Eu sempre adorei carnaval, mas já há tanto tempo que eles são frustrantes que fui perdendo o gosto. Tento me convencer que não vou mais ligar para isso, mas fica aquela coisa bem despeitada mesmo. Porque é só ouvir uma batucadazinha de nada que o coração vai junto. Não adianta, é mais forte que eu, amo carnaval e pronto!
Muito bem, há um restaurante e bar brasileiro aqui chamado Kabocla. Nós sempre ouvimos falar muito de lá, mas admito que tinha uma certa implicância. Podia ser preconceito.
Infelizmente, precisamos tomar cuidado quando escutamos sobre bares brasileiros aqui, porque tem essa tendência irritante em virar local de putas. Nada contra as mocinhas que querem trabalhar, mas sobra a fama para o resto da mulherada que acaba tendo que lidar com a questão sem nada a ver com o ofício. Eu não quero confusão e muito menos tenho paciência com gracinha, então não passamos nem perto.
No caso do Kabocla, isso não acontece, pelo menos nunca ouvi falar nada a respeito e essas notícias sempre correm na comunidade de brasileiros. Uma vez fui com lá o Luiz, faz mais de dois anos, e não sei se porque chegamos cedo, achamos meio caído. Mas todo mundo falava tão bem que a gente ficou com aquela impressão de ter ido em um mal dia ou horário errado. Ficamos de voltar em algum momento, sem grandes compromissos.
Com a proximidade do carnaval, o grupo do coral, que é sempre animadíssimo, começou a combinar de se encontrar ou de organizar alguma coisa. Chegamos a pensar em montar um bloco e fazer a percussão, mas somos muito iniciantes para toda essa ambição. No fim das contas, alguém sugeriu de se juntar ao tal do bloco do Kabocla, que sai todo ano. Por que não? Talvez fosse uma boa oportunidade de voltar ao local.
Resumo da ópera, juntamos alguns amigos e fomos na sexta-feira passada para uma festa de pré-carnaval. Para variar, chegamos cedo, Luiz e eu costumamos estar sempre entre os primeiros a chegar nos lugares, mas tudo bem. A noite mesmo ainda não havia começado, tinha uma professora ensaiando coreografias com um grupo de pessoas, na maioria espanhóis, que se juntariam ao bloco. Para falar a verdade, parecia que ia virar meio roubada, não tinha cara que ia encher e tudo muito claro. Mas dessa vez, a gente resolveu que daria uma chance ao lugar e ficamos.
Pois ainda bem que ficamos! A casa lotou, encontramos um monte de amigos e para completar, começou a tocar uma banda com um repertório ótimo! Soltamos a franga e nos acabamos de dançar. Saímos até um pouco cedo, porque tinha muita coisa para fazer no dia seguinte, mas ficou o gostinho de quero mais e uma impressão radicalmente melhor do Kabocla. É um local democrático, com todo tipo de gente, misturado como o Brasil, e ao mesmo tempo, muito família. Até onde entendi, a dona do negócio é uma mulher, que leva a casa na rédea curta, no que faz muito bem, está sempre presente e aberta a sugestões. E a propósito, fazem uma boa caipirinha, tem coxinha e pão de queijo.
Havia muitos brasileiros, mas me surpreendeu a quantidade de espanhóis e outros estrangeiros tentando aprender a sambar. E olha que não estavam indo tão mal assim, o espanhol não é tão duro para dançar. Ainda que não tenham a mesma ginga, tem o quadril solto, não tem vergonha de rebolar e isso ajuda muito.
Duas espanholas me pediram para ensiná-las a sambar, imagina isso? Pequeno detalhe, estava com meu dedinho do pé direito quebrado. Sim, fui pular carnaval com dedo quebrado. Jurei que ia pegar leve, mas quem é que aguenta ficar quieta com uma batucada no fundo? Muito bem, fui eu tentar ensiná-las alguma coisa, mas quem disse que sabia o que fazer?
A gente samba por instinto, já não lembro mais quando aprendi. Pedi ajuda a uma amiga brasileira, que me socorreu na função. As espanholas não se converteram exatamente em mulatas do Sargentelli, mas bem que eram animadas e simpáticas. Aliás, no nosso coral tem outras duas espanholas que botam para quebrar! E essas sabem sambar. A banda que tocava anunciou que voltaria no domingo. Nós gostamos muito do repertório deles, aquelas músicas que ficam na memória e a gente canta inteiras quase aos berros.
É um pouco surreal essa quantidade de música brasileira, em pleno pré-carnaval, na Espanha. Dentro do bar está quente tropical, com amigos falando em português e tomando caipirinha. Quase um culto à identidade cultural. E, de repente, a gente sai e é inverno, no meio de Madri. Nessas situações eu sempre me sinto como se estivesse solta no tempo e no espaço, é uma sensação de total deslocamento. A gente muda de país ao atravessar uma porta, parece ficção científica.
Cantando a gente lembra de lugares e de pessoas importantes para a gente. Dá vontade de sair ligando para todo mundo e falar a clássica frase do bêbado-gente-boa: putz, gosto de você pra caramba… Mas logo ao passar pela porta e sentir o vento frio no rosto, a gente lembra que está um pouco tarde para isso, nem estamos bêbados e nunca conseguiríamos transmitir esse sentimento em cinco minutos de ligação, e para pessoas que não estão sentindo a mesma coisa naquele momento.
Senti saudades, mas não fiquei triste. Na verdade, voltei feliz para casa. E no domingo, Luiz e eu voltamos ao Kabocla para dançar junto, encontrar os amigos, falar português e cantar aos berros de novo.
Juramos que ficaríamos só até às 22:00hs, todo mundo ocupado na segunda-feira, dia seguinte. E quem é que quis ir embora? Minha amiga até incorporou Alcione e mandou ver no microfone um “não deixe o samba morrer”.
Da minha parte, espero que sempre exista uma Marrom que não deixe o samba acabar.