66 – E saiu meu NIE

O documento de identidade para estrangeiros aqui na Espanha se chama NIE. O meu, finalmente saiu. Após oito meses de espera, nem posso dizer que foi um parto prematuro, pois nada que sugira antecipação é adequado. Não é que estivesse ilegal no país, enquanto você está no processo e cumprindo todos os passos, pode continuar morando legalmente. Mas você só sente que a coisa toda funcionou quando tem sua carteirinha de identidade. 

Esse processo de nova documentação é uma coisa muito estranha. No Brasil, tenho carteira de identidade desde os doze anos de idade. Antes disso, já tinha as carteirinhas de estudante do colégio. Ou seja, desde que me entendo por gente, sempre tive documento. Entretanto, nunca percebi sua importância até que passei a ser uma “imigrante”. 

Começa com o termo “imigrante”. Soa como algo alienígena, como se o planeta terra não fosse único. O termo nos EUA, inclusive, é “alien”. É como se todo seu passado fosse nada de repente e você só voltasse a ser humano quando seus documentos locais estiverem na sua mão, fisicamente falando. Daí um dia esse documento chega e você percebe que é exatamente a mesma pessoa. O céu não abre, não tocam trombetas nem há uma banda na sua porta para te receber. É só parte do procedimento. Resulta que a carteira de identidade é só a carteira, não a identidade. 

Não aparece no meu documento que fui convidada a vir, que pagava minhas contas ou que sou honesta. Muito menos fez alguma diferença no meu sotaque. É só um pedaço de plástico com minha foto. Alías uma foto que nem parece mais comigo de tanto que demorou a sair. 

E a pergunta nesse momento é, deveria voltar? Quero voltar? Por que não volto? E a dura verdade é que tenho sérias dúvidas se quando voltar, e se voltar a morar no meu país, me sentirei brasileira. 

Não é uma reclamação, a escolha foi minha. Sou do tipo tubarão, se parar morro e sei disso. É só o preço que se paga e não é baixo. Não estou triste nem só, acho que é apenas o inverno. Talvez por isso goste tanto da primavera. 

No dia em que busquei meu documento, uma figura me chamou atenção por duas vezes. A primeira vez, quando em algum momento olhei para ver quem era o primeiro da fila. Era um homem negro, muito alto, com um rosto tão bem traçado que parecia um desenho animado. Ele devia estar morto de frio, porque começou a enrolar seu cachecol em volta da cabeça até que só os olhos ficaram de fora. Fez isso com uma habilidade de quem está acostumado a fazê-lo para se proteger do sol, como um tuareg. Fiquei pensando, talvez seja outra criatura dos trópicos, como eu, tentando se habituar com o frio. Esqueci, mas alguns minutos mais tarde, o vi saindo com seu documento na mão. O lenço não estava mais no rosto e, olhando seu NIE, abriu um sorriso tão largo que quase me fez valer à pena a hora perdida na espera da fila. Era o sorriso que havia planejado dar e não dei. Acho que ele é mais sábio que eu.

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