100 – Meu tabu

Tenho quase trinta e oito anos, treze de casada, e há pelo menos vinte afirmo não querer ser mãe. Normalmente, sob olhares desconfiados tentando imaginar qual seria meu problema. Porque claro, isso só poderia ser algum tipo de anomalia.

 

Esse questionamento já me chateou, me aborreceu e, às vezes, francamente chegou a me irritar. Por que é tão difícil entender um “não quero porque não”. Por que precisava explicar? Depois cheguei a uma indiferença cética onde aprendi a fingir que ouvia as mesmices de sempre como se fossem alguma novidade que nunca tivesse pensado a respeito. Que diferença iria fazer, quem não concorda com você dificilmente te ouve e percebi que perdia tempo explicando algo óbvio que entrava por um ouvido e saia pelo outro. Afinal de contas, que raios todo mundo tem a ver com isso? Então, resolvi funcionar como espelho, respeito na mesma proporção em que sou respeitada, é mais fácil. No final, faria o que quisesse mesmo.

 

Meu motivo é muito simples, não sei lidar com uma relação de dependência. Saber que um ser dependerá da minha sanidade e estabilidade é absolutamente assustador. Filhos não são compatíveis ao meu estilo de vida. Simples assim, nenhum mistério, nenhuma aberração. Na minha opinião, é um motivo muito fácil de se entender e altamente válido, mas soa como nada para quem não quer ver.

 

Ouvi algumas vezes que isso é egoísmo da minha parte. E, em seguida, vinha o argumento, e quem iria cuidar de mim quando estivesse velha? Pombas! Eu não querer ter um filho é egoísmo, mas ter um filho para cuidar de mim na velhice é o que? Pois já ouvi absurdos assim e sempre procuro lembrar da minha sábia avó que dizia: melhor ouvir isso que ser surda.

 

Também vinha gente no cantinho me perguntar se havia algum “problema”, com aquela cara de coitadinha, quem sabe buscando alguma confissão secreta, íntima e constrangedora. Será que eu era estéril? Será que meu marido era brocha? Será que sofri abusos na infância? Vamos combinar, se eu realmente tivesse algum desses problemas, o que marcar um “x” vermelho sobre eles me ajudaria? A mim, em nada, esse tipo de explicação só satisfaz a quem escuta, porque o mórbido as pessoas sabem aceitar, o difícil é o diferente.

 

Depois vem as questões paralelas, que não são o motivo, mas o complementam. Tem todo o trabalho, a paciência, o custo, um mundo incerto e blá, blá, blá… Engraçado, porque isso para mim é totalmente secundário, mas é o que as pessoas parecem entender com maior facilidade, concordando ou não.  O fato é que essas outras questões que chamo de paralelas são todas solucionáveis e de uma forma ou de outra, podem ser compensadas com o que uma criança traz de bom. E portanto, nunca foram o meu real motivo, simplesmente o acompanham. É a relação de dependência que me trava e essa não tem solução, ou você aceita ou não.

 

Felizmente, também há muita gente que respeita, para minha sorte, a maioria das que conheço. Perguntam por curiosidade normal ou simplesmente para iniciar um assunto. Esses nunca me incomodaram. Nunca me incomodou falar nisso ou interagir com quem pensasse diferente, e sempre fiquei muito feliz ao receber a notícia de uma gravidez desejada. Eu gosto de criança.

 

O que incomodava não era a dúvida nem a curiosidade, era o julgamento. É a tentativa de te convencer pelo simples fato e prazer de ter razão, de justificar a própria vida e as próprias limitações. E a verdade é que depois de um tempo, nem isso me incomodava mais.

 

O importante é que Luiz pensa igual e, como eu, não depende de uma geração para se completar ou se realizar como pessoa. Muita gente precisa, acho que para a maioria é algo visceral e respeito esse sentimento, simplesmente não o compartilho.

 

Até aí, qual é o problema? Pois nenhum. Só pensava no assunto porque era uma questão que me faziam quase que diariamente. Mas da minha parte, entre quatro paredes, nunca havia saído a pergunta: eu quero ter um filho?

 

O problema começa agora, porque com quase quarenta anos o questionamento não é mais quero ou não quero e sim, será que posso? Não poder é muito diferente de não querer. Não é mais alguém que me cobra, fui eu que resolvi abrir a caixa de Pandora. Maldito pretérito imperfeito do subjuntivo, e se eu quisesse? E se eu quisesse por minhas próprias razões? E se eu quisesse mudar minha vida?

 

A única e rápida vez que havia pensado nisso foi ainda namorando com Luiz. Já conhecia sua opinião a respeito de não querer ser pai e considerava isso um grande atrativo. Ele também sabia que não queria ser mãe. Mas não sei porque ele me olhou de um jeito e perguntou, e se a gente tivesse uma Bianquinha? Por alguns segundos pensei, talvez com ele eu tivesse. Mas rejeitei o plano em seguida e, aos vinte e poucos anos, foi muito fácil e conveniente esquecer a pergunta e a sensação. Ele nunca mais perguntou e eu nunca mais cogitei.

