60 – E chegou dezembro…

Ontem saímos para comprar não-sei-o-que. Para variar, ía distraída pela rua, já um pouco escuro no começo da noite. Quando fomos atravessar a Calle Conde Peñalver e olhei para cima levei um susto, estava lá: a decoração de Natal! Caramba, chegou dezembro! 

As decorações de Natal sempre me assustam. Não porque não goste, pelo contrário, mas é quando tomo consciência que o ano passou. E esse ano, especificamente, voou! 

Passaremos Natal e Reveillon aqui. Nas duas datas, faremos festa em casa. Nada tão grande, mas acho que será divertido. No Ano Novo, inclusive, teremos hóspedes. Para nossa família, acredito que será um pouco chato, pois não poderemos estar no Brasil. Mas tudo bem, ano que vem quem sabe a gente passe por lá? 

E voltando a dezembro em Madri, a temperatura chegou a zero. Nas redondezas da cidade já nevou, mas ainda não há neve suficiente para esquiar. Na cidade mesmo nem sempre neva, o que não é de todo mal. Neve é lindo, mas não é nada prático! Nos primeiros dias é uma alegria. Acontece que depois de um tempinho, aquilo tudo vira gelo e lama, escorrega que é uma maravilha. Fora o pessoal que mora em casa e tem que limpar calçada, vidro de carro etc. Portanto, acho ótimo viajar para a serra, curtir a neve, um belo chocolate quente e voltar para minha casinha no conforto da calefação. 

Pelo menos, em termos de roupas, dessa vez estamos super preparados. Temos casacos e roupas interiores para vários tipos de temperatura. Isso faz toda a diferença do mundo! Minha tolerância ao frio melhorou muito também. O problema é só nos últimos minutos antes de sair de casa e quando entramos de volta no apartamento, a gente só falta cozinhar! Na frente da porta de saída, fica um tipo de cabideiro com todos os casacos. Assim fica mais fácil e não ocupa tanto lugar no armário.  

O chato é que volta a escurecer cedo, às sete está escuro. Nesse ponto, gosto é de primavera e verão, quando escurece lá para às dez da noite e temos aqueles dias enormes que cabem tudo. 

Mas o inverno também tem seu charme, vá lá. As roupas principalmente, acho lindas! Quer dizer, o guarda-roupa do espanhol médio não é lá essas coisas em termos de bom gosto. Eu, pelo menos, detesto aquele negócio de meia-arrastão com mini-saia tipo puta, meia-calça colorida parecendo doença de pele, botinha por cima da calça igual a jóquei, lencinho amarrado na cintura, calça sem dar bainha arrastando nojentamente no chão…e por aí vai. Mas no inverno, felizmente, melhora muito! Por outro lado, devo admitir, que quando se vê uma mulher bem vestida, ela arrasa! Quando é elegante, é elegante mesmo. 

Enfim, é dezembro, que venga el invierno! 

61 – Adoro um balcão!

Adoro um balcão de bar! Deveria ter aprendido isso no Rio de Janeiro, a cidade especializada em botecos. Não aprendi por um motivo muito simples, desculpa gente, sei que é uma coisa horrível, que é possível que seja execrada com toda razão, é algo imperdoável, repugnante, tentei modificar acreditem, mas eu não gosto de chopp nem cerveja. É duro! Foi um trauma na época em que morei no Rio, um problema social,  PORQUE NINGUÉM PERGUNTA O QUE VOCÊ QUER BEBER, o garçon simplesmente conta as cabeças e pergunta em voz alta, de maneira retórica, “x”chopps? Daí tinha que me manifestar timidamente, 20 cm menor que minha altura original, e dizer: é que não tomo chopp. Os olhares confusos se dirigiam a mim, junto com o garçon com um ponto de interrogação na testa, como assim não toma chopp? Será que ela tem algum problema, coitadinha! 

Cheguei a tomar as terríveis sangrias só para ter alguma opção alcoólica fresquinha nos bares. Quando mudei para São Paulo facilitou minha vida, o clima mais ameno da cidade me dava outras opções, como o whisky. Além de poder apreciar a deliciosa cachacinha, entre minhas bebidas favoritas. A cultura do vinho ainda era iniciante. Sou da época onde um restaurante oferecia as opções “vinho branco” e “vinho tinto”. Depois melhorou, você ainda podia escolher entre seco e suave (mesmo que fosse só no nome). E eu, burramente, escolhia suave, putz! Que mancada! Em seguida, como todo mundo já sabe, veio o alemão fraquinho da garrafa azul, com gostinho de uva, que abriu corajosamente caminho para outros vinhos e experiências mais interessantes. Descobri que não era que não gostasse de vinho, é que não gostava de vinho ruim! Bom, hoje nem preciso dizer, mas São Paulo é a melhor cidade para se beber e comer do mundo. 

Não bebo tão intensamente assim, nem acho que uma pessoa precise de álcool para se divertir. Bebida, pelo menos para mim, é algo social, deve vir junto de algum motivo e sem prejudicar ninguém. Caso contrário, perde a graça. Não sabe brincar, não brinca! 

Mas vamos lá, em um balcão de bar, qual é a graça em pedir coca-light?  O balcão te convida a interagir, tem um “quê” de ritual, é um lugar para os iniciados. Não tem a formalidade das mesas, não é para namorar, não é para segredos. O balcão é para amigos. 

Aqui encontrei meu chopp! Adoro cava, o espumante espanhol. Também há a possibilidade de pedir uma copa de vino. Pronto! Resolvi meu problema dos balcões de bar e finalmente desfrutei essa delícia que é beliscar descompromissadamente em pé ou nos bancos altos de apoio. 

Ainda amo os jantares românticos e formais, mas mantenho minha fisolofia que um prazer não precisa eliminar o outro. Por exemplo, há um restaurante e bar que adoro, o “Finos & Finas”. Apesar do nome meio brega, tem uma cozinha excelente e criativa! Para um jantar mais elaborado, nada como o atendimento da super simpática Marta. Ela te indica os vinhos corretos, te explica os pratos com boa vontade, uma gracinha!  Mas houve o dia em que chegamos sem reserva com um amigo americano, já meio tarde, e não havia mais mesas. A cozinha estava praticamente fechada. O Luis (não o meu marido), gente boa como qualquer barman, disse meio sem graça, se vocês quiserem, podem ficar pelo balcão que tento pedir na cozinha algo mais simples. Se alguma coisa aprendi na noite é saber em quem se deve confiar. Na mesma hora, Luiz (esse meu marido), eu e nosso amigo, concordamos quase que em coro: fechado! O que você disser a gente topa! Putz! A gente se deu muito bem! Além das dicas do barman serem de primeira, acabamos batendo o maior papo e provando todo tipo de vinho, por nossa conta ou por conta da casa! 

Outro balcão que adoro é do “El Barril”, tem dois da mesma rede perto de casa. Esse não é tão barato e é frequentado por uma clientela mais, digamos, adulta. Oferece frutos do mar fabulosos! Nada melhor que as dicas do Benjamin, outro barman-gente-boa, do que está mais fresquinho. A cava está sempre geladinha e, apesar de não gostar, o chopp, que aqui se pede caña, é lindo e bem tirado. 

Tem o “Aranzabal”, um estilo mais jovem e despojado, mas onde se come os melhores huevos rotos de Madri. O vinho é bem honesto também. Nesse não dá para conversar muito com o barman, porque vive lotado e o coitado mal respira! Mas o bar é bom! 

Não posso deixar de contar do nosso pé-pra-fora mais frequentado, o “Panamá”. Esse é a extensão da nossa cozinha. Foi, inclusive, onde assinamos nosso contrato de aluguel desse apartamento. Ali, quando Luiz viaja e tenho preguiça de cozinhar, tomo uma copa de Rioja com umas almôndegas ou umas allitas de pollo super bem feitas. No balcão, claro, conversando com a dona do local.  

A propósito, aqui não tem nenhum problema em haver uma mulher sozinha no balcão do bar. Também não tem limite máximo de idade, é a coisa mais normal do mundo encontrar mayores tomando sua caña ou sua copa de vino! Mas sabe de uma coisa, é raro ver bêbados pelas ruas. De modo geral, as pessoas sabem beber e não exageram. 

