Na sexta-feira, dia 10 de outubro, dormimos como duas pedras até mais ou menos umas 8:00hs, quando nos ligaram da UTI. Ainda que a visita só fosse permitida às 13:00hs, meu pai tinha tocado tamanho barata vôa para ir embora que tiveram que gentilmente lhe oferecer um sossega leão. Nos chamavam na tentativa de acalmá-lo quando acordasse.
Não foi nenhuma surpresa, juro que estava esperando por isso. Mas pelo menos, havia dormido algumas horas e já podia raciocinar outra vez.
Tomei um café enquanto pensava no que fazer. Cheguei a conclusão que da mesma maneira que ele não tinha condições de tomar essa decisão sozinho, nós também não tínhamos o direito de fazê-lo. Ainda que estivesse meio embaralhado, ele estava consciente e precisava ser ouvido. Até aquele momento, não havíamos dito claramente o que ele tinha, não porque quisesse esconder, sou contra esse negócio de esconder as coisas, mas simplesmente porque ninguém sabia direito o que era e não valia a pena enlouquecê-lo com hipóteses.
Acontece que agora a gente sabia e fui decidida a contar tim-tim-por-tim-tim. Queria deixar bem claro que arrisquei meu pescoço assinando a alta dele na Espanha e o colocando em um avião que atravessou o oceano, ou seja, tudo que podia ser arriscado, a gente arriscou. Minha mãe, por mais atordoada que estivesse, afinal de contas é importante lembrar que ela também já é uma senhora, estava apoiando essa decisão. Agora o risco e a responsabilidade eram dele. E se ele quisesse sair, que assim fosse, mas era ele quem assinaria e bancaria. Admito, estava aborrecida, na verdade, estava muito puta.
Quando chegamos no hospital, ele tinha dormido, graças ao tranquilizante. Conversamos com a médica responsável que me deu novas informações. Um dos exames realizados era para descartar a possibilidade de um tumor que poderia ter estourado. Não foi isso, mas a simples possibilidade me deixou alerta outra vez. E ela me deixou evidente a necessidade que ele permanecesse internado. Ainda estava sob risco alto. Poderia ficar em um quarto particular, era o primeiro da fila e enquanto isso não acontecesse, iam transferí-lo para uma parte mais reservada da UTI. Com isso, ela também me deu novos argumentos para conversar com ele. De qualquer maneira, ele estava dormindo, melhor voltarmos mais tarde. O seu neurologista também estava a caminho. Descemos para esperar na cafeteria.
Consegui falar com seu neurologista, que me explicou a tal suspeita do tumor, que felizmente foi descartada. Era o que já sabíamos na noite anterior mesmo, um AVC izquêmico, com uma pequena hemorragia, provocado provavelmente por uma arritmia cardíaca. Que a propósito, não, não era antiga. Informação que para nossa sorte, não tínhamos anteriormente, ou ele teria sido enxarcado de anticoagulante e ferrado tudo de vez.
Bom, subimos para ver se ele havia acordado. O turno médico havia mudado e para outra sorte, era um conhecido dele, da minha idade mais ou menos, mas que o conhecia do bairro. No Leme, todo mundo se conhece. Ele me contou que havia conversado com meu pai e explicado a gravidade do caso. Ótimo, já adiantou meu trabalho, ele tinha razão, meu pai precisava saber o que estava acontecendo e que tinha que colaborar.
Mesmo assim, quando fomos falar com ele, estava meio ansioso e dizendo que para fazer aqueles exames ele podia ir para casa. Estava prontinho para começar um novo barraco. Nisso, pela primeira vez, minha mãe se descontrolou um pouco e começou a chorar. Quer saber, foi bom, porque isso fez com que ele segurasse a onda e se contivesse. Talvez tenha se dado conta que a coisa era realmente séria. Expliquei novamente o que ele tinha, que estava estabilizado e seu problema era reversível, mas que era grave e se não controlasse ele corria um risco alto. Disse que já havia tirado ele de três hospitais na marra e o colocado em um voo de 10 horas para o Brasil, não podia arriscar mais absolutamente nada. Gastamos todos os coringas! Ele estava agora sendo atendido no país dele, na língua dele, dentro do plano de saúde (coisa que ele me perguntava o tempo todo), ou seja, que tudo que podia ser feito, estávamos fazendo. Minha mãe disse que não deixamos ele ali sozinho, é que não havia quarto, mas estávamos ali tomando conta e que ele era o primeiro da fila para um quarto particular. Ele pareceu entender e aceitou um pouco melhor. Dali para frente, entendi que precisaríamos repetir essa história a cada vez que ele acordasse, ele esquecia.
