nem é meu primeiro inverno fora do Brasil. Mas a verdade é que aconteceu e estou aprendendo a lidar com essa situação. 

Felizmente, para mim não é tão grave, nada que precise medicação ou me derrube seriamente. Mas existe, está ocorrendo e não posso negar. Por sorte, pude perceber e entender rapidamente o que era. Com algumas pessoas isso pode ser mais sério e não é vergonha nenhuma, precisa ser tratado. 

Não sou uma pessoa das mais simpáticas ou super comunicativas, essas características sempre foram do meu irmão e da minha mãe. Por outro lado, normalmente não sou mal humorada e sou bem animada. Há três coisas que tiram meu humor: fome, muito sono e fazer algo que não quero sem necessidade. Razoável! Agora descobri que também há um quarto motivo, o inverno. 

Não é que me deixe aborrecida, mas me tira o ânimo de fazer as coisas. E não é necessariamente o frio, pois dentro de casa é aquecido e tenho roupas muito adequadas que me protegem na rua. 

Notei que cada vez que tenho que sair é difícil, é um esforço que faço, a vontade é de me entocar em casa. Isso para mim é algo muito estranho, pois sou daquelas que quando você me pergunta “vamos a tal lugar?”, já estou pronta em pé na porta. Juro! Também estou com pouca vontade de sorrir e me irrito com mais facilidade. Não sei explicar bem, mas é como um tipo de tristeza que você não entende o motivo. 

É diferente de tirar férias no inverno ou ir para uma estação de esquis, porque isso de alguma maneira te tira da rotina. É a rotina de inverno que me cansa. É acordar com o dia meio escuro, ter que pensar em cada peça de roupa, vestida em que ordem e qual casaco colocar,  precisar checar o tempo antes de sair de casa, conviver com as mudanças bruscas de temperatura cada vez que entra e sai de algum recinto, me emplastar de hidratante, nunca esquecer o protetor labial, lembrar de ligar o humidificador, não poder abrir as janelas para o ar circular… O inverno não te sugere uma rotina, ele te impõe uma. E isso porque Madri, ou mal ou bem, não é radicalmente fria e costuma ser ensolarada. Imagino nas cidades cinzentas ou de muita neve, onde se você não tomar as providências adequadas, pode até morrer. Simples assim. 

Acho que, em parte, o brasileiro é mais alegre por causa da luz e da temperatura do país. A gente não se dá conta porque está sempre ali, mas quando não está mais, faz falta. 

Enfim, os motivos exatos não tenho certeza, mas tenho tentado reagir. Não porque tenha me atrapalhado tanto, mas porque gosto de ser feliz. O que tento fazer é, primeiro, com ou sem vontade, não recusar convites. Mesmo desanimada, eu saio, porque quando estou na rua melhoro sensivelmente e consigo me divertir.  

A outra coisa é a alimentação. Seria ótimo se gostasse de pimenta, pois o chile, por exemplo, aumenta seu nível de endorfina e melhora o humor. Infelizmente, não gosto, então estou experimentando outros ingredientes. O gengibre, o alecrim e a noz-moscada me ajudam e a vitamina C também. O raio do chocolate é bárbaro, mas deixa a pele um lixo, além de engordar. O vinho é um bom aliado, mas a não ser que seja um jantar especial, não mais que uma ou duas taças ou o efeito é contrário. 

Muito bem, uma produçãozinha pessoal ajuda, vai. E, por que não? “Al mal tiempo, buena cara”. Afinal, as outras pessoas também estão passando pelo inverno e ninguém merece ficar olhando meu rosto desanimado, certo? 

Aos poucos, encontro minha própria fórmula de expulsar a uruca, ainda que me interesse bastante a experiência alheia nesse sentido. Todos os anos o inverno chegará e talvez um dia nem ache ruim. Quem sabe, ainda espere por ele. 

82 – Os cheiros de Madri

Gente! Madri tem cheiros! Parece estranho só ser capaz de notar isso quase um ano depois que moro aqui, mas juro que é a mais pura verdade. Antes disso, só notava cheiro de cigarro. Tenho até medo de elogiar muito, mas menos de um mês após a lei de restrição ao fumo ser implantada, o cheiro da cidade mudou! 

Começou por chegarmos em casa, vindos de um restaurante, e não precisarmos arrancar a roupa correndo, com  vontade de queimá-la, e entrar embaixo do chuveiro. Sem nenhum exagero, às vezes até as roupas de baixo tinham cheiro de fumo, nem me pergunte como! 

Para o cabelo, comprei um tal de “champú seco”,  Flor de Azalea, que apesar desse nome brega, salvou minha vida em diversas noites. Parece um laquê que tira o cheiro de cigarro e a oleosidade do cabelo, como se fosse um talco, mas não estraga a escova. Tá bom, meninos, sei que para vocês essa informação parece irrelevante, mas garanto que para as meninas que chegam em casa da balada, no meio da madrugada, com o cabelo cheirando a cinzeiro, essa é uma informação importantíssima! Podemos dormir em paz e lavar a cabeça com calma no dia seguinte. 

Notei que o ar havia mudado quando estávamos em um shopping. Quase nunca vou a shoppings aqui, normalmente prefiro a rua, mas nesse dia fomos. De repente, comecei a notar aromas de diferentes perfumes, cheiro de insenso em algumas lojas, alguns cheiros de comida pela praça de alimentação, cheiro de suor, cheiro de neném… E pensei sozinha, que engraçado, os shoppings cheiram tão diferente das ruas. Até que passei na frente de uma das portas de saída, onde havia uma área reservada para fumantes. Reconheci o cheiro instantaneamente, e só aí notei que não é que não houvessem aromas antes, mas o cheiro do cigarro abafava quase todos. Isso é incrível!  

É difícil acreditar que as pessoas, inclusive eu, pudessem aceitar a anulação parcial de um dos seus sentidos em favor de um vício! Até esse momento, sempre acreditei que o cigarro era apenas inconveniente e fazia mal a minha saúde, mesmo que não desfrutasse dele. O que, convenhamos, já é bem ruim. Mas ainda não havia percebido que ele me tirava uma das dimensões da vida, me roubava a percepção dos cheiros. 

Agora ando como um cão farejador! Putz! Realmente, às vezes acho que pareço maluca, mas é que com essa revelação me pareceu que poderia estar vendo um filme sem a trilha sonora. Quero Madri inteira, com o bom e o ruim, e com todos os seus cheiros! 

83 – Show de Dança Flamenca y otras cosillas más

Nesse fim de semana, uma amiga espanhola nos convidou para assistir um show de dança. Mesmo sem muita informação do que se tratava, topamos. Sempre vou ao teatro com muito boa vontade, procuro não ter expectativas muito altas e adoro me surpreender.  

Pois, foi uma boa surpresa desde o início. Começando pelo teatro, pequeno e alternativo, que me pareceu aconchegante. Gosto dos grandes teatros e espetáculos também, mas nesse dia, preferia algo mais intimista. O lugar chama Sala Triangulo e fica próximo ao Reina Sofia, meu museu favorito aqui.  

O show que fomos assitir se chamava “Latidos”. A propósito, latidos são as batidas do coração. Aqui na espanha nosso coração late!  Na verdade, era uma mistura de dança, música e teatro. O carro-chefe, digamos assim, era o flamenco. Entretanto eles mesclaram com uma série de ritmos, como: clássico, samba, blues (que ficou ótimo), salsa e alguns outros. 

O contexto era uma grande viagem, passando por aeroportos, estações de trem e metrô. As esquetes eram histórias que fazem parte do dia-a-dia de pessoas comuns, e claro, dentro da realidade espanhola. 

O espetáculo tinha poucos recursos em termos de produção, isso era bastante óbvio. Mas esses poucos recursos foram muito bem utilizados, de maneira criativa e com talento. E sabe que ficou bom?  

Mas houve uma outra coisa que foi importante. Normalmente, um dos motivos de você gostar de uma música, um filme, uma peça, enfim, uma atração qualquer, é o fato de se identificar com o que é exposto. Entendi perfeitamente todo o espetáculo e não estou falando só do idioma, me identifiquei mesmo, reconheci as pessoas que vejo na rua e eventualmente até a mim. Foi muito bom sentir que estou aprendendo. Esgotou minha paranóia da perda de identidade. No fim das contas, acho que prefiro mesmo é “ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo…” ¿vale?  