Ainda não aprendi a jogar os guardanapos e outros lixinhos no chão, como os autênticos madrileños. Acho que sou a única pateta que procura ficar próxima às lixeirinhas, lugar mais limpo do recinto. Mas um dia chego lá… 

62 – Saudade

Hoje senti saudade.  

Isso nunca foi realmente um problema para mim. Não sei se por sorte, por experiência ou pela minha natureza, aprendi a lidar com a saudade e a solidão muito cedo. Falo também da solidão porque esses dois sentimentos estão sempre, de alguma forma, ligados. Acho que não sinto nem mais nem menos que ninguém, mas entendo que faz parte da vida e que não pode te limitar. Acredito que nem sempre é mau. 

Algumas vezes, é até difícil saber se estou com saudade ou não. Acho que não penso muito nisso. Pode ser porque em alguns casos confundo com nostalgia. Nostalgia é diferente, a gente sente um tipo de saudade, mas não quer voltar a fazer as mesmas coisas. É algo resolvido. Saudade a gente quer de novo. 

Hoje, andando na rua, me senti um pouco aborrecida. Na verdade, antes de sair já estava sem muita vontade de levantar. Tem vezes que o inverno te faz isso. O frio e as árvores com cara de meio mortas podem te baixar um pouco o astral. Mas notei que não estava brava com nada nem exatamente triste. Até que me dei conta que estava era com saudade. 

Deu vontade de sentar em um bar com Luiz e meus amigos. Não sei por que, mas me vinha na cabeça o Manoel e Joaquim, de Moema. Talvez porque tenha sido o último bar que fomos com amigos antes de mudar. Ouvi muitas gargalhadas na minha língua e meu sotaque meio misturado parecia não fazer nenhuma diferença. Também pude me imaginar pegando um avião às pressas em segredo para Rio, quem sabe com a cumplicidade do meu irmão, e aparecer sem avisar na casa dos meus pais. Depois ligar para alguns amigos, fingindo decidir para onde ir, e acabar indo à Academia da Cachaça e pronto. 

Senti na boca o gosto do sanduba de pernil do Mercado Municipal; quase passei mal de tanto que comi na casa da minha família paulista; vi os fogos de Copacabana, não nos barcos chatos de agora, mas aqueles que eram na areia e imitavam coqueiros gigantes; almocei com as lulus; fui ao Santa Maria comer salada de frutos do mar com champagne e comprar bem casado; li a lista de compras da amiga-que-mandava-em-minha-casa e fui buscar no Pão de Açúcar; desci a rua Augusta de carro, feliz mas com vontade de chorar, depois da exposição da Paulista; pendurei pêndulos imaginários no MAM; reclamei do trânsito e do rodízio absurdo; participei dos encontros da minha turma de colégio e tiramos várias fotos; ouvi Pink Floyd me sentindo inteligente; subi o morro da Urca para as Noites Cariocas; fiz escova com minha cabeleireira favorita e acreditei outra vez que meu cabelo é liso; fui numa festa junina e tomei capeta só para lembrar dos velhos tempos; preparei uma moqueca para os meus sogros; inventei fantasias de papel  para meu sobrinho; reencontrei meus primos; participei do amigo-ladrão e meu presente foi o mais disputado; fiz obras nos apartamentos e pintei muitas paredes. Fiz um monte de coisas hoje! 

Caramba, deu saudade e me pegou de surpresa.

63 – A despedida do curso de espanhol

Até que enfim acabou meu curso de espanhol. Foi excelente e é verdade que melhorei sensivelmente no idioma, recomendo. Por outro lado, já não tinha muita paciência para esse negócio de aula todos os dias, chamada, dever de casa… Sei lá, acho que estou velha para isso. 

Bom, no último dia do curso, combinamos de sair depois da prova final. A grande maioria dos alunos voltará para seus países de origem, poucos ficam por Madri. Fora as três amigas que vieram na minha casa para o aniversário, com os outros, nunca saí antes, acho que eles também não saíam juntos. Tinha dúvidas se me divertiria. Cerca da metade da turma é de americanos, nada contra, mas fiquei pensando se eles começariam a só falar em inglês e pareceríamos turistas pela noite madrileña. Estava errada. 

A maioria do grupo, me incluindo, saiu direto da aula para um bar, o El Buscón. Quem organizou nossa ida para lá foi a estudante francesa, minha primeira amiga do curso. Foi engraçado andar novamente pela rua com um bando de pessoas juntas. Me senti um pouco adolescente, mas relaxei logo e curti a sensação. O restante do grupo foi primeiro em casa se arrumar e nos encontraram no bar. Digo, no primeiro bar, pois foi uma via crucis! Aliás, isso é muito normal por aqui, dificilmente vamos a um lugar só. 

Nesse primeiro bar estávamos em dezessete pessoas. Luiz me encontrou lá, depois do trabalho. Só pôde nos acompanhar nesse lugar, pois tinha que trabalhar cedo no dia seguinte, mas pelo menos aproveitou um pouco. 

Dalí, os americanos tinham um jantar de despedida e também se foram, com a promessa de nos encontrar mais tarde. Nunca acreditei que realmente fossem voltar, mas de novo, estava errada. 

Um dos professores apareceu e fomos para o segundo bar, o Malaespina. Nesse, estávamos em seis pessoas, entre elas, minha amiga koreana preocupada com o horário de voltar para seu apartamento. Ofereci que ficasse em minha casa, bom para mim que voltava com companhia e bom para ela que podia ficar à vontade. 

É engraçado conhecer as pessoas fora do ambiente de trabalho ou de estudo, no caso. Todos estavam mais descontraídos e as diferenças de idades e de nacionalidades não faziam mais nenhuma diferença.  

Esse segundo bar foi escolhido pelo alemão. Dois minutos depois de entrarmos lá, descobrimos o motivo de sua escolha, estava apaixonado pela garçonete russa. Aparentemente, vivia por lá. De qualquer forma, também foi divertido e o lugar era legal. 

Sem nenhuma vontade de voltar para casa e recebendo ligações dos americanos querendo saber qual era a próxima parada, nos animamos a sair para dançar. Dessa vez, sugeri eu, o Berlin Cabaret. Acho que já comentei que é um dos meus lugares favoritos em Madri, mas às vezes pode estar muito cheio e não tão bom. Nessa quinta, estava perfeito! 

Os americanos apareceram super animados e voltamos a ser um grupo grande. Cantei as músicas que sabia e inventei as que não conhecia, até porque ninguém escuta mesmo, então qual é o problema, né? Finalmente, aprendi a dançar como se ninguém estivesse olhando e pouco me importou. Parecia que éramos velhos amigos de longa data. Nos acabamos de dançar até às cinco da manhã, só paramos quando começaram a acender as luzes e desconfiamos que o lugar iria fechar. 

Lá no Berlin, talvez porque seja pequeno, é comum que as pessoas se falem. Quem está mais perto do balcão acaba ajudando quem está mais atrás a fazer os pedidos, coisas assim, muito civilizado. No fim da noite, alguém veio nos perguntar se éramos um grupo de alguma empresa saindo juntos. Não éramos, mas achei curioso e acredito que a pergunta me explicou porque me sentia tão bem. Não sei se verei essas pessoas no futuro, algumas talvez sim, a maioria provavelmente não. Mas sei que nesse dia Madri foi uma cidade pequena e familiar, fomos uma mesma turma, uma galera, e foi muito bom. 

64 – As Luzes de Natal

Agora sim Madri está pronta para o Natal! Mil luzes acesas pela noite madrileña! Árvores natalinas reais ou estilizadas, luzes brancas ou coloridas e presépios de todos os tamanhos. Aliás, presépio aqui se diz “belén”, como a cidade. 

Tentei comprar uma árvore de natal, mas só achei umas cafoninhas. Daí resolvi fazer eu mesma uma modernosa, Luiz me ajudou a decorá-la. No Brasil, tinha uma “caixa-de-natal” onde guardava uma árvore, vários enfeites e velas. Adorava o dia de abrir a tal caixa! Antes de mudar, me desfiz da mesma. Não me arrependi, alguém estará aproveitando nesse momento. Mas me deu uma vontade danada de montar outra, o problema é onde guardar essa tralha toda depois!  

As ruas, como de costume, estão abarrotadas de gente! Inclusive, muitas crianças. Dá uma falta de paciência para entrar nas lojas, porque tem fila para tudo! Também, nem tenho para quem comprar presente agora mesmo. Tô reclamando por que, né? Melhor esperar um pouco e aproveitar as liquidações. 