Essa também era uma dificuldade, saber quando ele estava realmente lúcido. Porque ele parecia consciente o tempo inteiro, mas às vezes falava alguma coisa ou tomava alguma atitude que nos deixava na dúvida se essa consciência era tão absoluta. Não era, ou melhor, era em boa parte do tempo, mas às vezes não. Deu para entender? Não, né? A gente também não entendia bem.
Como se diz por aqui, por si acaso, a gente repetia a história e confirmava se ele entendeu mesmo ou se lembrava. Isso quer dizer que repeti umas 300 vezes o que ele tinha e que precisei responder a pergunta, “mas o que quero saber é quando vou sair daqui?” outras 950.
Fora que nossa conversa parecia coisa de maluco, porque ele ainda trocava as palavras e não lembrava de outras, mas sabe-se lá como, talvez pela repetição, a maioria das coisas eu entendia. Então, ficava algo mais ou menos assim:
_ Precisa fechar o continente!
_ Não, pai, você não pode deixar o hospital agora.
_ Mas esse hospital aqui está todo…
_ Sim, seu plano de saúde cobre tudo
Enfim, ele foi transferido primeiro para um tipo de quarto dentro da UTI, era um canto mais reservado, mas não tinha cadeira nem nada para acompanhantes, afinal de contas, na UTI não pode ter acompanhante, estavam fazendo vista grossa conosco porque era uma forma de não precisar sedá-lo outra vez. Nisso ele dormiu e nos informaram que o quarto particular vagaria às 16:00hs. Pensamos, não adianta ficarmos aqui em pé vendo ele dormir, vamos para casa buscar pijama, mala, essas coisas para ir para o quarto.
Foi o tempo de chegar em casa correndo e voltar e ele já estava subindo. Pensei, ótimo, agora as coisas ficam mais simples. Fui arrumando minhas coisas no armário, com a intenção de ficar direto por ali. Pelo menos, naquele momento, essa era a intenção. Não tinha idéia da pauleira que ainda íamos encarar.
Não vou fazer suspense, ele não piorou de estado de saúde, pelo contrário, ia melhorando a cada dia. Entretanto, nos primeiros dias era pura rebeldia e nos deu um trabalho insano! Além de teimoso, ele é grande para cacete!
Passamos o dia todo no hospital. Ele estava sonolento, mas ao mesmo tempo muito agitado. Parece incoerente, mas era exatamente assim. Ele não aguentava passar mais de meia hora com os olhos abertos que cochilava. Mas esse cochilo não durava quase nada e ele acordava outra vez, reclamando muito e pedindo o tempo inteiro para urinar e perguntando quando ia embora. Estava fazendo uma coleta de 24hs, onde toda a urina é recolhida e armazenada. Outra coisa que você aprende em hospital, a perder qualquer tipo de pudor.
No fim da tarde, fui bem rápido em casa para tomar um banho e ligar para Luiz. Para complicar, o carregador do meu celular não estava funcionando e nossa comunicação era precária. De qualquer maneira, era muito difícil arrumar algum tempo para falar com qualquer pessoa. O telefone na casa dos meus pais não parava de tocar um segundo, um inferno! Deixava na secretária eletrônica. Voltei logo para o hospital.
Nesse primeiro dia, de sexta para sábado, fui eu que dormi no hospital. Dormir é só uma maneira de falar, porque, juro, era impossível pregar o olho mais do que 10 minutos, se muito. Mexia tanto que o soro apitava o tempo inteiro, e lá vinha a enfermeira acertar. Claro que quando ela chegava, meu pai estava apagado, parecia que fazia de propósito. Até que eu mesma aprendi a fazer aquela maquininha infernal do soro sossegar.