84 – Calle de Manuela Malasaña

Próximo a estação de metrô Bilbao, há uma ruazinha muito simpática chamada Calle de Manuela Malasaña. Sei lá, para quem conhece São Paulo, acho que seria a Rua Normandia daqui.  

É um local que conheço há pouco tempo, mas já fiquei fã. Tem de tudo, bares, restaurantes, uma graça! Tem até um restaurante natureba, o que em Madri soa como uma heresia, mas lá fica interessante. 

Há também um restaurante, chamado Nina, que entrou rapidamente no meu ranking dos melhores da cidade. É que, apesar de gostar da comida espanhola, tem uma hora que te enche um pouco o saco e você tem a impressão de estar sempre comendo a mesma coisa. O Nina tem seu sotaque espanhol, mas com um toque de cozinha mediterrânea e oriental, o que é um refresco para meu paladar. 

Pois estávamos nós, no tal do Nina, com a sorte de termos pego uma mesa na janela. Detalhe, só conseguimos reservar nosso jantar para às 23:30, lá está sempre lotado. Não é que na rua passa minha amiga francesa com o marido e nos reconhecemos pelo vidro? Qual a probabilidade de isso acontecer? Claro que ficamos fazendo mil piadinhas sobre essa cidade do interior minúscula, onde você encontra todo mundo! Engraçado como uma coincidência assim, tão pequena, me fez sentir parte do lugar. 

Bom, mas como deve ter dado para perceber, aquela historinha do regime de início de ano foi para o brejo! O jeito é malhar caminhando muito pela cidade, se a boca não consigo fechar, pelo menos, preciso queimar as deliciosas calorias madrileñas. 

85 – Pues… nada

Todo idioma, ou pelo menos todos que conheço, possuem algumas expressões coloquiais, sem grandes significados, utilizadas apenas para ganhar tempo para pensar ou iniciar uma frase. 

Por exemplo, no Rio tem o “olha só”. Os cariocas começam suas frases assim: … olha só, você vai fazer isso mesmo… e por aí vai. Os paulistas costumam perguntar, olha só o que? Você não está me mostrando nada! Mas há a revanche carioca, pois os paulistas iniciam suas frases com o famoso “então”. Então o que, se você não estava falando nada! 

O americano começa com o “well” ou “so”, mas em inglês todo mundo acha bonitinho. 

Pois os madrileños também tem sua expressão que não significa porcaria nenhuma, é o famoso “pues nada”, cuja tradução literal acredito ser dispensável. Na prática, funciona como um “nada demais”. 

Acho engraçado quando você atende um telefone e fala, diga ou dígame, e a pessoa do outro lado responde, pues nada. A pergunta seria: se não é nada, por que raios você está me ligando? E ainda há a variação “pues… entonces… nada”. Caramba, isso é que é falta de assunto, hein? 

Mais divertido ainda é depois da pessoa dizer que não era nada, começar a falar sem parar naquela velocidade espanhola! Aparentemente, o nada aqui rende uma longa conversa! 

Olha só, e por que estou contando isso? Então, pues nada 

86 – Uma coisa muito feia

Vi uma coisa muito feia, um homem batendo em uma mulher em plena rua. Sabia que acontecia, já ouvi muitas histórias, mas nunca tinha visto assim, pessoalmente. Como é feio! 

Ano passado, não me lembro exatamente em que mês, estava vendo o noticiário e mostrava um protesto enfurecido das espanholas. O motivo era o assassinato de uma mulher por seu marido. A reportagem falava do número “alarmante” de mulheres que morreram por maus tratos de seus parceiros na Espanha, em 2005. Logo em seguida, disseram que era a quadragésima-alguma-coisa mulher morta nesse mesmo ano e que providências sérias precisavam ser tomadas. Quando ouvi o número, a primeira coisa que me veio à cabeça foi que não me pareceu tanto assim.  Acho que no Brasil morrem muito mais. Ao mesmo tempo, esse pensamento me pareceu absurdo! Se uma só mulher tiver morrido, assassinada por seu marido, isso já é alarmante! Não estamos falando de 40 mulheres que morreram durante um assalto ou acidente. Falamos de casais, de pessoas que vivem juntas, dividem sua cama e que não tem, necessariamente, antecedentes criminais. Falamos de uma total falta de respeito. 

Às vezes, acho que no Brasil, e em outros lugares também, a gente perdeu a capacidade de se indignar. “Foram-se os anéis, ficaram os dedos” deixou de ser uma metáfora para se transformar em expressão literal. É o “estupra, mas não mata” virando piada que não acho a menor graça.  Lembro-me de escutar  nas rádios o “só um tapinha não dói” e sentir saudades da voz negra da Marron, que quando se referia à pancada de amor que não doía, falava de um surdo ou um pandeiro. E se seu surdo ou seu pandeiro eram referências à vida, pelo menos eram cantados de forma poética.  

Nossa falta de indignação nos acostumou aos meninos nos semáfaros,  aos mendigos queimados e aos animais vagando sem casa. Espero nunca me acostumar a ver um homem bater em uma mulher, ou mesmo um homem bater em outro, porque isso é muito feio. 

O que vi aconteceu no campus da Complutense, quando ia assistir um filme sobre guerrilheiros anti-franquistas, Silencio Roto. Estava sozinha caminhando do metrô para o prédio de filosofia, onde encontraria minhas amigas. A calçada tinha um certo movimento, nem tanto quanto no outono, mas não estava vazia. Vinha olhando as pessoas que estavam na minha frente, quando meu olhar parou em três homens e uma mulher, juntos. Nem sei explicar o porquê, mas sabia que eles não pertenciam ao lugar, não combinavam ali e meu radar me avisou logo para ficar bem atenta. Reduzi o passo, fiquei observando e analisei se existiria uma rota de fuga, se precisasse. 

Daí, dois dos três homens aceleraram o passo e o casal ficou um pouco para trás. Pareciam discutir, mas era uma coisa muito estranha. De repente, ele deu um tremendo safanão na mulher, que se protegeu, mas não fugiu. Algumas pessoas passavam do lado e ficaram meio confusas, mas não pararam. Ele continuou a andar na sua frente e, para minha surpresa, ela o chamou novamente gritando. Ele voltou, bateu nela outra vez com um murro,  gesticulou apontando para umas árvores como se a estivesse ameaçando e saiu andando na frente. Ela o chamou novamente berrando para ele voltar. Nesse momento, eu estava mais próxima e pude notar que a mulher estava molhada, como se tivesse urinado nas calças. Não sei se de medo, de dor ou de torpe e nunca vou saber, mas também era muito feio. 

Francamente, não sabia o que deveria fazer, como poderia ajudar. O que me deixava mais confusa e acho que às outras pessoas também, é que quando o homem ia embora, ela o chamava outra vez. E ele batia outra vez! Chamar a polícia, não adiantava, além de não haver tempo, a polícia não entra no campus da Universidade (motivos políticos, é lei). 

Da última vez que o vi voltar para socá-la, nosso olhar se cruzou e ele baixou o braço. Não houve da minha parte nenhuma coragem, tive medo e talvez tenha sido até imprudente, mas minha indignação perplexa foi tanta que não me deixou parar de encará-lo. Não sei se por vergonha, se por pensar que poderia reconhecê-lo, se porque havia mais gente na calçada ou por se cansar, mas dessa vez ele não bateu e foi embora. Passou do meu lado. Ela continuou gritando para ele. Ele se reuniu novamente com seus outros dois amigos, com rosto muito aborrecido, com cara cínica de vítima. E não o vi mais, espero nunca mais vê-lo, mas sei que lembrarei do seu olhar e quero que ele se lembre do meu. 

Muitas vezes, me sinto bonita simplesmente porque Luiz me olha como se eu fosse. Acho que se esse homem um dia se lembrar do jeito que olhei para ele, vai pensar: como sou feio. 

87 – A velhinha motoqueira

E mais uma cena insólita madrileña… Almodóvar, cadê você? 

Agora nem preciso sair na rua para me divertir. Pois estava eu, dando uma olhadinha da janela e logo em frente do meu edifício vi uma situação que me chamou atenção. Havia três velhinhas e uma mulher de seus 40 anos, juntas. Uma das velhinhas estava em uma cadeira de rodas e deveria ter uns 127 anos! As outras duas senhoras pareciam mais jovens, no máximo, uns 85. 