Mas nos supermercados tenho que ir e, cassilda, haja saco! Só tenho tido tempo nos sábados e, aparentemente, todo mundo tem a mesma idéia, pelo menos, todas as pessoas-rolha. Vocês não imaginam o que estou sofrendo depois de ter revelado o segredo da conspiração-rolha. Enfrento terríveis congestionamentos de carrinhos de compra! ¡Joooooder! 

Vá lá, tudo passa quando vejo aquelas luzes acesas e me sinto em uma vitrine gigante. Ando sempre na torcida que o músico da rua daquele momento toque saxofone! 

No dia 24 haverá uma festinha aqui em casa, no jantar. No dia 25, almoçaremos na casa de amigos. Mas até agora, não achei tender, acho que eles não comem por aqui. É uma pena porque adoro tender e só lembro de comer no fim de ano, acho que vai ficar para o próximo. 

O importante é, na falta do resto da família, poder passar com Luiz e amigos. E mais uma vez, temos a sorte de ter bons amigos!  

Gente pelo mundo todo, Feliz Natal!  

65 – Sobre o Ano Novo

O dia de Ano Novo é a data que mais gosto de todas! É o fechamento de um ciclo. O lugar que prefiro passar a noite de reveillon é em Copacabana. Acho lindo o ritual das pessoas vestidas de branco se misturando nas calçadas e na areia. 

É como se conhecêssemos a todos e marcássemos um grande encontro. Parece que ligamos para estranhos e dizemos: …e como vamos nos reconhecer? Vou de branco! Fechado, eu também! E assim nos encontramos na praia, como antigos conhecidos que celebram juntos. 

Alguns anos arrisquei pensar em vestir outra cor. Mas na hora que estou quase pronta, me sinto como se estivesse traindo o grupo. Volto correndo e troco minha roupa por branca! Agora sim. 

Nem sempre posso passar no Rio e também aproveito em outros lugares. Mas, para mim, é muito importante que tenha água por perto. 

Nos dias de Natal e Ano Novo sempre houve muita festa nas casas da minha família. Quando minhas avós morreram, e as duas faleceram no mesmo ano, houve um longo luto. Respeitei esse luto e o entendi, mas nunca participei dele. Minha saudade das minhas avós é assunto meu e só foi tristeza nos primeiros meses, depois mudou. 

Felizmente, um dia minha mãe se cansou da tristeza de fim de ano e as festas voltaram a acontecer na casa dos meus pais. Agora é novamente um ponto de encontro para família e amigos. 

Nessa época, ainda penso nas minhas avós e em meus outros mortos. Lembro com o mesmo respeito dos canibais que digeríam seus adversários na esperança de incorporar seus dons. 

Quando minhas avós faleceram, deixaram heranças. Ambas tinham qualidades que admiro e não possuo. O que mais me impressionava era como eram mulheres de fé. Minha mãe herdou essa crença e hoje carrega o peso e a benção da fé da família. Herdei a proteção da alma de duas bruxas boas e o amor da terceira. E é por isso, e só por isso, que os deuses fazem vista grossa à minha displicência, ao meu senso crítico cáustico e à minha arrogância atrevida em sempre achar que posso tudo. Sabem que isso é assunto nosso, das mulheres da casa. E é também com uma mulher que acerto as contas no final. 

No último dia do ano sou puxada para o mar. Depois da meia-noite, preciso me encontrar com a água, na forma em que ela estiver. Volto ao meu elemento natural para dele sair renascida. Mergulho com meu ceticismo e descrença e levanto com os cabelos mais compridos. Nesse dia me permito a contradição e o alívio da fé. Pulo as sete ondas e me lembro que, apesar do meu ateísmo, sou filha de Iemanjá. 

66 – E saiu meu NIE

O documento de identidade para estrangeiros aqui na Espanha se chama NIE. O meu, finalmente saiu. Após oito meses de espera, nem posso dizer que foi um parto prematuro, pois nada que sugira antecipação é adequado. Não é que estivesse ilegal no país, enquanto você está no processo e cumprindo todos os passos, pode continuar morando legalmente. Mas você só sente que a coisa toda funcionou quando tem sua carteirinha de identidade. 

Esse processo de nova documentação é uma coisa muito estranha. No Brasil, tenho carteira de identidade desde os doze anos de idade. Antes disso, já tinha as carteirinhas de estudante do colégio. Ou seja, desde que me entendo por gente, sempre tive documento. Entretanto, nunca percebi sua importância até que passei a ser uma “imigrante”. 

Começa com o termo “imigrante”. Soa como algo alienígena, como se o planeta terra não fosse único. O termo nos EUA, inclusive, é “alien”. É como se todo seu passado fosse nada de repente e você só voltasse a ser humano quando seus documentos locais estiverem na sua mão, fisicamente falando. Daí um dia esse documento chega e você percebe que é exatamente a mesma pessoa. O céu não abre, não tocam trombetas nem há uma banda na sua porta para te receber. É só parte do procedimento. Resulta que a carteira de identidade é só a carteira, não a identidade. 

Não aparece no meu documento que fui convidada a vir, que pagava minhas contas ou que sou honesta. Muito menos fez alguma diferença no meu sotaque. É só um pedaço de plástico com minha foto. Alías uma foto que nem parece mais comigo de tanto que demorou a sair. 

E a pergunta nesse momento é, deveria voltar? Quero voltar? Por que não volto? E a dura verdade é que tenho sérias dúvidas se quando voltar, e se voltar a morar no meu país, me sentirei brasileira. 

Não é uma reclamação, a escolha foi minha. Sou do tipo tubarão, se parar morro e sei disso. É só o preço que se paga e não é baixo. Não estou triste nem só, acho que é apenas o inverno. Talvez por isso goste tanto da primavera. 

No dia em que busquei meu documento, uma figura me chamou atenção por duas vezes. A primeira vez, quando em algum momento olhei para ver quem era o primeiro da fila. Era um homem negro, muito alto, com um rosto tão bem traçado que parecia um desenho animado. Ele devia estar morto de frio, porque começou a enrolar seu cachecol em volta da cabeça até que só os olhos ficaram de fora. Fez isso com uma habilidade de quem está acostumado a fazê-lo para se proteger do sol, como um tuareg. Fiquei pensando, talvez seja outra criatura dos trópicos, como eu, tentando se habituar com o frio. Esqueci, mas alguns minutos mais tarde, o vi saindo com seu documento na mão. O lenço não estava mais no rosto e, olhando seu NIE, abriu um sorriso tão largo que quase me fez valer à pena a hora perdida na espera da fila. Era o sorriso que havia planejado dar e não dei. Acho que ele é mais sábio que eu.

68 – O Natal e as coincidências

Passamos o Natal em Madri, aqui em casa mesmo. Jantaram conosco um casal de amigos muito queridos e seu filho. Foi surpreendentemente bom, pois não digo que não bateu uma saudade, mas depois da ceia, fomos para internet e vi pela câmera uma parte da minha família em uma festa que me pareceu animadíssima. 

Meus pais e meu irmão foram passar o Natal em Belo Horizonte, a maioria da família por parte do meu pai está lá. Na casa da minha tia, meu primo instalou uma webcam e pudemos fazer um encontro virtual. Além dos meus pais e meu irmão, vi meu avô, meus tios e primos, com direito ao fundo musical do meu tio tocando carinhoso e a aparição da mais nova priminha que nasceu quando eu já estava fora do Brasil, uma fofa! Viva a tecnologia! 

Também falamos por telefone com a parte da família do Luiz. Pena que não foi com o video, pois a imagem é sempre muito forte, mas também foi bem gostoso. É sempre bom saber que quem a gente gosta está bem e bem acompanhado. 

Aqui em casa, fiz o tradicional lombo de porco, recheado de damasco e pêssego, coberto por uma camada de presunto cru. Minha amiga trouxe o peru e uma cheese cake deliciosa. E claro, havia os básicos arroz branco, bem refogado, e uma farofinha na manteiga e alho. Acompanhados da sequência campeã de cava, vinho tinto português e um vinho de sobremesa catalão. 