Enfim, da mesma maneira que ele esteve durante o dia, estava à noite, completamente inquieto. Na verdade, até bem pior, porque tentou arrancar tudo e ir embora por três vezes. Atenção e tensão absoluta o tempo inteirinho.
Na primeira vez, fui tolerante, na segunda um pouco mais firme, mas na terceira, quem quiser que atire a primeira pedra, perdi mesmo a paciência e fui bem dura.
Pai, são quatro horas da manhã! Aonde você pensa que vai? Olha pela janela, está escuro! Você está se enganando ou me enlouquecendo? Você não consegue chegar sozinho nem no elevador! Não consigo… Não consegue! Vai cair no meio do caminho! Sua cabeça está funcionando, mas seu corpo não. O que mais você quer? Tudo que podia ser feito a gente fez! Sua condição hoje é reversível, se forçar a barra para voltar para casa, vai ficar torto o resto da vida! É isso que você quer? Jogar fora tudo que já passamos? Colocar tudo a perder? Você não vai embora, eu não vou te tirar daqui e acabou. Bianca, eu não aguento mais! Pois, o máximo que posso fazer é perguntar se podem te dar alguma coisa para dormir.
Porque também tem essa, eu é que não ia ficar dopando meu pai. Se ele quisesse um remédio para dormir, ele que me pedisse.
É… então, talvez seja melhor me darem alguma coisa para dormir… Ok, isso posso fazer, espera um pouco que vou pedir às enfermeiras.
Não havia nada prescrito e elas chamaram o plantonista, fui para o quarto esperar. Quando o plantonista chegou, claro que meu pai dormia a sono solto. Pensei, quem vai passar por maluca sou eu. Não passei por doida, porque constava no seu expediente que ele havia dado um certo trabalho na UTI e tomado um tranquilizante. Por outro lado, ele me explicou que não era bom que um paciente se recuperando de problemas neurológicos tomasse esse tipo de medicação, ou seja, se realmente estivesse muito agitado, eles faziam, mas se pudesse evitar era melhor.
Então, tá, fazemos assim, deixa prescrito no prontuário dele o que é possível tomar. Vou tentar administrar a situação sem remédio, até porque já é quase dia, se ele agitar outra vez, a gente já tem tudo engrenado. O plantonista concordou. Meu pai não precisou tomar essa medicação. Das seguintes vezes em que acordou, parecia não se lembrar dessa conversa.
Às 6:45hs da matina, chegou seu primeiro visitante, um amigo do Leme. Sim, o Leme inteirinho já sabia da história. O que eu não sabia era que esse amigo é bipolar e estava em plena crise, por isso chegou quase que de madrugada ao hospital. Não estranhei porque meu pai e seus amigos sempre acordam muito cedo, um par deles fica do lado de fora do clube esperando abrir para jogar tênis.
Pois é, mas voltando ao amigo bipolar, como meu pai cochilava, conversei da porta, explicando que ele estava dormindo, mas se ele quisesse voltar na parte da tarde, ele poderia receber visitas sim. Pedi que ele desse notícias ao pessoal, porque assim nos poupava o tempo de atender os telefones. Ele falou comigo normalmente, até bem educado e se foi. Depois soube que ele deu notícias para as pessoas, como havia pedido. Só fui descobrir seus problemas quando contei da visita para minha mãe, que arregalou os olhos, mas ele esteve aqui?
Tudo bem, pelo que entendi, era louco manso e gostava muito do meu pai. A essa altura do campeonato, quem era mesmo louco e quem era normal?
Quando minha mãe chegou, nos revezamos e fui para casa na tentativa de dormir um pouco. No elevador, entrou um homem gordinho e foi para o fundo, ficou olhando na minha direção. Não me importou, juro que não pensei nenhuma besteira, só imaginei que deveria estar ou descabelada, com a blusa ao contrário, alguma coisa assim, mas também não queria pensar o que era. No que ele me diz espantado: caramba, que trança gorda! Levantei o olhar e ele estava com os olhos fixos na minha… trança?! Então tá, né? O que vou dizer? Pois é, muito cabelo… E tratei de evaporar quando o elevador abriu!
No caminho de casa, cheguei a rir sozinha. O carioca é assim mesmo, não tem freio entre o que pensa e o que sai pela boca. Carioca pensa alto.