O que fazia dessa cena insólita? Imagine a mulher de seus 40 anos, tentando empurrar a cadeira de rodas com uma só mão, a outra mão ela tinha que segurar o cigarro, porque claro que ela precisava fumar exatamente nesse momento, né? As outras duas velhinhas tentavam carregar um monte de malas e bolsas, que não pareciam pesadas, mas tinham muito volume para elas. Quando pegavam uma mala de um lado, caía uma bolsa do outro. 

Ensaiei descer para ajudar, mas antes disso percebi que na reta das mulheres havia uma lambreta vazia. Olhando de cima no meu apartamento, no ângulo que via, dava a sensação exata que as três loucas iriam colocar a pobre velhinha de 127 anos em cima da moto! Juro! Dava nervoso só de imaginar! Antes que eu tivesse um enfarte, percebi que essa localização lambreta-velhinha era só uma coincidência. Que alívio! 

Nesse meu vai-e-vem na janela, será que desço para ajudar ou vejo o que está acontecendo, percebi um homem chegando para dar uma mãozinha. Quando olhei melhor, era um senhor dos seus 90 anos! A mulher de 40 não sabia se equilibrava o cigarro ou empurrava a cadeira de rodas. E eu: ai, meu Deus, desço para ajudar ou chamo uma ambulância? 

Pois nem precisei ficar na dúvida muito tempo, o velhinho era super ágil! Em segundos ele pegou todas as malas, atravessou a rua e se despediu das senhoras. E cá entre nós, notei um certo ar muito galante. Fiquei pensando, para qual das velhinhas ele estaria se exibindo? Será que ele estava paquerando? E onde raios ele conseguiu toda aquela vitalidade? A velha sou eu que fiquei como uma boba na janela e não fiz nada! 

88 – O primeiro dia de neve em Madri, 2006

No penúltimo dia de janeiro, pouco depois das 8:30, fui acordada por um insistente interfone. Quase não fui atender, porque não esperava por ninguém e tinha quase certeza que era engano. Mas era  possível ser o correio, pois tenho família e amigos gentis que sempre me mandam alguma coisa. Fui com aquela mala leche ver do que ser tratava e, no fim das contas, era mesmo o correio para meu apartamento. 

Era o passaporte do Luiz com seu novo visto americano. Tive que pagar 8,15 euros para recebê-lo e é claro que não tinha trocado. Paciência, fazer o que, morri em 20 euros e a promessa que ele passaria de volta assim que tivesse troco. 

Contei essa história porque ninguém que me conhece poderia acreditar que estaria acordada a essa hora sem algum motivo. Durmo no final da madrugada e acordo no fim da manhã. Vivo em outro fuso. Mas sabe de uma coisa, nesse dia meu sono foi interrompido providencialmente! 

Como Luiz estava super ansioso para receber seu passaporte de volta, liguei para ele meio sonâmbula para avisá-lo, sonhando em voltar para minha caminha quentinha. Ele me perguntou se havia olhado pela janela. Imagina, se mal olhei o carteiro! Daí ele me disse que havia nevado. 

Fui para a janela da sala conferir. A rua já estava normal, mas em cima dos carros ainda havia neve branquinha. Talvez minhas receitas malucas estejam funcionando para melhorar meu humor, talvez fosse porque era o primeiro dia de neve, talvez fosse porque não era eu quem limparia os pára-brisas congelados, e quem sabe, por tudo isso junto, mas fiquei muito feliz! E olha que foi antes das 9 da manhã! 

Um pouco relutante, vesti meu casacão por cima do pijama e tomei coragem de abrir a janela e fotografar a rua. Registrei, ao mesmo tempo, dois momentos históricos: meu primeiro dia de neve em Madri e vagas para estacionar na frente do prédio. Nem sei qual dos dois eventos me surpreendeu mais! Fotografei para não me chamarem de mentirosa, não pela neve, mas pelas vagas! 

Lembro do primeiro dia que vi neve na vida. Tinha por volta dos cinco ou seis anos, em Nova York. Pode acreditar, é uma lembrança curta, mas muito nítida, acredito que porque, para mim, era uma coisa muito diferente. Lembro da emoção de sair e ver a rua branquinha. Acho que fiz o que dá vontade em todo mundo, afundei o pé na neve para deixar marcas de pegadas. Depois não resiti e me joguei no chão sem o menor pudor! Ainda bem que conheci neve criança, hoje me daria vergonha e frio, apesar de ainda ter vontade de me jogar. E a última coisa que me lembro é de ver uma senhora desconhecida passando e rindo para mim. Acompanhei seu olhar por um tempo e minha lembrança se acaba aí. Anos depois entendi esse olhar, era inveja boa, de quem também queria se jogar no chão e se esbaldar com a neve. 

Enfim, acho que o frio da janela e as lembranças me tiraram o sono e comecei esse dia cedo. E, a propósito, o carteiro voltou mais tarde com o troco dos 20 euros e não faltava um centavo!  

89 – Os embalos de sábado à noite

Em pleno sábado, frio de menos 2 graus, Luiz e eu largados em casa vendo filme e comendo pipoca. Até que Luiz se animou e me chamou para sair. Normalmente, esse é o meu papel, mas ando meio marcha lenta e ele assumiu o comando. Ainda bem! 

Enquanto me arrumava, ele ligou para uma amiga nossa que mora aqui perto e chamou ela e outro amigo. Acabou que só foi ela. Fomos para um bar quase na esquina, o Finos y Finas, tomar um vinhozinho e beliscar algumas comidinhas no balcão. Daí, nossa amiga que nos encontrou lá falou de um lugar bem próximo que ela havia conhecido e achou as músicas legais. 

Músicas legais? Como assim? Esse tipo de argumento em Madri deve ser conferido imediatamente! E ainda por cima era perto! Eu que na rua me animo e já havia engatado a terceira, pulei logo para quinta marcha e acelerei: então, vamos! 

O lugar se chama Posada de Las Animas e, no que depender de mim, serei cliente! A decoração é meio teatral, assim, dramática. Talvez um barroco modernista, com anjos pendurados, enormes candelabros e longas cortinas vermelhas. Muitos espelhos e iluminação bem planejada, como deve ser. As prateleiras dos bares são montagens com antigas cadeiras de cinema, adornadas por milhares de garrafas de bebidas e vídeos em tela de cristal líquido. A bebida é cara, mas não se paga entrada nem tinha fila. E, muito importante, a frequência média se posicionava acima dos 30 anos. 

A música era realmente boa. Entramos direto para a pista e dançamos até cansar! Nesse momento, me arrependi de estar tão bem agasalhada. Putz! Que calor! Também, como iria advinhar que de moribunda no sofá acabaria pulando numa pista de dança? 

Enfim, indo embora a pé em um frio de 6 graus negativos, vivi a seguinte contradição. Meu corpo ainda suava de calor por ter dançado e minhas orelhas queriam descolar da cabeça de tanto frio! Bom, o nariz nem sei onde estava, porque no meu rosto não sentia. 

Pues nada… pero, bueno, que estava muy bien, así que a lo mejor volveré ¡guay, tío! 

90 – A Picanha

Sou carnívora! Os vegetarianos que me perdoem, mas uma bela carne é fundamental. Nasci com caninos, fazer o que?  

É verdade que preciso comprar as carnes em supermercados, cortadinhas e limpinhas. Assim, posso esquecer que é um animal. Preciso acreditar que um bife nasce em algum tipo de árvore exótica. 

A comida de Madri é muito boa, mas a carne deixa um pouco a desejar, como na maior parte da Europa. Além disso, os cortes são diferentes e ainda tenho um pouco de dificuldade em identificá-los. 

Em Atlanta, encontrávamos churrascarias brasileiras muito boas. Mas em Madri é mais difícil. Existem, mas não são fantásticas. A melhor que já fui até o momento é a Mistura Fina, em Majadahonda, meio longe para irmos sem carro. E a melhor carne e a do Picanha, mas não é exatamente uma churrascaria. 