De presentes, ganhei um tambor do Luiz e dei uma bota de esquiar para ele. O Jack, nosso famoso gato, ganhou uma poção extra de patê, além do direito a permanecer na festa. Nossos amigos, conhecendo nossa fama de gulosos, nos deram uma lata de biscoitos amanteigados dinamarqueses. 

E agora que contei o Natal, vamos às coincidências. Nós fomos padrinhos de casamento desses amigos, há uns cinco anos atrás, no Brasil. Nessa época, todos nós morávamos em São Paulo. Depois disso, eles foram para Suécia e nós para os Estados Unidos. Esse ano, mudamos juntos para Madri, por caminhos e motivos diferentes, quase no mesmo mês! 

Achou pouco? Então, conto mais uma. Uns dois dias antes do Natal, recebi um presente muito bacana, fui aceita na pós-graduação da Universidade Complutense, no curso de Teoria e Prática em Arte Contemporânea. Na verdade, fui aceita junto com uma amiga brasileira que preciso voltar no tempo para contar a história. Na minha época de colégio, estudava em Brasília e com uns doze anos conheci essa amiga. Depois disso, o mundo deu muitas voltas, mudei várias vezes, nos encontramos e desencontramos pela vida. No ano passado, morando em Atlanta, um dos meus passatempos era buscar amigos perdidos pela internet. Acabei achando essa amiga e fiz contato. Ela respondeu e descobri que sua irmã morava em Madri, cidade para onde já sabia que me mudaria. No início desse ano, quando morava aqui, ela veio visitar sua irmã e nos reencontramos. Curiosamente, tínhamos muitos pontos em comum e um interesse na mesma área, artes. Daí começamos a buscar cursos para fazer e tal. Encurtando a história, vinte e quatro anos depois, estudaremos juntas outra vez, agora aqui em Madri! 

Continuando, essa não é exatamente uma coincidência, mas um capricho do destino. Morando nos Estados Unidos, conhecemos um amigo americano que estava em plena crise existencial, tentando mudar sua vida radicalmente. Essa história é bem longa, mas também encurtando um pouco, com nossa vinda para a Espanha ele ficou muito inspirado e achou que poderia ser a mudança que ele tanto desejava. Nos visitou como hóspede, há alguns meses atrás e esse mês veio com a esposa para que ela também conhecesse a cidade. Pois não é que também estão tentando se mudar para cá! 

Será que Madri está na moda? 

No dia 26 de dezembro, chega um casal de amigos para passar o reveillon conosco. Ela é brasileira, a conheci no Rio de Janeiro, quando ainda solteiras morávamos lá. Ela foi nossa madrinha de casamento. Depois disso, conheceu seu marido alemão em Nova York e foram morar em Munique. Agora, moramos todos na Europa. Não chega a ser a mesma cidade, mas acho que pode entrar para o grupo de coincidências. 

Enfim, voltando às festas, foi um feliz Natal. Agora é esperar a virada do ano, mas essa é uma outra história… 

69 – Os Idiomas dentro da Espanha

Quando te perguntam que idioma se fala na Espanha, qual é a resposta mais óbvia? Espanhol, claro! Certo? Médio. 

O castellano é apenas uma das quatro línguas que se fala na Espanha. Isso sem falar dos sotaques, que às vezes soam como dialetos de tão distintos! 

Vamos por partes, ao noroeste, acima de portugal, há uma região chamada Galícia, onde se fala gallego. É quase um misto de castellano com português. Inclusive, olha que legal, se você fala “portunhol” e não quer admitir, diga que fala gallego. Muito parecido! 

Ao norte, temos a região Basca, onde se fala euskara. Nem se parece com espanhol! Francamente, não entendo chongas ao cubo! 

Pelo leste, que inclui Barcelona e Valência, se fala  catalão. Quer dizer, em Valência, eles dizem que falam valenciano, mas para mim e boa parte dos espanhóis é a mesma coisa. Esse dá para entender, se falado devagar. Algumas palavras lembram o português do Brasil, sem o cantado de Portugal. 

E no resto, que inclui Madri, se fala o castellano, conhecido mundialmente como espanhol.  

Entretanto, em algumas regiões ao sul, o sotaque é tão marcado que parece mudar a língua. Por exemplo, a palavra “escucha” (escuta), soa como “úushaa”. A palavra “quitado”(tirado), soa como “quitao”. Eles engolem “d”, “s” e sabe-se lá mais o que! 

Sabendo disso, não parece incrível que no Brasil, com esse tamanho todo, a gente ainda consiga falar a mesma língua! 

70 – O parque do Retiro e seus tambores

Moro perto do parque do Retiro. É como um “central park” de Madri. Grande, democrático, agradável e bem conservado. Ali você pode praticar sua corridinha diária (a sua, porque eu não corro nada!), sentar pela grama se o tempo favorecer, visitar os centros culturais com exposições interessantes, andar de pedalinho ou barquinhos a remo, namorar, brincar com os filhos, enfim, várias opções para o dia! 

Uma coisa me chamou atenção logo na primeira vez que fui lá, um som de tambores. A medida que chegamos perto do laguinho, esse som vai aumentando e o sigo hipnotizada até encontrá-lo. Em frente ao lago, há um tipo de monumento, formado por uma construção de colunas em semi-círculo. Nesse local, principalmente aos domingos, se encontram muitos jovens com tambores e iniciam uma batucada que me soa como um mantra tribal. Nem sei se eles se conhecem ou vão chegando e se agrupando, são muitos. Não há um ensaio nem uma música específica, o som parece que vem de dentro, como se buscasse uma origem há muito tempo atrás. E não é que fica bom? 

Daí, outras pessoas vão se agrupando em volta, algumas começam a dançar e outras simplesmente se sentam pelas escadas e aproveitam o sol. Assim como eles, é ali que também tenho vontade de ficar. É engraçado essa coisa do ser humano gostar de se agrupar. Por que a gente faz isso? Parece um instinto de sobrevivência que fala mais alto até quando não corremos risco nenhum. 

Quando Luiz me perguntou o que queria de Natal, não tive dúvidas: um tambor! Ganhei um, chamado Djembe, sua origem é o oeste africano (Mali, Guinea, Senegal) . Era utilizado para cerimônias, rituais de passagem, adorações ancestrais, rituais guerreiros e danças. Importa que é um tambor e há anos quero um. Agora, normalmente depois do café da manhã, sempre batuco um pouco, de mansinho para os vizinhos não reclamarem. Será que na primavera tomo coragem de levar meu tambor para passear no parque do Retiro? 

71 – A Festa de Ano Novo

Conforme prometido anteriormente, agora conto a super festa de Ano Novo. Foi dividida em duas etapas, a primeira aqui em casa, onde jantamos e brindamos com os amigos. A segunda, depois da meia-noite, quando fomos a um clube para celebrar dançando até cansar. 

Na primeira etapa em casa, estávamos em 14 adultos e 2 crianças. Como de costume, a boa e velha torre de babel: brasileiros, alemão, ítalo-argentinos e mexicanas. Algumas vezes era uma confusão de idiomas, mas gente boa se entende em qualquer língua. 

Porque não começar contando sobre as comidinhas? Fora os aperitivos, fiz saladas (verde, de batatas e de cogumelos), arroz branco, farofa com bacon e manteiga, um lombo de porco, uma carne de boi assada e…tcham, tcham, tcham, tcham… um tender! Aqui em Madri não existe tender de jeito nenhum, mas minha amiga brasileira que mora na Alemanha trouxe um de lá! Foi um sucesso! Ai, que vontade que estava de comer tender! A outra amiga brasileira que mora em Madri fez as lentilhas, adorei porque tinha me esquecido e, no dia mundial da superstição, sempre é bom dar uma forcinha para sorte. 

As sobremesas, não fiz nenhuma, nossos amigos trouxeram um pudim de leite brasileiríssimo, um pudim light (que, preconceituosamente, só provei no dia seguinte e estava ótimo!), uma torta de sorvete, um panetone italiano coberto de chocolate, bombons e a também brasileiríssima combinação de goiabada com queijo. 

O amigo que trouxe os pudins, de quebra nos trouxe de presente uma carne seca, paio, cachaça e café brasileiro. Olha que máximo! Desconfio que minha fama de gulosa está se espalhando rapidamente pelo mundo! 