Não dormi bosta nenhuma, ainda estava agitada e o telefone não parava de tocar nem um segundo. Por um lado é legal saber que meus pais têm tantos amigos, mas é complicado nessas horas você dispor de um tempo precioso para descansar. Repetir e repetir a mesma história é muito desgastante, faz a gente reviver a dor o tempo inteiro, além de boa parte das pessoas nem entender direito o que você está contando, você explica tudo que te perguntam e no final vem aquela frase, mas então agora está tudo bem, né? E você pensa, é zebra, tudo ótimo! Mas responde, melhorando pouco a pouco, precisa ter paciência. E os palpites? Ele não está enxergando direito… Ah, não, e de óculos? Imbecil, o problema é neurológico, não miopia! Menina, sei que você deve estar angustiada, mas conheço um monte de histórias parecidas que vou te contar… E eu em pânico pensando, por favor, que não seja agora!
Enfim, sim, eu estava num mal humor de cão! Queria morder um! Mea culpa, mea culpa…
Combinei com o pessoal de casa que deixaria as ligações na secretária eletrônica, mas se fosse algum deles era só se identificar e pedir que eu atendesse.
Pela hora do almoço, estava pronta para voltar ao hospital, quando ligou minha prima e o marido me oferecendo uma carona. Beleza, assim pelo menos dou um oi para eles e facilita minha vida. Quando chegaram, queriam por que queriam me levar para almoçar. Mas nem pensar! Sabia o trabalho que é ficar de acompanhante sozinha e minha mãe estava lá. Todo mundo fica achando que você precisa espairecer, mas eu já estava bem espairecida, no meu tempo livre o que eu queria era dormir! Por outro lado, também queria conversar um pouco com eles, a gente fica muito tempo sem se encontrar. Fazemos assim, agora vou para o hospital mesmo, mas se não for dormir por lá, saio para jantar com vocês. De qualquer maneira, mais tarde teria que parar um pouco para comer alguma coisa.
Na recepção do hospital, me perguntaram se vim render a acompanhante. Curioso isso, pela primeira vez me fixei no verbo utilizado: render. O acompanhante tem o status de sequestrado! Aliás, a TV sempre ligada no quarto não parava de falar do sequestro da Eloá.
Nesse dia, e nos outros também, meu pai recebeu um monte de visitantes! Muitos amigos queridos. Entre eles, meus sogros, horrorizados com a quantidade de gente no quarto. Realmente, nesse sábado foi um exagero, mas não havia nenhuma contra indicação e a verdade é que meu pai, mesmo sonolento, bem que gostava. Além disso, ficava mais acordado e pensamos que podia lhe garantir uma melhor noite de sono.
Nisso, quem chega? O amigo bipolar! Dessa vez, estava com a corda toda, emendando um assunto no outro, com um ipod no ouvido, dançando como em uma escola de samba. Não vou negar, estava engraçado. Houve um momento que ficou conversando com meu pai, que felizmente já falava muito melhor e entendia perfeitamente que o amigo estava em crise, dava atenção para ele direitinho. Bom, mas eu sei lá, seguro morreu de velho, e achei melhor ficar no meio da conversa. Impossível que meu humor negro não se manifestasse, só pensava que estava mediando o assunto entre o AVC e o bipolar, eu mereço! Já imaginou essa conversa alguns dias atrás, quando meu pai trocava as palavras? Se bem que preciso ser justa, na prática, meu pai não fez nenhuma confusão, se saiu muito bem e tomei como uma boa notícia.
Comecei a notar que meu pai não trocava mais as palavras, achei que essa parte se recuperou muito mais rápido do que imaginei. Não sabia se ele já não as confundia mais ou se, consciente do problema, buscava outros caminhos ao falar. De uma forma ou de outra, vi com bons olhos.
Também iniciou a fisioterapia. Era capaz de levantar da cama para uma poltrona ao lado e vice-versa. Passava o dia e a noite inteiros fazendo isso. Andar mais, por exemplo, até o banheiro ou o corredor, era até capaz também, mas precisava de ajuda porque seu equilíbrio estava bem precário. Isso nos assustava um pouco, porque ele é muito grande e se cair, é muito difícil de levantar, além de provavelmente se machucar bastante.