Enfim, de qualquer forma, ainda tinha aquela vontade danada de fazer uma super picanha em casa, mas como explicar isso no açougue? Até que navegando pelo orkut, em uma comunidade de brasileiros em Madri que frequento, descobrimos que aqui também se faz esse corte e se chama tapilla ou tapa de cuadril. Não é um corte espanhol, mas os argentinos e brasileiros comem, portanto, alguns lugares o faziam. 

Bom, o próximo passo era ir até o açougue e testar a informação. Fui junto com o Luiz, porque não queria pagar o mico sozinha do açougueiro me olhar com cara de ET sem ter a menor idéia do que era a tal da tapilla. Pois o rapaz não só conhecia o corte, como havia namorado uma brasileira. 

Ele tinha um pedaço cortado, mas estava totalmente limpo, sem gordura. É que a carne aqui é muito cara e as pessoas não querem pagar o preço do kilo para levar gordura. Expliquei para ele que entendia sua boa vontade, mas precisava da gordura para temperar o churrasco, além disso, gostaria de uma peça um pouco maior. Ele me cortou um outro pedaço e me olhava com cara de espanto me perguntando se realmente eu queria levar com toda aquela gordura, que nem era tanta. Disse que sim, que não a comia, mas que nosso churrasco é temperado pela gordura da própria carne e sal grosso. Ele não se conformou e pediu para tirar só um pouquinho, daí pesou a carne mais limpa, me deu um desconto no peso e embalou a carne junto com o pedaço de gordura tirado. ¡Joder! 

Mas a verdade é que ele foi tão gentil e simpático, que achei mais fácil sorrir, agradecer e sair com a carne embrulhada com um pedaço inútil de gordura solta por cima. 

E o resultado? Huuuuummmmm… um belo churrascão caseiro! 

91 – A mudança de olhar

Há alguns anos atrás vi um filme francês que gostei muito, acho que se chamava “Uma Relação Pornográfica”, apesar de não haver absolutamente nada de pornográfico. Não pretendo contá-lo inteiro, mas apenas uma frase que me chamou atenção, o homem dizia em relação a sua parceira: “primeiro não vi nenhum defeito, depois vi seus defeitos e depois, novamente não os vi mais…” 

Nesse caso, estava sendo descrita uma relação amorosa, onde ele se apaixonou. Acho que o amor funciona assim, primeiro a gente está tão empolgado que não vê os problemas, depois, pouco a pouco, a gente vai aprofundando o conhecimento e também vendo as características negativas. E chega um momento, onde esses defeitos não importam mais, pois se tornam pequenos dentro de todo o contexto da relação. 

Mas nem é de relacionamento amoroso que gostaria de falar, é sobre olhar mesmo. Acredito que o funcionamento do nosso olhar é o mesmo para as coisas que nos cercam. 

Foi assim que meu olhar se comportou aqui em Madri. Primeiro não vi defeitos, gostei de tudo, até as desvantagens me pareciam divertidas. Depois vi os defeitos, alguns me incomodavam, outros nem tanto. Agora, sinto que estou muito próxima a não me surpreender mais. A dúvida nesse momento é se isso é amor ou acomodação pela cidade.  

Algumas pessoas, mais sábias que eu, conseguem viver em um mesmo lugar por toda sua vida e, no entanto, também conseguem ver as mesmas coisas de maneira diferente e se desenvolver com elas. Outras, são acomodadas mesmo, o que não deixa de ser uma opção. No meu caso, preciso da mudança. É meu estímulo para aprender. Mudar me dá um novo ângulo, um olhar fresco. Não preciso mudar de país a cada semana, não é a isso que me refiro. Mas necessito algum tipo de mudança, mesmo sabendo que há um preço por ela. Sempre há.  

Entretanto, qual o preço para se conhecer profundamente a alma humana? E que no fundo significa conhecer a nós mesmos,  a mim mesma. Qual o preço de chegarmos ao nosso limite? Qual o preço de se deixar um legado e como deixá-lo sem a experiência? E por que raios isso me importa tanto? 

Outro dia li um trecho interessante de um livro do Calvino, que dizia o seguinte: “…conseguir explicar a si mesmo que aquilo que ele procurava estava diante de si, e, mesmo que se tratasse do passado, era um passado que mudava à medida que ele prosseguia a sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, não o passado recente ao qual cada dia que passa acrescenta um dia, mas um passado mais remoto. Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos…deve prosseguir até uma outra cidade em que outro passado aguarda por ele, ou algo que talvez fosse um possível futuro e que agora é o presente de outra pessoa. Os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos… Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá”.* 

Acho que mudo para saber quem sou. O que gera um paradígma, pois ao mudar, sou outra pessoa novamente.  

Não me prendo aos sapatos, nem aos móveis, nem às casas, nem às cidades… Há muitos nomes para isso, alguns chamam de desapego, outros de irresponsabilidade ou loucura e sabe-se lá de mais o que; chamo de liberdade. Quando não tenho nada, posso tudo. E me doeu abrir meu coração e minhas mãos no início, mas só assim entendi que as pessoas e as coisas não são minhas, apenas passam pela minha vida e me dão a oportunidade de conhecê-las. Quando posso aprender com elas, agradeço, pois meu apredizado é meu patrimônio. Com o tempo estou aprendendo também a compartilhá-lo e quem sabe esse será meu legado ou minha pretensão. De qualquer maneira, já sei que nada ou quase nada que não se possa compartilhar serve. 

Sinto que tenho pouco tempo para admirar Madri com os olhos de novidade. Por um lado, não posso negar que isso me entristeça, mas, por outro, não quer dizer que não possa admirá-la, nem que será pior, simplesmente não será mais da mesma maneira. Talvez essa seja minha próxima mudança e meu próximo aprendizado.  

* do livro “As cidades invisíveis” de Italo Calvino

92 – A Festa Brasileira

Desde que saímos do Brasil, Luiz e eu adotamos uma política de não buscar exclusivamente amigos brasileiros. Isso não quer dizer que a gente não goste de encontrá-los, pelo contrário, mas conhecemos gente nos Estados Unidos, por exemplo, que nem falava inglês. Simplesmente, optou por se isolar da cultura local e fingir que continuava no Brasil. Como uma negação. Dessa postura não gosto, respeito, mas não quero. Acho muito mais interessante se integrar, ou pelo menos se esforçar para conhecer a cultura do lugar que a gente vive, não perco nada, só adiciono. Sempre parto do princípio que se procurarmos as qualidades encontraremos e se procurarmos os problemas, também encontraremos. Então, se um problema cair na minha cabeça, não posso fazer nada a não ser resolvê-lo, mas eu que não procuro! 

Aqui em Madri, como em Atlanta, temos amigos brasileiros, espanhóis e de outras nacionalidades y así me gusta! Acho divertido uma festa onde se fala várias línguas, corretamente ou não, isso não importa, o importante é que a gente se comunique e que exista afinidade. 

Agora, também é verdade que os estrangeiros aqui sentem vontade de conhecer melhor o Brasil. Aliás, o Brasil anda na maior moda! Por isso, as últimas festas que temos feito, temperamos com uma certa brasilidade. As caipirinhas fazem muito mais sucesso que os vinhos e as músicas são extremamente bem recebidas. E para os amigos brasileiros, é sempre bom se sentir um pouco em casa. 

Nessa última sexta-feira, soubemos de uma festa brasileira na Sala Caracol. Quando escutamos falar de uma festa brasileira por aqui, infelizmente, há uma dose de suspeita, pois, não é sempre, mas muitas vezes é codinome para festa com prostitutas. No início, isso me envergonhava um pouco, não gosto dessa imagem da brasileira. Nada contra as meninas que fazem seu trabalho não muito fácil, mas acho muito desagradável essa generalização. E o pior de tudo é saber que a imagem do Brasil fica afetada, mas na minha opinião, a culpa mesmo é de quem paga e normalmente são estrangeiros. Acho que esses estrangeiros é que deveriam se envergonhar. 

De uma maneira ou de outra, percebo que a imagem do Brasil melhorou bastante no cenário internacional nos últimos anos, principalmente em uma Europa, que apesar de tradicional, também é muito curiosa. 

Mas voltando à festa da Sala Caracol, no ano passado Luiz e eu fomos a uma festa por ali para sentirmos o ambiente. Achamos animado e não vimos nada que depusesse contra nosso país. Portanto, nessa última festa, que era um pré-carnaval, fiz a maior propaganda e combinamos de ir com amigos de diferentes nacionalidades.  

