Nem tudo foi um mar de rosas. Passado o primeiro alívio de ver meu avô vivo e lúcido, minha ficha foi caindo e entendi as reais proporções do problema. Ele estava sofrendo e minha tia também. As pessoas ao redor também, mas acho que o peso maior é entre os dois. Meu avô precisava de mais conforto e independência; minha tia de dividir toda essa responsabilidade e trabalho.
Meu avô está com um problema renal grave e precisou entrar na hemodiálise, três vezes por semana. Quando o visitei, estava realizando o processo pelo pescoço, precisava fazer a cirurgia para colocar a fístula no braço. Isso faz com que ele só tenha uma posição para dormir, o que é bem incômodo. Está inchado e com muita dificuldade para andar. Está também perdendo sangue pelas fezes o que pode ser algo simples ou bem complicado, ainda não temos um diagnóstico. Isso faz com que ele caia em anemia constante e necessite regularmente de transfusão.
Desde que me entendo por gente, ele sempre teve uma certa insônia pela noite, acordava algumas vezes, mas de dia dormia bem. Pois continuou igual, só que agora necessita ajuda para levantar e caminhar, mesmo assim, com muita dificuldade. Ou seja, minha tia precisava levantar durante toda à noite para ajudá-lo e isso a estava deixando exausta.
Durante nossa estadia por lá, tentamos repartir um pouco a tarefa para que ela descansasse, mas a verdade é que ela acabava acordando do mesmo jeito. Os dias eram razoáveis, a rotina era difícil mas possível, quando anoitecia o clima ficava mais difícil e as manhãs cada vez mais sonolentas.
Em uma das noites, acordei com um ruído e corri para o quarto dele, minha tia o segurava pelas costas, mas ele estava caído no chão. Levantá-lo não era tarefa simples, tentamos, mas deu medo dele cair e se machucar e fui chamar meu pai, que veio junto com minha mãe. Enfim, depois de levantado, descobrimos que ele não se machucou, pois foi escorregando com minha tia o apoiando e amortecendo a queda, mas claro que depois desse susto, ninguém podia dormir. A imagem dele derrubado no chão me doeu.
Voltei para o meu quarto meio enjoada e fui ao banheiro lavar o rosto. Na minha cabeça vinha a frase “afasta de mim esse cálice”. E pela primeira vez entendi o que ela significava. Não era meu avô que queria afastar, mas tive que assumir a covardia que não pertence a minha natureza. Logo eu, a que dormia nos hospitais, a que mantinha o sangue frio, a cheia de iniciativa. Escondida no banheiro, tive que confrontar o fato de me sentir aliviada de não ser a minha tia naquele momento, e também tive que enfrentar o medo de imaginar que serei eu um dia.
Pai, afasta de mim esse cálice! Não sei porque veio, mas a frase resoava na minha cabeça, sem nenhuma conotação religiosa, veio seca e dura! E se a fé não mereço e não me cabe, rezei mesmo sem ela. Não sei quanto vale a oração de um ateu para outro, isso não importava. Ajudou a pensar em alguma coisa, a lembrar de alguma coisa e a fazer a noite passar menos devagar.
Na luz do dia, a vida voltava a ficar mais normal. Começamos a avaliar a possibilidade de contratar alguém para dormir com ele e liberar um pouco minha tia. Idéia que não agradava em nada ao meu avô.
Por outro lado, nem tudo foi um mar de lama. Matei a saudade do meu avô e sei que ele gostou de me ver e que eu o visse ainda lúcido. Não foi a única coisa boa. Mesmo sem muito tempo para sentar e conversar, estava com meus pais e meu irmão. Encontrei minha tia, que é muito querida, minha única em primeiro grau. Quando era criança, nas férias normalmente meus pais precisavam viajar com meu irmão, que na época tinha um problema de saúde. Passava na casa dos meus avós, desse que está doente, com minha tia e meus primos. Foram muito presentes na minha infância. Minha prima mais velha é a pessoa mais meiga do planeta inteiro e agora tem uma filhinha tão fofa que quase me deu vontade de ter uma (disse “quase”). Deu tempo de me reconhecer e ensaiar meu nome que saía como “…aaanca”. Meu primo do meio é multitalentos, não há nada que se interesse que não aprenda. É confortante saber que mais alguém no mundo sente que uma vida só é muito pouco. Minha prima mais nova é exótica e teve a sorte de crescer com a atitude de gente livre. Meu tio, com quem não convivi tanto, estava mais próximo e pude descobrir afinidades até então desconhecidas. Encontrei outras pessoas que gosto e quero o bem, essa lista é muito longa.
No fim dessa viagem a Belo Horizonte, não podia dizer que me diverti, mas também não estava exatamente triste. Foi um tipo de felicidade diferente, que não sorri, mas você quer. Fiquei na dúvida se deveria voltar no final de semana seguinte. A verdade é que senti que meus pais também precisavam de mim no Rio, principalmente minha mãe. Decidi acompanhar à distância, por telefone, e só voltar na semana próxima se fosse necessário.
Não voltei. Um dia antes de deixar o Rio, em direção a São Paulo, recebi a notícia inesperada. Meu avô havia melhorado. Fez a cirurgia da fístula no braço, o que em breve o livrará do desconforto daquela porcaria no pescoço e começou a se animar, fazer piadinhas, brincar com a bisneta, pedir comida, dormir melhor… enfim, coisas pequenas que para a gente são muito grandes.
Recebi a notícia com alegria e cautela. Talvez reza de ateu funcione, talvez minha vó esteja alerta, talvez seja só a vida se encarregando de se resolver. Um leão de cada vez e, por hoje, vou comemorar e aceitar desse cálice.