Como seu problema foi do lado esquerdo do cérebro, seu lado direito estava meio comprometido, os braços e pernas tinham pouca firmeza. E uma coisa meio estranha, os lados direitos dos olhos não enxergavam. Ele vê só com as metades esquerdas, o que quer dizer que quando olha para frente, tem a sensação que vê tudo normalmente, mas é confuso ler e não tem a visão periférica do lado direito. Isso também acaba afetando um pouco o equilíbrio.
Tudo isso pode melhorar com o tempo, mas além da famosa paciência para se recuperar, é necessário exercitar corpo e cabeça. Algumas coisas que não podem voltar a ser como antes, o cérebro é capaz de encontrar e aprender novos caminhos, o que apesar da situação difícil, acho fascinante.
Ainda não havia decidido se dormiria ou não no hospital, estava virada, mas minha mãe havia passado o dia todo ali também. Ela disse que estava bem e que poderia ficar. Fiquei me sentindo meio mal por isso, mas outra noite sem dormir e era capaz de não dar conta, comer alguma mosca. Achava que meu irmão deveria se oferecer, afinal era sábado, mas não queria entrar nessa seara, se alguém deveria pedir, era ela, não eu.
Depois pensei que meu pai podia dormir melhor aquela noite. Recebeu visitas o dia todo e já havia pedido ao plantonista para deixar prescrito alguma medicação calmante, caso fosse necessário. Tudo bem, revezamos.
Confirmei o jantar com minha prima e o marido, pensava em algo bem rápido, só para bater um papinho. Meu irmão resolveu ir junto, com a namorada e a filha, que por sinal, gosto muito. Acabamos indo a um japonês, idéia dita como minha, o que não foi bem assim, estava apenas conversando com a menina sobre isso, sei que ela gostava de japonês.
Na prática, não consegui praticamente conversar com ninguém, minha cabeça doía e estava enjoando de sono. Cada taxi que passava na porta, me imaginava indo para casa. Tudo ia me irritando, caraca não quero jogar, não quero conversar, não quero mais um maravilhoso barco de peixe quando achei que estava tudo encerrado, eu quero dormir! Dor-mir!
Nem acreditei quando pude finalmente tomar um banho e me deitar.
Acordei logo depois, no meio de um pesadêlo evidente. Minha mãe precisava de ajuda e não conseguia levantar, não conseguia me mexer, não conseguia chegar lá… Enfim, dormindo isso me parecia uma coisa apavorante, como costumam ser os pesadêlos mesmo absurdos. Acordei assustada pensando se era um sinal que havia acontecido algo com meu pai. Não sei porque, mas nessas horas, tudo que acontece você acha que é algum sinal! Bom, se fosse alguma coisa com ele, ela me ligaria do hospital. Ela devia era estar exausta mesmo.
Levantei para quebrar aquele ciclo e fui andando pelo corredor, meio na dúvida se estava acordada ou ainda sonhando. Vi uma luz atrás da porta e fui checar, não havia ninguém. Achei que meu irmão tinha esquecido aceso e fui beber água, a cozinha também estava acesa. Fui andando devagar meio sonâmbula pelo corredor em direção à cozinha e quando estava quase lá, um homem cruza na minha frente. Era o meu irmão, óbvio! Mas levei um susto da porra!
Foi bom que esqueci o pesadêlo e voltei a desmaiar até o dia amanhecer.
Dia seguinte, a mesma rotina. Chego na recepção e digo logo, vim render a acompanhante! Pronto, assumo de uma vez a condição de refém.
E assim os dias foram passando. No hospital, revezava as noites com minha mãe e durante o dia, costumávamos ficar as duas. Em casa, era difícil conseguir dormir mesmo.
Uma amiga que veio da Espanha conseguiu me trazer um novo carregador de celular e meu irmão deixou um laptop no quarto. De maneira que a comunicação ficou um pouco melhor, mas ainda bem difícil. O que acontecia é que no quarto a dedicação era tempo integral, juro, 24 horas no ar. Tudo era de uma hora para outra, imediato. Porque meu pai não pedia as coisas, ele tentava fazer sozinho. Isso a primeira vista parece melhor, mas não é. Porque ele ainda não conseguia fazer só e não se conformava. Se ele pedisse, pelo menos a gente tinha tempo de relaxar um pouco e se ligar na hora de ajudar. Como ele simplesmente saía fazendo, a gente precisava estar ligada o tempo todo e pegá-lo no meio do caminho antes de acontecer algo que não devia.