Fizemos uma festinha de aquecimento aqui em casa, onde rolaram caipirinhas, cachacinhas e comidinhas. A gente faz caipirinha de frutas diferentes, o que para os estrangeiros é algo exótico.  

Daqui seguimos para a festa brazuca, onde rolava um show da banda Maracatu FM. Aliás, um show excelente! Aos meus ouvidos, soou como um Mangue Beat de primeira! Talvez outras fusões de ritmos também, mas estava mais interessada em dançar que entender. Esse show acabou por volta de 1:30 da manhã, o que é cedo para Madri, mas que dependendo da localização é o que a prefeitura autoriza.  

Nosso grupo se dividiu porque algumas amigas brasileiras acharam que se tratava de música baiana e não se interessaram, foram para outra boite. Gosto de música baiana também, mas não tinha nada a ver e nós ficamos até o fim do show. Quando acabou, Luiz, eu e uma amiga koreana fomos catar aonde o povo tinha se metido. Descobrimos que a tal da boite era a Posada de Las Ánimas, bem perto da nossa casa. Ou seja, partimos para a terceira fase da noite! 

As noites em Madri são assim, longas! É muito comum irmos a mais de um lugar ao longo da madrugada. Dependendo da hora, cada lugar tem seu ponto forte. Haja energia! 

Óbvio que chegamos em casa quase de manhã e meus planos de visitar uma feira de arte no dia seguinte foram para as cucuias! Tudo bem, tinha o sábado para descansar e fui no domingo. 

Bom, quer dizer, descansar de dia, né? Porque na noite de sábado em Madri, quem quer ficar em casa? Eu achando que ficaria na minha caminha quentinha, me recuperando da ressaca de sexta-feira, liga um casal de amigos brasileiros muito legais. Daí, fazer o que? Nos integrar a cultura local, tomar um bom rioja, comer umas tapas e papear com amigos. Pensando bem, o mundo não é tão grande nem tão diferente assim. 

93 – ARCO 2006

Hoje fui na ARCO, uma feira internacional de arte contemporânea, realizada em Madri e que esse ano completa 25 anos de vida. Essa de 2006 foi composta por 280 galerias (191 estrangeiras e 89 espanholas), entre 33 países e contou com mais de 3 mil artistas. Ou seja, foi uma mostra mundial importante da arte de vanguarda. A propósito, incluiu galerias e artistas brasileiros.  

Para mim, que sou artista plástica, absolutamente enlouquecida por arte contemporânea, foi um festival de estímulos. Muita informação e gente boa. 

Sendo muito sincera, andava um pouco decepcionada com a arte na espanha. Não a arte clássica, que é muito rica, mas a arte contemporânea me pareceu muito conservadora e com uma tendência tão grande à pintura que me incomodou. Provavelmente, em Barcelona isso se altere um pouco, mas em Madri, esperava mais. 

Na minha réles opinião, a arte contemporânea brasileira está anos luz na frente! Pelo menos em São Paulo, não necessariamente com artistas paulistas, mas é inegável que havia uma concentração de arte de excelente qualidade ali. 

Entretanto, essa feira me reacendeu as esperanças. É verdade que incluía muitos outros países, mas também gostei bastante do que dizia respeito à Espanha. Boa notícia! 

E porque não dizer que fiquei muito orgulhosa da representação dos meus conterrâneos. O Brasil estava muito bem representado por suas galerias, além de artistas brasileiros que também faziam parte do acervo de galerias de outras nacionalidades. 

Caramba! Vai ser difícil dormir! Nem fome durante o dia eu tive. Muitas imagens e pensamentos gritando na minha cabeça! Mas é tão bom… 

94 – Agridoce, ao meu avô

Meu avô está com 88 anos. A idade vem demonstrando sinais evidentes, mas ainda é um homem muito lúcido. Depois que minha avó faleceu, trocou seu apartamento por uma caderneta de poupança e seu carro por uma mala zero quilômetros. Passou a se revezar entre a casa do meu pai e da minha tia. Fica mais tempo na casa da minha tia. Hoje minha mãe me contou que estava um pouco anêmico e desanimado. Depois disso, foi impossível não pensar nele o dia todo. 

Meu avô é um dos homens mais inteligentes que conheci, inteligência que herdou meu pai. A diferença é que meu avô teve pouca instrução formal e, mesmo assim, era capaz de discutir profundamente da troca de um pneu ao funcionamento de um submarino nuclear. Nunca encontrei um assunto do qual ele não soubesse conversar. 

Entretanto, às vezes me parecia que era duas pessoas. Uma com a família, que incluía minha avó, seus filhos e nós, os netos; outra com todos os demais. Um homem acre e bravo com as pessoas em geral, mas um avô fabuloso! Nunca teve muitos nem grandes amigos. Sempre foi de um temperamento muito difícil para se relacionar e nunca se esforçou para modificar isso. Não conheço a fundo seu passado, mas posso imaginar que sua vida jovem foi dura e amarga e, talvez sua inteligência, o fez perder a fé nas pessoas. A sensação que tinha é que ele não confiava em quase ninguém e fazia questão de demonstrar que também não gostava de quase ninguém. 

Acontece que sou neta e sempre fiz parte do seleto grupo a quem ele confiou e mostrou seu melhor lado. O homem que para os demais era emburrado e sério, era o mesmo homem que me buscava no aeroporto me fazendo cócegas e dizendo “pode morder, pode beijar, pode apertar”… 

Nas férias na sua casa não achava tão ruim acordar de manhã, pois sabia que na mesa do cáfe encontraria me esperando cabaninhas de índio esculpidas na ponta do pão francês e brincadeiras que faziam minha imaginação navegar solta. Depois me levava na pracinha para andar de pônei, brincar no parque e tomar “chicabon”. E mais tarde, quando queria dar sua cochilada, me enfiava junto na cama e pedia que me contasse a história da cegonha mentirosa por tantas vezes que só um avô poderia contar. É claro que quem dormia ao fim da história era ele.  

Também era ele quem nos levava ao Tivoli Parque da Lagoa e para andar no trenzinho de Cabo Frio, centenas de vezes! No parque, era quem tinha coragem e paciência de ir conosco na montanha-russa e no twist, brinquedos que adorava, mas não tinha idade para ir só.  

Meu avô construía brinquedos e jogos muito melhores do que os vendidos nas lojas. Acho que eram melhores porque víamos como eram feitos e participávamos da execução. Tinha ferramentas para tudo e sabia consertar tudo. Também nos levava para pescar com ele na única idade em que pescar me parecia uma aventura. Ele tinha uma forma diferente de se comunicar conosco e a gente se entendia sem muitas palavras. E para quem conhece meu trabalho e é um pouco observador, hoje também conhece um dos meus mistérios. 

O tempo passou e quase casei aos 19 anos, desisti na última hora. Foi a decisão mais difícil que tive que tomar até aquele dia e sofri muito. Minha família me apoiou e sei que foi quando resgatamos nosso passado, mas hoje estou falando do meu avô. E meu avô foi a única pessoa que nunca me perguntou o porquê, não me perguntou absolutamente nada, não me disse o que achava antes nem depois. Quando me recebeu, pegou minha mala e foi até o carro com a mão no meu ombro, me abrançando. Tive cinco anos outra vez, deixei para trás quilos de culpa e poucas vezes me lembro de ter sido tratada com tanto respeito. No silêncio da nossa língua de avô e neta talvez ele, que havia me contado tantas vezes a história da cegonha mentirosa, entendesse melhor que naquele momento eu não podia mentir. Acho que a única coisa que me disse foi que minha avó havia caprichado no almoço, preparado bife acebolado com uma mandioca frita crocante. Havia três dias que eu não conseguia comer, nada sólido passava pela minha garganta, mas naquele dia almocei. 

Agora gostaria de animá-lo e estou longe para sentar muda do seu lado e colocar a mão no seu ombro. Ligar e falar coisas melosas não é nossa língua nem nosso estilo. Não sei se conseguirei receber sua visita novamente, é um pouco complicado agora mais velho. Quem deve fazer o caminho sou eu. 

Fico um pouco curiosa para saber se com a idade ele recuperou sua fé nas pessoas ou se a perdeu de vez e, também por uma questão de respeito, nunca vou perguntar. Mas posso dizer que por seu exemplo quem ganhou fé nas pessoas fui eu. Aprender a reconhecer o lado bom e sincero do outro é muita coisa. 