 

Minha mãe, por alguns anos me cobrou. É a única que, gostando ou não, acho que tem esse direito. Ela quer ser avó e, até eu que nunca quis ser mãe, queria ser avó. Daí um dia respondi que decidiria com 35 anos. Por que? Fácil, porque é considerado um limite saudável para engravidar pela primeira vez. Por que de verdade? Ganhava tempo, fazia de conta que decidiria depois e no fundo, apenas adiava o não.

 

Aos trinta e cinco, decidi que não. Depois de uma noite insana e no meio de uma das maiores ressacas que tive na vida, admiti que sou mesmo uma porra louca com a sorte de ter aparência normal. Como é que sem um pingo de juízo seria capaz de cuidar e educar uma criança? Essa vida não é para mim. Não é um lamento, posso ter outras felicidades, mas essa não é para mim.

 

Achei que essa decisão me traria o conforto, o alívio de resolver um problema. Sentia falta do tempo quando tinha a certeza absoluta que não queria. E por um tempo foi confortável saber que estava finalmente resolvido.

 

Ano passado fui ao Brasil e conheci minha priminha, com pouco mais de um ano. Foi um choque. Ela era a minha cara. Parece absurdo, mas é verdade, ela era a minha cara quando bebê. Foi uma sensação bizarra de ver concretamente a minha filha. Não consegui contar para ninguém e ela já nem parece mais comigo. Foi só um momento, mas me tirou o chão.

 

Algumas coisas são tão íntimas e tão difíceis que ficam remoendo na sua cabeça sem você perceber direito. E esse ano, em pleno carnaval, tomando um vinho com Luiz, simplesmente saiu da minha boca a pergunta, por que não adotamos uma criança? Assim, do nada. Não sei quem assustou mais, eu ou ele, que me devolveu na mesma moeda, se é para ter, por que não engravidar? Do que mesmo a gente está falando? Que papo mais absurdo, só pode ser o vinho.

 

De lá viemos em casa trocar de roupa, como disse era carnaval e sairíamos em seguida. Pois quando me olhei no espelho percebi que alguma coisa estava muito fora da ordem e caí num choro como não me saia há muito tempo. Chamei o Luiz para conversar, pára tudo!

 

Pela primeira vez na minha vida me perguntei se queria uma filha e resposta foi quero. E pela primeira vez saiu da minha boca, com a minha própria voz, eu quero ser mãe. Não era um sim definitivo, mas era por aquela noite, e naquela noite eu quis muito ser mãe.

 

No dia seguinte, me senti um pouco esquisita e não consegui mais tomar o anticoncepcional. Tomo progesterona há mais de seis anos, período pelo qual não menstruo mais. Na época que comecei, a ginecologista, assim como a bula do remédio, dizia que se resolvesse engravidar, a regra poderia levar entre seis meses e um ano para regularizar. Portanto, achei que não corria riscos, tinha um bom lastro e, outra vez, um tempo para pensar e digerir todas essas informações. Não falei com Luiz, achei que seria uma pressão a mais, no fundo sabia que não havia chance de engravidar no momento, essas coisas não são tão rápidas em retornar, ainda mais na minha idade. Três semanas depois viajaria para o Brasil, melhor conversar com calma na volta, talvez tivesse mudado de idéia.

 

Pouco antes de viajar estava estranha, via trinta grávidas por dia na rua e imaginava se eu estivesse também. Outros problemas me preocupavam e, aos poucos, fui esquecendo o assunto.

 

No Brasil, parecia que havia instalado um íma para crianças, elas simplesmente vinham para mim. Um instinto maternal que nunca tive, uma coisa maluca que me deixou um pouco confusa. Deixei vir, aproveitei para tentar vivenciar a experiência, pensar com um pouco mais de tranquilidade, afinal de contas, ninguém pôs uma faca no meu pescoço exigindo uma decisão tão urgente. Não falei muito a respeito, só conversei com uma amiga que acabou de ter neném e que tinha uma postura por um lado favorável, mas sem me pressionar. Tudo que não precisava nesse momento era mais pressão.

 

Contrariando as expectativas, em menos de um mês que havia parado o remédio, minha menstruação desceu, ainda no Brasil. Fiquei surpresa porque sentia uma mistura de alívio e tristeza. Foi quando me dei conta que, apesar de racionalmente saber que não era possível, no fundo esperava um milagre. O acidente tiraria minha responsabilidade, afinal, se engravidasse sob essas circunstâncias era porque tinha que ser. Como pude me sabotar desse jeito? Por outro lado, era possível, meu corpo me mostrava que ainda tenho tempo. Agora a responsabilidade voltava a ser minha, o controle voltava a ser meu e só fiquei mais confusa.

 

De volta a Madri, contei ao Luiz, melhor tomarmos nossas precauções. Em plena consciência, não quero acidentes, não sou assim. De qualquer maneira, meu instinto maternal se foi junto com o período. Talvez fossem os hormônios falando mais alto.

 

Não consigo conversar com quase ninguém a respeito e achei que escrever me clarearia as idéias. A palavra escrita ajuda a ordenar o pensamento.

 

Minha menstruação desceu pela segunda vez como se fosse um aborto. Vontade de chorar por nada, pode ser a TPM que estou desacostumada. Ainda não sei o que quero, mas sei que não posso passar por isso todo mês. Essa semana, volto a tomar o remédio. Às vezes, a gente só precisa de um pouco de tempo para aceitar ser diferente.

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