Meu irmão ia ao hospital depois do trabalho, razoável, mas ali se comportava como uma visita a mais, com a cara enterrada no laptop. No início, até chegarmos no Rio, demonstrou bastante iniciativa, coisa que me surpreendeu positivamente, pensei que finalmente havia amadurecido. Mas depois que meu pai internou, parecia que havia se resolvido tudo e relaxou. É claro que ele também deveria estar preocupado, todos nós estávamos, mas além disso, nós estávamos exaustas! Esperávamos que quando ele chegasse, pelo menos assumisse um pouco o trabalho. Todo mundo estava ocupado o dia inteiro. Entendia ele não poder estar ali durante o dia, mas garanto que cansa menos estar em um escritório que em um hospital. Essas coisas são óbvias, não precisaria que a gente ficasse pedindo. Mesmo assim, minha mãe precisava pedir algumas vezes e eu também. Isso começou a gerar um clima de irritação constante.
Até que a bomba estourou. Em uma dessas vezes, está meu pai, sem enxergar direito, mexendo no controle da televisão, todo atrapalhado e aumentando o volume sem parar. Chamei meu irmão, inclusive porque não sei mexer naquela porcaria de controle remoto. Onde ele estava? Com a cara metida no laptop. Se irritou porque eu disse que precisava ser na hora. Teve um ataque de piti, um verdadeiro chilique, puto da vida, enquanto meu pai continuava a aumentar o controle da televisão. Realmente, ele devia ter muita razão, né? Além de não ajudar, a gente ainda tinha que aturar chilique. Ficou minha mãe, minha tia (que havia chegado) e eu olhando para aquela cena ridícula.
Meu irmão é de um egoísmo colossal. Sempre passamos a mão na sua cabeça, eu inclusive. Minha paciência se esgotou fazia alguns anos, quando na época minha mãe se internou devido a uma crise de apendicite bem grave. Morava em São Paulo, saí de lá e fiquei com ela uma semana no hospital. Não é uma reclamação, nem me custou tanto assim, minha mãe colabora bastante. Meu irmão ficou tão abalado, que nesse período comprou um carro! Sim, minha mãe internada, logo depois de uma cirurgia séria e ele comprou um carro! Ainda teve a pachorra de chegar à noite no hospital e dizer que tinha uma notícia que a deixaria muito contente, ou seja, o cara-de-pau ainda quis convencê-la que comprou o carro naquele momento para ELA ficar feliz.
Mas agora deveria ser diferente, né? Ele deveria estar olhando alguma coisa muito séria no laptop. Disse para minha mãe que era sobre a minha passagem de volta. Mentira. Eu vi a tela do computador, eram uma imagem de poltronas da classe executiva da American Airlines. É possível que estivesse planejando suas férias nos Estados Unidos.
Em outra situação, talvez ele tivesse a oportunidade de conhecer a fúria escorpiana. Respeitei minha mãe e meu pai, fui embora. Com minha tia, em casa, me desabafei um pouco, depois resolvi tratá-lo como merece, ignorei. Ele não me incomodou mais. Ninguém se decepciona quando não tem mais nenhuma expectativa. Se ele está ou não colaborando, já não é mais meu problema, isso é assunto dele com minha mãe.
Era terça-feira, meus nervos estavam a flor da pele. Emagreci, o que como uma perfeita mulher, nem achei tão ruim. Não era da maneira que esperava, mas definitivamente, felicidade engorda. Havia conseguido falar com alguns amigos por e-mail, mas não tinha vontade de encontrar ninguém. Era bom ter notícias, saber que tinha amigos e que torciam pelo meu pai e por mim, mas ao mesmo tempo, me dava um desânimo completo, não queria ouvir minha voz. Palavras sempre podem ferir. Luiz insistindo que estava agoniado com poucas informações e que não conseguia falar comigo. Eu sabia, mas não conseguia escutar nem meus pensamentos, que dirá ouvir alguém. Lembrei que ainda não havia tido tempo nem de chorar direito e que isso tudo dentro não podia me fazer bem.