Dei uma mancada corrigida pelos nossos amigos. Achei que havia quatro garrafas de cava na geladeira e tinham duas. Como a geladeira estava abarrotada de comida, só percebi isso uns 15 minutos antes das pessoas começarem a chegar e gelei! Como faríamos o brinde? Quer dizer, dava para dividir, mas ia ficar pouco e é chato, né? Pois até nisso a noite conspirou a nosso favor. Três dos nossos amigos trouxeram garrafas de champagne e ainda por cima da mesma marca, Moet Chandon! Parece até que tinham combinado! Se sorte já é bem vinda, imagina sorte acompanhada de classe! 

A maioria das pessoas tomou vinho. Eu, fui direto para o single malt, porque sabia que a noite seria longa e estava animadíssima! Claro que na hora do brinde, fui para o champagne, como não? 

Aliás, gente, mas que brinde estressante! Ocorreu que havia tradições e superstições diferentes dos países dos convidados e daqui, e eu queria cumprir todas! Na Alemanha, a gente precisa brindar olhando nos olhos de cada pessoa, caso contrário, são sete anos de vida sexual ruim. Na Espanha, a gente come doze uvas durante as doze badaladas finais do ano. No Brasil, gosto de entrar o ano com o pé direito, portanto levanto o esquerdo. E o brinde de champagne acho que é universal. Isso quer dizer que, quase rompendo à meia-noite, com o rádio ligado para noticiar as badaladas e todos os amigos reunidos, estava eu como uma alucinada saci-pererê pulando de um pé só, quase entalando para comer doze uvas no último minuto e tendo que brindar com todos os convidados olhando nos olhos! Caramba, é muita informação ao mesmo tempo! Sobrevivi ao brinde sem me engasgar com as uvas, sem me estabacar no chão e garantindo os próximos sete anos de boa vida conjugal! Ufa! 

Depois disso, fomos para janela ver o movimento. No prédio da frente, havia outra festa que parecia bem animada. Ficamos nos falando e brindando pela janela. Até que na rua vimos umas quatro pessoas correndo e morrendo de rir com umas malas pelo quarteirão. É uma outra superstição, acho que sul americana, para quem quer viajar durante o ano. Alguns minutos depois, elas voltaram correndo novamente e entraram no mesmo prédio da festa da frente, não sei se estavam juntos, mas nós e a festa da frente ficamos na maior bagunça da janela rindo de tudo.  

Por mim, a noite de reveillon já tinha valido por aí, se soubesse que as pessoas estariam com o astral tão alto e me divertiria tanto em casa mesmo, acho que nem teria proposto continuar a festa pela rua. Mas nossos ingressos estavam comprados, então partimos para a segunda etapa. 

Não fomos todos para o mesmo local, nesse momento nos dividimos. Alguns foram para casa, alguns foram para o Lolita Lounge, um foi trabalhar e eu, Luiz e nosso casal de hóspedes fomos para a Kapital 

A Kapital é uma boite de sete andares, com ambientes diferentes em cada andar. Nos foi recomendada por madrileños como um dos melhores pontos para ir no reveillon. O lugar realmente estava animado e super cheio. É verdade que no início, quando tivemos que enfrentar uma fila enorme para guardar os casacos e pegar as bebidas, cheguei a desanimar um pouco e achar que havíamos entrado em uma tremenda roubada. Entretanto, logo depois começamos a dançar e relaxei. 

Adoro dançar! É um momento quando me desligo de quase tudo e aproveito. Aparentemente, havia gente que se desligava muito mais que eu. Foi impossível não notar e não me divertir observando outras pessoas dançarem. O lugar tem a forma de um teatro, talvez até fosse um antigo teatro, ou seja, há um palco onde costumam haver performances durante a noite. Quando não há ninguém se apresentando, os próprios frequentadores do lugar sobem no palco e dão seus espetáculos particulares ou em grupo. Francamente, são muito melhores e mais engraçados que os profissionais! Como tem gente cara-de-pau! Lógico que também tem os alcoolizados, mas faz parte da festa. O bom é que não vi nenhuma briga. 

Por algum motivo que ainda não descobri, mas vou investigar, muita gente se veste como se fosse a um baile de formatura. Os homens usam terno, colete e gravata e as mulheres usam vestidos de festa. Os vestidos, para o meu gosto, são muito cafonas. Algumas usam até luva! Isso misturado às fantasias de fim de ano é uma salada completa! Sim, porque aqui eles se fantasiam um pouco nessas festas, usam perucas, chapéus, máscaras etc.

Além do que, a festa era completamente informal, como um carnaval, e as pessoas estavam se acabando de dançar de paletó e gravata! Era um pouco contraditório, mas não deixava de ser divertido.  

Pouco depois das 5 da manhã, me compadeci do Luiz e dos nossos amigos e perguntei se eles já queriam ir, assim evitaríamos outra fila para pegar os casacos. Demos muita sorte ao sair, pois achamos um taxi quase na porta e voltamos para casa. Chegando no apartamento, fui tomar meu primeiro banho do ano. Lavei meu cabelo que cheirava a cinzeiro e, pelo sim e pelo não, improvisei as sete ondas puladas na banheira mesmo.  

Aliás, esqueci de contar essa parte da noite que também foi muito boa. Um pouco antes dos meus convidados chegarem, fui para internet falar com minha família, novamente utilizando a webcam e vendo como estava a festa por lá. Claro que na casa dos meus pais havia uma grande festa! Eles moram bem de frente para a praia no Rio de Janeiro e no reveillon é como assistir aos fogos de camarote. Falei com meus pais, primos e quem passasse pela frente da câmera. Normalmente, no último dia do ano faço uma retrospectiva mental do que passou e priorizo, por alto, alguns objetivos. Esse ano não fiz isso. Nenhum motivo específico, acho que estava ocupada ou pensando em outras coisas. Mas fui puxada à realidade com uma pergunta feita pela minha mãe. Conversando com eles, pedi um representante brasileiro para pular as sete ondas para mim na praia. Minha prima, gentilmente, se ofereceu e perguntou o que ela deveria pedir. Minha mãe me repetiu a pergunta, o que você quer pedir? Me pegou de surpresa, não conseguia pensar em nenhum desejo único e forte. Sabe de uma coisa? Não precisa pedir nada, só agradecer. Do resto, a vida sozinha se encarrega, só precisamos aceitar o convite. 

72 – The day after

No primeiro dia do ano, surpreendentemente, não acordei tão tarde nem tinha um pingo de ressaca. Estava um pouco cansada, mas feliz com a noite anterior. Ainda não me sentia em 2006, mas fui aos poucos me habituando com a idéia de que o ano havia passado. 

Quando acordei, Luiz já tinha lavado a louça e ainda ganhei um cafezinho na cama. Ai, ai, desse jeito me apaixono! 

Saímos para dar uma volta com o casal de hóspedes que estava em casa. Fomos andar no teleférico que fica no “Paseo del Pintor Rosales”, bem próximo a estação de Argüelles. O trajeto é relativamente rápido, cerca de 10 minutos, e você pode ter uma ótima vista panorâmica da cidade. Saltamos em “Casa de Campo”, onde há uma espécie de mirante e uma cafeteria que estava fechada. Depois voltamos no próprio teleférico. Foi interessante, pois já conheço bem a cidade e pude reconhecer os principais pontos e monumentos. Além do que, o dia estava lindo e não tão frio. 

Quando voltamos para casa, bateu aquela fome! Daí, fomos ao melhor dos dias seguintes de festas: o enterro dos ossos! Isso para mim é um mistério, por que a comida rotineira no dia seguinte tem gosto de velha e a comida de festa tem gosto melhor? Bom, agora meus convidados vão saber meu segredo, mas escondi um pedaço do tender para comer no dia seguinte. Tá bom, tá bom, sei que é feio, mas juro que foi um pedaço bem pequeno e, afinal de contas, quem parte e reparte e não leva a melhor parte… 

Depois disso, morgamos em casa, veio aquela preguiça boa. Minha amiga queria aprender a pintar com aguada e dei umas dicas para ela, ficamos fazendo nossa arte despretenciosa.  