95 – A Tal da Higiene

Sou completamente neurótica por limpeza! Não quero dizer que só sou limpinha, estou falando de neurose mesmo. Fico no limite dos obsessivos compulsivos, apesar de estar bem melhor agora do que quando era mais jovem. Em função dessa obsessão,  preciso lavar minhas mãos mais vezes que uma pessoa normal, lavar toda a comida que entra na geladeira, desinfetar o chão com água sanitária, contar as coisas na rua até darem múltiplos de dez, apertar meus dedos ou beliscar a palma da minha mão… coisas assim, rotinas que trazem segurança. Mas não é tão ruim, porque como também tenho deficiência de atenção, podemos dizer que tenho loucuras complementares. Bom, não chego a um grau que me provoque problemas ou me dificulte a vida, na verdade, a consciência dessas tendências me ajudou a tirar proveito delas. E convenhamos, nem fui eu quem disse, mas concordo que “de perto ninguém é normal”. Porém vamos falar de uma loucura por vez e hoje vou contar da minha obsessão por limpeza e como Madri me tem feito melhorar. 

Voltando um pouco no tempo, minha mãe conta uma história que meu irmão quando era pequeno vivia adoecendo e, por conta disso, cada vez mais ela o protegia, o que não adiantava. Até que um dia o pediatra informou que faltava a ele a famosa vitamina “S”,  de sujeira! Faltava a ele anticorpos. A partir disso, ela passou a expô-lo mais. Claro que no início ele adoecia, mas foi recuperando sua resistência aos poucos. 

Hoje em dia, cada vez que preciso me expor a uma situação, digamos menos higiênica, fico concentrada dizendo a mim mesma, é vitamina S, é vitamina S… 

Minha primeira melhora significativa devo aos meus gatos e a arte. Nos dois casos, me fazia impossível lavar as mãos a todo momento, além de associar essa “sujeira” a coisas que gostava. 

Agora, mudar para a Europa, desconfio que me curou! 

Vamos começar pelo pão. Que raios de relação de amor e ódio é essa que o europeu tem com o pão? Acho que as mães batem nos seus filhos pequenos com pedaços de pão e depois os oferecem como refeição! Sei lá, algo como Pavlov. Foi a única explicação razoável que encontrei! O europeu precisa fazer o pão sofrer antes de comer, ele precisa arrastá-lo no chão, caminhar com ele embaixo do sovaco, deixar pegar poeira, manusear bastante, e só aí, o pão merece o direito de ser comido! Aqui ele ainda é vendido em sacolinhas, que deixam a metade do pão do lado de fora, mas pior mesmo é na França, onde vem com um pedacinho papel em volta que só cabem três dedos para segurá-lo.  

Logo que mudei para cá, não conseguia comer pão. Era impossível não imaginar a tragetória do pobre antes de chegar a minha boca. Hoje, quando estou em restaurantes e não resisto ao cheiro do pão quente invadindo meu nariz, penso: bom, se está quente, os micróbios morreram queimados! Vitamina S… vitamina S… 

Além disso, pensando bem, se depois eu tomar vinho, o álcool desinfeta o estômago, certo? 

E andar de metrô? Aquele negócio de pegar nas barras de apoio que todo mundo põe a mão? Putz, no começo sofria! Luiz me deu a idéia de andar com lencinhos higiênicos na bolsa. Não posso dizer que não fiquei absolutamente tentada, mas já era paranóica o suficiente e resolvi lidar com a questão de maneira madura. Ou seja, maduramente aprendi a me equilibrar sem tocar em nada! 

Mas só percebi mesmo que estava praticamente curada da última vez que fui comprar frios para lanchar. Primeiro porque o jamón que comprei estava pendurado sem nenhuma proteção de embalagem, segundo porque aquela historinha de cortar os frios com luvinhas aqui não existe! É na munheca mesmo. Era o indivíduo pegando com seus dedinhos cada uma das fatias do meu presunto e eu respirando fundo e pensando, vitamina S… vitamina S… conta os presuntos pendurados até darem múltiplos de dez… 

Bom, não disse que estava assim totalmente curada, mas quer saber, em outros tempos, teria jogado tudo fora quando chegasse em casa. E acredite se quiser, comi e achei foi bom! A propósito, comi com pão. Vai ver os anticorpos também nos ajudem a diminuir o senso crítico e essa tal da higiene! 

96 – Menos um carnaval

Sempre fui louca por carnaval! Adoro as festas, a animação, as fantasias… tudo! Sei que muitas vezes também saem brigas e confusões, mas a verdade é que essa parte pior nunca chegou em mim. 

Gosto da sua preparação, dos ensaios de blocos, da ilusão do pecado permitido, do clima que traz aos lugares que o celebram, das escolas de samba e da Portela que infelizmente não é mais a mesma.  

Achava que celebraria todos os anos até ficar velhinha. Claro que sem o mesmo preparo físico teria que sambar como turista americana, levantando os dois indicadores para cima. 

Luiz não gosta de carnaval, o que gera uma total insatisfação uma vez ao ano. No início, tínhamos um trato de comemorar um e descansar outro, mas isso nunca foi cumprido. De doze anos de casada, só tive um carnaval decente, mesmo assim, porque comprei as passagens “no susto” e fomos para Salvador. 

Nos outros carnavais, sempre sofri acompanhando pela televisão a animação das pessoas nas festas por todo Brasil. Até que, desde o ano passado, desisti de saber o que acontece pelo mundo, não leio as reportagens na internet e foi um alívio não ter um canal de TV brasileiro. 

Mesmo assim, descobri que na Espanha também se comemorava o carnaval, coisa que me animou um pouco e me fez pensar que, quem sabe, esse ano quebraria meu jejum. 

Viajamos na semana anterior e fiz um esforço para chegar em Madri antes do sábado de carnaval, tudo bem que fosse um dia só, mas já valeria alguma coisa.  

Começamos bem. Fizemos uma festa de aquecimento em casa para nos prepararmos para a noite que começou cedo. Até aí, por mim ia tudo as maravilhas, com amigos legais e tomando minha cachacinha envelhecida em barril de carvalho. De casa fomos para uma festa de carnaval brasileira, que não estava muito cheia nem tão animada, mas que por mim estava ótima!  Infelizmente, nem todos pensavam assim. Meu carnaval que já havia se reduzido a um dia, se resumiu a uma hora, porque dali fomos para outro lugar.  

Por mim, também sem problemas, não me importava onde estivesse e sim que era sábado de carnaval. Podia dançar música brasileira, espanhola, grega, do cafundó do judas… dane-se, queria meu dia de direito. 

Pois com mais uma hora na outra boite, nada de ninguém se animar a ir para pista e Luiz com sua boa vontade peculiar de carnaval começou a dançar comigo bocejando. Francamente, isso me irritou! 

Decidi voltar para casa e amargar mais um ano. Vai passar. Voltamos a pé na chuva e nos graus negativos. Me recusei a pegar taxi, não queria ser educada com ninguém. Nem me incomodou a água, não vi a neve, nem senti o frio, só lembrava que mais um carnaval decia pelo ralo.  Assim como minha Portela, também não sou mais a mesma.

97 – O Reino Encantado de Andorra

Tiramos férias e fomos passar uma semana em Andorra, um micro país, de 468 Km2, encravado entre Espanha e França. A principal atividade é o turismo e possui excelentes estações de esqui, motivo pelo qual viajamos para lá. 

Para dizer a verdade, assumindo minha ignorância, não me lembrava de haver ouvido nada sobre Andorra antes, mas o nome me soou como um mundo de contos de fadas, algo do tipo: o reino encantado de Andorra, onde a bruxa malvada mantinha a princesa encarcerada em uma torre de pedras. 

Pois fui eu, a princesa guerreira sin ganas de esquiar, Luiz, meu príncipe encantado caçador de dragões de gelo, e Jack, nosso fiel e feroz leão escudeiro. Seguimos em nossa carruagem alugada, puxada por 120 cavalos, em 6 horas de viagem desde Madri. 

É claro que logo no primeiro dia minha elegância magistral foi para o saco e, com aquela quantidade de roupa isolante em camadas, me transformei rapidamente em uma plebéia desengonçada. 