E por que ia chorar ali sozinha? Por que ser tão arrogante que ninguém podia me ver mal? Eu já deveria ter aprendido a pedir ajuda e a carregar apenas o suficiente nas costas. Fui para sala chorar do lado da minha tia e foi bom.
A gente tinha planejado tanta coisa boa. Churrascos, paellas, passeios, viagens. Queria que meus pais conhecessem nossos amigos, os lugares que gosto, as músicas que canto, o apartamento novo. Eu sabia que não seria tudo perfeito, mas achava que seriam momentos felizes. As pessoas que ficam aqui em casa, normalmente, saem felizes e nos deixam também. De repente, a vida vem e dá uma chacoalhada, vira tudo de cabeça para baixo. A gente fica com aquele gosto de merda na boca sem entender, por que? Acredito sinceramente que meu pai vá se recuperar, mas ainda assim, qual é a probabilidade deles virem me visitar outra vez? Por que fui ter a idéia de jerico de insistir que eles viessem? Por que ele não se cuidou melhor? Não estou procurando culpados, é que às vezes é inevitável pensar que em algum momento poderíamos ter tomado outro caminho. Mas o fato é que não tomamos e só nos resta lidar com isso.
Por que é tão difícil para as pessoas entenderem que tudo o que fazem traz uma consequência na vida dos outros? É difícil para mim também. Não podemos seguir nossas próprias vidas se nos basearmos o tempo inteiro em agradar o próximo, é claro que existe um limite. Mas não ter a consciência que também existe uma responsabilidade, não tem outro nome além de egoísmo. Um pouco de egoísmo garante nossa sanidade, nossa personalidade, mas o excesso nos transforma em monstrinhos insuportáveis engulidores da vida alheia. Porque o “outro” também merece sua própria dose de egoísmo.
E por contraditório que pareça, lembrar da minha dose de egoísmo também me ajudou a recuperar a lucidez. Não preciso ser mártir de nada, isso é muito chato. Não tenho tendência a ser Polianna, não acho que tudo de ruim tem um lado bom. Acho que há coisas ruins e boas e já está.
O que aconteceu foi uma merda! Não interessa mais se merecemos ou não, se fizemos certo ou errado, já foi. Fiquei puta, triste, irritada e com medo, foda-se! Move on, próximo passo!
O que aconteceu de bom? Uma porrada de coisas! Meu pai está vivo, consciente, em seu país, tem condições de se tratar e melhora a cada dia. Minha mãe tirou forças nem sei da onde e toca o barco heroicamente. Luiz está fazendo das tripas coração para tocar a casa, o trabalho e não me trazer mais problemas. A família e os amigos pipocam oferecendo ajuda no que puder. Cassilda, dá quase vergonha de reclamar.
Na quarta-feira, acordei mais disposta e fui para o hospital trocar com minha mãe. Minha tia ficou em casa, estávamos tentando fazer algum esquema de revezamento triplo para cansar menos. Quando cheguei lá, descobri que havia a possibilidade do meu pai receber alta no mesmo dia. Diante disso, minha mãe nem quis ir para casa, resolveu esperar um pouco.
Pelo meu pai, só de dizerem que era possível ele ir, ele estava na porta prontinho da Silva. Mas as coisas não eram assim tão rápidas. Sossega aí um pouco, que você precisa pelo menos almoçar aqui, não há nada em casa. É mais ou menos o tempo de liberarmos a parte burocrática e de medicação. Bom, então, enquanto isso, vou em casa buscar o carro, porque de taxi isso vai ficar meio complicado.
E assim foi, voltei de carro e com minha tia para o hospital. Pouco depois, chegou a comida do meu pai, coisa que ele mal tocou. Sendo assim, comi eu o resto e esse foi meu almoço. Sabe-se lá quando teria tempo outra vez.
Considerando que nunca dirijo, até que nem estava barbeira, parecia que nunca havia parado antes. Chegamos em casa muito bem obrigada. Veio porteiro, jornaleiro, uma festa! Estávamos um pouco enrolados, meio preocupados, mas otimistas que em casa seria melhor.
Um passo de cada vez, e havíamos dado muitos!
“Tô” por aqui….