Nessa noite, nossos hóspedes prepararam o jantar, um curry de sabor exótico. A receita é, basicamente, fritar a pasta de curry com frango, adicionar leite de côco, beringela picada, ervilhas e molho de peixe. Come-se com o arroz basmati, feito só na água e sal. Como ainda nos restava um pouco de farofa da noite anterior e o prato é mais picante do que estou acostumada, Luiz e eu partimos para culinária fusion e comemos o curry junto com a farofinha. Para o desespero do amigo alemão que achou que estávamos estragando a comida. I don’t care! Tenho certeza que os tailandeses só não utilizam a farinha de mandioca porque não a conhecem, pois a combinação é bárbara! De qualquer forma, estava uma delícia e aprendi mais uma receita. 

Conversamos até o sono nos carregar para cama. A primeira segunda-feira do ano já estava ansiosa batendo na porta e querendo entrar. Pela manhã, bem cedo e ainda escuro, nossos amigos voltaram para Alemanha. 

A casa ficou um pouco vazia, mas com um bom astral. Acho que começamos bem esse ano. 

Css.

73 – Hora da Contabilidade

Muito bem, deveria ter feito isso no fim de 2005, mas esqueci. Como estamos no comecinho de 2006, acho que ainda dá tempo de fazer a contabilidade do ano passado.Por uma questão de ordem e registro, vamos contabilizar se o ano valeu ou não a pena. O que foi adicionado à vida em 2005? 

Hóspedes que recebemos: 13

Amigos visitantes, brasileiros ou estrangeiros, que encontramos em Madri, mas não se hospedaram conosco: 11

Amigos que vieram em festas aqui em casa: 29 pessoas, algumas mais de uma vez

Outros amigos que conheci, mas ainda não vieram aqui em casa: 15

Antigos amigos, perdidos pelo tempo, que reencontrei através internet: 61

Alunos e professores do curso de espanhol: 26 pessoas (incluindo 3 amigas já contabilizadas nas festas)

Amigos de Atlanta: Aproximadamente 30 (esses entre 2004 e 2005)

Cidades em que estive: 16, em 5 países

Apartamentos em que morei: 4 (1 em Atlanta e 3 em Madri)

Exposições: 2 (poucas, mas considerando a confusão que foi o ano, não foi tão mal) 

Somando tudo, noves fora, zero. Fechado! Conta redondinha e isso sim é um patrimônio! Caramba, acho que farei esse balanço sempre, ajuda a ver que, mesmo com os problemas e confusões, o ano foi muito bom! Entre mortos e feridos, salvaram-se todos. 

74 – O Banquete

Adoro rituais e adoro comida! Imagine juntar esses dois prazeres. Agora adicione amigos queridos e vinhos perfeitos. O resultado é correr para o abraço! 

Nem sempre tenho a oportunidade de fazer um jantar com todas as suas etapas, um banquete. Mas isso é bom, porque quando faço tem um ar de acontecimento. Normalmente, inicia com um vinho enfurecido comprado pelo Luiz, o que faz minha imaginação lembrar de mil sabores e tento selecionar qual seria o adequado para aquele vinho. Chego a ficar nervosa, ansiosa, mas é gostoso. Daí, precisamos esperar a ocasião certa, pois não se pode desperdiçar um momento assim impunemente. 

Há pouco tempo, tivemos essa oportunidade. Fiz o jantar para Luiz e um casal de amigos. 

O amouse-bouche foi um fois gras fresco, acompanhado de uma geléia de morango e goiaba. Servido com um Tokaji Oremus. O Tokaji é um vinho húngaro de sobremesa, mas fica delicioso com o fois gras e, nesse caso, vale à pena quebrar o protocolo e serví-lo no início. Também combinaria muito bem com um Sauternes. 

A entrada foi um salmão defumado com molho de mel, limão, shoyo e um toque leve de gengibre, acompanhado de ovos duros recheados com caviar. Esses ovos são feitos da seguinte forma, cozinhá-los de maneira que a clara fique firme, mas a gema não fique totalmente cozida. Cortar os ovos ao comprido, retirar a gema, esmagá-la com um garfo e adicionar manteiga, creme de leite e um pouco de sal. Rechear as claras novamente com esse creme e colocar uma noz de caviar sobre o recheio de gema. Tomamos com uma cava Segura Viudas gelada como deve ser, também poderia ser uma champagne. É que, como começamos com um vinho de sobremesa, convém reiniciar o caminho com um branco ou um espumante. 

O prato principal foi um pato crocante com molho de vinho, ameixas e ervas, acompanhado de dois tipos de cogumelos cozidos na manteiga e com um toque ligeiro de Porto. O vinho foi o campeão da noite, um bordeaux grand cru classé Château de Fieuzal 93, tratado com o ritual completo e no ponto perfeito para ser tomado. Todo o cardápio foi montado ao redor dele. 

De sobremesa, queijos e retomamos ao Tokaji, agora com outro sabor. Pessoalmente, gosto muito desse vinho com roquefort e camembert. 

Jantares assim me fazem sentir uma pessoa privilegiada por conhecer e desfrutar sabores. Por isso, quando tenho a oportunidade, adoro compartilhar esses momentos, cozinhar para as pessoas e oferecer a comida. Quanto mais as pessoas saiam da mesa se sentindo especiais como reis e rainhas, maior é minha satisfação. É minha linguagem favorita, uma maneira de me comunicar sem deixar margem para erros de interpretação. A comida é essencial, necessária para vida. Quando tenho a responsabilidade de oferecer um pouco dessa vida, que seja cheia de prazer! 

75 – O presunto tender e a lei de Murphy

Preciso parar de falar em comida, até porque tenho que iniciar uma dieta urgente! Essa é a única parte chata das festas de fim de ano: a dieta do início do ano! ¡Joder, tío que fuerte! 

Bom, então só vou contar uma última historinha que ilustra a velha lei de Murphy. Passei semanas catando o diabo do tender para as festas e não achava em canto nenhum. Por sorte, como já contei, uma amiga trouxe da Alemanha e não ficamos tão aguados. 

Pois muito bem, poucos dias após o Ano Novo, fomos com um casal de amigos ao Ikea. O Ikea é uma cadeia sueca de lojas que vendem tudo para casa, um tipo de Tok&Stok. Devido a sua nacionalidade, próximo à saída, eles possuem uma lojinha que vende vários produtos gastronômicos suecos. Na suécia, eles também comem o tender nas festas de fim de ano. Já deu para adivinhar o resto, né? Tinha um freezer inteiro de tenderes! 

Pelo sim e pelo não, comprei logo dois e congelei. Não sei se eles só vendem no fim do ano. Mas agora, ao menos sei onde encontrar o raio do tender: em uma loja de móveis, claro! Super lógico! 

76 – A Lei Antitabagista

No início de 2006, entrou em vigor uma lei super-hiper-polêmica que regula a comercialização e o consumo de fumo no país. 

O cigarro mata cerca de 50 mil pessoas na Espanha por ano. Mas claro, como todo viciado, é difícil enxergar o mal que faz a si mesmo e aos demais. Portanto, isso vem causando uma série de debates acalorados que, para quem já está muito mais avançado nessa discussão, chega a ser cômico. 

Na rua escuto absurdos, como pessoas dizendo que casais vão se separar porque se um dos dois não for fumante não terão mais lugares para ir juntos; que isso é coisa para o governo arrecadar mais impostos (como se a venda de cigarro não tivesse nenhum imposto); que todo comércio vai falir; que é só o início para o gorverno tirar a liberdade das pessoas etc. 

Não sou a favor da proibição do fumo, por menos que goste dele, mas acredito na sua utilização de maneira civilizada e respeitando o nariz alheio. Nada como o bom senso de ambas as partes. 

A lei não é tão rígida como fazem acreditar os fumantes, na verdade é até bem branda. Proíbe o fumo em locais de trabalho, quando não for ao ar livre. Em relação a bares e restaurantes, nos menores que 92 m2, o estabelecimento pode eleger se permitirá ou não o fumo, e a maioria quase absoluta optou por permitir. Nos locais maiores que 92 m2, pode haver uma área de fumantes, desde que seja separada e não ocupe mais que 30% do espaço total. Nas escolas e faculdades está proibido fumar nas salas de aula. Nos aeroportos há espaços separados para os fumantes. Convenhamos, muito razoável! 

Ainda é cedo para saber o quanto trará de resultado, o quanto as pessoas realmente respeitarão a lei, mas ao menos é um começo e meus pulmões agradecem. 