Isso sem falar das botas de esqui. Francamente, aquilo é um instrumento de torturas criado pelo pior dos demônios da neve! E a gente usa de propósito, nenhum Highlander me pôs uma espada no pescoço me obrigando! Eu devo ser masoquista… Aquela porcaria faz a gente andar de um jeito esquisito. A primeira vista, todas aquelas pessoas, caminhando rígidas e em cadência,  me parecem soldados de armaduras gordas e impermeáveis, marchando para a guerra do frio.  

Mas as coisas mudam quando nos encaixamos nos esquis. A postura melhora, nos distraímos da dor e a adrenalina esquenta o corpo. Aí fica todo mundo com a maior pinta de marrento!  Todos se achando e eu inclusive. 

Engraçado como sou uma pessoa quando vou e outra quando volto da pista. Esquiar para mim é difícil começando na preparação para sair de casa. Detesto aquele monte de roupa! Sinto-me totalmente claustrofóbica e os sapatos de neve me machucam. Vou andando no maior mau humor até a estação para a subida do bondinho. Saio carregando o equipamento com aquele jeito de mulher fresca que não sabe carregar nem uma sacola, que dirá um par de esquis, botas etc. Na boa, pareço uma auxiliar de astronauta e das incompetentes! 

Daí vou subindo naquele maldito bondinho que balança e é alto para cacete! Cassilda, tenho vertigem! Quando chego no alto da montanha estou completamente mareada. Mas é só o começo, porque logo em seguida preciso colocar as malfadadas botas, que só estão no ponto quando você as aperta tanto que para piscar os olhos precisa alternar com o movimento da respiração. Decide, ou pisca ou respira!  Ninguém merece! E quando estou no topo da montanha, totalmente equipada, minha cabeça diz “desce” e minhas pernas dizem “nem fodendo marquinho”.  

Ainda por cima, Luiz esquia muito melhor que eu, acho uma sacanagem! Ele podia pelo menos fingir que é um pouco difícil por uma questão de cavalherismo! Pior, só mesmo aquelas criancinhas de bochechas vermelhas que nem sabem caminhar direito, mas passam por você zunindo de tão rápido! É muita humilhação! Isso acorda meu lado escuro da força e tenho vontade de por meu pé na frente para elas tropeçarem. Talvez por isso que elas sejam tão velozes. 

Mas uma hora minha vertigem começa a se acalmar, vou me aclimatando. Em um ato de fé, decido encarar a bruxa malvada de Andorra. Descubro que não é tão poderosa, apesar de ser prudente lhe ter respeito. E a verdade é que quando consigo relaxar, aproveitar as curvas e tomar um pouco de velocidade, finalmente, me liberto da torre de pedras e também sou capaz de encarar os dragões de gelo.  

Na volta para o hotel, a mudança é óbvia. Não sinto mais a vertigem no bondinho e desfruto a paisagem. Ando com mais confiança e com pinta de atleta radical, quem vê até pensa! Os esquis já vão apoiados nos ombros e depois de produzir litros de endorfina nem sinto o peso da mochila. Dessa vez me atrevi a usar aqueles óculos espelhados de mosca espacial, afinal de contas, atitude é importante! 

Chegando ao quarto, tudo que quero é um banho de banheira, o maior luxo do mundo. Aliás, se um dia alguém fizer um ranking dos maiores luxos do mundo, empatarão no primeiro lugar café da manhã na cama e banho de banheira. O resto é só exibição! Com isso, volto a me sentir princesa. 

Bom, pelo menos até levantar da banheira e descobrir que todos meus músculos continuam doendo e tenho ematomas nos pés e canelas. Mas afinal de contas, uma princesa guerreira deve assumir que suas cicatrizes são troféus, certo? 

98 – As tribos madrileñas

Desde que o mundo é mundo o homem se classifica. Essas classes sociais mudam de nomes, entretanto os conceitos se perpetuam e se alternam de lados, demonstrando uma necessidade de categorização que me perturba, mas parece inevitável. 

Madri não poderia ser diferente, aqui também temos as divisões. Sei que é quase uma heresia uma brasileira falar das diferenças sociais na Europa, o Brasil é um rei em discrepâncias nesse sentido, sei olhar para meu umbigo, mas não uso uma bitola e, infelizmente, noto que isso também existe aqui. Talvez em um nível mais horizontal, não só em função de dinheiro, e não tão vertiginosamente vertical como o nosso, mas está presente.  

Existe a burguesia, a população mais abastada, chamada coloquialmente de pijos. Os pijos usam roupas de marca e falam com muita freqüência o termo “o sea” (ou seja). Pelo menos, esse é o estereótipo do burguês, sua caricatura, que muitas vezes me parece uma bela dor-de-cotovelo de quem não chegou lá. Sabe essa deformação católica da impossibilidade do rico entrar no reino dos céus? Algo assim. Óbvio que também há os superficiais, mas de modo geral, não conheço ninguém que tenha dinheiro que não trabalhe muito por ele. Sei que existe, mas não convivo nem aqui nem no Brasil.  

Tem os alternativos, que aqui não possuem uma nomenclatura específica, mas se dizem majos (descolados, gente legal). Também usam marcas da mesma forma, mas outros tipos de marca, lógico, as marcas majas. Passam horas se produzindo para parecerem informais e gastam uma enorme energia em desenvolver um estilo próprio para parecerem que não se preocupam com estilos. Existe uma obrigação de serem, ou ao menos parecerem, mais inteligentes, como se um tipo de óculos aumentasse o número de neurônios. É verdade que na noite, onde todos os gatos são pardos, eles são ou se parecem realmente majos. 

Há os imigrantes, com subdivisões de categorias: os com dinheiro e os ferrados. Os com dinheiro, podem ser de qualquer cor e falar com sotaque, pois normalmente são bem tratados. Na pior das hipóteses, são confundidos com turistas. Podem inclusive ser majos ou pijos. Não digo que seja uma vida fácil, porque nunca é, mas definitivamente é muito melhor que o segundo grupo. Os ferrados costumam ser ilegais no país, ou foram em algum momento. Esses últimos possuem outra divisão: os negros, os do leste europeu, os sul americanos (os sudakas, essa terminação em “aka” é pejorativa aqui), os orientais (os chinos, não importa se são chineses, japoneses, vietnamitas… tem olho puxado é chino)  e os que se misturam à população por seu tipo físico. A última categoria tem um pouco de sorte, o resto, como denominei duramente, se ferram, comem muita grama até possuírem uma qualidade de vida razoável, quando conseguem.    

Ainda na categoria imigrante, há os marroquinos e os ciganos. Acho que são os que mais tem problemas, seguidos pelos negros africanos. Os ciganos, não sei se podemos considerar exatamente como imigrantes, mas assim são vistos. A verdade é que a cultura é muito diferente e há um choque horroroso para se acomodarem. Adicionando-se a isso o estado de pobreza, é muito comum se dedicarem a atividades ilegais, o que aumenta o preconceito, pois de uma maneira maluca acaba justificando a má fama. É um círculo vicioso.  

Os sudakas, mesmo não sendo tão bem tratados, de certa forma, não são mal vistos. É considerada uma imigração positiva, pois exerce as funções que o espanhol não quer fazer. Os brasileiros, apesar de serem sul americanos, são vistos meio que em separado das outras nacionalidades, talvez pelo idioma. As mulheres brasileiras, assim como as do leste europeu, levam fama de prostitutas, mas no resto não vejo ainda um preconceito grande. As músicas são muito bem recebidas, as pessoas são consideradas animadas e amáveis e amam os jogadores de futebol.  

Bom, também há os pobres espanhóis, que acabam se ferrando tanto quanto os imigrantes. Não é incomum observar depois de certa hora da noite, pessoas com boa aparência revirando as latas de lixo que ficam nas calçadas. Normalmente, são provenientes de algum pueblo (cidades pequenas do interior, povoados, vilarejos) e estão na capital tentando melhorar a vida.  

