Quando era pequena, boa parte dos meus amiguinhos tinham medo de escuro, de lagartixas, de monstros e de fantasmas. Eu tinha medo de ser burra.
Uma vez, quando me recusava a cortar o cabelo, minha mãe e minha avó vieram com uma história de que o cabelo grande pesava na cabeça e deixava a gente mais burra. Convenhamos, que sacanagem, né? Lembro de escutar aquela conversa com muita desconfiança que estavam me enganando, mas o pânico de ficar burra era maior e acabei fazendo papel de besta, pois cortei a porcaria do cabelo. Essa é minha primeira memória concreta de medo.
Fui criada em Brasília, uma perfeita fábrica de intelectuais. Não estou falando mal da cidade, que gosto muito, mas como qualquer lugar, tem seus pontos positivos e negativos. Acho até que de maneira geral as pessoas são muito injustas com Brasília, mas hoje precisarei ser crítica também. É um lugar frequentemente chamado de “Ilha da Fantasia”, que me soava um pouco absurdo quando morava lá, mas ficou muito claro quando vi de fora, com uma certa distância. A verdade é que Brasília, talvez por sua distância física e a forma como foi concebida, recebe o mundo através de filtros. É um “Castelo de Versailles” contemporâneo, situado uma montanha antes do “Castelo de Kafka”. Você até chega nele, mas não sem se macular e se emaranhar num sistema burocrático.
Além do mais, todo aquele planejamento, realmente facilita sua vida, é corfortável e você tem mais tempo. Com mais tempo você pode, por exemplo, pensar mais, ler mais, estudar outros idiomas… Posso afirmar que boa parte das pessoas mais cultas que conheci foi em Brasília. Adicionalmente, a possibilidade de viver em um mundo razoavelmente idealizado, dá um prato cheio para ser um teórico, um intelectual de verdade.
Passei minha adolescência buscando os livros e os filmes corretos, e me sentindo muito inteligente com isso. Nos meus sonhos mais secretos, queria ser uma intelectual.
Quando fui morar no Rio de Janeiro, com quase dezoito anos, tomei um banho frio de realidade. Meu mundo teórico foi para o saco! E achei que ser intelectual era um porre! Eu era, e sou, a burguesa que reneguei tanto. Como também não falava alemão, resolvi que essa história de filosofar não era para mim. Parti para vida, para o trabalho e para os prazeres.
Sem demagogia, tinha e tenho consciência da minha responsabilidade social e, na medida do possível, tento fazer ao menos o meu papel. Mas também tive que confrontar minha hipocrisia em achar muito cômodo ser a favor de um movimento de pessoas sem terra quando se tratava de uma fazenda no cu do judas, mas era assustadora a imagem dele batendo na minha porta. E uma hora bateu. Acusar policiais de massacres injustos me faz sentir redimida, mas a verdade é que se a arma estivesse na minha mão, será que não atiraria também? Conheci pobres indolentes e ricos trabalhadores, não digo que seja a regra, mas não houve como não redimensionar meus valores. Era fácil julgar um mundo do qual eu não fazia parte. Mas ao mesmo tempo, como poderíamos simplesmente nos conformar com o que existe?
Há muitos anos deixei uma parte dessas questões de lado e resolvi viver e pronto. Agora, por coincidência ou porque não há alternativa, isso me bate na cara novamente. A volta à vida acadêmica me fez confrontar velhos demônios.
Tenho uma professora que, a primeira vista, me parece uma mulher fabulosa, uma intelectual no melhor sentido da palavra. Daquelas que você escuta falando e pensa, queria ser assim quando crescesse. Para isso, só me falta ler uns 25 mil livros, 3 milhões de artigos, entendê-los, compará-los e buscar suas relações com fatos reais ao longo da história. Puta merda, como é difícil ser intelectual! Acho que não tenho competência nem paciência para todo esse trabalho! Mas como tapar os ouvidos e resistir a chance de tentar? E por que resisto tanto?
A verdade é que agora sinto muita falta do meu mundo filtrado, teórico e inteligente. Estar nele não fazia o mundo melhor, mas o fazia melhor para mim. Sinto uma saudade enorme do meu otimismo, de acreditar que faria diferença e que havia algo muito importante e um lugar muito especial me esperando. É egoísmo e não me importa, até porque é impossível, não será realizado. Invertendo meu passado, agora tenho muito medo de virar intelectual, talvez o bom mesmo seja ser burra.