77 – Manual de sobrevivência nos bares madrileños para não parecer um turista mané

Vamos, lá! Já contei sobre vários bares madrileños, mas acho que não custa nada dar uma aulinha prática de como se comportar neles, certo? Quer dizer, estou segura que todos sabem se comportar em um bar, mas há diferenças culturais, às vezes muito sutis, nos bares pelo mundo afora. E vamos falar a verdade, ninguém gosta de parecer turista! Muito menos turista mané! Estrangeiro, tudo bem, mas guiri perdido, nunca! 

Começando pelo convite, se alguém te chamar para salir de copas, não tem nada a ver com jogos! É sair para beber mesmo. Outra coisinha, sair para beber não é sair para encher a cara, é só para tomar um vinho ou uma cerveja, socialmente. Quer dizer, você pode encher a cara, se quiser, mas vai pagar mico, porque de maneira geral, o espanhol sabe beber. Não estou dizendo que não hajam borrachos, o que aqui significa bêbados, mas não é tão comum. 

Quando chegar ao balcão do bar, não espere que o barman se abra em sorrisos, afinal de contas, ele está trabalhando enquanto você se diverte. Isso não quer dizer que ele não possa ser educado ou gentil, mas provavelmente dependerá de como você se comporte com ele ou ela.  

Fundamental: seja objetivo! Os bares e restaurantes aqui tem sempre muito pouca gente atendendo, quando não é um único garçon ou garçonete. Portanto, se você enrolar muito, eles vão te ignorar. Não é má vontade ou implicância, se você for espanhol e não for objetivo, eles também farão exatamente a mesma coisa. Afinal de contas, se você foi a um bar, que tantas decisões complicadas você pode ter que tomar? Viu? Esse é o pensamento espanhol!  

Falando nisso, é uma boa coisa para ser lembrada. Não espere que a gentileza espanhola seja como a brasileira. Não é à toa que o brasileiro tem fama de amável e simpático por todo o mundo. As diferenças culturais devem ser entendidas e respeitadas. O espanhol médio não é tão sorridente nem tão aberto. Não é nada pessoal contra você, eles são assim. Não se aborreça sem motivo, eles nem vão entender porque você se aborreceu se eles não fizeram nada! 

Bom, voltando a nossa lição, a primeira decisão que você já deve ter clara é se quer ir para a barra (balcão), ou para as mesas. Normalmente, você deve esperar que um garçon ou maitre defina sua mesa. Ou seja, se você quer ir para a barra, não precisa pedir a ninguém, simplesmente se encaixe em um espaço livre, mas se quer ir para mesa, peça a alguém responsável. Um “hola, buenas noches” é sempre bem vindo, mas não estique a conversa muito mais que isso. Lembre-se da primeira lição: objetividade! Mesa para dos, ¡por favor! 

Caso você vá para mesa, a garçonete, ou como se diz aqui camarera, pode te perguntar se é para comer ou tapear. Fique tranqüilo, ela não acha que você quer enganar ninguém. Tapear vem das tapas, os aperitivos em espanhol.  

Há uma infinidade de tapas, mas os mais tradicionais são: 

  • Tortilla – um tipo de omelete de batata (para quem acompanha o blog, até já expliquei como fazer no capítulo XXI)
  • Jamón – será que ainda preciso explicar? É o presunto cru espanhol, melhor que seja ibérico de bellota.
  • Croquetas – croquetes, normalmente de jamón ou pollo (frango). Convém lembrar que podem te perguntar, em alguns casos, se você quer unidade ou ración. Não se preocupe, ninguém acha que você é cachorro, raciones são poções.
  • Huevos rotos – a tradução literal seria ovos mexidos ou quebrados, mas na prática, além dos ovos, também acompanha batatas fritas no azeite e, às vezes, pedacinhos de jamón curado.
  • Chorizos – lingüiças um pouco picantes, temperadas com pimentões vermelhos. Elas são avermelhadas, aliás, quase todo embutido (lingüiça)  aqui é avermelhado pelos pimientos (pimentões)
  • Chistorras – linguicinhas parecidas com os chorizos, mas menores
  • Callos – bucho de boi, ou tripas. Acho gostoso, mas tem que ser iniciado
  • Patatas bravas – batatas apimentadas, mas não é terrivelmente picante. Novamente, a picância, nesse caso, vem dos pimentões.
  • Patatas ou Gambas ali-oli – batatas ou camarões ao alho e óleo. Acontece que o alho e óleo aqui se parece a uma maionese com sabor de alho. A propósito, gambas são os nossos camarões menores.
  • Gambas al ajillo – são camarõezinhos feitos em um potinho de barro com azeite quente e alho. O camarão meio que frita, meio que se cozinha ao vapor. É uma delícia!
  • Chipirones a la plancha – digamos que se pareça a atual situação política brasileira: lulinha na chapa.
  • Boquerones – são peixinhos marinados em azeite.
  • Sopa de ajo ou sopa castellana –Não tem o gosto tão forte do alho, pode tomar tranqüilo. Além disso, costuma ser servida com um ovo pochet.
  • Caldo – como o nome indica, é um caldo, um brodo. Normalmente é de cozido ou de jamón. Os restaurantes que servem cozido no almoço, servem o caldo do cozido no jantar. O caldo de jamón é feito com o osso da perna do porco, quando o jamón acaba, ou seja, eles aproveitam tudo, até os ossos!
  • Paella – alguns restaurantes ou bares, servem um pratinho de paella como aperitivo.
  • Empanadas – é um tipo de pastelão de forno. Podem ser como as empanadas sul americanas também, mas normalmente são servidas em fatias e não unidades. Uma muito apreciada é a empanada de bonito (um peixe).
  • Azeitunas – é comum serem oferecidas como cortesia e, para quem gosta de azeitonas, as espanholas são fabulosas.

 Acredito que, com a lista acima, você possa se defender muito bem. Outra coisa muito comum, são as torradas. Na verdade, costumam ser chamadas de tostas ou pinchos. As tostas costumam ser uns torradões e os pinchos são um pouco menores. O que vem por cima, depende da criatividade do bar. Há os bocadillos, que normalmente são sanduichinhos para tira-gosto. 

Uma curiosidade muito interessante, no passado, um rei (que nunca sei qual foi) achou que as pessoas estavam se embebedando demais e pôs em vigor uma lei obrigando a que toda bebida alcoólica vendida  fosse, necessariamente, acompanhada de algo que comer. Obviamente, essa lei não existe mais, entretanto, a tradição ficou. Sempre que você pede alguma bebida alcoólica, a casa te oferece um pequeno aperitivo, como batatas chips, azeitonas, pedaço de tortilla, boquerones etc. 

Um detalhe que expliquei uma vez, é comum os madrilenos jogarem seus lixinhos no chão do bar. O chão do balcão, e às vezes das mesas, fica sempre cercado de guardanapos usados, palitos, cascas de semente de girassol, entre otras cositas. Sei lá, você pode fazer isso sem ser mal visto, na verdade, até te dará um ar local, mas ainda acho meio esquisito. Deixo claro que estou falando de lugares informais, nos restaurantes mais elegantes isso não acontece. Agora vamos às bebidas! Você pode pedir uma cerveza, eles te entenderão, mas de cara já saberão que é turista. Peça uma caña ou cañita e você já começou bem! Pode ser que ele te pergunte se você a quer “clara”, nesse caso, não significa a cerveja clara e sim uma combinação esdrúxula de cerveja com refrigerante! Arg! Negue até a morte! 

O vinho, se você quiser em taça, peça una copa de vino tinto/blanco. Podem te perguntar qual e, nesse caso, como você pediu em copo, não quer dizer a marca, mas a região. Ou seja, normalmente, se for tinto é rioja ou ribera, e se for branco, aconselho um rueda. O vinho da casa costuma ser muito razoável, pode pedir sem susto, mas também sem grandes compromissos. Caso seja mais exigente, peça a carta de vinhos. Eles não costumam ser muito exploradores, nem cobram uma margem de lucro muito alta por garrafa. Não é impossível, mas dificilmente alguém pede a carta de vinhos se estiver na barra, isso é mais comum na mesa. 

O espumante espanhol é a cava, aliás, el cava, porque aqui é uma palavra masculina. Além da garrafa ou ½ garrafa, pode ser pedida em copa ou benjamin. A segunda opção é uma garrafinha pequena que serve uma taça.  