Há os turistas, que aqui, por seu volume, acredito possuírem também um status de classe social. São espanhóis ou estrangeiros e normalmente se concentram pelo centro da cidade. Quase nenhum turista gosta de assumir que é turista, pois isso costuma ser sinônimo de trouxa em qualquer lugar do mundo. O centro da cidade também é freqüentado por madrileños, mas que detestam admitir, pois afinal de contas, não são turistas e, mesmo que os lugares sejam bons, isso não soaria muito majo 

Ainda há os mayores (pessoas mais velhas). As mulheres sempre vestem saias, normalmente negras e na canela e os homens vestem terno. São muito conservadores e tem o costume de passear de braços dados pela rua, sempre nos mesmos lugares.  

Que tenha percebido até agora, esses são os principais grupos de gente que observo nas ruas madrileñas. Não tenho nenhuma base científica, é pura observação pessoal. Além do mais, dentro de cada tribo, sempre há gente boa ou não. Dou sorte em conhecer pessoas e costumo conhecer as legais. 

Assim como no Brasil, gosto de navegar por diferentes tribos, apesar de não me sentir parte de nenhuma delas e não é que não queira, é que não sei mesmo. Não gosto da idéia de rótulos, até a palavra já se desgastou. Mas entendo e acho importante observar as diferenças. Diferenças sempre vão existir e o poder costuma estar exatamente nelas. Acho importante reconhecê-las, mas mais importante ainda respeitá-las. 

Ainda dentro dessa temática de diferenças entre tribos, tive uma experiência bizarra quando mudei de vida profissional. Mantive meus amigos executivos e ganhei novos amigos artistas, boêmios, enfim, alternativos. Na minha opção pela mudança, me preparei para não ser compreendida por meus amigos “homens e mulheres de negócio”, mas a verdade é que isso nunca aconteceu. Todos estavam abertos e foram grandes incentivadores, talvez por serem meus amigos. Alguns podiam nem entender bem, mas aceitaram com curiosidade e boa vontade. Chamo isso de respeito. Por outro lado, sinto uma certa dificuldade em que meus amigos “alternativos” naveguem com facilidade em outros mundos. Claro que não estou falando de todos nem que sejam assim todo tempo, felizmente, mas sinto muitas vezes um preconceito maior e uma atitude defensiva em entenderem e desfrutarem outras formas de vida. Sinto constantemente um ar de deboche que não entendo bem se é sinal de visão ou de despeito, talvez um pouco dos dois. Acho triste imaginar cabeças que teoricamente tem por missão estar a frente dos tempos, tantas vezes estejam tão fechadas em seu próprio microcosmo. Minha esperança é o fato de ser comum precisarmos negar algo para entendê-lo com profundidade. Espero um dia chegar a certeza de que não somos tão diferentes e originais quanto pensávamos e conseguir aprender a simplificar a vida. 

Sinceramente, não sei o que sou. Acho que sou um pouco pija porque posso e aproveito os prazeres da vida, gosto de ser feliz, de ver gente bonita, de comer bem, de degustar vinhos e de vestir as roupas que me valorizam. Sou um pouco alternativa, porque de todos esses prazeres sei diferenciar os que gosto dos que preciso. Depois de mudar tanto, serei sempre imigrante, dentro ou fora do meu país e hoje posso também dizer que sou um pouco madrileña, porque aprendi a respeitar as diferenças dessa cidade e, assim mesmo, continuar apaixonada por ela. E cada dia fico mayor, não quero usar as saias negras longas, mas quero passear pela rua de braços dados. Claro que também possuo os defeitos, mas isso eu é que não vou apontar, muito menos classificar. 

…Oh, sim, eu estou tão cansado, mas não pra dizer, que não acredito mais em você… eu não preciso de muito dinheiro, graças a Deus, e não me importa, e não me importa não, oh, minha honey baby…

99 – O dia da forra

Após um carnaval aburrido e um bico de dois palmos e meio por uns três dias, no fim de semana seguinte veio a forra. A verdade é que nem foi tão mal assim, acho que é mais a questão psicológica de saber que era carnaval. Em qualquer outro fim de semana teria ficado super feliz, pois chegaram amigos do Brasil, tivemos gente em casa, encontramos amigos aqui… Enfim, mas quando imaginava que do outro lado do mundo pipocavam trios elétricos, só gastando toda minha energia para me satisfazer. E adianto, isso não é tarefa fácil!  

Acabou que tive uma semana super cheia, encontrei com duas amigas do tempo de colégio, uma veio com o marido de férias e a outra fica por um ano e estudaremos juntas. Foi divertido e chegou na sexta-feira eu já estava de bom humor outra vez. 

O curioso é que como agora minha vida é literalmente um livro aberto, todo mundo sabia que tinha ficado emburrada no fim de semana passado. Isso é engraçado porque as pessoas se procuram nas coisas que escrevo e ainda não sei lidar com isso. Para mim são dois mundos diferentes, mas um dia me acostumo. 

E como ia dizendo, na sexta-feira, no pique madrileño, nos liga uma amiga chamando para sair, o irmão dela estava visitando. Fomos nós quatro para o Lateral, um bar modernoso, com tapas super criativas e um bom preço. Para variar, também fica perto de casa. Ali encontramos mais dois amigos e batemos papo até dar a hora de poder ir para uma boite. É que antes de uma da manhã estão todas vazias. 

Fomos para a Posada de las Ánimas, onde já praticamente batemos cartãozinho na porta. Mas para falar a verdade, nesse dia impliquei com o DJ. Sei lá, para mim ele não estava acertando a mão. Os dois amigos que nos encontraram no Lateral foram para outra boite e nós quatro insistimos um pouco mais para ver se melhorava. 

Por volta das duas da manhã, resolvemos tentar a próxima parada. Fomos para uma boite chamada El Junco, indicada por um casal de amigos brasileiros que nos encontraria lá mais tarde, com outros amigos. Entrei meio desconfiada, mas em pouco tempo já estava amarradona! Muito bom lugar, super despojado, informal e boa música. 

Adoro essa coisa de Madri da noite ir acontecendo. Você não vai para um bar e ponto, esse é só o começo. Ali você encontra uns amigos, depois vai para outro lugar e encontra outros, às vezes os lugares são modernos, às vezes super tradicionais… e quando nos demos conta eram quase seis da manhã. Casa cheia e todo mundo dançando! 

Tudo muito bom, tudo muito bem, mas realmente bateu uma fome desesperadora! Daí nos deparamos com o seguinte problema, não há em Madri uma lanchonete que venda hamburguer às 6 da matina. O máximo que você consegue são churros com chocolate quente. Acontece que não queria churros, queria um super hamburguer gigante, com muito queijo e bacon! Aquele do Bloomings de São Paulo que a gente sempre comia depois de qualquer festa. Fazia parte do ritual. 

Cheios de esperança e uma fome do cão, partimos nós e um casal de amigos em busca do hamburguer perdido! Por sorte, como já passavam das seis, o metrô havia aberto e tivemos condução para voltar para casa. No caminho, Luiz lembrou de uma possível padaria 24 horas que me soou muito estranho, mas o desejo carnívoro não me deixava pensar direito. Saltamos perto de casa e caminhamos nos arrastando mais umas cinco quadras atrás da tal padaria, que obviamente estava fechada. 

E para achar um taxi para voltar? Porque andar ninguém aguentava mais. Sentamos em um ponto de ônibus para ver o que passava primeiro com rodas para nos levar, quando avistamos um mercadinho com as luzes acesas.  

Nos dirigimos ao mercado salivando por haver algo quente para comer. Claro que não havia. Porém, a nossa salvação estava na geladeira. Eles vendiam sanduíches plastificados e havia cheeseburguer! Não tinha grandes expectativas quanto ao sabor do dito cujo, mas pelo menos tinha cara de hamburguer e já era alguma coisa. 

Em casa, após tomar um banho rápido e incinerar a roupa que fedia a cigarro, fui para cozinha esquentar nossos hamburgueres. Nunca comi um hamburguer tão ruim com tanta vontade. O jeito foi encher de mostarda para ter gosto de alguma coisa. Mas a verdade é que quebrou o maior galho! 

No dia seguinte, ou melhor, no mesmo dia, assim que acordamos fomos direto tomar nosso café da manhã… no Burguer King, é claro! Comi um cheesebacon duplo e Luiz comeu dois! 

No comecinho da noite, fomos com o mesmo casal de amigos do hamburguer no La Daniela fazer um programinha light. Todos morrendo de sono. Voltamos para casa cedo e dessa vez sem a menor reclamação da minha parte. Estava acabada, mas feliz da vida.