XXXVI – Nossa comunidade

Quero falar das pessoas do meu prédio. Oficialmente, só conheço o porteiro, mas fico prestando atenção em tudo. Não sei se deveria contar isso, pois parece coisa de matilde fofoqueira, mas vá lá. Digamos que observe antropologicamente falando, assim, como se fosse um estudo científico. Vale? 

Acredito que deva começar pelo porteiro, um espanhol mais alto que a média, de seus 45 anos, com a voz bem grossa e rosto sério. A parte engraçada é que não dá para entender chongas do que ele fala! E não sou só eu não, Luiz que fala fluentemente também não entende boa parte. Cheguei a conclusão que isso é mundial: porteiros falam enrolado e ponto! Nesse sentido, posso dizer que aqui me sinto em casa. Não entendia meu porteiro no Rio nem São Paulo e também não entendo em Madri. Mesmo assim, me arrisco e puxo papo com ele. No início ele ficava meio desconfiado e sem graça, aos poucos vai ficando mais simpático. Com meus pais até conversou. Apesar do que, minha mãe também não entendia nada do que ele falava. Ela sempre descia de escada e nós de elevador, por isso ela descia antes e o porteiro conversava com ela para fazer companhia. Segundo minha mãe, de cinco minutos que ele ficou falando, ela só entendeu a palavra “marido”. Mas na dúvida, ela sorriu e concordou com tudo. Espero que ele estivesse perguntando pelo meu pai e não lhe propondo em casamento! 

É um bom porteiro. Aqui os prédios não tem muitos funcionários. O nosso só tem ele e já é considerado luxo. Fica na portaria na parte da manhã, até às 13:00 horas,  e depois volta de 18:00 às 20:00 horas, quando também aproveita para recolher o lixo. É normal nos prédios os próprios moradores descerem com seu lixo no fim do dia, costuma ter um horário limitado para isso. Aqui, só precisamos por na frente da porta por volta das sete da noite e o porteiro recolhe. De novo, é considerado um luxo. As garrafas e o papelão a gente separa e leva na esquina, onde há containers para lixo reciclável. 

A portaria é só a porta do prédio mesmo. Não tem esse negócio de grades por aqui. Muitas vezes a porta fica aberta sem ninguém. É normal, vejo isso em muitos prédios. 

Meus vizinhos são mayores. O mais novinho tem uns 80 anos! Meu vizinho de andar é o velho-cuco. A porta do apartamento dele é bem de frente para o elevador. Quase todas as vezes que aperto o botão do elevador, ele abre sua porta e põe o rosto para fora, igual a um cuco! Daí falo bom dia, ele responde, vira para trás, finge que alguém o chamou e fecha a porta outra vez. Totalmente pancada! 

Tenho uma vizinha que faz peixe frito todos os dias, literalmente! Outra que não sabe fazer torrada, sempre queima o pão. Poucos fazem carne de boi. Todos cozinham com azeite e muito alho, o que é quase uma regra por aqui. Sei pelos cheiros que sobem na janela. 

Tem outro casal que possui um gato persa branco lindo. Não tenho certeza se é gato ou gata, mas pelo tamanho, acho que é macho. Me dá um pouco de nervoso porque eles deixam a janela aberta sem proteção. Tenho medo de brincar com ele e fazê-lo cair. Mas não resisto a cumprimentá-lo e ele já me conhece. Falo baixinho da minha janela: oi, gato emprestado! E ele me escuta, vira na hora para mim. Eles têm uma audição fenomenal. Tentei mostrar o Jack uma vez, mas o meu gordo deu o maior pulo para trás, não gostou muito da história. O gato emprestado nem ligou ou dissimulou. 

Definitivamente, há um surdo que escuta a TV em alturas absurdas! Sempre tem alguém que reclama na janela, daí ele abaixa. Até o Luiz mesmo já reclamou. Agora, faz um bom tempo que não o tenho escutado mais. Não sei se é porque o frio começou e as janelas estão fechadas, ou se pela idade das pessoas… mór-reu! Credo! Aqui no prédio uma se foi, fiquei com pena, mas não sei quem era. Soube da história porque colocaram um convite para missa em sua memória no elevador. E não é que o elevador começou a pifar sem parar! Parece filme de terror! Eu, hein! Será que temos direito ao nosso próprio fantasma? 

Tem outro surdo (ou será o mesmo) que deixa o despertador tocando horas! Um saco e em horários estapafúrdios. 

Também rola o casal baixaria. Para ser sincera, não sei se é um casal ou mãe e filho. Devem ter aprendido espanhol com meu porteiro, não se entende muito. Eles normalmente escolhem os domingos que tenho hóspedes para dar escândalo. Ultimamente, se quietaram. Vai ver que, também pela chegada do frio, resolveram fazer as pazes. 

Há uma cantora lírica e todos nós escutamos seus exercícios diários. Por sorte, é uma voz bonita e ela não costuma treinar em horários impróprios. Mesmo assim, às vezes, eu e Luiz a copiamos de casa imitando sua voz de ópera. 

Dos outros, não escuto nada. Umas risadas, um cheiro de comida, um barulho de chaves, passos de salto… nada comprometedor. Parecem normais, sempre educados. De um modo geral, aqui é tranquilo. Vamos ver quando eu der a primeira festa! 

Escuto isso tudo, porque os prédios normalmente tem uma área de ventilação interna, onde se estendem as roupas. O som sobe por ali e todo mundo sabe da sua vida. Ainda não me acostumei com esse negócio de estender as roupas do lado de fora. Sei lá, tem coisas meio íntimas, né? Fico constrangida em estender minhas calcinhas assim em público, puxa! Tudo bem que é um pátio interno, mas mesmo assim, da mesma maneira que vejo as coisas dos vizinhos, eles não são cegos! Apesar do que, acho que ninguém liga, só eu. De qualquer forma, comprei um tendedor de armar dentro de casa. Se não tenho visitas, uso o banheiro social como área de serviço e fico mais tranquila. 

Só mais uma fofoquinha. Outro dia, na corda de estender roupa havia um sutiã incomensurável! Parecia um pára-quedas! Sério, era assustador! Preto com estamparia cafonérrima colorida! Se já era difícil acreditar que alguém podia comprar aquela peça, imagina alguém que a utilizava! Visualizar essa cena quase comprometeu minha vida sexual para sempre! Devia ser proibido como atentado violento ao pudor! Será que é da vizinha que frita peixe ou da que faz torrada queimada? 

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