A caipirinha vem alcançando uma popularidade inesperada, pelo menos para mim. Ainda não é encontrada em todos os bares, mas os que a fazem, anunciam isso em pequenos cartazes como uma vantagem adicional!  

Bom, eles também fazem uma série de drinks que me recuso a explicar porque acho uma bosta! É uma mistureba de refrigerantes e energéticos que estou fora! Se quiser, pode tentar, mas não me comprometa! 

Uma última explicação, caso você esteja na mesa e não na barra, há um tipo de ritual de atendimento que não deve ser quebrado. Primeiro, como já antecipei, porque vão te ignorar. Segundo, a gente não combinou que não era para parecer turista mané? Então, preste atenção que explicarei com toda a beleza e graça, de uma maneira muito espanhola.  

Espere a garçonete vir até você, ela vai te dar os cardápios e perguntar o que você quer beber. A não ser que você queira um vinho específico e precise olhar a carta, seu único pretexto razoável,  peça a porra da bebida nesse momento, ok? Como você não sabe o que quer beber? É caña, vino ou água, cacete! Vai ser o que? Suco de cupuaçu com granola? 

Muito bem, nesse momento ela anotará suas bebidas e deixará o cardápio para você decidir o que quer comer. Não adianta pedir a comida junto com a bebida, você estará atrapalhando o ritual. Peça a merda da bebida e leia a porcaria do cardápio. 

Daí ela chegará com suas bebidas e aí sim você poderá pedir o que quer comer. É permitido fazer algumas perguntas, tudo bem, mas você não já leu a lista que acabei de te passar? Então, que tanto você tem que perguntar? Pede logo a comida e não enche o saco! 

A partir desse momento, como você seguiu todos os passos corretamente, a garçonete já passará a tratá-lo como um ser quase humano. Afinal de contas, você não estará atravancando o serviço dela. Só nesse momento, você pode fazer alguma brincadeirinha.  

Convém lembrar que o senso de humor espanhol também é diferente do brasileiro. Assim como o humor inglês é sutil e o americano bobão, o humor espanhol é meio negro. Eles conhecem seus próprios defeitos e pouco se importam com isso, melhor é fazer piadas irônicas. Aqui não se dá gargalhadas generosas, se dá risadas de canto de boca e olhares expressivos. 

Voltando ao nosso ritual, quando terminar de comer, ela perguntará se você aceita postre (sobremesa) ou café. Não adianta pedir o café e a conta, esquece. Toma a bosta do café e só depois pode pedir a conta. Não vai estragar logo no finalzinho, né? 

Ela vai te perguntar como você quer o café. O nosso café expresso se pede café solo, caso queira com um pouco de leite, peça cortado. Pode ser pedido café con leche, mas nesse caso, provavelmente, virá em um copinho, com um pouco mais de leite. E se você pedir espreso (em espanhol se escreve assim), eles entenderão que é o café curto no estilo italiano. 

E só aí você poderá pedir a conta. É possível que te ofereçam um chupito por cortesia. Não se preocupe, nem se empolgue muito, é só um copinho de licor digestivo. Esse chupito costuma ser oferecido na mesa, mas não na barra. 

Chegada a conta, agora sim é sua vez! Não há uma gorjeta obrigatória na Espanha, na maioria das vezes, você deixa umas moedas arredondando a conta. Muita gente não deixa nada. Isso explica e muito a boa vontade do atendimento recebido. Agora, se é um lugar onde você quer voltar, você foi tratado com educação e gentileza, por que não colaborar? 

Apesar das piadinhas, uma coisa digo, não importa a cultura, cada um elege como quer se comportar. Procuro não destoar do contexto nem fazer papel de boba, mas independente de como seja atendida, sempre sou educada. Até porque, sempre me restará a opção de ser educadamente firme e também de não voltar. Nada pior que perder a classe, mesmo que seja no balcão do boteco. Eles são mal humorados? Talvez às vezes, talvez um pouco, mas talvez seja só uma maneira de falar ou um dia ruim… Importa que saímos muito e, nos lugares que gosto, trato os garçons por seus nomes e com respeito, espero minha vez, deixo gorjeta e jogo lixo no lixo. E um segredinho entre nós, normalmente sou muito bem tratada. 

78 – A perigosíssima mulher-búfala

Iniciada a temporada de inverno, sai de sua toca uma das criaturas mutantes mais perigosas do planeta frio. É a mulher-búfala! 

Sempre vestida com um horrendo e enorme casaco de pele marron-já-foi-sua-época, ela ganha ferozmente as ruas madrileñas. É especializada nas rebajas, promoções com significativos descontos. 

As representantes dessa raça, olhadas de longe, parecem inofensivas senhoras baixinhas, mas só de perto percebemos o perigo que essas massas corporais são capazes de representar. Normalmente são peitudas e, adicionando-se pelo menos quinze centímetros de casaco, não possuem nenhuma sensibilidade ao encostar em você. 

Isso me faz pensar, por que os policiais utilizam coletes à prova de bala? Deveriam usar esse casaco de pele marron. Além de ser mais eficaz contra a munição, o meliante que olhar para um policial assim vestido cairá indefeso no chão com um ataque de riso súbito! 

Enfim, essa couraça protetora utilizada pela mulher-búfala, faz com que ela seja o ser mais inconveniente a ser colocado atrás de você em um fila. E acredite, tudo aqui tem fila! Trata-se de uma estratégia malévola para que você ceda seu lugar para ela. É dificílimo aguentar a esse trator de neve na sua retaguarda, mas resista! Lembre-se da outra fila incomensurável que você já encarou no provador antes de estar ali, na fila de pagar a conta. Mais do que isso, lembre-se que se ela pagar antes de você, rapidamente se transformará em uma mulher-búfala-rolha, cheia de sacolas de compras, entalada na porta de saída da loja. Provavelmente, ela seguirá com esse bloqueio na sua frente pelas calçadas até que ela consiga te irritar e te distrair tanto que você certamente pisará em um cocô de cachorro. 

E se você achou ruim quando ela estava atrás de você, cuidado! Fica pior quando ela vem na sua direção. De nenhuma maneira a olhe nos olhos! Isso é muito perigoso, pois elas sempre usam uma sombra verde ou azul, cuja cafonice extrema pode provocar danos em sua retina, além de seqüelas emocionais que podem durar por vários pesadelos. 

Finalmente, o pior de tudo: elas possuem amigas! Não tive essa experiência traumática, mas Luiz uma vez encarou sozinho uma manada inteira de búfalas casacudas na saída do El Corte Inglés! Coitado! Chegou em casa pálido e com o olhar perdido. Sobreviveu, embora nunca mais tenha sido o mesmo… 

Infelizmente, devo dizer que contra elas não há estratégia de ataque, você não tem chance! A única maneira de reagir é defendendo-se. Quando perceber que uma mulher- búfala se aproximará de você, fuja, mas fuja rápido! 

79 – Meu super gato saudável!

Impossível conhecer e não se apaixonar por meu felino etílico, Jack Daniels. Um gato gordo, preguiçoso e feliz! Não é apenas pela sua companhia, mas por sua amizade. 

Não comentei muito a respeito, mas meu gordo chegou em Madri doente. As razões, quem poderia ter certeza? Acredito que se deprimiu com a perda da Buchanan, minha outra gata sua irmã, e aos poucos foi perdendo a alegria e a saúde. 

Quando chegou aqui, recuperou muito de sua vitalidade e voltou a ser um gato ronronante, o que nos foi de grande alívio, mas sua saúde não era a mesma. Sua resistência chegou a baixar tanto que a veterinária acreditou que ele poderia ter leucemia. Hipótese que, felizmente, foi descartada logo em seguida. Parte da opção de não usar sapatos em casa veio daí, queríamos protegê-lo de possíveis viroses da rua. 

Dos meus dois gatos, sempre achei que Jack morreria de velho e no meu colo, Buchanan escolheria sua hora. A gata escolheu e soubemos ler seus sinais. Sofri, mas estava preparada para isso. Só esperava que a parte boa da profecia amadora também estivesse correta e Jack envelhecesse forte.  

Iniciamos uma bateria de exames e um tratamento que se prolongou por alguns meses. Escolhemos medicina natural, homeopatia, e o cuidamos como um gato normal, como se nada estivesse acontecendo. Após nove meses, olha que parto, Jack recebeu alta hoje! Está novamente saudável e continua sendo um gato feliz! 

E eu também.