94 – Agridoce, ao meu avô

Meu avô está com 88 anos. A idade vem demonstrando sinais evidentes, mas ainda é um homem muito lúcido. Depois que minha avó faleceu, trocou seu apartamento por uma caderneta de poupança e seu carro por uma mala zero quilômetros. Passou a se revezar entre a casa do meu pai e da minha tia. Fica mais tempo na casa da minha tia. Hoje minha mãe me contou que estava um pouco anêmico e desanimado. Depois disso, foi impossível não pensar nele o dia todo. 

Meu avô é um dos homens mais inteligentes que conheci, inteligência que herdou meu pai. A diferença é que meu avô teve pouca instrução formal e, mesmo assim, era capaz de discutir profundamente da troca de um pneu ao funcionamento de um submarino nuclear. Nunca encontrei um assunto do qual ele não soubesse conversar. 

Entretanto, às vezes me parecia que era duas pessoas. Uma com a família, que incluía minha avó, seus filhos e nós, os netos; outra com todos os demais. Um homem acre e bravo com as pessoas em geral, mas um avô fabuloso! Nunca teve muitos nem grandes amigos. Sempre foi de um temperamento muito difícil para se relacionar e nunca se esforçou para modificar isso. Não conheço a fundo seu passado, mas posso imaginar que sua vida jovem foi dura e amarga e, talvez sua inteligência, o fez perder a fé nas pessoas. A sensação que tinha é que ele não confiava em quase ninguém e fazia questão de demonstrar que também não gostava de quase ninguém. 

Acontece que sou neta e sempre fiz parte do seleto grupo a quem ele confiou e mostrou seu melhor lado. O homem que para os demais era emburrado e sério, era o mesmo homem que me buscava no aeroporto me fazendo cócegas e dizendo “pode morder, pode beijar, pode apertar”… 

Nas férias na sua casa não achava tão ruim acordar de manhã, pois sabia que na mesa do cáfe encontraria me esperando cabaninhas de índio esculpidas na ponta do pão francês e brincadeiras que faziam minha imaginação navegar solta. Depois me levava na pracinha para andar de pônei, brincar no parque e tomar “chicabon”. E mais tarde, quando queria dar sua cochilada, me enfiava junto na cama e pedia que me contasse a história da cegonha mentirosa por tantas vezes que só um avô poderia contar. É claro que quem dormia ao fim da história era ele.  

Também era ele quem nos levava ao Tivoli Parque da Lagoa e para andar no trenzinho de Cabo Frio, centenas de vezes! No parque, era quem tinha coragem e paciência de ir conosco na montanha-russa e no twist, brinquedos que adorava, mas não tinha idade para ir só.  

Meu avô construía brinquedos e jogos muito melhores do que os vendidos nas lojas. Acho que eram melhores porque víamos como eram feitos e participávamos da execução. Tinha ferramentas para tudo e sabia consertar tudo. Também nos levava para pescar com ele na única idade em que pescar me parecia uma aventura. Ele tinha uma forma diferente de se comunicar conosco e a gente se entendia sem muitas palavras. E para quem conhece meu trabalho e é um pouco observador, hoje também conhece um dos meus mistérios. 

O tempo passou e quase casei aos 19 anos, desisti na última hora. Foi a decisão mais difícil que tive que tomar até aquele dia e sofri muito. Minha família me apoiou e sei que foi quando resgatamos nosso passado, mas hoje estou falando do meu avô. E meu avô foi a única pessoa que nunca me perguntou o porquê, não me perguntou absolutamente nada, não me disse o que achava antes nem depois. Quando me recebeu, pegou minha mala e foi até o carro com a mão no meu ombro, me abrançando. Tive cinco anos outra vez, deixei para trás quilos de culpa e poucas vezes me lembro de ter sido tratada com tanto respeito. No silêncio da nossa língua de avô e neta talvez ele, que havia me contado tantas vezes a história da cegonha mentirosa, entendesse melhor que naquele momento eu não podia mentir. Acho que a única coisa que me disse foi que minha avó havia caprichado no almoço, preparado bife acebolado com uma mandioca frita crocante. Havia três dias que eu não conseguia comer, nada sólido passava pela minha garganta, mas naquele dia almocei. 

Agora gostaria de animá-lo e estou longe para sentar muda do seu lado e colocar a mão no seu ombro. Ligar e falar coisas melosas não é nossa língua nem nosso estilo. Não sei se conseguirei receber sua visita novamente, é um pouco complicado agora mais velho. Quem deve fazer o caminho sou eu. 

Fico um pouco curiosa para saber se com a idade ele recuperou sua fé nas pessoas ou se a perdeu de vez e, também por uma questão de respeito, nunca vou perguntar. Mas posso dizer que por seu exemplo quem ganhou fé nas pessoas fui eu. Aprender a reconhecer o lado bom e sincero do outro é muita coisa. 

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