Beijossss
Oi Bianca! Adelante! Te mando boas vibrações desde Sevilla para que os próximos passos sejam os melhores possíveis! 😉
Oi Bianca
Meu Deus que trabalhão!!!
Teve algumas partes da sua “tragédia” que dei boas risadas, confesso que é meio mórbido, mas depois de tudo que já passamos muuuuito semelhante com o que voce esta passando, me dou o “luxo” de achar engraçado as vezes.
Me enxerguei em vários momentos seus, como o do seu irmão, o dos amigos que lotaram o quarto, e outros que depois voce também vai rir, pode crêr.
Beijos de todos daqui de São Paulo, eu tô sempre contando o que rola ai.
Marianne
Oi, Didis! Já fui no seu também para me atualizar 🙂
Besitos
Oi, Glenda! Obrigada e tudo de bom para você também! Aos poucos vai tudo entrando nos eixos. Vou lá no seu blog, ando meio por fora, mas até o fim da semana acho que dou conta de ler tudo que perdi.
Besitos
Oi, Marianne!
Eu também rio, sempre que dá, senão fica tudo muito pesado, né?
Manda um beijão para todos por aí e outro para você!
Passando pra te deixar um beijo.
Que dizer? É foda mesmo. Te compreendo muito, passei por uma situaçao semelhante quando o meu pai foi operado de câncer e precisou ficar uns dias na UTI e deu um trabalhao…
Sei que vc nao gosta de Poliana… mas tente pensar na
s coisas boas, nisso que vc disse – que ele está bem, sua mae aguentou o tranco, o Luiz te ajuda – porque vai ser assim que vc vai sair dessa.
Beijao
Ale de Madrid
Oi, Neusa! Tudo bem contigo? Beijo para você também!
Oi, Alessandra! Não quis dizer que não há coisas boas, pelo contrário, acho que superaram os problemas. Simplesmente que a vida tem coisas ruins e boas, no pacote vem tudo junto e não adianta a gente negar o que tem de ruim. Não consigo resolver nada pensando que não foi tão mal assim, para mim é mais fácil ver que foi uma merda mesmo, mas tem partes melhores. Enfim, acho que no fundo estamos falando a mesma coisa. Fico feliz que seu pai está bem e deve ter curtido bastante seu casamento. Besitos
Oi Bi!!
Finalmente li um dos dois – a partir de hoje três – textos que faltavam… e estou lendo eles justamente do hospital (consegui descolar aqui uma conexãozinha).
Estou agora mesmo ajudando a controlar as bolsas de antibióticos que meu pai está recebendo. Não devo dormir muito essa noite, mas não me importo. Estarei tranquila amanhã, depois que a cirurgia sair bem e ele estiver no quarto se recuperando.
Você realmente passou por algo inacreditável. Não conseguir dormir, ter que responder zilhões de perguntas de amigos de seu pai – ok, bem intencionados, mas sem noção, convenhamos! -, aguentar o teu irmão… enfim, foi foda ao extremo. Eu não tenho tanto azar… meu pai coopera bastante. Como a sua mãe. E para mim será importante ficar com ele esse tempo.
Agora, uma piada: meu irmão apareceu domingo em casa também dando uma ótima notícia para meu pai… a de que está comprando um carro novo. Acredita??? Sem comentários…
Bem, amiga, agora vou ler os dois textos que ainda faltam… 😉
Beijões.
Oi, Alê!
… aparentemente, comprar carros deve ter algum efeito relaxante, né? As doidas devemos ser nós!
Bueno, pensando bem, quanto aos zilhões de telefonemas e perguntas dos amigos dos meus pais, mesmo sem muita paciência da minha parte, se você pensar bem é muito legal. As pessoas estavam preocupadas, alguns já têm uma certa idade e nem sempre absorvem as notícias com rapidez. Enfim, nesse caso acho que a “errada” era eu em não ter paciência, é que isso a gente não controla tanto. Com ou sem noção, na hora que o bicho pega, eles todos se unem e acho isso bonito. Vamos admitir que para a coisa ter tomado o rumo que tomou, só com muita torcida mesmo… heheheh…
E falando nisso, todos e todas nós estamos na torcida aqui pelo seu pai e por você também.
Besitos