Aqui, como bom país católico, também se comemora a Semana Santa. O feriado é na quinta e sexta-feira, mas um monte de gente emenda a semana toda. Madri ficou tranquila, havia até lugar para estacionar na rua, impressionante!
Há uma série de procissões, levadas com um profissionalismo que lembra o carnaval brasileiro. Não estou sendo irônica, lembra mesmo. A maneira com que as pessoas se empenham e a forma como é apresentado na TV, com narração explicando toda sequência, lembra muito as alas de escolas de samba. Uma coisa curiosa é que os participantes usam capuzes que parecem os da ku klux klan, não sei o significado, mas é meio bizarro.
Enfim, cheguei a fazer planos para viajar, mas Luiz resistiu um pouco à idéia e acabamos ficando por Madri mesmo. Não foi mal, tivemos bons programas e aproveitei para fazer uma pequena revolução em casa.
Logo no sábado, fomos ao aniversário de uma amiga recente e fizemos novos amigos que renderam outra festa no sábado seguinte. Gente legal, bom papo, comidinhas gostosas e nacionalidades misturadas. Em ambas as casas, música ao vivo. Faz tempo que não vou a festas com voz e violão. Um dos amigos espanhóis ressaltou que todos nós lembrávamos das músicas e suas letras, não havia reparado, me parecia natural, mas na verdade era um grande sinal de memória coletiva, traços de identidade que não percebemos mais ou só percebemos quando estamos fora. Nos conhecíamos pouco, viemos de lugares diferentes e assim mesmo de alguma forma a música nos unia e identificava.
Inevitavelmente surgiu o tema da imigração, o que no fundo se tratava de identidade. Notei com um pouco de surpresa que não tinha o menor interesse em participar da polêmica. Percebi também que algumas das minhas convicções já não andam tão convictas assim, felizmente existiu Raul Seixas para não me deixar pensando que sou a única metamorfose ambulante. Talvez precise exercer meu lado camela e digerir outra vez o assunto. De qualquer forma, uma coisa positiva é que não me emocionou, não me fez sentir raiva, nem medo, nem quase nada. No fim das contas, me chamou a atenção minha sincera indiferença escorpiana à questão.
Falando nisso, dia 06 de abril completou dois anos que chegamos na Espanha. Em breve, iniciaremos nosso processo para tirar a cidadania espanhola. Pensar na trabalheira burocrática que isso gera me dá um pouco de preguiça e impaciência, mas já não me abala, é só a chatice.
Encontramos, por duas vezes, um casal de amigos brasileiros. Uma na casa deles, outra na nossa. Nos sentimos mais próximos e exageramos no teor alcoólico, às vezes é bom para soltar o verbo com menos filtros. Eles passam pelo dilema de continuar ou não no país, há uma proposta fora. Estranho porque queria que ficassem, mas sou incapaz de dizê-lo enfaticamente, sequer sou capaz de torcer por isso. Quem garante que a gente também fique? Quem sou eu para querer que alguém fique? Se tiver que ser, mais um país para conhecer e outra casa para visitar.
Saí da casa deles feliz. Um pouco por ter amigos, um pouco por estar com Luiz e um pouco por que vim viajando no CD emprestado do Ed Motta. Uma música com frases soltas que eu era capaz de conectar e entender perfeitamente… hoje eu quero jantar bem… feijão preto com paio… e agora quem vai admitir… sei que os bancos não vão… a que se estar aqui…
Cheguei em casa ainda muito inquieta para ficar, o que acabou sensibilizando Luiz a ir comigo ao El Junco, mesmo sem tanta vontade assim. E dessa vez fui pensando no Capital Inicial, porque todas as noite são iguais, os meninos satisfeitos, as meninas querem mais… Na saída, um repórter entrevistou Luiz perguntando por jam sessions e disse que sairia no jornal El País de quinta-feira santa. Não levamos tão a sério, mas pelo sim pelo não, compramos o jornal na quinta e lá estava ele, com foto e tudo!
Engraçado, estamos nos tornando um casal multi-mídia! Ilustres desconhecidos, os famosos-quem?
Nem tudo foi farra. Ao completar dois anos de Madri, me dei conta que completava um ano no atual apartamento. Incrivelmente, continuaremos aqui, sem data para sair. Chegamos a questionar se deveríamos procurar outro lar, mas chegamos a conclusão que era muito trabalho simplesmente para trocar de defeitos, com os daqui já me acostumei. Por outro lado, também me dei conta que fazia aniversário algumas soluções de arrumação meio improvisadas. É difícil comprar móveis ou armários quando você não sossega em canto nenhum, precisam ser muito flexíveis. Sempre fui do tipo que prefere ter coisas boas ou não ter, o que com essa vida cigana, atrapalha um pouco. Resolvi relaxar o nível de exigência e tentar facilitar o lado prático.
Fomos ao Ikea, uma loja do tipo da ToK Stok com preços mais acessíveis, onde você compra e monta seus próprios móveis. Na verdade, há tudo para casa, organizadores, luminárias, artigos de cama, mesa e banho etc. Enfim, compramos um armário pequeno para cozinha e uma estante para livros, além de alguns acessórios para ajudar na arrumação. Luiz montou os armários e eu tratei de começar a mudar tudo de lugar.
Daí me baixou os cinco minutos de Maria e também ataquei a bat-caverna. É que há um espaço atrás de uma escada aqui em casa, onde haviam três estantes móveis, que basicamente escondiam todo meu material de trabalho. O problema é que de tão apertado e escuro, parecia mesmo uma caverna. Foi se tornando impossível encontrar alguma coisa naquele buraco negro, além da dificuldade em limpá-lo. Pois tirei tudo, pus tudo abaixo, trouxe duas estantes para fora da cova e, de quebra, ainda desmontei uma das mesas da sala para ganhar mais espaço. Parecia que havia passado um tufão pelo apartamento, juro! Daquele jeito que você tem a impressão que não acabará de arrumar nunca.
Acho que tenho a síndrome de Diógenes às avessas. É muito difícil manter e me apegar às coisas, sinto um alívio impressionante ao me desfazer de lixo ou de objetos e íntens que não vejo grande utilidade. Ou seja, ao acabar o faxinão total, estava morta de cansada e com as costas doendo, mas ao mesmo tempo, me sentindo mais leve e satisfeita. Até o Jack parecia dar sua aprovação, se espalhava pela casa e buscava novos cantinhos de esconderijo.
O engraçado é que toda essa mudança começou porque queria comprar umas plantinhas novas para a varanda, já que a primavera chegou. Por esse motivo saí com Luiz e optei pelo Ikea porque também aproveitaria para comprar umas caixas organizadoras. Só que, na medida que andávamos pelos corredores, foi me ocorrendo que poderíamos comprar as estantes e tal. No fim das contas, compramos tudo para casa, menos as plantas.
E entre festas e arrumações, a semana passou. Ainda faz frio, mas os dias estão mais claros e longos. Tem chovido bastante também. Tenho muita vontade de guardar os casacos de inverno e começar a usar camisetas ao ar livre. Às vezes, até consigo desligar a calefação e abrir as janelas.
Na minha varanda tem um gerânio com um botão de flores doido para abrir. Uma planta um pouco raquítica que resistiu ao inverno como pôde e, mesmo assim, insisti em regá-la e ela insistiu em gerar um botão. Ficamos na janela esperando a primavera vingar para sair.